quinta-feira, 20 de maio de 2021

A “cultura empresarial” brasileira

 

No seu livro A reprodução social – volume II – Política econômica e social: os desafios do Brasil, Ladislau Dowbor, dentre muitas afirmações importantes e férteis, faz outras tantas colocações problemáticas, como a que segue:

         “É impressionante constatar as imensas dificuldades de organização econômica em sociedades com pouca cultura empresarial” (página 19).

         O que seria essa “cultura empresarial”? Sobre isso, Ladislau não fala absolutamente nada, tal como se tivesse uma única cultura nesse sentido e ignorando como ela é entendida na prática. Podemos tentar traçar algumas definições a respeito desse assunto, partindo do pressuposto de que existem visões realistas e idealizadas (a última parece ser a dele).

         No contexto de seu livro, o que o professor Dowbor pretende sustentar, possivelmente, diz respeito à necessidade de uma visão empreendedora que leve em consideração um desenvolvimento econômico a longo prazo e geral, não apenas da empresa em questão. Tal visão esteve presente nas burguesias imperialistas. Por exemplo: a burguesia inglesa do século XIX iniciou o desenvolvimento de uma “excelente rede de estradas” para escoar a sua produção, sendo isso obra da indústria privada, que segundo Engels, garantia quase tudo nesse sentido, uma vez que “o Estado pouco ou nada fez nesse domínio”[1].

         Isso se explica, em parte, porque a burguesia britânica – assim como a estadunidense – tinha um projeto de nação, que se somava a um projeto de dominação mundial[2]. Portanto, não tinha uma visão restrita e medíocre, de lucro rápido e de curto prazo, como sempre se teve no Brasil, desde a época colonial. Desenvolver sua própria nação era parte indissociável desse projeto.

         O tipo de empreendedorismo da burguesia inglesa levou em consideração o desenvolvimento econômico de vários setores nacionais e não apenas o da sua própria produção, deixando algum tipo de saldo positivo para o país. Evidente que, em última análise, o empresariado inglês agiu daquela forma não por simples benevolência e caridade, mas visava, a longo prazo, a prosperidade econômica, poder e o seu próprio enriquecimento. Talvez seja isso que Ladislau Dowbor entenda por “cultura empresarial”, expressa naquele trecho inicial.

         Contudo, para entendermos a “cultura empresarial” na realidade brasileira, não podemos partir de uma “cultura” em abstrato, mas compreender como ela se manifesta no nosso país. Aqui, o empreendedorismo descrito por Engels não existe – a infraestrutura central partiu do Estado[3]. A etapa imperialista do capitalismo liquidou o “livre mercado” e a “livre iniciativa”, subordinando as nações neocoloniais e o conjunto dos governos das suas classes dominantes aos monopólios, aos trustes econômicos e às grandes corporações, que definem preços, políticas econômicas e decidem o papel que cada país pode cumprir no mercado mundial.

         Não há como entender a “cultura empresarial” dissociada desta visão de conjunto, que relacione o cenário internacional e os contextos nacionais, uma vez que na economia capitalista tudo está interligado, direta ou indiretamente, através do mercado mundial. Uma vez que compreendemos o cenário internacional, devemos analisar a mentalidade e o programa econômico da burguesia nacional (mais conhecida como “elite do atraso”) para o “desenvolvimento” do Brasil. Ele foi muito bem expresso por Fernando Henrique Cardoso, um verdadeiro guru político e econômico da burguesia brasileira: “Eu não penso que a burguesia local, fruto de um capitalismo dependente, possa realizar uma revolução econômica no sentido forte do conceito. A sua ‘revolução’ consiste em integrar-se no capitalismo internacional como associada e dependente”[4].

         Nenhuma definição poderia ser mais honesta do que essa, expressa também pela prática dos seus governos federais e estaduais, onde o PSDB dilapidou o patrimônio público em nome de um empreendedorismo fictício. A “cultura empresarial” no Brasil, portanto, não pode ter ambições empreendedoras que ultrapassem o associativismo e a dependência do capitalismo internacional. Torna-se, assim, um antiempreendedorismo ou, então, um pseudoempreendedorismo, dado que não empreende nada que não seja autorizado pelo grande capital internacional e tenha o Estado e o erário público como fiadores[5].

***

         Uma vez que compreendemos o contexto nacional e internacional, passemos a análise da “cultura empresarial” brasileira.

         Por estes terras, saqueadas desde 1500 e voltadas a produzir para mandar o melhor para fora, a “cultura empresarial” se manifesta na mentalidade do empresariado: tacanha, mesquinha, voltada para o lucro fácil de curto prazo, que despreza um projeto de desenvolvimento nacional e menospreza o próprio povo. Se é mais fácil, barato e rápido produzir soja do que desenvolver tecnologia de ponta através de empresas como a Embraer ou Petrobrás, por exemplo, que exige investimento em pesquisa, educação, tecnologia, universidades, etc., se joga tudo fora e volta-se exclusivamente para a produção de soja como se não houvesse amanhã.

         E pior do que isso, a produção de soja, que recebe generosos e vergonhosos subsídios do Estado e propaganda positiva ininterrupta da grande mídia, não reverte um centavo dos seus lucros para o desenvolvimento de outras áreas, como, por exemplo, educação e tecnologia. Além de dilapidar a natureza, ameaçar e assassinar agentes fiscalizadores ou ativistas do movimento sem terra, influencia diretamente os governos através de um lobby sem limites e imprime o ritmo da produção nacional – este é, em síntese, o projeto de país que defende e propaga a nossa “cultura empresarial”. Cabe destacar ainda que ela está pautada pela agressão física, pelo assassinato e por toda a truculência contra qualquer tipo de resistência aos seus interesses econômicos. A justiça, a grande mídia e os governos nos mais distintos níveis não são apenas coniventes com a verdadeira e única baderna – que é este tipo de “cultura e prática empresarial” –, mas são seus verdadeiros patrocinadores.

         Nas cidades não é diferente. Todo o movimento sindical de resistência aos abusos da exploração desmedida e desregrada é tratado – ainda hoje! – como “caso de polícia”; ou, quando são pequenos, espontâneos e confusos, largados à própria sorte para que cansem de gritar e voltem para casa com o rabo entre as pernas.

         A cultura empresarial brasileira além de não ter a menor preocupação com um projeto de desenvolvimento nacional, autosabota o que produz para continuar lucrando. Constrói estradas e ruas com asfalto mais vagabundo para que estrague logo e novamente seja contratado para “reconstruir” tudo. Aposta, muitas vezes, em projetos faraônicos para impressionar, mas que são desconexos entre si, não podendo gerar nenhum desenvolvimento nacional, a não ser o esbanjamento irresponsável. São exemplos a rodovia transamazônica, que vai do nada para lugar nenhum; e a hidrelétrica de Itaipu, considerada no seu tempo a maior do mundo[6], mas que, a despeito de ter esse título, não reverte “a sua grandeza” em baixos preços de eletricidade para a população e para o desenvolvimento econômico do país, nem sua grandiosidade tem reflexos tecnológicos inovadores, apenas maiores impactos ambientais. Sem falar na inutilidade de estádios de futebol, prédios sem função social (mas apenas para especular), dentre outros megaprojetos que ocupam a mão de obra durante algum tempo, mas não tem nenhum sentido de desenvolvimento econômico a longo prazo.

Se detém o monopólio dos transportes públicos através de empresas sem licitação, esta “cultura empresarial” torna-se inimiga de qualquer evolução nesse setor, como, por exemplo, o metrô em cidades que ainda não o possuem. Usa e abusa de discursos contra a autoridade econômica do Estado, condena o “comunismo”, mas é a primeira a desenvolver redes de sonegação fiscal, a intervir autoritariamente na economia e a se pendurar no Estado para utilizá-lo como garantia dos seus negócios.

Esta “cultura empresarial” desenvolve uma “ética” própria, voltada a apoiar qualquer coisa (discurso, violência, partido, políticos, governo, conjuntura, ideologia...) que beneficie irrestritamente seus negócios. Da mesma forma, torna-se ferrenha opositora de qualquer coisa que os ameace. Só reconhece a necessidade da meritocracia para os pobres e condena o nepotismo apenas quando é contra si. Não poupa despesas para indicar amigos e parentes, seja em cargos chaves nas grandes empresas, seja nos postos do Estado. Usa suas reservas financeiras para comprar a justiça, os políticos necessários e as pessoas sem recursos financeiros e sem caráter – isto é um verdadeiro investimento, pois garante que estas reservas aumentem. É esta “ética” que ensina para as nossas crianças e dissemina como o “correto” para toda a sociedade, mesmo que não possua coragem e honestidade para assumir. “Ser alguém na vida” para o nosso empresariado é seguir este “caminho honroso”. Os filhos receberão seu quinhão através da herança e continuarão com esta prática edificante.

         Poderíamos acrescentar que tudo isso, a bem da realidade, são características do capitalismo na sua fase imperialista, não sendo uma especificidade brasileira. Contudo, a elite de outros países não age tão tacanhamente, não sabota a sua própria economia e o seu mercado interno, como fazem, por exemplo, a grande mídia e setores empresariais ligados à operação Lava-Jato. Quando se trata de tirar um governo inconveniente ao seu lucro imediatista não há parâmetros, ética ou “deus” que os detenha. Aqui, a “cultura empresarial” adquire certos contornos perversos e estúpidos, que, bem ou mal, terminam por espalhar-se para a população.

No entanto, dizer que a burguesia não tem projeto de país é uma impropriedade. Tal “cultura empresarial” é a própria expressão deste projeto de país da “nossa” elite do atraso, já muito bem descrito e defendido por FHC: manter o Brasil como periferia do sistema, totalmente dependente do capital e da tecnologia estrangeira.

         Desta verdadeira entrega do país de bandeja aos lobos do mercado mundial depende os seus lucros mirrados (se comparados ao deles, evidentemente, porém gigantescos se comparados ao povo brasileiro), que podem mixar ainda mais a qualquer mudança de conjuntura, mas que são defendidos com unhas e dentes – inclusive se recorrendo à fraude e ao assassinato com as mais apavorantes justificativas “éticas”.

 

 

Referências

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