quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A ineficiência do mercado

1.
As empresas privadas que "prestam serviço" funcionam como bem entendem e não são regulamentadas por nada além da sua sede insaciável por lucros. E nos apresentam insistentemente a "privatização" como "solução".
A NET, assim como as empresas de telefonia privada, é campeã de reclamações no PROCON e incapaz de resolver qualquer problema dos seus clientes quando estes dizem respeito a sua margem de lucro. Por mais de 4 vezes liguei para a sua central na perspectiva de reduzir o valor (uma vez que muitos conhecidos pagavam cerca de 150 reais a menos por um serviço idêntico).
Por mais de 3 vezes o valor veio superior ao combinado no maior descaramento. São empresas que não dá pra confiar, mentirosas e ligeiras. É este "livre mercado" que vai minando as relações sociais, aumentando o descontentamento, a confusão e o lucro na proporção inversa da qualidade do serviço. Estes serviços são praticamente monopólios de duas ou três empresas, não sendo permitido pelos dogmas neoliberais a participação do Estado nessa competição injusta. No maioria das vezes tem os mesmos valores (trustes e cartéis de preço) e os mesmos problemas.

2.
Quanto mais escancarado e escandaloso é um fato, mais ele passa desapercebido e se esconde.
A dívida "pública" (antigamente chamada de dívida externa) é um roubo legalizado. A maior das corrupções e um vínculo moderno de escravidão econômica e política. É a maneira como o capitalismo encontra pra se manter na sua atual fase histórica, institucionalizando o saque das nossas riquezas.
Não há como resolver nenhum problema do país sem resolver o problema da dívida "pública", incluindo saúde, educação e a própria independência nacional. Nenhum partido de direita debate isso.
Ao contrário: pra eles tudo isso é natural. PSDB, Democratas, MDB, PSL, Partido "Novo", Solidariedade, PP, PPS, PTB, PDT, PSB, Rede, etc., não apenas querem nos fazer crer que não existe vida sem submissão e escravidão ao mercado, mas trabalham dia e noite pra garantir que o Estado seja o fiel pagador da dívida "pública" (eterna) para o sistema financeiro. O PT no poder não foi capaz de enfrentar esta lógica: a dívida seguiu aumentando horrores nos seus governos.
É por tudo isso que entra governo e sai governo e nenhum problema social é resolvido. Discurso eleitoral não bate com a prática de governo!

3.
Os políticos neoliberais da direita, influenciados pelos seus amos da Escola econômica de Chicago, inventaram os dogmas (quase religiosos) de que o Estado não pode intervir na economia. Se um governo de um país semi-colonial decide investir num setor social, logo sofre os ataques ininterruptos da imprensa a soldo do grande capital e imediatamente sofrem embargos e boicotes. Chegam ao absurdo de acusá-lo de "socialista" ou "comunista", mesmo que tenham convivido pacífica e, até mesmo, subordinadamente à iniciativa privada (como foi o caso dos governos petistas). As agências de classificação de risco (totalmente controladas pelos interesses imperialistas) lançam seus boletins de terrorismo psicológico para anunciar o apocalipse.
É preciso ser dito que aqui não operam "leis econômicas" inconscientes, mas a política econômica do imperialismo mais consciente e mais nefasta possível. A dívida "pública" e o sistema financeiro tem uma única finalidade: transferir recursos públicos e a riqueza nacional diretamente para o bolso dos grandes magnatas e banqueiros para sustentar o seu parasitismo improdutivo e gerador de miséria nas amplas massas.
Não é possível tolerar nem por um segundo mais este tipo de velhacaria econômica, que tem a única finalidade de manter a dominação política e a exploração do trabalho. Ao contrário disso, é apenas estes candidatos e partidos que recebem o maior destaque e o maior impulso nas eleições de outubro.

O espantoso chauvinismo tupiniquim

1.
A crise da imigração dos venezuelanos para o Brasil é um atestado da incapacidade do capitalismo gerar solidariedade entre os povos. De uma só vez, deixa claro o papel nefasto da mentalidade fascista, que tem se disseminado no nosso país; e da falácia de que a Venezuela seria "socialista".
Ao invés do estreitamento da relação entre povos irmãos, apenas o ódio incontido, o medo do novo, o tratamento bélico de povos em guerra. Nem comércio, nem intercâmbio cultural e artístico, apenas mais mentiras e distorções reproduzidas até a exaustação pela grande mídia nacional e internacional, e mentes sedentas de disseminar um barbarismo sádico.

2.
Bolsonaro defende a privatização de tudo nos moldes da atual entrega da EMBRAER! É um dilapidador do patrimônio público! O seu patriotismo é uma fachada e o seu fascismo só tem a finalidade de reprimir o próprio povo!

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Qual é a estratégia da revolução brasileira?


Eu não estou acima da justiça.
Eu acredito na justiça.
Se eu não acreditasse na justiça eu não
teria criado um partido político, eu teria
organizado uma revolução”
(Discurso de Lula, em 7 de abril de 2018)


Prólogo
            O Brasil é um país rico, repleto de recursos naturais e possuidor de uma grande diversidade cultural. Apesar disso, o povo passa fome e pesados grilhões econômicos e políticos impedem o desenvolvimento do país. Urge uma mudança social que supere este regime de exceção para o povo, baseado em uma “democracia” que funciona através da corrupção e da manipulação midiática. Em síntese, o Brasil precisa de uma revolução socialista. Esta conclusão aparentemente simples, sentida por largas camadas populares, gera um problema complexo: qual é a estratégia da revolução brasileira?
            Este debate não é realizado aberta e seriamente pela “esquerda” brasileira (principalmente expressa por PT, PCB, PSOL, PSTU e PCO), que está falida em todos os sentidos. A tarefa recai sobre os ombros das pequenas organizações de militantes, que rompem aqui e acolá, de norte a sul do país, com todas estas organizações, mas terminam esbarrando no mesmo problema de concretizar o programa, a filosofia e a estratégia da revolução socialista.
            Por que a “esquerda” brasileira está falida? Dentre outros motivos históricos e ideológicos, porque se adaptou totalmente ao jogo democrático-burguês, como a quinta coluna de sustentação do regime e do sistema. Todas as maiores organizações partidárias e sindicais referidas, através de uma política de adaptação comprometeram a sua independência política e, consequentemente, sua independência de classe. A adaptação não se deu somente no campo institucional político, mas foi precedido por uma adaptação ideológica, que transformou a teoria política socialista e a estratégia revolucionária em um palavreado estéril, tornando-se totalmente aceitável para a burguesia e o imperialismo (ainda que estes o combatam de diversas formas para não deixar que avancem e saiam de certos limites).
            Duas teorias centrais se sobressaem nesta adaptação teórica ao capitalismo, comprometendo definitivamente a definição de uma estratégia revolucionária justa e coerente: I – a teoria do nacional-desenvolvimentismo (que possui outras variantes, como a estratégia democrático popular, defendida pelo PT e seus satélites), muito semelhante ao evolucionismo social-democrata europeu, mas adaptado às condições latino americanas; II – a “revolução democrática” (uma degeneração da Teoria da Revolução Permanente, formulada pelo trotskismo na sua luta contra o stalinismo, cujos principais expoentes são do PSOL e do PSTU, mas também estão em correntes do PT e do movimento sindical em geral). Ambas teorias se assemelham e são uma espécie de adaptação (consciente ou inconsciente) da teoria da revolução por etapas defendida pelo stalinismo. Em síntese, elas comprometem a independência de classe dos trabalhadores os subordinando à direção política da burguesia, de uma forma ou outra.
            Assim, a teoria destas organizações de esquerda as leva a uma prática conciliadora, reformista e etapista. Em nenhum caso pode ajudar a promover e a organizar uma revolução socialista no Brasil e na América Latina.
***
            Os seres humanos fazem a história. Graças à contribuição teórica marxista (dentre outras), o fazem de forma cada vez mais consciente, embora com inúmeras dificuldades. Assim como os seres humanos, a sociedade também é contraditória, pois reúne em si diversas forças, culturas, tendências, interesses, paixões, facetas auto excludentes, como expressão da sua evolução tortuosa. Estas contradições, como sugerem muitos intelectuais burgueses, não possuem caráter absoluto. Podem ser compreendidas e minimizadas. Mas todo e qualquer trabalho político necessita levá-las em consideração sob pena de cair no doutrinarismo e na abstração.
            Aqueles que esperam encontrar explicações lógicas, cartesianas, em linha reta, dos fenômenos sociais e psicológicos, cairão em insolucionáveis contradições. O trabalho político revolucionário não fluirá e poderá resultar em deformações e, por fim, naufragar no desânimo. Os trabalhadores conscientes, suas organizações sindicais e políticas, não podem mais ignorar os efeitos devastadores do irracionalismo na estrutura humana das massas. Idealizar a massa, esquecendo-se destas contradições intestinas é um erro muito grave que gera diversos empecilhos para a emancipação do proletariado. A psicanálise de Freud nos demonstrou que os seres humanos não são apenas seres racionais, mas, também, seres irracionais. Sabemos hoje que na nossa mente, bem como em toda a realidade, existem elementos e fenômenos conflitantes que tem efeitos devastadores e paralisadores. Adoramos o prazer, mas também cultuamos (geralmente) de forma inconsciente a dor. Exaltamos o amor, mas também o ódio. Buscamos a liberdade, mas cultivamos medos inconscientes em relação às suas consequências. Além disso, há na nossa psique aquilo que os antropólogos chamam de “misoneísmo”: um medo profundo e supersticioso do novo.
            A estrutura da psique humana, então, debate-se na contradição entre o desejo intenso de liberdade e o medo dela. Apesar de todas as contradições presentes na nossa mente (amor e ódio; desejo e culpa; busca por libertar-se, mas medo das consequências; necessidade de uma rotina e aborrecimento com o tédio), também há intrinsecamente no nosso ser um profundo desejo de revolta, de colocar para fora as humilhações, limitações e opressões da vida, resultado de uma sociedade dividida em classes. É este instinto que viveu nas gerações passadas (revolta de Spartacus na antiguidade, rebeliões camponesas na Europa medieval, o Quilombo dos Palmares de Zumbi no Brasil colonial, a Revolução Francesa de 1789, a Revolução Russa de 1917, etc.); é este instinto que embalará as gerações futuras, mesmo com todas as contradições psíquicas e os esforços das classes dominantes para deter a roda da história.
            Cabe a vanguarda das lutas ter paciência e perseverança neste caminho. A necessidade do trabalho ousado, de não ceder ao canto de seria da acomodação, da passividade, daquele sentimento dócil de não querer bater de frente com os exploradores e os seus capitães do mato, do suposto “caminho mais fácil”. Deve saber a hora de avançar ou recuar e buscar a melhor forma para isso. Os intelectuais ao seu serviço precisam estudar e conhecer todos os campos humanos; não apenas o político, mas o científico, cultural, o psicológico, o sentimental.
Esboçar uma estratégia para a revolução brasileira, levando tudo isso em consideração, é uma das principais preocupações deste texto.

1) O desenvolvimento do capitalismo no Brasil
           
I
A resposta à pergunta sobre “qual é a estratégia da revolução brasileira?” requer uma retomada da história do desenvolvimento do capitalismo no mundo e no Brasil. Os teóricos marxistas concluíram por duas passagens das formações econômicas pré-capitalistas para o capitalismo: a via clássica e a via prussiana. A via clássica teria suas principais expressões nas rupturas revolucionárias da Inglaterra em 1628-1688, na França em 1789 e nos Estados Unidos em 1776, a partir de uma transformação violenta em que a grande propriedade agrária é fracionada, se convertendo em pequena propriedade burguesa, gerando, assim, um mercado interno e as condições para a industrialização; proclamando uma república “democrática” ou, pelo menos, uma monarquia constitucional. A via prussiana, por sua vez, teria como exemplo a transição do feudalismo para o capitalismo na antiga Prússia (atual Alemanha), onde as transformações da propriedade agrária medieval se processaram de forma lenta e gradual, isto é, de forma “reformista”, se adaptando a rotina, à tradição e se transformando lentamente em fazenda de Junkers (antigos nobres que passaram a explorar suas terras a partir de uma perspectiva capitalista).
            Resumidamente podemos afirmar que a “via clássica” implica uma radical transformação da estrutura agrária: a antiga propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração camponesa; isto é, ocorre a reforma agrária e a mudança das instituições políticas. Já a “via prussiana” conserva a dimensão da velha propriedade rural, se tornando gradativamente empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de formas de trabalho fundadas na coerção extra econômica, em vínculos de dependência ou subordinação que se situam fora das relações “impessoais” de mercado. É evidente que isso permite a conservação ou até mesmo o fortalecimento do poder político do velho tipo de proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegiados no aparelho de Estado da “nova ordem” capitalista.
            O desenvolvimento do capitalismo no Brasil seguiu a “via prussiana”. As transformações ocorridas na história brasileira não resultaram de autênticas revoluções burguesas, de movimentos independentes provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população e abrindo o caminho para o capitalismo; mas se processaram através de “acordões” de bastidores entre as elites, de uma conciliação entre os representantes de grupos opositores dominantes economicamente. Conciliação esta que se expressa sob a figura política das “reformas pelo alto” e se sintetiza na expressão clássica de um político mineiro durante a guerra civil entre elites, que ficou conhecida como “Revolução de 1930”: “façamos a revolução antes que o povo a faça”. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil preservou não apenas o latifúndio introduzido pelos portugueses, como a escravidão, que durante o Império conviveu com formas de trabalho assalariado.
            No Brasil, portanto, não houve nenhuma grande revolução que tenha mudado a estrutura do atraso, mas apenas acordos entre as elites para acalmar os movimentos de descontentamento popular, gerando uma “modernização conservadora”. Assim, as tarefas históricas que a burguesia brasileira não realizou, tais como a reforma agrária (fim do latifúndio), a criação de autênticas instituições democrático-burguesas (isto é, uma república democrático-burguesa), o fim do domínio dos monopólios imperialistas internacionais, a industrialização, a criação de um forte mercado nacional, a luta contra o obscurantismo religioso e medieval, ficaram como resquícios dos regimes econômicos e políticos anteriores. O latifúndio foi incorporado pelo mercado internacional (através do agronegócio e de outras formas); as instituições democrático-burguesas padecem pelo clientelismo, paternalismo e patrimonialismo (todos estes alheios ao espírito “meritocrático” do capitalismo), sem falar no voto a cabresto; a Igreja não apenas não perdeu poder e influência, como controla grande parte da educação privada, de canais de televisão e, tal como o antigo regime francês, não paga impostos, influenciando, pelo poderio econômico e ideológico, o poder político.
            Em síntese, a burguesia dos países que não atingiram o capitalismo através da via clássica terminou por se amoldar ao mercado mundial como apêndices, serviçais e vassalos da burguesia imperialista, totalmente dependente dos centros imperialistas internacionais, seja por razões tecnológicas, financeiras ou ambas. A burguesia russa terminou como vassala do czarismo. A brasileira viveu à sombra de uma monarquia decrépita e escravista, que, como reflexo das condições políticas e econômicas do país, ajudou a desenvolver uma mentalidade agrária, de simples exportadora de matérias-primas (café, borracha, soja, suco de laranja, carne, petróleo, minérios, etc.). A formação de um mercado interno e o desenvolvimento industrial no Brasil ocorreram apenas na virada do século XIX para o XX – sobretudo com a “Revolução de 1930”. A contradição básica entre a classe dominante brasileira se dá entre o seu setor agrário exportador (representado pelos latifundiários) e uma esquálida burguesia urbana industrial, que teve seus interesses expressos ao longo da República Velha por uma “classe média progressista”, que sempre lutou por maior participação política e por modos de vida modernos. Em 1930 esta classe média ajudou a levar ao poder Getúlio Vargas e um setor da burguesia que tinha um interesse confuso no desenvolvimento de um mercado nacional.
Quem patrocinou a industrialização foi o Estado a partir da “Revolução de 1930”. A indústria nacional já nasceu tímida e restrita a certos limites. Quem ousasse ultrapassá-los sofreria com a oposição dos latifundiários-exportadores, os tradicionais aliados do imperialismo, a desestabilização política internacional e golpes de Estado. Sendo assim, a burguesia brasileira (seja a urbana, mas, sobretudo, a agrária) se amoldou a esta condição semicolonial, investindo na produção de comoditties e na desvalorização monetária (a burguesia agrária, que tem sua produção voltada ao mercado internacional, prefere receber em dólares, uma vez que a conversão para moeda nacional lhe concentrará ainda mais renda). A burguesia semicolonial agro-exportadora não quer ouvir falar em desenvolvimento científico e tecnológico ou em industrialização, a não ser, é claro, para as técnicas da qual depende a sua produção econômica. Para industrializar um país atrasado, como o Brasil, a burguesia semicolonial inevitavelmente entra em choque com os interesses da burguesia imperialista, cuja indústria é muito mais forte. Sendo assim, a burguesia brasileira nunca teve interesse em industrializar o país, a não ser em ramos muito secundários, pois teme à morte se chocar com os interesses imperialistas.
A burguesia brasileira – a que alguns setores da “esquerda” chamam de “elite nacional” – tem como seu único projeto manter o país como uma plataforma de exportação de produtos primários (comoditties) para o mercado mundial, do qual ficará sendo sempre um setor periférico e subordinado. Este projeto tem como características: não industrializar o país, subsidiar o empresariado brasileiro que produz comoditties a partir do incentivo fiscal do Estado e às custas do subdesenvolvimento em todas as demais áreas sociais (inclusive da fome de largas camadas populares), câmbio flutuante e desvalorização monetária, inflação (pois esta serve como um subsídio financeiro indireto para o capital do país), mercado desregulamentado (sobretudo o financeiro, o que possibilita a especulação dos grandes capitalistas e a obtenção de lucros estratosféricos, enquanto impossibilita o reinvestimento na diversificação da produção econômica), manutenção do latifúndio para a exploração do agronegócio e escusas relações com os monopólios industriais dos países imperialistas. Esta estrutura explica o atraso do país, a corrupção infindável e a fome de grande parte da população brasileira.

II
Foi no final do século XIX e no início do XX – durante o período que se convencionou chamar de República Velha (1889-1930) – que a classe dominante brasileira se dividiu nas duas alas que dariam a dinâmica da vida política “moderna” do país: a agroexportadora (os latifundiários ligados ao imperialismo e ao agronegócio) e a burguesia urbana (que tinha os interesses expressos, naquela época, por uma atuante classe média preocupada com o desenvolvimento urbano, novas instituições políticas e um novo sistema eleitoral, cujos movimentos mais radicais se manifestaram no tenentismo). A nascente pequena-burguesia urbana, que expressava os interesses da grande burguesia vacilante, visava o desenvolvimento de um mercado nacional, o que poderia diversificar a produção, incomodando e ameaçando o poder econômico da burguesia agroexportadora, ligada ao mercado mundial e, naquela época, ao imperialismo inglês. Ao contrário do que apontou o stalinismo e outros teóricos reacionários, esta disputa entre a burguesia não representava a luta de uma burguesia retrógrada contra outra progressista, que teria um projeto revolucionário de nação, tal como tinham as burguesias que seguiram a via clássica. Ambas frações visavam e visam o controle do botim estatal e das verbas públicas, portanto, da chave do cofre que garante o benefício de sua própria produção às custas da maioria da população. Esta disputa polarizou o país e continua polarizando ainda hoje. No passado se expressou na luta entre a elite cafeicultora, de um lado, contra a burguesia urbana e grande parte da classe média (principalmente aquela que apoiou o varguismo), de outro. Como sabemos, a elite agrária perdeu parcialmente o poder durante a era Vargas, mas voltou com tudo após as sabotagens políticas que levaram o caudilho ao suicídio. O setor agroexportador se impôs novamente e escancarou as portas ao imperialismo ianque, seja através dos governos “democráticos” entreguistas, ou, sobretudo, a partir da ditadura militar.
Hoje a disputa inter-burguesa se dá – com mudanças consideráveis uma vez que a população cresceu de cerca de 41 milhões, em 1930, para mais de 209 milhões, em 2018 – entre o setor agrário exportador (ligado, sobretudo, ao agronegócio) liderado pelo PSDB, o seu séquito de partidos burgueses e uma classe média alta extremamente reacionária; em contraposição a uma classe média mais “progressiva”, uma burguesia supostamente nacional (sobretudo as empreiteiras e os setores ligados à exploração estatal do petróleo e do minério) e as organizações dos trabalhadores controladas por uma forte burocracia sindical, liderados pelo PT e o seu séquito de partidos reformistas e burgueses. A ala do PSDB é apoiada pelo imperialismo norte-americano e europeu, enquanto que a ala liderada pelo PT é apoiada por China, Rússia e uma pequena parte vacilante dos países europeus. Os trabalhadores historicamente não tiveram uma direção que formulasse uma política revolucionária capaz de organizar o proletariado de forma independente. Esta lacuna ainda permanece em aberto, por isso o país segue polarizado entre estes dois campos burgueses.

III
            A teoria marxista convencionou chamar as revoluções burguesas de “revoluções democráticas” (ou democrático-burguesas), justamente por lutarem contra os restos do feudalismo e das demais formações pré-capitalistas, tal como a sociedade colonial escravocrata brasileira (que não era feudal, mas que tampouco era capitalista, apesar de ter sido peça chave para a acumulação primitiva de capital na Europa). Desde a experiência revolucionária russa em 1917 ficou bastante evidente que a burguesia não mais cumpriria um papel revolucionário de ruptura com os resquícios dos regimes econômicos pré-capitalistas. A rigor, esta conclusão é ainda anterior, desde a revolução europeia de 1848, a partir da qual Marx e Engels concluíram que a burguesia não cumpriria mais nenhum papel revolucionário independente; ao contrário, como já tinha atingido o posto de classe dominante, passava a ver o proletariado como inimigo. Incitá-lo contra os resquícios dos regimes feudais europeus – tal como havia feito em 1789 e 1830 – poderia voltá-lo contra si própria. As tarefas das revoluções burguesas inconclusas recaíam agora sobre os ombros dos trabalhadores, que precisavam lutar com total independência política para poder realizá-las; isto é, eram integradas ao programa do proletariado em sintonia com as tarefas da revolução socialista. Porém, a “esquerda” brasileira não via as coisas desta forma.

2) A estratégia democrático-popular ou o nacional-desenvolvimentismo
           
I
A estratégia democrático-popular é uma adaptação do reformismo à realidade latino-americana. Ela é uma reedição disfarçada da estratégia da “revolução democrática nacional” do PCB, formulada durante o auge da influência stalinista na III Internacional. As teses da Revolução Permanente de Trotsky foram redigidas para combater esta concepção stalinista, que já tinha comprometido a revolução na China de 1925-1927, a “Revolução de 1930” no Brasil, a revolução espanhola de 1936 e tantas outras pelo mundo. Partindo de conclusões corretas nos seus primeiros congressos, aonde chegou a afirmar que seria grave criar ilusões “na possibilidade de uma nova fase do capitalismo”, a qual denominou “uma fase democrática popular” (documento do 5º Encontro Nacional, de 1987) o PT passou, como acontece seguidamente em sua história, a teorizar e praticar aquilo que antes criticava.
            Um dos principais teóricos do PT e da estratégia democrático-popular é Tarso Genro. Em 1992, apenas 5 anos após o 5º Encontro Nacional do PT, ele escreveu: “a saída reformadora passa evidentemente por setores da burguesia brasileira, ligados às necessidades internas de um mercado brasileiro”[i]. Qualquer outra saída que não esta era criticada por ele como utópica e irrealista. O socialismo estava definitivamente fora da sua estratégia política; ou, como disse um militante de base desiludido com os rumos do partido no final do II Congresso, “foi parar no anexo”.
            Após um terrível processo de adaptação e cooptação, que o levou a distorcer e tornar aceitável para burguesia termos como “revolução” e “socialismo” nas resoluções do seu 7ª Encontro Nacional, em 1990, o PT passou a sustentar abertamente a necessidade de uma “etapa democrática” de “acumulação de força”, em que seria fundamental uma aliança política com setores “progressistas” da burguesia para ajudar a cumprir a transição de um Estado híbrido, formado por camadas ligadas às antigas relações de produção pré-capitalistas (agrárias, semifeudais, pré-capitalistas, etc., em suma, um país que se funda no domínio das “velhas elites tradicionais”) em um Estado burguês moderno, apto, segundo Tarso, a realizar a mediação entre os indivíduos e preparado para “distribuir renda”. Os entraves a esta transição seriam a burguesia agro-exportadora, o latifúndio, a inexistência de um mercado interno regulamentado (isto é, um pleno desenvolvimento de uma economia capitalista). Sendo assim, seria fundamental buscar aliança com esta burguesia, que se traduzia em acordos espúrios e sem critérios que permitiriam a chegada ao poder e, a partir daí, alianças que poderiam garantir a governabilidade. Uma vez no governo, a estratégia democrático-popular sustentava que o PT podia e deveria conquistar o poder Executivo, a presidência da República, pois, assim, inauguraria “um novo período no qual, com a posse do governo – portanto, parte importante do poder de Estado –, a disputa pela hegemonia se dar[ia] em outro patamar. Estará colocado para o PT e para as forças democráticas e populares a possibilidade de iniciar um acelerado e radical processo de reformas econômicas, de lutas políticas e sociais. Tudo isso criará as condições para a conquista da hegemonia política e de transformações socialistas” (Resoluções do 6º Encontro Nacional, de 1989 – grifos nossos).
            Neste pequeno trecho fica visível que as transformações socialistas dependeriam de condições que ainda precisavam ser criadas. As condições para a “transformação socialista”, curiosamente, seriam criadas a partir desta aliança com “setores da burguesia brasileira” e dos seus partidos tradicionais; e isso tudo no final do século XX e início do XXI! Todo o esforço teórico do petismo deste período se baseou em sustentar que esta “etapa democrática” de aliança com setores “progressivos da burguesia” e o “início da construção socialista” (nunca indicado quando exatamente ocorreria) seriam elos de um mesmo processo.
            Todo este malabarismo teórico e político tinha como finalidade sustentar seu “novo” programa (o colocado em prática após a primeira eleição de Lula em 2002), que afirmava ser possível a partir desta aliança com a “burguesia progressista” aplicar as seguintes medidas: regulamentar o mercado a partir de “instituições democráticas” (isto é, instituições “democrático-burguesas”, como o muy democrático Congresso Nacional); imposto progressivo sobre a propriedade para reutilizá-los nos serviços públicos e na infraestrutura geral; consolidar e manter as regras sobre o mercado de trabalho, com sindicatos organizados e disciplinados por esta lógica democrático-burguesa; realizar a reforma agrária, fortalecer o mercado interno em detrimento do setor agro-exportador, “democratizar” o Estado brasileiro e o mercado. Em síntese, estas seriam as diretrizes gerais do programa democrático-popular, sustentado inicialmente pelo PCB e, com estas ligeiras modificações e atualizações, incorporado pelo PT.

II
            Tal como a atual “esquerda” do tipo PSOL e PSTU faz hoje, o PT passou por um longo processo de mistificação da “democracia”. Sustentado por teóricos como Carlos Nelson Coutinho (CNC) que, a partir de Gramsci, defendem alianças entre o proletariado e “setores progressistas da burguesia” e da classe média, expressos na tática de frente popular, o PT caiu no canto da sereia do imperialismo. A “democracia” transformou-se num valor universal, dissociado de uma sociedade de classes! Ignorando as severas admoestações de teóricos como Lenin, que diziam reivindicar, “esqueceram” que a democracia possui uma base econômica, tal como tinham a democracia escravista grega, romana ou do império brasileiro do século XIX. Simplesmente excluem uma das principais contribuições teóricas do marxismo à compreensão da sociedade, conquistadas a duras penas ao longo dos séculos XIX e XX. Tudo isso, é claro, com a evidente finalidade de relativizar princípios e possibilitar alianças pragmáticas que facilitariam a vitória em uma eleição dentro da democracia burguesa. Em síntese, partindo das formulações teóricas de CNC e Tarso Genro, esta só pode ser vista como a “revolução passiva” (ou via prussiana) na versão do proletariado. O erro, contudo, é que uma “revolução passiva” exige uma transição entre elites (qual elite aceitaria uma transição para outro regime que resultaria no fim do seu “direito sagrado” à propriedade e ao poder?); a revolução proletária autêntica só pode significar o fim das elites, por isso é incompatível com uma “revolução por etapas”.
            Então, muitos teóricos, dirigentes e militantes do PT passaram a esconder o objetivo socialista atrás da palavra “democracia”. Iniciou-se com o “socialismo democrático” (para corretamente se diferenciar dos regimes stalinistas), mas degenerou na “radicalização da democracia”, o que, dentro de todo o contexto, só tem um significado: radicalizar a democracia burguesa. Ora, defender o capitalismo e o Estado democrático (burguês não declarado) e, ao mesmo tempo, a “distribuição de renda” é uma contradição absurda. A lógica central do “Estado democrático” assentado em uma economia capitalista é justamente possibilitar que uma classe concentre renda, e não distribua: quem não entendeu isso não entendeu nada ou está conscientemente iludindo os trabalhadores e o povo pobre.
            Os programas sociais petistas (Bolsa Família, ProUni, Minha casa Minha vida, e outros) distribuíram uma pequena parte da renda, para uma parte pequena da população (as favelas continuaram existindo, muitos jovens pobres, negros e brancos, fora das universidades, subempregados e sem nenhum tipo de renda). A “burguesia progressista” e a agro-exportadora toleraram sempre de muito má vontade tais programas assistencialistas (que eram quase uma caridade cristã) e o equilíbrio do seu próprio regime “democrático” enquanto o “bom momento” da economia internacional permitia que, nas palavras de Lula, “os bancos ganhassem dinheiro como nunca”. Ou seja, a alta taxa de lucro satisfazia momentaneamente a gula destes setores da burguesia. Bastou, contudo, mudarem as condições econômicas a partir do seu epicentro nos EUA e na Europa, para que ela desestabilizasse o governo, o impeatchimasse, e passasse para uma ofensiva política e econômica brutal se utilizando dos seus tradicionais métodos fascistas.
Tal como ficou provado pelas experiências com os governos petistas e como já alertou Trotsky a mais de 60 anos atrás, esta “etapa democrática” seria apenas uma “derrota ‘democrática’ da revolução proletária”; ou seja, ambas se anulariam reciprocamente, restando, na prática, apenas a parte que fala em “aliança com setores progressivos da burguesia” que não querem nenhum tipo de progresso real, apenas manter a sua taxa de lucro e, portanto, o atraso econômico, científico-tecnológico e cultural do país.

III
            Uma das formas teóricas que o petismo usou para enganar os trabalhadores era sobre a diferenciação entre o “capitalismo” (que seria, segundo dava a entender, um “capitalismo democrático”) e o “capitalismo neoliberal”. Para os teóricos petistas, como Tarso Genro, seria uma opção política das burguesias nacionais seguir uma versão “democrática” ou “neoliberal” do capitalismo. O neoliberalismo não seria, portanto, a forma concreta que adquiriu o capitalismo, seguindo suas tendências centrífugas inatas, no período de sua decadência histórica, isto é, durante o seu período imperialista.
            Um capitalismo diferente do neoliberal significaria pressupor que a “liberdade de mercado” não é uma ficção – isto é, uma mera forma retórica dos grandes monopólios imperialistas para controlar preços e ramos inteiros do mercado –, mas uma realidade. Ou seja, para os teóricos petistas, seria possível regulamentar o mercado sem o poder dos trabalhadores, apenas constituindo-se maiorias nos parlamentos burgueses. Para isso, teríamos que partir do pressuposto de que a burguesia toleraria a regulamentação do mercado. E por que ela não toleraria? Ora, por um motivo muito simples: porque regulamentar o mercado significaria diminuir sua taxa de lucro, que, na atual fase de decadência do capitalismo, só pode se manter e aumentar com a desregulamentação do mercado e os generosos subsídios do Estado. O próprio Tarso reconhece que o neoliberalismo representa a regulamentação do movimento espontâneo do capital, que nada mais é do que a norma espontânea do mercado e da propriedade privada[ii].

IV
            Tarso Genro, reivindicando o legado teórico menchevique, defende a implantação de uma estrutura política que fosse compatível com o desenvolvimento capitalista, da cultura, da indústria e da produção do Brasil. Para ele, a estratégia deveria ser apostar em uma aliança com a “burguesia progressista” que permitisse um desenvolvimento capitalista “pleno” no país, o que geraria um desenvolvimento cultural, político e econômico favorável ao desenvolvimento socialista[iii]. Os 13 anos de governos petistas nos permitem analisar qual foi o resultado prático desta estratégia.
            Ainda que muitos pobres tenham comido e muitos negros tenham entrado nas universidades, seguiram inúmeros moradores de rua passando fome, desempregados ou subempregados, e centenas de milhares de negros sendo chacinados nas periferias das grandes cidades; além disso, as universidades continuaram produzindo um conteúdo pós-moderno e, portanto, essencialmente burguês, incentivador do individualismo, voltado exclusivamente para a subjetividade e não para o universal. Frente aos programas sociais, que consumiam uma reduzida parte do orçamento público e representaram apenas o exercício de um paternalismo estatal (com o que é impossível criar autonomia nos trabalhadores e, sem esta autonomia, não se pode “construir o socialismo”); os programas sociais criaram bolsões de reprodução ideológica do populismo, enquanto os bancos e as multinacionais lucraram “como nunca”; além de poços de petróleo, portos e aeroportos serem colocados a leilão para privatização. Os direitos trabalhistas começaram a ser ameaçados e alguns retirados (a precarização no serviço público seguiu correndo frouxa). A indústria nacional (representada, sobretudo, pelas empreiteiras) tinha projetos de enriquecimento individual, não nacional. A tática de desenvolver o país com base nas empresas estatais e os bancos públicos foi totalmente sabotado e desmontada pela direita, através dos partidos aliados de ontem. Os transportes seguiram nas mãos das multinacionais automobilísticas e dos trustes das empresas de ônibus, sem projeto alternativo algum (como a malha ferroviária ou o metrô nas grandes cidades). O mercado seguiu desregulamentado, com os ricos pagando menos impostos que os pobres, e o setor financeiro especulando desenfreadamente às custas do reinvestimento em setores produtivos. As instituições democrático-burguesas (tal como o Congresso Nacional) não se abriram para as massas, tal como queria CNC. Ao contrário: se fecharam ainda mais ao povo, consolidando bancadas evangélicas, ruralistas, das armas, etc. (os únicos que continuaram sem bancada foram os trabalhadores conscientes). A grande mídia seguiu desregulamentada, totalmente monopolizada, distorcendo, mentindo e sendo um dos principais centros de disseminação de terrorismo psicológico (bem como da peste emocional). Um movimento sindical burocratizado, institucionalizado, acomodado, passivo e contendor do descontentamento dos trabalhadores, impediu que lutas tencionassem a burguesia por direitos e mudanças estruturais. Os valores culturais se associaram ainda mais ao consumismo, ao hedonismo, ao imediatismo, à passividade frente à democracia burguesa e suas eleições de cartas marcadas.
O período dos governos petistas, portanto, não criou uma nova cultura que preparasse as bases para o socialismo (muito timidamente ajudou a introduzir o debate sobre uma nova forma de família, contra o machismo, o racismo e a LGBTfobia), mas apenas reforçou os vícios centrais do capitalismo, revigorando a consciência burguesa e pequeno-burguesa na classe média, em setores dos trabalhadores e no funcionalismo público. Em síntese: fortaleceu a direita que os golpeou. Para jogar o jogo do inimigo, o PT teve que fazer caixa 2 para campanha eleitoral e imiscuir-se no jogo da corrupção burguesa.
            Por tudo isso, há que se reconhecer que toda esta experiência com a frente popular petista teve como início o seu abandono das posições de esquerda para poder selar os pactos com a “burguesia progressista” e o seu esgotamento com o golpe do impeachment. Experiências históricas que alertavam sobre esse possível desfecho não faltaram; os teóricos petistas preferiram fazer vistas grossas. Se não superarmos a estratégia democrático-popular para o próximo período não avançaremos um centímetro na luta dos trabalhadores no verdadeiro sentido do socialismo. Ao contrário, tendemos a retroceder.

3) A “revolução democrática”
           
I
A “revolução democrática”, defendida por PCB, PSOL e PSTU tem, fundamentalmente, a mesma estratégia descrita acima, embora com mais floreios teóricos. PCB reivindica em parte o legado stalinista e em parte se envergonha dele, terminando, no fim, por reafirmar a mesma estratégia de “revolução democrática” e “frente popular”, apenas se utilizando de uma nova linguagem. PSOL e PSTU, por se dizerem trotskistas, precisam embaçar o discurso e confundi-lo um pouco mais, justamente por ficarem em franca contradição com a teoria da Revolução Permanente. O PSOL, por ser um partido de tendências, possui correntes que reivindicam a mesma estratégia petista já descrita anteriormente e outras correntes que, tal como o PSTU, reivindicam a teoria de Nahuel Moreno, um “trotskista” argentino. Em todos os casos, a estratégia baseada na “revolução democrática” padece dos mesmos males que a “democrático-popular”: mistificação, em algum momento, da democracia burguesa, etapas e alianças temporárias ou totais com setores da “burguesia progressista” ou da “pequena-burguesia” através de frentes populares.
            Um dos principais legados do pensamento trotskista foi a teoria da Revolução Permanente, que surgiu como o resultado do embate entre a oposição de esquerda e os rumos que a burocracia stalinista queria imprimir ao jovem Estado soviético. Esta teoria fez o problema sair “definitivamente do domínio das recordações de velhas divergências entre os marxistas russos, para apresenta-lo em ligação com o caráter, os laços internos e os métodos da revolução internacional[iv]. Em síntese, a teoria da Revolução Permanente representa para os países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, que “a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional-libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado”[v], o que, evidentemente, excluiria qualquer tipo de aliança com a burguesia, ainda que apontasse a busca por aliados sociais, como a pequena-burguesia e as massas camponesas. Para isso, a teoria trotskista alertava que “a aliança revolucionária do proletariado com os camponeses só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada como partido revolucionário. Isso significa, por outro lado, que a vitória da revolução democrática só é concebível por meio da ditadura do proletariado”[vi]. Em contraposição a esta concepção, a teoria stalinista dissociava a revolução democrática da revolução proletária (isto é, da ditadura do proletariado), o que acarretaria na “decomposição do proletariado nas massas pequeno-burguesas, criando, assim, condições favoráveis à hegemonia da burguesia nacional e, por conseguinte, à falência e ao desmoronamento da revolução democrática[vii]. Assim, sob a liderança dos trabalhadores organizados e conscientes, juntando as tarefas democrático-burguesas não realizadas às tarefas socialistas em um único e mesmo programa, o curso do seu desenvolvimento transformaria a revolução democrática “diretamente em revolução socialista, tornando-se, pois, uma revolução permanente”[viii].
            A “esquerda” brasileira que supostamente reivindica o legado teórico de Trotsky, tal como PSOL e PSTU, desfiguraram completamente a teoria da Revolução Permanente (que é a principal base teórica do pensamento trotskista), chegando a transformá-la no seu exato oposto. Esta desfiguração tem implicações diretas sobre a sua prática política e, sobretudo, em relação à sua estratégia para a revolução brasileira. O principal teórico que revisou e praticamente rasgou a teoria da Revolução Permanente é Nahuel Moreno (caro tanto ao PSTU, quanto à correntes do PSOL como MES e CST, bem como a organizações socialistas menores, que são independentes dos partidos majoritários). A partir de um oportunismo latente, Moreno destruiu a teoria da Revolução Permanente, ao mesmo tempo em que dizia reivindicá-la. No seu livro que surgiu a partir de um curso para os jovens militantes do partido argentino, conhecido como "Escola de Quadros" (publicado em 1984), Moreno sustenta que: “Nós acreditamos que nestes últimos 40 anos produziram-se fenômenos distintos aos que Trotsky viu, que nos obrigam a começar a elaborar entre todos (...) uma nova formulação, uma nova forma de escrever a teoria da revolução permanente, tomando todos os problemas. Temos que formular que não é obrigatório que seja a classe operária e um partido marxista revolucionário com influência de massas quem dirija o processo da revolução democrática para a revolução socialista. Não é obrigatório que seja assim. Ao contrário: aconteceram e não está descartado que aconteçam, revoluções democráticas, que no terreno econômico, se transformam em socialistas. Quer dizer, revoluções que expropriem a burguesia sem ter como eixo essencial a classe operária – ou tendo-a como participante importante –, e não tendo partidos marxistas revolucionários e operários revolucionários na sua frente e sim, partidos pequeno-burgueses”[ix].
            Ao contrário do que afirma Moreno, não houve, desde a Revolução Russa de 1917, nenhuma revolução democrática vitoriosa que tenha se tornado vitoriosa dissociada de um partido revolucionário ou de um movimento operário com consciência de classe. O resultado desta teoria nefasta, melhor expressa no seu livro conhecido como “Teses para a atualização do Programa de Transição”, é que os partidos e organizações socialistas de orientação morenista descambaram totalmente para o apoio político à regimes democrático-burgueses e, direta ou indiretamente, a uma ou outra fração da burguesia. Partindo de uma compreensão de que é necessário ou inevitável uma nova fase que se expressaria através de um “regime democrático-burguês” (tal como o PT defendeu a partir da sua estratégia “democrático-popular”), o morenismo compreendeu que as quedas de ditaduras latino-americanas (como na Argentina em 1984 ou no Brasil em 1985) foram “colossais revoluções democráticas”, mesmo que elas não tenham resolvido nenhum problema “democrático” (reforma agrária, regime democrático, independência nacional, industrialização, criação ou regulamentação de um mercado nacional, etc.) e se constituindo de um mero acordo entre os partidos burgueses e a oligarquia militar. Ou seja, nenhuma tarefa democrática histórica é solucionada: somente isso caracterizaria uma revolução democrática, coisa que as burguesias semicoloniais (como a brasileira) não estão mais em condições históricas de cumprir. O mais agravante é que, diferentemente da estratégia democrático-popular petista, a teoria da “revolução democrática” morenista se caracteriza por deixar os trabalhadores e suas organizações de fora, como meros expectadores que, no máximo, podem pressionar governos que estariam à cabeça deste novo “regime democrático”.
            Como já alertavam os setores minoritários, excluídos e mais conscientes da esquerda brasileira: “uma revolução democrática distingue-se também pela mudança na composição das classes, ou setores de classes, no poder. As revoluções democráticas morenistas não preenchem nenhuma dessas condições. Moreno inventa uma revolução democrática inexistente e, para tanto, rebaixa as suas tarefas ao nível de um regime democrático reacionário dirigido pela grande burguesia. Faz passar as pretensas revoluções de regime – a substituição de uma ditadura por um regime democrático – como o programa revolucionário. Na atual fase do capitalismo as revoluções democráticas não existem mais. As tarefas democráticas históricas continuam atuais, mas atualmente o caráter da revolução é dado pelas tarefas socialistas – a expropriação dos monopólios – que se colocam na ordem do dia desde o primeiro momento”[x].

II
A influência etapista na concepção de “revolução democrática” morenista fica evidente na seguinte citação: “Para abrir caminho para a revolução socialista, devíamos, antes de mais nada, destruir o obstáculo do regime burguês contra-revolucionário. Porém, a partir da vitória da revolução democrática, da queda desse regime, as palavras de ordem anti-capitalistas passam a ser centrais. Se antes chamávamos os trabalhadores a concentrar suas mobilizações para derrubar a ditadura, agora os chamamos para que concentrem forças para liquidar o sistema capitalista imperialista”[xi].         
Na teoria da “revolução democrática” morenista, a dialética marxista é substituída por uma metafísica barata, o que redunda na defesa de uma nova vertente da “revolução por etapas”, que exigem “fases anteriores” e jogam a ruptura revolucionária e o socialismo para um futuro indeterminado, tal como fez o PT com sua estratégia “democrático-popular”. As consequências são a desorganização e a desorientação nos trabalhadores. A oportunidade de transformar a luta dos trabalhadores contra uma ditadura militar burguesa (isto é, um regime fascista) numa luta pelo socialismo é desperdiçada em nome de colocar no poder uma fração burguesa que supostamente preparará as bases para a construção socialista futura. A experiência histórica nos demonstra que os regimes democrático-burgueses não apenas não preparam as condições para a revolução socialista, como aprofundam a barbárie e ameaçam retornar à ditadura fascista para contornar as inevitáveis crises que o capitalismo sempre gera.
            Nesse sentido, a confusão apenas aumenta, pois esta “esquerda” forma teoricamente sua militância para compreender a “revolução democrática” como a luta em defesa de “liberdades democráticas” aos trabalhadores dentro da sociedade burguesa. Defender as liberdades democráticas mínimas dentro de um regime democrático-burguês jamais pode se confundir com a defesa da "revolução democrática" como uma estratégia para a revolução.
O resultado prático desta autêntica teoria de conciliação de classes tem sido que esta “esquerda” fica refém do que o regime democrático-burguês tem a oferecer – as viciadas eleições burguesas –, investindo todas as suas fichas no processo eleitoral, formando e consolidando novas e antigas frentes populares. Não que os revolucionários não possam participar do processo eleitoral burguês, mas a política eleitoral de PSOL e PSTU ultrapassam todos os limites, reforçando ilusões nas frentes populares “mais à esquerda”, se aliando a partidos burgueses e, inclusive, como é o caso do PSOL, recebendo financiamento de grandes empresas.

III
            Recentemente, por influência dos acontecimentos da chamada “primavera árabe”, este setor da “esquerda” brasileira considerou as rebeliões populares contra as ditaduras no Egito, na Líbia e na Síria como “colossais revoluções democráticas”. Nestes processos a burguesia, o imperialismo e os seus monopólios não perderam nem por um momento o poder, apenas pactuaram uma transição política entre a ditadura militar e um regime democrático-burguês (que hoje mais parecem ditaduras não declaradas); tampouco as tarefas “democráticas” foram solucionadas. Sendo assim, ela se colocou vergonhosamente como base de sustentação de uma ala burguesa (a ala supostamente “democrática” ou “progressista”) contra outra ala burguesa (a ditatorial), deixando, novamente, os trabalhadores egípcios, líbios e sírios sem uma estratégia pautada pela independência de classe.

IV
Outro setor da “esquerda”, mesmo se dizendo contra o morenismo e a “revolução democrática”, aposta permanentemente na bandeira de Assembleia Constituinte. O maior expoente desta consigna – quase como um samba de uma nota só – é o MRT, organização que edita o Esquerda Diário. A defesa permanente da Constituinte é, precisamente, a sua forma de apoiar uma nova vertente de “revolução democrática”. Qualquer proposta de Assembleia Constituinte dissociada de um poder dos trabalhadores é apenas mais uma promessa vazia, fadada a ficar submetida aos ditames da burguesia, que possuirá inevitavelmente maior poder econômico e político para ditar seus rumos.
No passado, quando países como China, Rússia e mesmo o Brasil não tinham tradição democrático-burguesa, esta palavra de ordem conservava algum valor. Atualmente, esta proposta partir de organizações de “esquerda” apenas pode significar uma nova forma de derrotar “democraticamente” a revolução proletária. A Assembleia Constituinte só resultará em benefício aos interesses dos trabalhadores se estiver sustentada por um poder proletário, que somente poderá surgir de uma revolução socialista. Outra perspectiva que não essa é apenas uma nova forma de continuar subordinando os trabalhadores à direção política da burguesia.

4) As lições da história e as novas táticas daqui para frente

I
O Brasil nunca passou por uma revolução burguesa profunda, que equivalesse a uma “reforma protestante”, nem se preparou ideologicamente para ir além das religiões e do misticismo, tal como o movimento iluminista fez na França. Também não se industrializou no sentido de se elevar acima dos interesses particulares de indivíduos e formular um projeto de desenvolvimento nacional, capaz de colocar o Brasil na luta pela tecnologia de ponta, tal como a burguesia inglesa e norte-americana fizeram. A burguesia brasileira é um exemplo típico da adaptação de uma elite nacional às condições de um mercado estruturalmente estreito e periférico. Aceita ser de bom grado uma sócia menor da burguesia imperialista. Assim, o povo trabalhador do Brasil tem o seu fardo redobrado, ficando submetido a uma dupla exploração. Os problemas da burguesia brasileira não se resumem ao não cumprimento das tarefas democráticas retardatárias; ela incorporou elementos medievais na sua mentalidade e na sua política: cultiva o misticismo, o obscurantismo, o preconceito, a intolerância, a ignorância travestida de modernidade e de cultura. Um país fundado pela exploração internacional e com sofrimentos iníquos seculares, não pode mudar as bases econômicas e sociais profundamente arraigadas sem uma ruptura revolucionária, planejada e radical.
Como vimos, a estratégia “democrático-popular” e a “revolução democrática” não podem orientar o programa e as tarefas da revolução proletária brasileira. Muito se fala que a “esquerda” precisa se unir, tal como um mandamento. No entanto, defender que a “esquerda” tem que se unir sem levar em consideração as profundas diferenças estratégicas no seu interior é o mesmo que afirmar que para o bom resultado de um time de futebol basta “jogar junto”, não sendo necessário um esquema-tático. Trocando em miúdos, significa dizer que se em nome da “unidade da esquerda” nós nos alinhamos à estratégia democrático-popular, seguindo o bloco liderado pelo PT; ou então nos alinhamos à “revolução democrática” morenista, seguindo PSOL ou PSTU; estaremos, assim, abrindo mão de lutar por um projeto de independência de classe. No campo econômico e político é somente na união em torno de um programa de independência de classe, dando ênfase à expropriação do grande capital, que poderemos resolver os graves problemas do subdesenvolvimento do país. Mas ainda existem outras “urgências” a serem incorporadas no programa da revolução brasileira.
A concretude deste programa e da realização destas tarefas deve ser o resultado de um esforço militante de todo o movimento sindical e social que está comprometido com o socialismo. Aqui só poderão ser apontados alguns indicativos para esboçarmos esta estratégia revolucionária.

II
            O socialismo real terminou colapsado, segundo lemos e ouvimos através da grande mídia e das universidades. Ambos os termos – socialismo real e colapso – foram criados e são utilizados amplamente pela burguesia. Este “colapso”, na verdade, é uma isca para a intelectualidade, pois tem duas raízes mais profundas que nunca são abordadas: 1 - a burocracia stalinista, que se formou, se desenvolveu e, por fim, dominou todo o aparato do estado soviético de 1930 até 1991; e 2 - uma política aplicada por esta burocracia entre 1989 e 1991, chamada de Perestroika, que teve a finalidade consciente de restauração do capitalismo, utilizando-se, para isso, de um discurso de “aprofundamento do socialismo”[xii].
            Após a restauração do capitalismo na URSS, leste europeu, China e Cuba, se abriu uma ofensiva ideológica que colocou o “socialismo” como algo irrealizável e indesejável, tal como se fosse um projeto de lunáticos. Por um lado, esta ofensiva se utilizava dos crimes stalinistas e das demais burocracias políticas de outros países “socialistas” como forma de assustar os trabalhadores (tal como fazem até hoje); por outro lado, procuravam manipular sentimentos, informações e, se utilizando do irracionalismo de amplos setores das massas, afirmava que o socialismo só pode “ser isso”. Ignoravam conscientemente experiências fundamentais que serviriam pra resolver inúmeros impasses da sociedade capitalista. Para citar alguns: a industrialização da Rússia e a legislação dos primeiros anos da revolução (isso seria impensável caso ela permanecesse como uma semicolônia de Inglaterra e França); a unificação da China (que juntou os seus inúmeros territórios independentes, explorados por diversos imperialismos, a quem interessava deixar a China dividida sem uma unidade nacional); a saúde e a educação em Cuba; o governo partilhado democraticamente entre os países do leste europeu durante a existência da Iugoslávia liderada por Tito. Por seguirem uma cópia do governo stalinista da URSS, de uma forma ou de outra, acabaram repetindo vícios nefastos, que foram utilizados pela grande mídia burguesa para jogar os trabalhadores contra o socialismo. Ainda haveriam outros problemas, como o “medo à liberdade” intrínseco a todos os seres humanos, que precisa ser analisado com mais detalhes e com o qual não houve plena consciência ou mesmo preocupação por parte dos revolucionários socialistas durante o século XX.
            Esta vitória ideológica conjuntural da burguesia com a restauração possibilitou que os trabalhadores seguissem anestesiados contra a ideia de “socialismo”, tornando-os reféns da barbárie criada pelo capitalismo. A crise da sociedade capitalista é vista e sentida como um beco sem saída, que tende a reforçar os sentimentos niilistas no campo ideológico e pessoal. O capitalismo gera a corrupção de todos os governos, a miséria e a violência social sem limites. Quando eles olham para o socialismo não se sensibilizam com as agitações das organizações e partidos de esquerda, que tendem a lhes soar como utópicas ou como a possibilidade de uma repetição mecânica do que foram os regimes stalinistas (além, é claro, dos defeitos oportunistas e equívocos dessas agitações). Os partidos reformistas procuram a linha de menor esforço, que na verdade apenas reforça o beco sem saída: a conciliação de classes por dentro do sistema.
            A esquerda precisa se reinventar permanentemente, saber desenvolver crítica e autocrítica pessoal e coletiva; lutar contra os seus próprios dogmas e contra a tendência inata de transformar o “socialismo” numa nova forma de messianismo e de religião. Um passo importante para isso é que ela saiba combater o seu próprio irracionalismo, o seu próprio medo à liberdade e o medo do novo. Não ter medo aos questionamentos e às novas gerações de militantes, que entram nas organizações exigindo espaço e ar puro que a educação capitalista, as religiões e as burocracias políticas e sindicais lhes negam.
            Precisam reciclar a sua agitação e propaganda, acompanhando as redes sociais; indo do imprescindível debate teórico entre a esquerda, até as polêmicas contra correntes de opiniões mentirosas da grande mídia e da burguesia. Entre estas cabe destacar as que afirmam que o “socialismo gera pobreza” e só quer “pegar o dinheiro dos ricos”, ou “é ditadura” e “não dá certo”. Estes pensamentos falaciosos e de má fé são disseminados de distintas formas, entre escritores universitários, jornalistas, apresentadores de TV e correntes de internet. Os trabalhadores conscientes comprometidos com a revolução precisam reconstruir o edifício do socialismo tijolo por tijolo. O primeiro passo nesse sentido é dar ênfase para uma propaganda sistemática que tenha dois focos principais: 1 - a massa em geral (atingindo-a como for possível, dada a situação atual de cruel isolamento da vanguarda consciente dos trabalhadores); 2 - a vanguarda de “esquerda” ou que a orbita (PT, PCdoB, PCB, PSOL, PSTU, PCO, centrais sindicais, sindicatos e movimentos sociais). Para a massa em geral é fundamental a defesa racional do socialismo contra o irracionalismo burguês, que só pode sustentar a barbárie capitalista recorrendo à distorções teóricas e literárias grosseiras, quase uma institucionalização da mentira, do terrorismo psicológico e da idiotice; sobre a vanguarda de “esquerda” é necessário debater profundamente qual a sua estratégia ao socialismo, desmascarando aonde nos leva tal ou qual caminho, e levantando a bandeira da revolução (partindo da Revolução Permanente), sempre procurando sustentá-la com uma sólida e lúcida análise da realidade que se reavalie e se autocritique permanentemente.
            Ressalta-se a importância de sempre manter uma crítica ao capitalismo com um pé na realidade, reconhecendo nossas limitações, sabendo extrair tudo o que há de bom em todas as teorias e críticas, mesmo as muito opostas e diferentes, porém honestas (isto é: saber usar a dialética e evitar o dogmatismo), uma vez que esta acusação é usada, às vezes com razão, pela direita e mesmo pela “esquerda” reformista visando desmoralizar a autêntica luta pelo socialismo. Analisar as críticas e saber respondê-las à altura e com sabedoria é uma importante fonte de formação teórica para uma organização revolucionária. Em todos esses casos é preciso desenvolver segurança própria individual e, sobretudo, coletiva. Chamar as coisas pelo seu nome; dizer a verdade, por mais amarga que seja, é fundamental, pois a verdade é revolucionária e reconhecê-la quando está diante de nosso nariz deve ser um exercício cotidiano.

III
            Qualquer discurso, política ou bandeira que afirme “distribuir renda” mantendo o capitalismo (ou sem ser claro em relação a ele) faz o jogo da burguesia. Enquanto houver capitalismo, haverá concentração de renda e de uma forma cada vez mais brutal e gananciosa. O mercado, contudo, assim como o Estado, não pode ser suprimido da noite para o dia; nem seria possível, tal como extinguir qualquer forma de Estado de um só golpe também não o é. Somente mudando a estrutura estatal e a psicologia das massas a partir da criação de mecanismos de controle proletário, popular, formados através de uma política consciente de associação das organizações da sociedade civil (sobretudo as de caráter proletário), será possível controlar não apenas o Estado, com vistas a extingui-lo, mas também o mercado capitalista.
É possível a criação de um mercado não capitalista? Tudo leva a crer que sim. Lenin e os autênticos bolcheviques o perceberam a partir da NEP (1921). Quando a burocracia assumiu totalmente o poder político, a partir de 1929, saltou de uma política totalmente permissiva aos camponeses ricos (o chamado: “enriquecei-vos!” de Bukharin) para a imposição autoritária dos Planos Quinquenais (que foram cópias caricatas dos projetos da Oposição de Esquerda). A construção da economia socialista deve ser uma mescla de medidas de planejamento central e de liberdade de mercado, embora essa “liberdade”, obviamente, não possa ser compreendida da perspectiva burguesa (que quer a total liberdade de mercado para si e os seus produtos, enquanto que defende todo o tipo de protecionismo para subjugar os seus concorrentes).
            Ora, o que é tudo isso senão regulamentar o mercado? Mas “regulamentar o mercado” sem tomar o poder e instaurar a ditadura do proletariado através de uma revolução é uma ilusão, tal como nos provou a experiência dos governos do PT. O mercado capitalista é filho do caos e dele necessita para existir. Isto gera a necessidade da burguesia cultivar o irracionalismo nos meios filosóficos, acadêmicos e culturais. Somente a ditadura do proletariado (entendida como a Comuna de Paris e não como o stalinismo) pode regulamentar o mercado e transformá-lo em um elemento para o desenvolvimento das relações econômicas, sem nenhum tipo de “messianismo mercadológico” que consiga estabelecer o valor das mercadorias em sociedades complexas, instáveis, diversificadas e em transição. O mercado capitalista começa a se dissolver na medida em que o capital for socializado, fazendo com que os meios de produção sejam coletivizados. Mas esta socialização, mesmo a partir de uma revolução, não pode ser total e de um só golpe. Haverão inúmeras formas de economias mistas, onde o capital não pode ser socializado imediatamente e, também, nem será conveniente fazê-lo. Este é um mecanismo importante para saber jogar com a pequena-burguesia, concedendo-lhes vantagens econômicas ou não, a depender da finalidade da sua produtividade ou serviço. Em contraposição, os grandes monopólios que hoje controlam com mãos de ferro grande parte do mercado, o que inclui os bancos, certamente deverão ser socializados plenamente. É preciso, ainda, incentivar a criação de cooperativas de trabalhadores independentes do Estado, que misturem práticas produtivas de ambos os sistemas, no sentido de fomentar a produção e a capacidade empreendedora e administrativa dos seus operários, levando-as a competirem sadiamente entre si e servindo de base ao “mercado socialista”.
            Mas, por acaso, a burguesia aceitará esta ingerência sobre o seu mercado? É claro que não, tal como ela não aceita perder o poder político estatal e o seu poder sobre o capital. Ela desencadeará guerra política e civil contra a revolução, e ao mesmo tempo desencadeará guerra comercial e econômica pra asfixiar as economias socialistas e o surgimento de um “mercado não capitalista”. Ela utilizará, tal como se utilizou durante o século XX, de toda a sorte de maldades e venenos (sobretudo do veneno nazi-fascista), visando manter o seu poder político e econômico que não condiz mais com o desenvolvimento da sociedade. Toda a lógica racional nos demonstra que a economia está plenamente socializada, uma vez que todos os membros da sociedade precisam trabalhar pra sobreviver, embora os frutos do trabalho social no capitalismo sejam absurdamente roubados por apenas 1% da sociedade, que paga muito bem os melhores escritores, universitários, jornalistas e midiáticos para afirmar que isso é absolutamente certo, justo e inevitável.
            Assim como o Brasil nunca passou por uma autêntica revolução burguesa, também não desenvolveu um movimento iluminista, que criticasse impiedosamente o regime de exploração e opressão. Os intelectuais daqui importaram de fora as críticas iluministas ao antigo regime francês, não sabendo aplica-las criativamente à situação brasileira. Tal como a luta dos iluministas burgueses era contra o antigo regime, autoritário e retrogrado do absolutismo monárquico europeu; a luta do “iluminismo moderno” precisa acertar contas contra o irracionalismo das relações capitalistas, seja no âmbito cultural, econômico ou social. O mercado capitalista e o seu setor totalmente desregulamentado – a especulação financeira – exercem toda a sua tirania, sem nenhum tipo de controle, difamando, prendendo ou mandando matar todos aqueles que se levantam contra esta ausência de controle, tal como os reis absolutistas governavam antigamente sem nenhum tipo de Constituição. Saber formar teoricamente os trabalhadores em uma crítica política e filosófica viva, sagaz e revolucionária, porém, não-dogmática, da realidade do país e do mundo, é parte indissociável do programa da revolução brasileira no sentido de superação das tarefas não realizadas pela burguesia nacional. A têmpera necessária à intelectualidade revolucionária que será capaz de se pôr à frente da revolução brasileira apenas será concedida àqueles que não sucumbirem à pressão e capitularem ideologicamente ao poder econômico do capital.

IV
Alguns setores do reformismo sempre lembram que a burguesia tornou-se classe dominante na economia antes de se tornar dominante no poder do Estado. Falam isso para reforçar o argumento que defende uma etapa prévia à revolução socialista, na qual a cultura teria o papel de criar as condições futuras para o socialismo. Ainda que seja verdade que a burguesia já era economicamente dominante antes de o ser politicamente, ela, uma vez no poder, utilizou-se do Estado para desfazer amarras que a cultura sozinha não teria condições: foi necessário o terror jacobino, as guerras napoleônicas e mesmo a “revolução” norte-americana para destruir bastiões do feudalismo. Tarso, como um lúcido teórico do reformismo, dá a entender que o proletariado precisa desenvolver sua cultura antes de chegar ao poder, tal como a burguesia o fez. Por um lado é certo que o proletariado precisa desenvolver a sua cultura por todos os meios (buscar a hegemonia, no linguajar gramsciano); por outro, deveria tentar ser economicamente dominante antes de o ser politicamente, se isso fosse, em geral, possível.
O proletariado, brutalizado pelo capitalismo, não tem essas condições (na maioria das vezes não tem sequer educação) e, mesmo que o tivesse, deveria basear sua “dominação” em outros alicerces, que busquem a ética, a igualdade social e a aplicação dos seus princípios; mas, indo ainda mais longe, o proletariado, suas organizações e os seus partidos precisam, acima de tudo, fazer com que o discurso bata com a ação, a teoria o mais próximo possível com a prática. Quem tem a chance de lutar pela hegemonia proletária sobre a sociedade é a sua vanguarda mais consciente, através da luta política, filosófica, ideológica, cultural e artística. Isto gera inúmeras contradições que hoje temos consciência. O aumento da hegemonia proletária, contudo, caminha inevitavelmente para a ruptura institucional burguesa; isto é, caminha para a revolução. O reformismo, ao contrário, trabalha por manter esta hegemonia dentro de limites toleráveis à burguesia. Sendo assim, ficamos refém de um círculo vicioso que teme à morte romper com a sociedade burguesa. Por isso suas consequências são tão nefastas para a luta de libertação dos trabalhadores.
            A luta proletária tem uma dificuldade a mais, não enfrentada pela burguesia na sua ascensão histórica: além de lutar contra o autoritarismo econômico e político (tal como a burguesia lutou contra o antigo regime), os socialistas precisam lutar contra os desvios gananciosos e egoístas dos seres humanos, além dos demais desvios emocionais irracionais (estes desvios são alimentados e incentivados pela burguesia, constituindo-se como um de seus pilares), ao mesmo tempo em que precisam incentivar a autonomia, o senso de responsabilidade social e a satisfação real da sua vida sexual e cultural. Só assim poderá criar uma nova cultura que permita alçar ao poder centenas de milhares de indivíduos. O projeto político de PT, PSOL, PSTU e PCB não apenas não se aproximam ou se aproximaram disso, como são inimigos desta perspectiva. Lutar por esta responsabilização social e por autonomia não é uma tarefa popular, não rende influências eleitorais, nem um rápido crescimento político.

V
            Parte fundamental da estratégia revolucionária está na luta contra o sindicalismo oficial, hoje expresso pelo controle hegemônico de centrais sindicais ligadas ao PT ou aos partidos de direita. O sindicalismo brasileiro está totalmente burocratizado e imobilizado pelas grandes centrais como CUT e Força Sindical (dentre outras menores), que servem como braços do Estado para conter as lutas. Elas não geram consciência de classe e não se preocupam com a organização autônoma por local de trabalho. Buscam construir “feudos sindicais” de organizações e partidos de estratégia burguesa, gerindo os sindicatos como se fossem empresas. A tática permanente da burguesia é atrelar o movimento sindical ao seu Estado; fez isso na Itália, com o fascismo; na Alemanha, com o nazismo; e no Brasil, com o varguismo e o lulismo. O chamado “sindicalismo cidadão” da CUT nada mais é do que o atrelamento dos sindicatos ao Estado burguês, limitando-os ao que é aceitável à burguesia. Qualquer coisa que vá além é visto como “irresponsável” ou “utópico”. A burocracia sindical trata qualquer setor consciente do movimento operário como “esquerdista”, sentindo-se ameaçado no seu modo de vida, uma vez que para ela é da carreira sindical – e, portanto, do hábito, da rotina, dos títulos – que provém a sua fonte de sustento.
            Para o reformismo, esta estrutura sindical é parte indispensável da estratégia democrático-popular ou da “revolução democrática”. Quem pretende administrar a sociedade capitalista, seja com que desculpa for, não pode abrir mão do controle sobre o movimento sindical. Estas estratégias se utilizam e reforçam uma compreensão paternal entre base e direção, destruindo os laços de responsabilidade social e autonomia nos trabalhadores. A burocracia sindical é incapaz de gerar consciência de classe, reforçando apenas a mentalidade pequeno-burguesa. Não há como destravar o movimento sindical da sua total apatia e alienação e pensar em revolução sem lutar contra esta burocratização que emperra e esteriliza os sindicatos. Algumas organizações reformistas que seguem a estratégia da “revolução democrática” (como PSOL e PSTU) chegam a propor a ruptura com o sindicalismo oficial do PT. Por exemplo: o PSTU propõe a ruptura com a CUT e a filiação dos sindicatos à CSP-Conlutas. Contudo, apesar da ruptura formal, a política sindical desta central segue, no essencial, a mesma linha do “sindicalismo cidadão” cutista e não rompe com a tutela do Estado sobre os sindicatos. Uma das principais tarefas da estratégia da Revolução Permanente é conscientizar os trabalhadores sobre a necessidade de expulsar a burocracia dos sindicatos e tornar os trabalhadores de base os verdadeiros protagonistas.
            Nesse sentido, a conscientização política não basta. É preciso compreender e utilizar a psicologia de massas reichiana para demonstrar as profundas raízes que operam nesta relação paternal entre a burocracia e os trabalhadores de base, além, é claro, dos interesses econômicos desta “aristocracia operária” e da própria burguesia, que tem os seus negócios salvaguardados. Sem desnudar as contradições e os medos gerados pela liberdade na mente humana, não seremos capazes de derrotar a burocracia sindical e política, que se aproveitam destas mazelas.
Realizar todas estas tarefas dificílimas só será possível casando-as com a luta por um novo ser-humano (esta luta se dará antes, durante e depois da revolução, que é apenas um processo lógico e irreversível de toda a situação social): a busca pela autonomia de decisões, pela responsabilidade social e pela real satisfação sexual (a realização do amor, seja entre que sexos for) deve ser incorporada na teoria, na prática e no programa das organizações e partidos socialistas. É preciso saber politizar todas as exigências da vida cotidiana com sabedoria.
A experiência com os regimes stalinistas foi uma catástrofe, pois é utilizada até hoje pela burguesia para associar “socialismo” à “ditadura”. Todas as pessoas honestas reconhecem que houve um grande desvio do caminho socialista. Somente os fanáticos, medrosos incorrigíveis ou indivíduos de má fé podem associar o socialismo ao que foi o stalinismo. Toda a degeneração e desvirtuação do regime “socialista” em regime stalinista está muito bem retratado em duas grandes obras: A Revolução Traída, de Leon Trotsky, escrita em 1937; e A Revolução Sexual, de Wilhelm Reich, escrita em 1936. Nestas duas obras estão condensadas os principais desvios políticos, econômicos, sociais e morais que selaram o destino da URSS e abriram o caminho para a restauração capitalista.
Para além das questões econômicas e sociais que definiram o destino de uma revolução feita em um país atrasado em todos os aspectos, com uma grande tradição autoritária e burocrática, pesaram também os desvios humanos que, graças ao esforço de muitos psicanalistas e revolucionários pioneiros, tomamos consciência hoje. Ao invés do incentivo à autonomia individual e, a partir desta, da construção da autonomia coletiva, foi incentivado prioritariamente a obediência cega à supostas autoridades infalíveis, o que nada pode ter em comum com o verdadeiro socialismo. A interpretação mecânica do marxismo e dos “interesses da revolução” criaram militantes que não passavam de ovelhas clamando por um pastor. Tal como o capitalismo, o regime stalinista criou trabalhadores dóceis e submissos, seja pela ameaça de demissão, tortura e medo da morte, ou pelas bajulações e subornos. Estas duras lições precisam ser agora incorporadas pela vanguarda socialista no sentido de trabalhar pela sua superação desde antes da revolução e, sobretudo, depois dela. O movimento sindical é um grande laboratório para isso.

VI
            A revolução socialista propõe-se, dentre outras coisas, a socializar as grandes empresas, as fábricas, os bancos, os transportes, os latifúndios, etc. Isso significa que os trabalhadores serão os responsáveis por controlar a sua produção econômica. Nesse sentido, precisam, mais do que tudo, desenvolver noções de autonomia e de responsabilidade social, sem o que não existe a menor possibilidade de controle operário da produção (apenas a reprodução das ordens vindas de cima). Sabemos que a União Soviética teve dificuldades insolucionáveis para desenvolver este controle dos trabalhadores. Se tivesse conseguido desenvolvê-lo, isto teria se chocado decisivamente contra a burocracia stalinista e teria podido, então, resolver-se positivamente. Mas não foi o caso.
            Só teremos trabalho revolucionário nas bases – sobretudo nas grandes empresas e fábricas – se, além de um real movimento sindical que não sofra com a burocratização sindical, consigamos despertar o interesse do trabalhador pela administração da empresa, chamando-lhe a atenção gradual e progressivamente para as questões administrativas da produção econômica, no sentido do seu controle social. Para que ele venha a adquirir este interesse fundamental depois da revolução (interesse este que foi inviabilizado na União Soviética pelo stalinismo) é preciso que a vanguarda socialista comece a trabalhá-lo desde já, no capitalismo, desenvolvendo ideias e uma propaganda que desperte curiosidade e interesse sobre o seu próprio trabalho, como se a empresa lhe pertencesse, no sentido da autonomização e da responsabilização social do conjunto dos seus trabalhadores. Um sentimento de desamparo infantil e de dependência paterna é amplamente favorável à manutenção da sociedade capitalista, uma vez que ele trata os trabalhadores como gado, como eternos dependentes de um patrão, líder sindical, político ou de “paizinhos”, que digam o que devem ou não fazer. Sem um sentimento de autonomia e de responsabilidade social não se pode construir o socialismo.

VII
            A chamada República Nova do Brasil é uma excelente demonstração do que o estágio “democrático-burguês” conseguiu criar: um regime que se utiliza de uma retórica “democrática” e “ética”, mas que é refém de uma lógica inexorável que reflete o funcionamento da economia. O atual regime democrático-burguês é muito semelhante ao antigo regime francês derrotado pela revolução de 1789. O absolutismo monárquico é exercido hoje pelo sistema financeiro, que não respeita nenhuma Constituição. A propaganda eleitoral enganosa é legalizada. Os governos são eleitos, mas não podem governar sem estar de acordo com os interesses dos bancos e das grandes empresas. Para isso, são obrigados a construir uma coalizão política, chamada governabilidade, que destrói qualquer tipo de programa de governo. A legislação é feita com base na corrupção institucionalizada dentro do Congresso Nacional e dos parlamentos estaduais. O poder judiciário reflete a estrutura dos tempos do Império brasileiro (1822-1889), sendo constituído por instituições aristocráticas, totalmente antidemocráticas, hegemonizadas por uma camarilha que se auto protege há séculos.
            Um dos pilares desse regime nefasto é a grande mídia, que surgiu a partir de um generoso regime de concessão que não atende sob nenhum ponto de vista o interesse público. A mídia cumpre o papel que a Igreja cumpria no antigo regime francês e na Idade Média europeia, manipulando, distorcendo, criando novos e piores misticismos acéfalos; em suma: ajuda a sustentar o regime político e econômico, do qual é uma grande beneficiária. Além de controlar parte da grande mídia, as igrejas não pagam impostos. Isto está assegurado na Constituição Federal de 1988. Sendo assim, só podem se proliferar incontrolavelmente. As que mais cresceram foram as igrejas evangélicas, que se aproveitam do caos social e da total falta de perspectiva do povo para aumentarem a influência, que já é grande graças a sua propaganda diária na TV e à isenção de impostos. Não é casual que muitas igrejas sejam donas de meios de comunicação de massas, o que ajuda a sustentar o regime, tal como a Igreja Católica sustentava o antigo regime francês. A isenção de impostos para as religiões é algo impensável para um Estado que se diz laico. Este “privilégio feudal” deve ser revisto sem a menor sombra de dúvidas. Mas as igrejas evangélicas não estão no controle apenas de TVs, rádios e jornais: possuem partidos políticos e bancadas no Congresso Nacional.
            O atual “regime democrático” brasileiro sustenta a ideia de que vivemos num “Estado democrático de direito”, tal como os países europeus vivenciaram após a Segunda Guerra Mundial. Nele os trabalhadores teriam suas necessidades atendidas por um sistema de previdência e uma legislação que supostamente os protegeria da exploração dos patrões. Nesse sentido, o “socialismo” seria não apenas dispensável, mas mesmo um estorvo, que fala em revolução e violência para arrancar certos tipos de benesses sociais que poderiam ser conseguidas da burguesia de forma democrática. O fato, contudo, é que com a restauração do capitalismo na ex-União Soviética e a crise econômica internacional iniciada em 2008, a farsa do “Estado de bem estar social” começou a escorrer pela latrina. O ajuste fiscal foi aplicado em quase todos os países (inclusive na Europa) para liquidar com este “bem estar social”. Durante o século XX o “Estado de bem estar social” foi usado como forma de desviar a atenção dos trabalhadores da luta pelo socialismo. A burguesia imperialista fingiu uma bondade econômica que não era verdadeira e que, evidentemente, não poderia sustentar. Como já não existe mais a União Soviética, a farsa deste tipo de Estado pode ser abandonada. Para permanecer dentro da ordem capitalista mundial em decadência, sustentada pelos EUA, há que se entrar num regime social sem previdência, sem direitos trabalhistas mínimos; em suma, há que se destruir o chamado “Estado de bem estar-social”.
            Sem o contra peso da União Soviética, a burguesia imperialista se sente suficientemente forte para avançar contra os direitos dos trabalhadores e realizar o seu sonho de um capitalismo sem nenhum tipo de controle e com um mercado totalmente desregulamentado. O resultado disso tudo só pode ser o aumento da miséria, do desemprego e das guerras; numa palavra: o Estado da barbárie social!

VIII
A tônica central da estratégia revolucionária brasileira deve ser trabalhar pela conscientização da expropriação dos monopólios, do seu controle pelos trabalhadores, organizados em conselhos populares por empresa e por cooperativas que se tornem empresas estatais, embora sempre abertas a avaliação e reavaliação permanente dos trabalhadores, da sociedade e de consumidores com novo tipo de consciência, com eleições permanentes para gerência administrativa e outros cargos (medida democrática impensável para a sociedade capitalista). Atualmente não pode haver revolução alguma sem a expropriação dos monopólios imperialistas, pois sem isso não haverá independência nacional verdadeira (hoje todos os países coloniais e semicoloniais estão sob o jugo dos grandes monopólios imperialistas), nem a solução dos problemas sociais, como o desemprego e a miséria.
Desde meados do século XX o único caráter possível para a revolução é o caráter socialista, que leve à expropriação dos monopólios. Todos os outros tipos de revolução já caducaram e não passam de formas de enganar e confundir os trabalhadores. É preciso, portanto, pensar e repensar sobre os meios e possibilidades de expropriação e de administração coletiva de empresas e da economia em geral. As tarefas burguesas não realizadas entrarão como medidas a serem cumpridas pelos trabalhadores no poder, ao mesmo tempo em que realizam as tarefas socialistas, como a expropriação e o controle operário e popular da produção. Para além da expropriação dos monopólios, há que se expropriar os bancos, tornar nulo todos os contratos fraudados das dívidas públicas e regulamentar o sistema financeiro, denunciando todas as suas resistências, acordos secretos e sabotagens no mercado nacional e mundial. De todas as atividades econômicas capitalistas a mais visivelmente parasitária é a especulação financeira praticada pelos bancos. Por tudo isso, é fundamental uma propaganda voltada permanentemente a desmascarar estes rendimentos feitos de forma escandalosa. A propriedade privada dos bancos deverá ser a primeira proibida, seguida pela da grande mídia.
É preciso reciclar e reparar os anos de propaganda petista sobre o movimento sindical brasileiro, fazendo aparecer claramente que o verdadeiro proprietário do capital e dos meios de produção não devem ser os empresários e os banqueiros, mas os trabalhadores e a sociedade. Do ponto de vista psicológico há uma grande diferença entre dizer: “nós expropriamos os grandes capitalistas” e “nós tomamos posse da nossa propriedade legítima”. Na sua propaganda cotidiana, não deve uma organização revolucionária fazer compreender aos trabalhadores de uma determinada empresa que eles são os seus donos legítimos e fazê-los interessar-se, desde já, pelas suas tarefas de administração?

IX
Cabe perguntar agora por que a Revolução Russa degenerou em stalinismo? Além de todos os motivos políticos e econômicos já debatidos e demonstrados, dentre outros, por Trotsky, está a questão de que não houve um esforço consciente para mudar o ser-humano; sobretudo um esforço que levasse em consideração as questões de psicologia de massas e uma verdadeira luta pela autonomia individual dentro da coletividade. Não há auto gestão sem autonomia individual; mas a autonomia individual não deve se sobrepor ao coletivo, senão reproduzirá, querendo ou não, a sociedade capitalista.
Nenhuma organização revolucionária ou sociedade socialista poderá menosprezar novamente os seguintes debates: o universo, a sexualidade e a natureza (todos estes tópicos estão interligados à economia e à política). Tudo isso foi menosprezado no passado porque não se sabia ao certo por onde começar. Mecanicamente se pensava que o ajuste da economia socialista iria criar automaticamente o ser humano novo. Sabemos hoje, no entanto, que isto é apenas o princípio, pois já compreendemos alguns problemas traçados pela psicologia de massas. Uma das bases da “reforma” do ser humano foi lançada por Reich: amor, trabalho e sabedoria – estes três elementos, totalmente destruídos cotidianamente pela sociedade capitalista, precisam ser sustentados por um governo e uma sociedade socialista, para além da socialização dos meios de produção.
Devemos considerar que um sério problema na psicologia das massas é que elas podem agir contra os seus próprios interesses, desenvolvendo um comportamento irracional. Nesse sentido, o movimento revolucionário não tem que insinuar, mas dizer tudo às massas (mesmo que isso nos faça perder influência política e votos em um primeiro momento), procurando decifrar e formular o seu desejo baseando-se na vida das suas largas camadas populares (e mesmo desnudando e denunciando os interesses inconscientes que fazem as massas sustentar uma política reacionária). Por tudo isso, é muito importante aprender e estudar as questões pessoais cotidianas (interesses sexuais, educacionais, consumistas, culturais, etc.) e não simplesmente eliminá-las, mas politizá-las. É preciso também golpear a rotina e os hábitos incentivando troca de profissões e mesmo de cargos dentro de uma mesma empresa. Sair da rotina é fundamental pra se criar um novo ser humano, principalmente para desenvolver novos hábitos artísticos e culturais que serão decisivos para a construção do socialismo.

X
            Outra tarefa central da revolução é preparar o trabalho ideológico e político para substituição da família patriarcal pela família livre. Reconhecer o direito à igualdade civil entre os sexos, ao aborto, ao divórcio é parte indissociável da família socialista, que deverá atribuir a criação dos filhos à sociedade (embora, ao contrário do que afirmam alguns sádico-religiosos, isso não signifique eliminar os vínculos amorosos entre pais, mães e filhos). O estupro ou qualquer outra forma de violência psicológica contra a mulher deve ser punido da forma mais severa, além de ter o devido acompanhamento psicológico. A educação sexual precisa ser um currículo obrigatório para as escolas, universidades, centros comunitários e para a grande mídia.
            A luta contra o racismo, a LGBTfobia e a xenofobia necessitam também se expressar antes e depois da revolução. Não existirá real igualdade sem reconhecer o direito à igualdade de negros e negras, LGBTs e dos imigrantes. A revolução deverá trabalhar para abolir as fronteiras, esta vergonhosa herança de discriminação do período burguês de desenvolvimento histórico. Porém, há que se estar duplamente atento contra a tentativa de aburguesamento destas pautas. Amplos setores da classe dominante já perceberam o potencial de mobilização das mulheres, do movimento negro, LGBT e dos imigrantes, procurando mantê-los nos marcos da sociedade capitalista e tornando-os direita ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, omissos em relação à estratégia socialista.
            Na luta contra a família patriarcal, no entanto, as organizações revolucionárias encontrarão adversários de peso, não apenas na Igreja Católica e na grande mídia, além, é claro, do pensamento conservador da classe média (alimentado pelas duas primeiras), mas, sobretudo, nas inúmeras igrejas evangélicas. Certamente uma das bases do fascismo está presente nas religiões organizadas, que incentivam o conservadorismo, dentre outros meios, através da família patriarcal. Não são apenas as centrais sindicais burocratizadas que contêm, controlam e manipulam os trabalhadores. A religião evangélica, que não casualmente, cresceu muito no Brasil nas últimas décadas, é uma grande força contendora das lutas sociais. O movimento sindical burocratizado e as forças evangélicas estão numa frente única informal contra os trabalhadores conscientes e a independência de classe. Nenhuma destas igrejas pode viver sem o capitalismo e jamais deixariam suas bases econômicas serem questionadas, pois é destas bases que advém o seu poder.

XI
            A destruição da natureza é uma realidade palpável neste início do século XXI. O consumismo desenfreado, a poluição de rios e mares, a emissão de gases pela indústria e pelos transportes não pode diminuir seu ritmo sem levar o capitalismo ao colapso. É deste ritmo que se garante a produção e é do aumento desta produção que a burguesia extrai seu lucro. Todos os acordos internacionais entre os países constituem-se em promessas cínicas, que nunca são cumpridas e não preveem nenhum tipo de punição. A destruição da natureza significa, sobretudo, a destruição da nossa espécie. Dentro deste contexto, o socialismo possui uma vantagem sobre o capitalismo: desde que livre das amarras burocráticas, pode solucionar o problema ambiental através de uma nova economia e de uma nova cultura. Para isso, as organizações revolucionárias devem traçar uma propaganda e uma agitação bastante claras sobre isso desde já. Não se trata de uma opção e, muito menos, de uma forma oportunista de ganhar influência, tal como acontece hoje. Precisa se traduzir numa mudança de postura de sua militância também, propondo debates e ações práticas entre os trabalhadores.
            Não é apenas a indústria, a mineração, o agronegócio e a poluição oriunda dos transportes que destroem a natureza, mas, também, a indústria da carne, que realiza um verdadeiro genocídio animal. A morte planejada de milhares de espécies de animais por dia é outra forma grave de destruição da natureza. No passado, a humanidade não tinha opção alimentar e a caça era quase a única fonte para se obter proteína. Atualmente, com o avanço da ciência, sobretudo da nutrição e da medicina, é possível adquirir proteínas por outros meios que não o genocídio animal. Dentro do capitalismo, contudo, é praticamente impossível frear a sanha de lucros da indústria da carne e do agronegócio. Além da base econômica, há que se mudar a educação e a cultura alimentar.
            Outra forma do capitalismo destruir a natureza (neste caso a nossa natureza humana) é através da aceleração e escravização do tempo. Os trabalhadores são submetidos a ritmos de produção e a compromissos compulsórios que os desumanizam, enquanto que uma massa de desempregados vive vegetando no subemprego. Os progressos técnicos nas comunicações e nos transportes propiciaram uma revolução científica, mas em contrapartida escravizaram os trabalhadores, que não podem se reproduzir no seu tempo livre (a não ser como uma forma de recriar a alienação do trabalho). Os ritmos da produção devem se adaptar à natureza humana, e não o contrário. Seria possível dividir o trabalho entre toda a população trabalhadora empregada e desempregada, garantindo o verdadeiro direito ao trabalho e, simultaneamente, o tempo livre necessário à humanização e ao desenvolvimento cultural, intelectual e físico, respeitando também os ciclos da natureza.

XII
            Os estratos da classe média merecem uma atenção especial da estratégia revolucionária, dada a sua quantidade populacional e influência social. Do ponto de vista da propaganda é preciso demonstrar à ela que o socialismo não significa a supressão da pequena propriedade privada imediatamente (isso pode levar décadas ou séculos), muito menos da sua moradia e pertences individuais (como cinicamente a burguesia e os seus ideólogos propagandeiam). Há que se combater os preconceitos morais tão típicos do “indivíduo médio” sem ataques pessoais, mas demonstrando a sua falta de método, de princípios e o total irracionalismo de suas posições políticas.
            Se faz necessário a atuação junto à associações da sociedade civil no sentido de esclarecer a política proletária em seu seio e não pequeno-aburguesar a política revolucionária. Há inúmeras formas de demonstrar como a política da burguesia ameaça permanentemente as condições de vida da classe média, bem como torna impossível a concretização de qualquer uma de suas reivindicações (fim da corrupção, moralização das instituições públicas, taxação das grandes fortunas, regulamentação do mercado). Uma vez no poder, os trabalhadores conscientes precisam acenar para políticas econômicas que, num primeiro momento, ajudem a manter o pequeno empresário, facilitando financiamento para aqueles que se comprometem com metas sociais gerais, elevando e incrementando o mercado interno, e que sirvam para o empreendedorismo social, não meramente ao enriquecimento individual. Confrontando com as mentiras ininterruptas contra o socialismo e a tentativa permanente de associá-lo aos regimes stalinistas, é preciso que se diga incansavelmente para todos os setores honestos da classe média e às suas organizações na sociedade civil através da propaganda e outros meios, que existem dogmas econômicos do neoliberalismo muito piores que não podem ser questionados, além do fato de não existir mais “livre” mercado desde o advento do capitalismo imperialista.
            Para além do debate econômico, há que se combater também a moral autoritária em que a classe média foi criada e na qual cria seus filhos. A libertação sexual é parte importante dessa luta, uma vez que a vida social hipócrita e a mentalidade reacionária se desenvolvem a partir de um autoritarismo moral que é, na verdade, uma consequência da moral religiosa e, em essência, totalmente anti-natural. Em uma sociedade dominada, dentre outras, pela repressão sexual oriunda da estrutura patriarcal, o recalque e a angústia se exercem como fatores dominantes da construção dos caráteres, encontrando alívio no sadismo e criando uma estrutura que está satisfeita consigo própria. Evidentemente que todos os casos devem ser olhados na sua relação concreta, não existindo uma fórmula pronta que autorize qualquer aliança, mas a política proletária que ignora a classe média, igualando-a à burguesa (por mais reacionária que seja grande parte dessa classe média), não ajuda a causa revolucionária, apenas joga a pequena-burguesia nos braços da burguesia imperialista.

XIII
            A educação e a mídia de massas tem papel fundamental na construção do socialismo. Enquanto são controladas pela burguesia através das suas empresas e do Estado, não passam de instrumentos da alienação e da subordinação dos trabalhadores ao capital. É por isso que enquanto o capitalismo existir as organizações revolucionárias precisam desenvolver uma luta sem tréguas contra a “educação bancária” (voltada à alienar estudantes para que se tornem dóceis e submissos operários em série) e a manipulação midiática.
            O primeiro pré-requisito para a existência de liberdade de imprensa, como foi bem definido por Marx, é que ela não seja um negócio. E como sabemos, uma empresa midiática é um dos negócios mais lucrativos, conformando monopólios que influenciam e alienam milhões de seres-humanos, seguindo, unicamente, o que o mercado capitalista entende por “liberdade de imprensa”. A política do PT de regulamentação da mídia (repetida por setores do PSOL e outros satélites) não resolve o problema real de censura e manipulação, pois não questiona a propriedade. Esta política apenas cria novas ilusões de que é possível controlar os monopólios midiáticos dentro do capitalismo e de competir com a grande mídia a partir das mídias alternativas. O objetivo final da revolução deve ser a expropriação dos grandes monopólios midiáticos, colocando-os sob controle das organizações proletárias e populares. Somente estas condições poderão permitir o debate da programação e dos conteúdos por congressos periódicos de trabalhadores, convocados e debatidos com toda a sociedade, transformando a TV de um instrumento de alienação, opressão e dominação, em um meio para a formação educativa, cultural e social de todo o povo.
A sua principal função deverá ser a divulgação artística e científica, casada com a educação pública e a instrução geral, além de trazer a tona os principais debates sociais, esclarecendo divergências e não abafando-as através do poder do dinheiro. A grande mídia burguesa dificilmente se deixará ser regulamentada. O caminho revolucionário indica que se deve expropria-la, colocando-a sob controle popular, com avaliação permanente dos conteúdos, e transformando-a numa ferramenta de divulgação científica, artística, de repórteres populares, com prestação de contas permanente dos governos, repartições públicas, empresas, bancos, etc., feitas por auditorias independentes de economistas, contadores e jornalistas ligados ao movimento dos trabalhadores e com amplo espaço de fala nos meios de comunicação. Enquanto não é possível expropriar as empresas da grande mídia, um dos principais deveres das organizações revolucionárias é denunciar as suas manobras e manipulações por todos os meios que lhes forem acessíveis e apresentar o programa socialista à sociedade. Deve-se tornar prática comum do trabalho revolucionário atual desmascarar uma a uma as notícias falaciosas e tendenciosas veiculadas pela grande mídia (a campeã de fake news). O tempo não tardará a confirmar as denúncias.
No campo educacional, as organizações revolucionárias devem lutar por uma educação pública laica, que defenda a autonomia real dos estudantes e combata a alienação, possibilitando o questionamento crítico das regras estabelecidas sempre que assim se fizer necessário, colocando os alunos na obrigação de ajudar a gerir o espaço escolar (debate de conteúdos curriculares, prestação de contas da direção, crises, brigas, bullying, limpeza, reposição e gestão de materiais, etc.) e se preparando para assumir as suas responsabilidades sociais e de trabalho na perspectiva socialista[xiii]. Em síntese, o educador socialista deverá sentir as qualidades de vida em cada criança e reconhecer seus atributos específicos para fazer com que eles possam ser desenvolvidos. Ele se familiarizará com as qualidades emocionais naturais que varia de uma criança a outra e aprenderá a levar em conta as influências sociais que se opõem a estas qualidades vivas. A reestruturação do caráter humano por uma transformação radical da nossa maneira de educar as crianças, em todos os aspectos, diz respeito à vida como ela é. É preciso, desde cedo, ajudar as massas a vencer o seu medo da liberdade e da vida através da educação, buscando a emancipação intelectual, sexual e moral (todas sendo elos de uma mesma repressão).

5) Seria possível socialismo só no Brasil?
           
I
A resposta para esta pergunta é não! A experiência com a União Soviética nos demonstrou que é impossível o socialismo em apenas um só país. Ele precisa expandir-se para outras nações, pois o capitalismo e o seu mercado são internacionais, o que aponta a necessidade de sua superação também no campo internacional. Assim como a época do desenvolvimento burguês é marcada pela formação dos Estados Nacionais (os países), a época de desenvolvimento do socialismo só poderá se resolver no plano internacional.
            Nesse sentido, é evidente que se fará necessário uma conexão internacional entre os trabalhadores, tal como a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a II, a III e a IV Internacional procuraram estabelecer. Porém, em princípios do século XXI, dada a profunda crise de direção revolucionária que vivemos, não será possível impor uma direção internacional, que deverá surgir a partir da luta, principalmente como resultado de um triunfo revolucionário. E, mesmo assim, será difícil crer que conquistará adeptos impondo sua direção. Vai ser necessário uma troca produtiva de experiências e um intercâmbio permanente entre trabalhadores de distintos países, respeitando as peculiaridades de cada nação, para podermos desenvolver uma nova associação internacional, pautada mais pela autoridade moral do que pela imposição do aparelho. Apesar das dificuldades, que hoje parecem intransponíveis, é preciso tentar sempre, buscar contato, não se acomodar. No entanto, há que se levar em consideração o doloroso histórico da III Internacional stalinista e das inevitáveis sequelas e desconfianças que deixou – repetidas quase mecanicamente pela maioria das organizações de “esquerda”. A atuação da III Internacional foi um amontoado de incoerências, que tinham a principal finalidade de manter a correlação de forças internacionais para poder sustentar o poder soviético sob hegemonia stalinista. Nada contribuiu, portanto, para a construção do socialismo e a derrubada do capitalismo, tal como almejavam seus fundadores em 1919. Toda a sua experiência serve para nos demonstrar como não atuar!
            Os seres humanos do início do século XXI são em sua maioria céticos e niilistas. Refletem as derrotas da luta dos trabalhadores no século XX: a restauração do capitalismo e a desmoralização do “socialismo”, que nada mais foram do que o resultado do regime stalinista. A sociedade capitalista joga, cotidianamente, trabalhador contra trabalhador, sendo extremamente difícil construir as pontes entre eles numa mesma categoria profissional, que dirá a nível internacional. O sentimento anti-partido, que nada mais é do que a anti-organização, foi cuidadosamente cultivado pela burguesia e a sua mídia de massas. Impera um sentimento individualista e hedonista, pautado pelo imediatismo e o espontaneísmo, que não podem servir de base para um forte movimento de massas.

II
            O atraso e o subdesenvolvimento do Brasil só são inteligíveis quando entendidos como parte do sistema capitalista mundial. A economia e a política do país compõem o mercado mundial e só podem ser compreendidos na sua interação dialética com ele. Este é o método errôneo em que incorrem as análises midiáticas, dos partidos burgueses e reformistas. No caso da mídia burguesa e dos seus partidos trata-se de uma forma de esconder e confundir os problemas; no caso dos partidos reformistas, uma forma de capitulação aos primeiros. O imperialismo capitalista, como um sistema internacional, não permite que nenhuma de suas “províncias” rompa impunemente com a lógica da sua dominação. Asfixia, isola e destrói qualquer experiência política independente, ao ponto de fazer parecer que qualquer outro sistema não “dá certo”, como se fosse sua própria culpa. Depois disso, organiza um bombardeio ideológico no sentido de culpabilizar o país pelo seu próprio atraso, como se o imperialismo não tivesse nada a ver com isso. O isolamento e a sabotagem política e econômica só podem ajudar a acelerar a degeneração e, muito dificilmente, um país sozinho conseguirá se desenvolver em uma estrutura mundial dominada por tal tipo de monstruosidade. Nesse sentido, a teoria do “socialismo num só país” ou de “coexistência pacífica com o imperialismo” são utopias reacionárias, geralmente usadas para iludir os trabalhadores. Há a necessidade imperiosa de um esforço dos países que se libertam através de uma revolução socialista contra o monstro imperialista. A revolução precisa se espalhar para outros países ou ela terminará derrotada.
Sabemos, pela mais amarga experiência histórica, que uma revolução engendra uma contra-revolução. Nenhuma classe dominante abandona a cena da história sem oferecer uma dura resistência. Se ela não existisse, atingir os objetivos da revolução seria muito mais fácil. Mas a vida e a natureza não são assim. Todos aqueles que se frustram facilmente, reclamando permanentemente “da maldade inata do ser humano” e outras preciosidades do gênero, não querem compreender que a contra-revolução exerce uma pressão avassaladora sobre as tentativas revolucionárias; e que ela sobrevém precisamente de fora do país. Foi assim com a Reforma Protestante, que gerou a Contra-Reforma católica; foi assim com as monarquias europeias, que de diversas formas tentaram esmagar a Revolução Francesa de 1789; foi assim com os 14 exércitos imperialistas que invadiram a Rússia entre 1918 e 1921 para esmagar o governo bolchevique; foi assim em Cuba, com a invasão da Playa Girón, em 1961, e em tantos outros momentos da história.
            Portanto, resistir, inclusive militarmente, é um dever se queremos falar verdadeiramente em revolução. O endurecimento de uma revolução engendra perigos de degeneração, pois inúmeros setores das massas não possuem plena clareza de tudo o que se passa e serão presas fáceis da contra-revolução nos momentos seguintes. Enquanto precisamos cultivar os valores elevados que uma sociedade socialista exige, a contra-revolução joga com os sentimentos baixos que não precisam ser cultivados, mas apenas despertados: o egoísmo, o sadismo, o ódio, o instinto de sobrevivência contra o próximo, etc. O burocratismo da União Soviética e de Cuba nasceu deste enfrentamento, além, é claro, da pressão do isolamento internacional. Romper este isolamento é uma tarefa muito difícil, que requer um conjunto de métodos econômicos, políticos e militares. Todos eles – sobretudo os militares – deixarão sequelas inevitáveis, não por culpa dos revolucionários, mas por culpa da classe dominante nacional e internacional, que não deixa alternativa.
            Acusam os revolucionários de violentos, mas não acusam de violentos os contra-revolucionários, que além de matarem a população mundial de fome nos tempos de calmaria, se utilizam das piores sabotagens políticas, econômicas e militares nos tempos de revolução. A violência revolucionária é, antes de tudo, autodefesa. Renunciar a luta militar é, portanto, renunciar à revolução. A violência não é uma opção, mas uma resposta inevitável à natureza social das classes dominantes.

III
            Sabendo desta inevitável resistência que a contra-revolução oferecerá a qualquer processo revolucionário que ameace a sua dominação, é preciso tentar prever os inconvenientes, indo desde a burocratização, até a impossibilidade de atingir determinados fins de forma imediata e direta. Não existirá perfeição na revolução: ela será, precisamente, o resultado da luta entre as forças revolucionárias e contra-revolucionárias. Isso não significa que devemos abrir mão da teoria e do estabelecimento de metas mais altas e avançadas. O fato, contudo, é que não será possível atingi-los todos sem perturbações que provém das sabotagens e da intervenção militar da contra-revolução. É preciso estar consciente sobre estas sabotagens desde já e procurar intervir nelas com sabedoria e lucidez, sempre demonstrando aos trabalhadores de cada país através da diplomacia revolucionária, da agitação e da propaganda. A burguesia imperialista, muito hábil e ardilosa, saberá se utilizar do medo da liberdade intrínseco ao ser humano e do irracionalismo das massas, manipulando-os contra a revolução.
            As sabotagens da contra-revolução mundial na Rússia revolucionária custou a vida dos operários mais avançados, isto é, daqueles que possuíam consciência de classe. Nos anos seguintes, de 1921 até 1931, sobreveio o vácuo irreparável, que acabou sendo ocupado por uma gananciosa e medrosa camada de burocratas, que não participaram de nenhum processo revolucionário e estavam na retaguarda (ou debaixo da cama) durante a revolução de 1917 e a guerra civil de 1918-1921. A rotina – na cabeça do indivíduo médio da massa – é uma suposta garantia de paz e tranquilidade. Uma revolução social traz, consciente ou inconscientemente, o medo da mudança, do novo, do fim da rotina. O imperialismo e a grande mídia tem sabido como ninguém jogar com este medo, ao mesmo tempo em que a “esquerda” não tem vontade política para vencê-lo, insuflando-lhe coragem e uma propaganda coerente. Este medo, apesar de tudo, é abalado nas crises que precedem as revoluções, mas está sempre apto a retornar no momento seguinte.
Como nos demonstram as experiências da Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917, após a estabilização da crise revolucionária, as pressões, as traições políticas e o cansaço voltam a jogar os trabalhadores de volta na zona de conforto e, a depender do governo que sagrou-se vencedor, no medo. A zona de conforto e o medo são realidades biológicas intrínsecas a todos os seres vivos, que agora precisam ser melhor estudadas e compreendidas se queremos tentar superar os erros das experiências do passado. Para além das traições políticas e do cansaço, existem razões vinculadas à estrutura psicológica humana (moral, caráter, neuroses, medos, etc.) que explicam também os retrocessos de uma revolução.
A grande dificuldade da revolução é que a sociedade e as massas não são um corpo homogêneo, mas composto por muitas classes e grupos sociais, de diferentes matizes e etnias culturais. Estas classes e grupos não convivem em harmonia, principalmente porque são incitados a divisão pelo caos do mercado e do regime imperialista. Seus interesses são conflituosos, sendo que, muitas vezes, há diferenças dentro de cada classe e de cada grupo social. Na maior parte do tempo cada ser humano ou família segue os seus próprios interesses pessoais que, em muitos casos, está em confronto com os interesses sociais. Uma das tarefas mais difíceis de um governo revolucionário será propor um fio condutor político e econômico que seja capaz de unificar todas estas diferenças, sem suprimi-las completamente, criando um novo equilíbrio social.
Cada vez mais amplamente sabe-se que a vida na natureza é um sistema solidário, infinitamente complexo e frágil, de inúmeros equilíbrios, os quais são igualmente delicados e instáveis. Com a sociedade, que está dentro da natureza, não é diferente. Cabe aos revolucionários começarem a tomar consciência destas peculiaridades.

IV
            Saber usar a tribuna internacional para fazer propaganda e agitação revolucionária sobre os povos do mundo será determinante. Os bolcheviques souberam usar os tratados secretos que o czarismo mantinha com o imperialismo da Europa Ocidental para mostrar aos trabalhadores do mundo o que lhes aguardava. Souberam incitar corretamente os trabalhadores à luta no sentido da construção de Conselhos Populares, tal como tinham se desenvolvido na Rússia. Os cubanos também usaram muito bem a tribuna da ONU e os encontros internacionais para demonstrar a incoerência e as mentiras do imperialismo e da politicagem burguesa. A diplomacia internacional do stalinismo, em contraposição, foi catastrófica, derrotando e desmoralizando revoluções pelo mundo e servindo para criar partidos comunistas dóceis e submissos aos interesses de Moscou. Aqui, novamente, não poderia ter existido nada que fosse tão avesso aos princípios do socialismo e servisse tão bem aos interesses da burguesia imperialista. Tanto é assim que a Internacional Comunista foi dissolvida à mando de Stalin em 1943 e o capitalismo terminou restaurado na União Soviética. O fato, contudo, é que a revolução precisa se espalhar como uma onda crescente pelo mundo se se tem o firme propósito de fazer o socialismo triunfar efetivamente; a começar pela região do entorno.
            O impacto de uma revolução brasileira sobre o mundo será grande, mas facilmente contornável por parte do imperialismo norte-americano, dado o papel subserviente que o nosso país cumpre no mercado mundial. Na América Latina, ao contrário, será avassalador, não apenas pelo peso econômico do Brasil, mas pela extensão geográfica, pela influência política e, sobretudo, pelas condições miseráveis em que se encontram os demais países do nosso subcontinente, esmagados pelo imperialismo. Se uma ilha do Caribe teve um impacto profundo sobre toda a América Latina, obrigando o imperialismo a desencadear furiosas ditaduras militares para conter a onda, o papel do Brasil pode ser decisivo, tal como foi o da Rússia nos países da Ásia e no leste europeu. Para isso é preciso pensar em estratégias econômicas, políticas e de resistência cultural, ideológica e militar. Uma delas é casar a diplomacia revolucionária com a propaganda e a agitação, criando uma psicologia de massas favorável à revolução. Devemos deixar a ofensiva militar para a burguesia, embora tenhamos que estar sempre preparado para a autodefesa, ao ponto que fique bem claro aos olhos dos trabalhadores do mundo de quem parte a agressão. Uma vez que uma revolução triunfe em vários países, seria possível instigar e impulsionar a revolução em outros a partir da diplomacia revolucionária.

V
Como pudemos ver com a experiência russa, o dinheiro não pôde ser extinto tão rapidamente quanto se supunha (na URSS não se chegou nem perto disso). Se fará necessário uma longa transição entre a utilização de dinheiro casada com outras formas de retribuição do trabalho, que na sociedade socialista deverão ser bem diferentes do reles incentivo material. Esta diferenciação de mercados nacionais, com moedas próprias e a tentativa de valorização de umas em detrimento de outras, sem falar na absurda especulação monetária, que gera lucros astronômicos para os bancos e a fome para centena de milhares de pessoas no mundo inteiro, é um grande empecilho para a expansão da revolução pelo mundo e uma excelente forma que a burguesia encontra para se defender.
Disputar o mercado no terreno econômico, principalmente a partir da cooperação entre os trabalhadores de diferentes países, da venda de produtos a preços mais baratos, da tentativa de usar as leis do mercado em uma perspectiva socialista para desenvolver países atrasados, bem como instigar o desenvolvimento regional, a partir de juros baixos e reinvestimento permanente na produção, são armas que os governos revolucionários deverão usar (tanto quanto os recursos militares). Inclusive o investimento para subsidiar produção em países atrasados, como a Bolívia e o Paraguai, por exemplo, incentivando indústrias que são sistematicamente destruídas pelo imperialismo visando manter seu monopólio. Utilizar métodos econômicos na luta contra a burguesia será, também, de vital importância. Sabemos que ela jamais tolerará tal política econômica, não se restringindo apenas a este campo, e se utilizará de todo o seu arsenal de sabotagens políticas, ideológicas e militares para destruir tal projeto. Neste sentido, a defesa militar e a utilização de métodos militares infelizmente se farão necessários, não por iniciativa da revolução, mas sempre, como é evidente pela experiência histórica, da contra-revolução burguesa.

6) O problema da organização: como construir-reconstruir o partido revolucionário?

I
O que a experiência nos demonstra é que as revoluções necessitam de uma direção e uma estratégia; e que construir o partido revolucionário não pode ser o resultado de um tantra, que de tão repetido, irá se materializar do nada, como se não levássemos em consideração às condições objetivas para a sua construção. Na Rússia pré-1917 as condições em que os bolcheviques erigiram o partido revolucionário eram outras (tais como: forte movimento operário, a IIª Internacional existia em quase todos os países da Europa e do mundo, a luta ideológica anterior que fez os revolucionários russos debaterem a sua estratégia revolucionária à exaustão, o partido bolchevique sempre teve a possibilidade de possuir bancadas parlamentares sem contra exigências mortais e mantinha grande influência nos movimentos sociais, que não possuíam entraves do próprio movimento, como as burocracias sindicais). A autêntica esquerda encontra-se hoje numa situação radicalmente diferente: não existe internacional socialista reconhecida, a institucionalização dos partidos para a participação eleitoral praticamente os colocam numa situação totalmente adaptada e desvantajosa (isto é, legaliza-los leva-os a “vender a alma”), há um desgaste antipartido muito difícil de desmascarar e de se lutar contra, o movimento sindical está totalmente controlado.
            Irá cumprir o papel de vanguarda revolucionária quem conseguir unificar a maioria das organizações e dos trabalhadores em torno de um programa de independência de classe. Seja qual for a sua forma: partido, movimento, organização. Uma organização ou mesmo uma guerrilha puderam cumprir o papel de direção, mesmo que depois da tomada do poder tenham se degenerado ou não possuíssem originalmente organismos de base para a formação teórica e o debate democrático. Mesmo os melhores partidos revolucionários desenvolvem seu grau de conservadorismo e afastam, em um dado momento, a base da direção, engendrando formas de conservadorismo (é possível ver burocratismo até mesmo em organizações anarquistas). Há certamente fenômenos no capitalismo que levam a isso.
Os partidos (incluso os de “esquerda”) estão desgastados; sobretudo em razão do oportunismo latente (especialmente o eleitoral), por um lado, e do sentimento equivocado de dependência paterna das massas, por outro. Estes problemas geram dificuldades extras na propaganda e no debate sobre a construção do partido revolucionário. Isso não significa menosprezar o papel das eleições burguesas e dos espaços institucionais, que podem e devem ser utilizados como palanque para agitação, mas que jamais podem ser um instrumento para a institucionalização dos partidos, tal como acontece hoje com a “esquerda” que está organizada em partido legalizado (PSOL, PSTU, PCB, PCO; PCdoB e PT). O fato, contudo, é que o movimento revolucionário pode ser desencadeado por outras formas de organização, embora só possa ser coerentemente dirigido por um órgão ideológico que é, por natureza, um partido (indivíduos organizados em torno de um programa e de um projeto político). Ficarmos martelando a construção de um partido como um tantra hinduísta, desconectado da realidade concreta, nada poderá fazer efetivamente pela sua construção. Ao contrário, pode se transformar numa espécie de “religião” que afasta ao invés de agregar.
Há que se buscar a aglomeração social de todas as formas possíveis: oposições sindicais, grupos de estudo e debate, participação não sectária em atividades consideradas inúteis, como associação de moradores, de debate pedagógico sobre a criação dos filhos, assembleias sindicais, sociais, atividades culturais, reuniões de escolas e de todos os tipos nos locais de trabalho, até mesmo a participação em atividades de organizações políticas consideradas oportunistas ou sectárias. Num primeiro momento nenhum tema de discussão deve ser proposto: há que se perguntar, simplesmente, aos militantes ou aos participantes quais são suas dificuldades atuais. No decurso do debate é preciso ter muita paciência e um fio condutor para se chegar a algum lugar. A crescente participação e, principalmente, a vivacidade das discussões devem tornar o caminho uma realização feliz, que aponte para algo maior e, principalmente, para a autonomia individual respeitando a coletividade. É necessário um contato vivo entre uma direção e as massas: a teoria deve ser recriada a partir da vida delas. O partido revolucionário e as massas progridem pelas recíprocas contribuições: só desta íntima fusão e, ao mesmo tempo, desta seleção de quadros dirigentes a partir das massas e da sua proximidade com os intelectuais comprometidos com a estratégia revolucionária, que se cria o partido revolucionário. Não existe receita de bolo, há que se colocar a mão na massa com consciência de classe. Aliás, quem espera por receitas nunca faz nada.
Se é um desserviço a lógica burocrática do PT e da CUT de atribuírem a autoridade de “direção da classe trabalhadora” simplesmente ao peso numérico, também o é os pequenos partidos, grupos e organizações revolucionárias que se proclamam constantemente como as únicas direções do proletariado. É preciso combater a autoproclamação e a reprodução do messianismo, por mais razões que elas tenham para agir assim. Isso não invalida, é claro, as necessárias críticas programáticas ao reformismo e à conciliação de classe. Mas estas críticas devem se dar, sobretudo, no concreto e nos momentos propícios (instâncias sindicais, congressos, debates, crise sobre qual caminho seguir, propaganda, etc.) e, ainda assim, devem ser refletidas e principalmente honestas, sem quebrar ou diminuir a resistência na luta contra o capital. Não se pode apropriar-se, nem reivindicar, muito menos monopolizar a direção revolucionária. A direção definitiva não constitui uma pretensão, muito menos um direito, mas unicamente o resultado de um processo. Para isso, os revolucionários devem, antes de tudo, destruir em si próprios a fé na autoridade. Devem avaliar e reavaliar permanentemente a política mais justa, de acordo com a realidade e não com dogmas pseudo-revolucionários (na verdade, religiosos).
O proletariado dotado de consciência de classe é de longe minoritário em todas as nações. Mesmo sendo verdade que a direção lhe pertence, tem, contudo, necessidade de aliados (muitos dos quais, serão temporários, mas infelizmente, há que se estabelecê-los). Talvez seja necessário o incentivo a unidade entre as várias organizações revolucionárias desfragmentadas, uma vez que a unificação total seja impossível. Isto é válido, claro, às organizações revolucionárias de esquerda, e não como incentivo à unidade com qualquer organização ou partido. É importante buscar aproximação com outras organizações políticas e de base, nos bairros, nas escolas, nas fábricas, no interior das empresas, com os trabalhadores subempregados e desempregados; mesmo com as massas ainda desorganizadas e sem consciência que estão nestes locais, bem como nas associações da sociedade civil. É preciso também buscar um diálogo com a pequena-burguesia “progressiva”, que hoje apoia o PSOL e, até bem pouco tempo atrás, apoiava o PT. Dialogar não significa “aliança política”, nem confusão ou rebaixamento de programa; é, antes de tudo, estar atento às demandas, aos debates e às ilusões: propor algumas ações comuns, que podem surgir de necessidades comuns. Por exemplo: intensificar a campanha na internet, nas redes sociais, nos sindicatos e movimentos sociais, unificando as denúncias de comum acordo, sobretudo na luta e no desmascaramento do atual fascismo brasileiro, que tem crescido lenta e perigosamente. A aliança pra lutar pressupõe inclusive a unidade com os anarquistas, que, desde que tenham uma política combativa e classista (não niilista ou individualista), servem como um grande contrapeso à tendência a institucionalização total (o próprio pensamento marxista deve muito às contribuições e polêmicas com o anarquismo). O debate programático e de estratégia precisa ser debatido com todos estes setores e ainda outros, desorganizados. É preciso ainda não desanimar e procurar formas de organização e influência quando as pessoas não se interessarem pela militância, negando-se a ingressar em uma organização revolucionária. Nesse caso, pode-se impulsionar associações culturais, artísticas, científicas, filosóficas, esportivas, etc. Nestes casos é importante deixar as pessoas livres, embora buscando uma influência saudável e propositiva.
            A partir de todas estas reflexões, cabe perguntar se devemos fundar imediatamente uma organização ou, a partir de encontros com militantes que se disponham a dar os primeiros passos, deixar a ideologia e o programa fermentarem e se difundirem por todos os lados, só realizando a união organizativa mais tarde, sobre uma base mais ampla? No momento em que vivemos, de profunda crise de direção e de uma forte tendência à burocratização, talvez seja melhor uma organização preparatória mais flexível, que apresenta algumas vantagens: não implica uma delimitação prematura, nem o perigo de auto-fechamento sectário em si mesmo, melhorando a possibilidade de penetração em outras organizações. Trata-se, antes de tudo, de compreender a situação atual da “esquerda” e as suas perspectivas de evolução, sem abrir mão de princípios, de programa e da estratégia revolucionária.

II
            A grande maioria dos partidos e organizações de “esquerda” – entre as quais algumas que se dizem trotskistas – reproduzem o autoritarismo e a relação de obediência cega dos partidos stalinistas. Há nisso tudo, certamente, algumas tendências na psique humana, conforme já se alertou. Contudo, a questão fundamental que ainda permanece é: por que os operários preferem o reformismo e a burocracia ao invés da luta pela sua emancipação plena em um partido revolucionário? Podemos esboçar algumas tentativas de resposta: I – a ignorância dos trabalhadores acerca da história do movimento operário, da diferença entre o programa reformista e o revolucionário, além de serem pouco versados nas questões de programa político, o que contribui, sem dúvidas, para esta “preferência”; II – o sentimento de desamparo frente à realidade, que busca soluções paternalistas e “mais fáceis”, alimentadas pela própria sociedade capitalista e muito bem manipuladas pelas burocracias políticas e sindicais. Assim, é comum vermos casos de profundo autoritarismo, vigilância de militantes, supressão de liberdades democráticas básicas e de um preocupante dogmatismo, que faz qualquer partido ou sindicato parecer com uma igreja ortodoxa. Ao invés do combate à moral e aos métodos burgueses, há a reafirmação de todos eles, feitas (tal como fazia o stalinismo) através de um linguajar “socialista” e “marxista”.
Os militantes de um novo movimento revolucionário devem ter uma nova relação com o marxismo (libertando-o de todo o dogmatismo). Eles precisarão trabalhar sobre a herança cultural da sociedade de classes e não simplesmente coloca-la de lado como coisa inútil e sem valor. Há que estuda-la e compreendê-la muito bem, digerindo-a a partir de uma perspectiva revolucionária e socialista, sempre com método e sagacidade, abrindo novas possibilidades dialéticas de superação do passado a partir da integração dos seus pontos fortes e negação dos seus pontos reacionários, caducos e absurdos. Um novo movimento comunista não pode mais criar ou tolerar seres humanos sem personalidade. Colocar a “causa” acima das vontades pessoais de forma mecânica e irrefletida é um contrassenso que cobra o preço de todo o movimento, cujo objetivo final é lutar pela emancipação humana.
Nesse sentido, é preciso desenvolver uma forma de partido que não asfixie as divergências, combata a obediência cega e incentive os seus militantes à autonomia total de posições, respeitando as decisões coletivas (mas, ao mesmo tempo, sabendo criticá-las para fazê-las avançar, pois a maioria também erra). Qualquer mudança de política deve ser feita às claras, demonstrando o erro passado no sentido de apresentar uma honesta autocrítica. Nenhum partido ou organização de esquerda procede assim atualmente. É fundamental ainda se questionar permanentemente sobre os problemas de burocratização: por que um simples operário ou trabalhador se torna pretensioso quando é promovido à dirigente político ou sindical?
Muitos destes problemas já são conhecidos e estas propostas, apesar de já formuladas, encontram empecilhos pra se concretizarem. Um dos principais problemas a ser considerado é que as massas podem agir contra o seu próprio interesse, o que constitui um comportamento irracional. É preciso, antes de tudo, aprender e não eliminar estas questões, mas compreendê-las e torná-las racionais (seja dentro do partido, organização, sindicato ou nos locais de trabalho). A energia revolucionária está condensada na vida cotidiana. Apesar de todas estas dificuldades, se pode identificar as características de um autêntico militante revolucionário: simplicidade do porte, capacidade de contato, atitude natural no campo sexual, ausência de verborragia, adesão não só sentimental, mas intelectual ao socialismo; comportamento simples quando em funções de dirigente ou cargos de responsabilidade; respeito às críticas, com capacidade de trabalho racional e disposição ao diálogo. Aquele que dissimula as suas opiniões não é um revolucionário! O que distorce, mente ou modifica opiniões para supostamente vencer um debate é um stalinista! Se não houver um envolvimento sincero e honesto por parte dos militantes de uma organização revolucionária com o seu local de trabalho, tentando, desde antes da revolução, modificar ou combater estruturas e pensamentos reacionários arraigados, certamente a sua militância será deficiente, talvez, até mesmo, interesseira e voltada a buscar algum tipo de privilégio pessoal.
As organizações revolucionárias não devem insinuar ou “adivinhar” os desejos confusos das massas, mas ajuda-las a compreendê-los e a formulá-los e, principalmente, dizer tudo à elas. Há que se abolir completamente a diplomacia secreta do nosso meio. Os partidos burgueses se diferenciam do partido revolucionário, dentre outros motivos, pela questão de como lidam com a massa: se de forma secreta, através de conchavos e acordos de bastidores, ou abertamente, falando a verdade, mesmo que isso signifique a perda de votos ou de influência política sobre o senso comum. A política revolucionária distingue-se da política burguesa porque a primeira joga às claras, defendendo e estando a serviço da satisfação das necessidades das massas, denunciando tudo o que se opõe a isso; e a segunda, constrói suas práticas sobre a renúncia desta satisfação, tal como nos demonstra toda a história do capitalismo, resolvendo, por isso mesmo, apenas as necessidades da burguesia. Em síntese: a primeira não se utiliza de diplomacia secreta, incentivando uma política de esclarecimento das massas; a segunda se baseia, por natureza, na diplomacia secreta e nos acordos de bastidores.
Um exemplo de política revolucionária é a praticada pelos bolcheviques durante os primeiros anos da Revolução Russa (1917-1924); um exemplo de política burguesa é a praticada por Stálin, quando este se apossou irremediavelmente do partido bolchevique e do poder. Quem quer construir o socialismo não tem opção que não seja falar abertamente com as massas, prestando satisfação dos seus passos e demonstrando suas reais intenções.

III
            Na sua tentativa de justificar o reformismo (e ao mesmo tempo se vender como “marxista”) Tarso Genro afirma que o proletariado nunca gerou uma cultura própria e nem um partido proletário (estes sempre tiveram que ser criado pelos intelectuais pequeno-burgueses ou mesmo burgueses de fora da classe operária). Mais uma vez Tarso dá provas do seu cretinismo, pois conhece a obra marxista e sabe que as condições sociais do proletariado são bem diversas da burguesia. Esta surgiu na cena histórica habitando as altas esferas do poder, próximo, inclusive, dos reis. O proletariado surgiu em condições adversas, explorado, educado para servir, ser explorado, humilhado e ainda pensar que vive bem. É submetido a um processo de embrutecimento pela alienação e pelas exigências cotidianas do trabalho. O fato é que a existência física do proletariado possibilitou o seu estudo e a sua compreensão por intelectuais que num primeiro momento estavam fora dela, mas que ao compreenderem o processo assumiram o seu ponto de vista e as suas necessidades. Tarso pretende dizer com isso que o fato dos partidos operários e da cultura proletária não terem surgido genuinamente do proletariado não teríamos ainda vivenciado uma plena experiência vinda diretamente da classe. Sendo assim, o PT estaria autorizado a cometer as suas alianças programáticas e políticas.
            Nós não damos este salvo conduto! Tarso e o PT renegaram a dolorosa experiência de mais de 200 anos de movimento operário. Fizeram troça deste sofrimento e o perverteram pra justificar o seu oportunismo político. Além do reformismo, da falta de estratégia por parte da esquerda e da restauração do capitalismo nos ex-Estados operários, os principais empecilhos para o desenvolvimento de um partido revolucionário atualmente são:
- O falso apartidarismo: as pessoas estão catatônicas; dentro deste estado passivo não veem (e não querem ver) alternativas, se voltando para as novas religiões, aceitando os engodos da grande mídia e dos intelectuais burgueses de forma totalmente acrítica. Se por um lado as traições históricas dos partidos (como a degeneração stalinista e petista) fizeram as pessoas pensarem assim, por outro reforçou sentimentos imediatistas e pragmáticos. Isto é, ao mesmo tempo que condenam a traição dos partidos operários, não querem entender suas causas e se atiram nos braços de qualquer candidato “messias” ou líder sindical (“esquecendo” o fato de que na maioria das vezes eles possuem partidos burgueses por trás). Sendo assim, este apartidarismo acaba se voltando apenas contra os trabalhadores na medida em que dificulta a organização política do proletariado em forma de partido revolucionário e impede o desenvolvimento da independência de classe. Em síntese, ele beneficia amplamente a própria burguesia, que continua organizada em partido e utilizando-se de todos os seus poderes.
- O niilismo: parte deste apartidarismo se traduz naquele sentimento niilista de que nada adianta. Alguns chegam a desabafar irracionalmente que só o fim de tudo e da espécie humana podem representar uma saída. Os seres humanos do século XXI estão cansados de tudo. Preferem acreditar que os “ismos” são todos iguais (capitalismo é igual a socialismo, e etc.) e que o problema é mesmo o “ser-humano”. Isto é, defendem um salvo conduto para não fazer nada e degustar as suas mágoas. O fato é que acabam defendendo o capitalismo, pois não existe neutralidade. Quem se abstém de um posicionamento político na sociedade atual está, quer queira ou não, sempre do lado mais forte; isto é, da classe dominante. Mesmo que as experiências “socialistas” tenham degenerado, fruto de condições históricas bem determinadas e, também, dos problemas tipicamente humanos, o aumento da barbárie social, a destruição da natureza e a destruição da sociedade pela exploração e pelas guerras não são obra de “mentes malévolas” que pairam no ar: todos estes problemas são consequências diretas do modo de produção capitalista, que necessitam de uma solução urgente e exigem, por bem ou por mal, um posicionamento político. O niilista olha esquivamente pra esses problemas, como se não tivesse nada a ver com eles e fosse simplesmente a sua vítima.
            Estes dois problemas não surgiram do nada: são o reflexo da fase histórica que vivemos, de restauração do capitalismo e da desilusão com as trágicas experiências políticas do século XX. Nenhum ser humano emocionalmente frágil perdoa a frustração de suas esperanças. Ao invés de procurar as causas desta frustração, ele faz como o avestruz: enfia a cabeça na terra.

IV
Ainda que o apartidarismo seja nefasto para o movimento socialista e possa ser considerado claramente como um problema que apenas beneficia a burguesia (que seguirá organizada, enquanto que os trabalhadores estarão completamente desorganizados e desarmados), há que se reconhecer que nem todos os indivíduos que querem se manter independentes são niilistas ou reproduzem preconceitos burgueses. Muitos trabalhadores podem ter ou desenvolver consciência de classe mesmo não estando em um partido operário e, mais do que isso, desenvolvem uma sadia desconfiança de determinadas estruturas viciadas. Neste papel, servem de contrapeso à força centrífuga dos partidos burgueses e do burocratismo político e sindical.
Dentro desta lógica, desde que não expressem um partido ou um programa burguês, qualquer pessoa deveria ter o direito de se lançar como candidato independente à representação popular em um sindicato, assembleia constituinte ou mesmo a um cargo político (ao contrário do que preconiza a Constituição de 1988, que defende que somente uma pessoa filiada a um partido político pode fazê-lo). Na contramão do que defende CNC, a única forma de “democratizar” uma instituição como o Congresso Nacional seria abrindo-o, pela força, à população trabalhadora, que se elegeria a partir dos seus organismos de base. A remuneração deve ser igual à do seu trabalho antes de eleito (sem nenhum tipo de benesse material). Para permitir essa mudança representativa, há que se mudar as instituições democrático-burguesas, criando novas, verdadeiramente representativas e, principalmente, o sistema econômico. Isso seria uma condição básica para uma república socialista alicerçada em sovietes ou conselhos populares, que, obviamente, também deveria estar aberta a eleição de representantes de partidos operários.

V
            Outro problema que merece a máxima atenção dos revolucionários é sobre o atual funcionamento da produção econômica no Brasil. A reestruturação produtiva na indústria automobilística no ABC paulista no final da década de 1980 e durante a década de 1990 teve efeito bombástico sobre o PT, podendo ser apontado como uma estratégia política da burguesia para desarticular a combatividade do movimento sindical daquele período. A modificação na economia facilitou a burocratização sindical e dificultou a unidade política para a luta. Até hoje não conseguimos superar este grande golpe de mestre. Por tudo isso há que se estudar como está o proletariado hoje em dia? A resposta para esta pergunta não deve ser dada apenas por uma organização política, mas pelo conjunto do movimento sindical e social brasileiro que reivindica o legado do socialismo marxista.
            Podemos esboçar uma resposta indicando o aumento do “precariado” (isto é, do proletariado que não possui os direitos trabalhistas elementares). Ele existe nas diversas categorias profissionais e no funcionalismo público, tendendo a aumentar com o aprofundamento da terceirização. Este setor do proletariado, na maioria das vezes, está fora de qualquer tipo de representação sindical e política; em muitos casos está fora de qualquer tipo de legislação. É exatamente isso que quer a burguesia para o capitalismo do futuro! Em muitos ramos da produção faz trabalho temporário, demonstrando alto grau de rotatividade, o que impossibilita um trabalho sindical e político prolongado. A organização destes trabalhadores requer novos métodos sindicais e um novo olhar teórico, que as burocracias sindicais e políticas criminosamente se negam a realizar. Qualquer organização que se proponha a fazer uma revolução deverá levantar e defender suas bandeiras, além de organizar os subempregados e desempregados, no sentido de desenvolver sua consciência de classe, mesmo no desemprego.
            Além disso, é preciso salientar que o sujeito social do processo revolucionário deverá ser mais amplo que o proletariado industrial. Todos os trabalhadores assalariados com consciência de classe devem, em algum momento do processo revolucionário, cumprir uma função de direção no sentido de quebrar a hegemonia e as estruturas do poder da burguesia. Isso se passa dessa forma porque atualmente muitos mecanismos econômicos decidem a produção desde fora da indústria, além do fato da burguesia ter trabalhado para diminuir consideravelmente o número do proletariado industrial, mantendo-o em uma redoma dupla através da alienação política e do controle das suas mafiosas burocracias sindicais. Os trabalhadores assalariados em geral, numericamente superiores, deverão ajudar a quebrar estas barreiras desde fora da fábrica. Porém, o socialismo só se tornará uma realidade quando as trabalhadoras e os trabalhadores conscientes estiverem no controle total da produção econômica, o que perpassa, necessariamente, pelo proletariado industrial.

VI
            Em 2013 vivemos no Brasil uma ascensão do movimento de massas, conhecida como Jornadas de Junho, que refletiu as lutas internacionais, como a primavera árabe no norte da África e no Oriente médio, bem como as mobilizações da Europa contra o ajuste fiscal da Troika e o Occupy Wall Street nos EUA. Todos estes movimentos, por não possuírem uma direção, um programa e uma estratégia clara, terminaram reféns de uma ou outra ala da burguesia. No Brasil não foi diferente. Os defensores da estratégia democrático-popular – os petistas – foram os seus algozes, reprimindo os atos de rua com uma virulência sem igual e sabotando seus passos seguintes. Os defensores da “revolução democrática” cultuaram o espontaneísmo das massas e não foram capaz de fazer o movimento avançar um único centímetro. Viram a primavera árabe como “colossais revoluções democráticas” e, no Brasil, não tiveram condições de forjar nenhuma direção ou estratégia para o movimento, ficando absolutamente reféns da sua falência programática e política. Além destes, a maior parte das organizações anarquistas também cultuaram o espontaneísmo das massas, incentivando a ação vanguardista dos black blocs, que sabidamente foi utilizada pela polícia para se infiltrar e destruir o movimento por dentro.
            A estratégia revolucionária, por sua vez, não teve condições de se alçar ao seu papel, dado o fato de que as pequenas organizações estavam isoladas e também perdidas. Ninguém conseguiu prever este ascenso e, muito menos, dirigi-lo. Os movimentos de 2013 ainda hoje são uma esfinge que precisam ser decifrados pelas organizações comprometidas com a estratégia socialista. Apesar de terem pontos convergentes e palavras de ordem contra o regime (o que denotava o desgaste da democracia burguesa e suas instituições), as grandes capitais brasileiras em que os movimentos de rua se desenrolaram ficaram isoladas, sem uma articulação ou um projeto comum, o que demonstra que não houve direção política reconhecida. Para o próximo período, este problema precisa ser resolvido. A vanguarda consciente deve, antes de tudo, vencer o espontaneísmo preponderante, que é cultivado de forma nefasta pelo reformismo que impera no movimento sindical brasileiro, dentre outros desvios. Portanto, uma conclusão já é possível tirar desde já: precisamos combater o apartidarismo burguês e a ojeriza à qualquer tipo de organização política e programática, bem como o espontaneísmo, que não pode criar nenhuma alternativa. Há que se estudar – se é que já podem ser estudadas – as formas de organização que a massa apontou (ou vai apontar) para substituir as já caducadas e ultrapassadas instituições políticas da democracia burguesa brasileira.
            Ou deciframos a esfinge de 2013 ou ela nos devorará! Caso aconteçam movimentos como estes novamente será fundamental apontar para uma estratégia revolucionária, que supere definitivamente a estratégia democrático-popular petista e a “revolução democrática” morenista. Só assim estaremos aptos a decifrar esta esfinge.

VII
            Sabemos agora que a construção e a vitória final do socialismo não poderá ser medida unicamente pelos seus índices econômicos e políticos, por mais importantes que sejam. É a educação autoritária de crianças, ensinando-as a serem obedientes, medrosas e submissas, que assegura aos políticos oportunistas e demagogos, aos pastores e a um führer, a obediência e a fé de milhões de trabalhadores. Esta obediência é um dos principais alicerces da exploração capitalista e tem como reflexo a frustração pessoal, geralmente incompreendida e atribuída a causas falsas.
            Para derrotar o capitalismo definitivamente é necessário que as organizações proletárias se debrucem honestamente sobre os problemas da repressão sexual, da família patriarcal, da moral neurótica, da educação repressiva, castradora e autoritária; ao mesmo tempo em que devem procurar mobilizar os trabalhadores contra a exploração e a opressão econômica da burguesia e do imperialismo no sentido de superá-las. Todos estes processos devem ser vistos como faces de uma mesma moeda.
            Sendo assim, a vitória mais verdadeira e duradoura da sociedade socialista sobre a capitalista somente pode ser avaliada pelo grau de autonomia e confiança que gera nos seus indivíduos e na psicologia sadia que criar na massa em geral. A evolução socialista deve ser medida, então, pela capacidade educacional e social de criar indivíduos independentes, críticos e autônomos, aptos a gerirem a sua própria produção econômica e a sua felicidade em ligação com a sociedade. A principal vitória do socialismo – para além da industrialização, da eliminação do analfabetismo, do desenvolvimento de condições materiais básicas para o proletariado – estará na sua capacidade de formar adultos socialmente autossuficientes do ponto de vista intelectual e emocional (mas sempre ligados entre si pelos interesses gerais da sociedade), para que estes possam educar as suas crianças no mesmo sentido; isto é, no sentido da responsabilidade social que, dentre outras coisas, garanta que sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres. 
        Isso tudo, no entanto, só será possível mudando radicalmente as bases econômicas da sociedade, libertando a massa trabalhadora do jugo opressor e brutalizador do capitalismo. A única forma social capaz de ter estas preocupações políticas e psicológicas é a autêntica sociedade socialista. Nesse sentido, a estratégia revolucionária, embasada pela teoria da Revolução Permanente, precisa ser levada à prática pela esquerda, superando definitivamente as outras estratégias pró-burguesas que apenas fazem perpetuar a agonia e a barbárie capitalista.



Bibliografia
- “A Revolução Permanente”, de Leon Trotsky. Expressão Popular, São Paulo, 2007.
- “A Revolução Traída”, de Leon Trotsky. Editora José Luís e Rosa Sundermann, São Paulo, 2005.
- “O Programa de Transição”, de Leon Trotsky. Editora José Luís e Rosa Sundermann, São Paulo, 2004.
- “Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas”, de Carlos Nelson Coutinho. Expressão Popular, São Paulo, 2011.
- “Na contra mão da pré-história”, de Tarso Genro. Editora Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1992.
- “As metamorfoses da consciência de classe – o PT entre a negação e o consentimento”, de Mauro Luís Iasi. Expressão Popular, São Paulo, 2012.
- “O que é consciência de classe”, de Wilhelm Reich. Textos exemplares, Porto – Portugal, 1976.
- “Cem flores para Wilhelm Reich”, de Roger Dadoun. Editora Moraes, São Paulo, 1991.
- “A revolução de 1930 – historiografia e história”, de Boris Fausto. Editora Brasiliense, São Paulo, 1972.
- “O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente”, de Fritjof Capra. Editora Cultrix, São Paulo, 1982.

Sites, blogs e cartilhas
- “O desenvolvimento do capitalismo no Brasil”, do blog:
http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2016/07/o-desenvolvimento-do-capitalismo-no.html, 2016.
- “O irracionalismo das massas”, do blog:
 http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2016/12/o-irracionalismo-das-massas.html, 2016.
- “O socialismo é a mais alta forma de humanismo”, do blog:
 http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2016/10/o-socialismo-e-mais-alta-forma-de.html, 2016.
- “A imagem do marxismo e do Brasil na obra de Carlos Nelson Coutinho”, do blog:
 http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2016/02/a-imagem-do-marxismo-e-do-brasil-na.html, 2016.
- “Conceitos políticos escandalosos – crítica aos conceitos políticos básicos de Nahuel Moreno”, da organização Luta Marxista, Porto Alegre, 2009.
- “Conceitos políticos básicos”, de Nahuel Moreno e Mercedes Petit. Cadernos de formação do PSTU, 1989.
- “Escola de Quadros”, de Nahuel Moreno. Cartilhas do PSTU, 1984.
           

NOTAS


[i] GENRO, Tarso. Na contra mão da pré-história. Editora Artes e Ofício, Porto Alegre, 1992 (página 12 – grifos nossos).
[ii] Idem (página 72).
[iii] Idem (página 52).
[iv] TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2007 (página 205 – grifos nossos).
[v] Idem (página 205).
[vi] Idem (página 206).
[vii] Idem (página 207 – grifos nossos)
[viii] Idem (página 208).
[ix] MORENO, Nahuel. Escola de Quadros. Buenos Aires, Argentina, 1984. Publicado pelas cartilhas do PSTU (grifos nossos).
[x] LUTA MARXISTA. Conceitos Políticos Escandalosos – crítica aos “Conceitos Políticos Básicos” de Nahuel Moreno. Cartilha da LM publicada em Porto Alegre, agosto de 2009.
[xi] MORENO, Nahuel & PETIT, Mercedes. Conceitos Políticos Básicos. Caderno de Formação 7 do PSTU, outubro de 1989.
[xii] Isto é exaustivamente analisado no texto “O sentido da Perestroika”, escrito, em 1989, pelo NIP (Núcleo de Independência Proletária), mas foi publicado posteriormente pela Luta Marxista, no site www.lutamarxista.org em 5 de novembro de 2008).
[xiii] O debate sobre a grande mídia e a educação pública são melhor desenvolvidos nos seguintes textos: I – Os meios de alienação em massa (disponível em: http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2015/06/os-meios-de-alienacao-em-massa.html) e II – Reflexões pedagógicas sobre a escola pública (disponível em: http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2014/12/reflexoes-pedagogicas-sobre-escola.html)