quinta-feira, 4 de abril de 2024

Milei e os valores ocidentais

 

Javier Milei discursou no fórum econômico de Davos de 2024 afirmando que “os valores ocidentais estão ameaçados” pelo “comunismo” e por países como China e Brasil. Isto é, reforçou o discurso eleitoral que o sagrou vencedor das eleições argentinas de 2023.        

         Contudo, cabe perguntar aqui o que são estes “valores ocidentais” ameaçados, bem como o que os expoentes do neofascismo – como Milei, Bolsonaro e Trump – entendem por “valores ocidentais”?


         Tal como foi comum no passado – para usar uma expressão célebre – “chutar Hegel como um cão morto”, no presente é comum chutar “os valores ocidentais” e “eurocêntricos” como um cão morto!

         Por certo, os europeus cumpriram um papel cruel no processo civilizatório, do qual precisamos rever e mesmo renunciar a uma série de heranças desses valores. No entanto, isso precisa ser feito com lucidez; o que muitas vezes não é o caso.

 

         Certamente os neofascistas, tendo, no momento, Milei e a presidência da Argentina na “vanguarda” desta podridão, se referem aos valores que mais lhe são caros: a propriedade privada e a família burguesa, que é a base de sustento da primeira.

         A sua receita é simples e cruel: jogam-se todos os valores ocidentais num balaio e tentam acionar na psique coletiva mundial o velho “nós contra eles”, sempre muito eficaz. Depois, relacionam o termo “propriedade” com liberdade, o que não é, na maioria das vezes, verdade. Logo após, juntam a ela tudo o que é emocionalmente caro a maioria das pessoas, como a família, a religião, os valores habituais cultivados cotidianamente.

 

         O que Milei não diz é que atrás da propriedade privada burguesa estão inevitavelmente relacionados o colonialismo, a exploração de povos inteiros, o rentismo do sistema financeiro, o racismo, a xenofobia, a ambição egocêntrica desmedida e descontrolada; isto é, os pilares centrais do capitalismo “ocidental” que servem de base para o imperialismo estadunidense frente à ascensão meteórica do capitalismo “oriental”, tendo a China como o carro chefe.

         Ao jogar com as forças pré-conscientes e não refletida da maioria das pessoas, Milei pretende legitimar e angariar apoio ao seu projeto de saque do país via dívida “pública”, inflação fora de controle, imposição de uma dolarização que beneficia apenas a elite argentina – isto é, vai na contramão do que desejam os países do BRICS. Inclusive inviabiliza a adesão da Argentina aos BRICS, o que é um dos principais objetivos do seu governo, amplamente apoiado pelos governos estadunidenses – sobretudo pelo possível futuro governo de Donald Trump.

 

         Em sua decadência histórica, os EUA não podem abrir mão de promover sabotagens financeiras, como criação artificial e arbitrárias de barreiras alfandegárias e guerras comerciais no mercado mundial, sem deixar de ter consequências que se desenrolem numa reação em cadeia, com consequências nefastas sobre os países e pessoas mais pobres (que são mantidos na sua área de influência a partir da manipulação emocional feita através da identificação com os “valores Ocidentais”).

         As guerras comerciais tendem a degenerar em guerra militar aberta – seja feita através da intervenção direta dos EUA como no caso do Iraque e do Afeganistão; seja através de sua “terceirização” por “aliados locais”, que depois são largados à própria sorte, como é o caso da Ucrânia e, futuramente, será de Taiwan.

         Além disso, em sua decadência econômica e política, os EUA passam a inflação monetária do dólar para os países fantoches através da impressão de mais dólares sempre que as estratégias do seu governo julgam necessárias. As elites locais abraçam a inflação sem titubear e os custos, como sempre, são passados aos mais pobres.

         A decadência do imperialismo estadunidense também se traduz por uma distorção permanente do que ele vende como “jornalismo”, que é, na realidade, uma máquina de doutrinação em massa de seus valores e necessidades propagandísticas de guerra ou de “paz”, e de forma alguma pode ser tratado como “informação”. As narrativas “jornalísticas” dos EUA e dos seus aliados “ocidentais” jogam milhões de pessoas contra os inimigos do seu império, confundindo-os como “inimigos do Ocidente” e “da liberdade”.

         A “liberdade” de imprensa ocidental é demonstrada pela perseguição implacável a jornalistas como Julian Assange, e pessoas como Edward Snowden, que ousam enfrentar os interesses estadunidenses em nome do acesso à verdade. Esta “liberdade” também se expressa na manipulação descarada e sem escrúpulo da privacidade das pessoas através das redes sociais, dos seus algoritmos, bem ao estilo do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.

 


Os valores ocidentais e europeus são apenas negativos?

         Julgamos importante encontrar uma visão equilibrada, que saiba estabelecer um olhar crítico sobre a herança ocidental e europeia, mas que saiba também separar o joio do trigo, o progressivo do regressivo; aquilo que pode ajudar na emancipação proletária e humana daquilo que serve para justificar a exploração, a colonização e a opressão.

         O neofascismo de Milei, Trump e Bolsonaro, como corrente internacional, certamente defende os “valores ocidentais” naquilo que têm de pior, negativo, repressivo e opressor, servindo perfeitamente para justificar a exploração e a fonte de sua riqueza. Temem perder seus privilégios históricos e imediatos, por isso recorrem à fraude e à distorção para sustentar a parte retrógrada desses valores, se escondendo atrás de justificativas “nobres”, de tradição e de “alerta” em relação à “ameaça comunista”, “oriental”, “de fora”, aos “valores ocidentais”, como a propriedade e a família burguesa, sempre associados indiscriminada e acriticamente à liberdade.

         Ao invés de fazermos a crítica à herança cultural do Ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do ponto de vista dos povos colonizados, explorados e assassinados, das mulheres e dos povos africanos, indígenas e asiáticos, joga-se fora a criança com a água suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é pensada; ou se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do zero, como se não houvesse nada de positivo.

         O fato do neofascismo exaltar o pior da cultura ocidental – isto é, tudo aquilo que precisamos renunciar e superar –, não exclui o fato de que ela tem muitas contribuições que transcendem o colonialismo e a exploração, sendo parte do tesouro cultural humano. Revisitar esses valores com o olhar crítico é parte importante desta tarefa de renunciar ao que tem de ruim e saber superar estes valores, incorporando seus pontos positivos.

         O discurso de Milei em Davos visa, portanto, tensionar a dicotomização do pensamento e tenta salvar os valores ocidentais decadentes que sustentaram e ainda sustentam o imperialismo estadunidense e europeu, do qual é um vassalo. Parte do movimento sindical e da esquerda responde, com tonalidades identitárias não refletidas, esquecendo-se de olhar através desta lente do “caminho do meio” para dificultar um pouco mais a vida do neofascismo, que usa deste estratagema da psicologia de massas do “nós contra eles”, para adquirir vantagens política na manipulação emocional da classe trabalhadora na América e no mundo todo.

         Contudo, um dos valores ocidentais mais cultivados pelas pessoas (incluindo militantes nos seus diferentes matizes), e que mais contrasta com o pensamento oriental, é a ambição egocêntrica desmedida. É bonito e louvável, segundo o Ocidente, ser ambicioso e procurar a fama individual visando acumular riquezas. Diluir-se no todo causa um pavor descomunal no ser humano ocidental, que não mede esforços para sobressair-se de alguma forma. Não apenas os valores ocidentais se baseiam na ambição, mas o próprio funcionamento do capitalismo depende dela, cultivando-a em muitas esferas. Basta reparar o abuso das propagandas e de consumismo, ambos baseados em formas de insuflar o egotismo.

         Se é importante sabermos reconhecer a contribuição sincera e a importância individual de cada ser humano (fatores levados até o extremo da demência pelo neoliberalismo ocidental), é crucial para a superação dos “valores ocidentais” trilhar um caminho da virtude que seja natural e espontâneo; criar e não se apossar; agir e não esperar.

         Como diz a sabedoria milenar oriental: quem só vê beleza em vencer é quem se alegra em matar; e quem se alegra em matar, não verá realizado o seu propósito no mundo; o vencedor de uma guerra ministra um ritual fúnebre!

         Milei, como um ambicioso vassalo do imperialismo ocidental, procurar reordenar o sistema financeiro argentino para sustentar a máquina de guerra do complexo industrial-militar dos EUA que usa da força bruta, real e simbólica, visando perpetuar os piores valores ocidentais que, sem sombra de dúvida, devemos renunciar. Da mesma forma, é importante relembrar os bons valores ocidentais de luta pela liberdade e emancipação humana (sem nunca esquecer “do todo”) nesta luta contra os supostos auto intitulados porta-vozes do “mundo Ocidental”, que são, em essência, porta-vozes de uma nova forma de fascismo.

         Este é, em síntese, o conjunto de ideias e valores que Milei e cia. querem defender com unhas e dentes, já que, no momento, é o neofascismo o melhor “valor ocidental” capaz de preservar a sua fonte de riqueza.