quinta-feira, 4 de abril de 2024

Milei e os valores ocidentais

 

Javier Milei discursou no fórum econômico de Davos de 2024 afirmando que “os valores ocidentais estão ameaçados” pelo “comunismo” e por países como China e Brasil. Isto é, reforçou o discurso eleitoral que o sagrou vencedor das eleições argentinas de 2023.        

         Contudo, cabe perguntar aqui o que são estes “valores ocidentais” ameaçados, bem como o que os expoentes do neofascismo – como Milei, Bolsonaro e Trump – entendem por “valores ocidentais”?


         Tal como foi comum no passado – para usar uma expressão célebre – “chutar Hegel como um cão morto”, no presente é comum chutar “os valores ocidentais” e “eurocêntricos” como um cão morto!

         Por certo, os europeus cumpriram um papel cruel no processo civilizatório, do qual precisamos rever e mesmo renunciar a uma série de heranças desses valores. No entanto, isso precisa ser feito com lucidez; o que muitas vezes não é o caso.

 

         Certamente os neofascistas, tendo, no momento, Milei e a presidência da Argentina na “vanguarda” desta podridão, se referem aos valores que mais lhe são caros: a propriedade privada e a família burguesa, que é a base de sustento da primeira.

         A sua receita é simples e cruel: jogam-se todos os valores ocidentais num balaio e tentam acionar na psique coletiva mundial o velho “nós contra eles”, sempre muito eficaz. Depois, relacionam o termo “propriedade” com liberdade, o que não é, na maioria das vezes, verdade. Logo após, juntam a ela tudo o que é emocionalmente caro a maioria das pessoas, como a família, a religião, os valores habituais cultivados cotidianamente.

 

         O que Milei não diz é que atrás da propriedade privada burguesa estão inevitavelmente relacionados o colonialismo, a exploração de povos inteiros, o rentismo do sistema financeiro, o racismo, a xenofobia, a ambição egocêntrica desmedida e descontrolada; isto é, os pilares centrais do capitalismo “ocidental” que servem de base para o imperialismo estadunidense frente à ascensão meteórica do capitalismo “oriental”, tendo a China como o carro chefe.

         Ao jogar com as forças pré-conscientes e não refletida da maioria das pessoas, Milei pretende legitimar e angariar apoio ao seu projeto de saque do país via dívida “pública”, inflação fora de controle, imposição de uma dolarização que beneficia apenas a elite argentina – isto é, vai na contramão do que desejam os países do BRICS. Inclusive inviabiliza a adesão da Argentina aos BRICS, o que é um dos principais objetivos do seu governo, amplamente apoiado pelos governos estadunidenses – sobretudo pelo possível futuro governo de Donald Trump.

 

         Em sua decadência histórica, os EUA não podem abrir mão de promover sabotagens financeiras, como criação artificial e arbitrárias de barreiras alfandegárias e guerras comerciais no mercado mundial, sem deixar de ter consequências que se desenrolem numa reação em cadeia, com consequências nefastas sobre os países e pessoas mais pobres (que são mantidos na sua área de influência a partir da manipulação emocional feita através da identificação com os “valores Ocidentais”).

         As guerras comerciais tendem a degenerar em guerra militar aberta – seja feita através da intervenção direta dos EUA como no caso do Iraque e do Afeganistão; seja através de sua “terceirização” por “aliados locais”, que depois são largados à própria sorte, como é o caso da Ucrânia e, futuramente, será de Taiwan.

         Além disso, em sua decadência econômica e política, os EUA passam a inflação monetária do dólar para os países fantoches através da impressão de mais dólares sempre que as estratégias do seu governo julgam necessárias. As elites locais abraçam a inflação sem titubear e os custos, como sempre, são passados aos mais pobres.

         A decadência do imperialismo estadunidense também se traduz por uma distorção permanente do que ele vende como “jornalismo”, que é, na realidade, uma máquina de doutrinação em massa de seus valores e necessidades propagandísticas de guerra ou de “paz”, e de forma alguma pode ser tratado como “informação”. As narrativas “jornalísticas” dos EUA e dos seus aliados “ocidentais” jogam milhões de pessoas contra os inimigos do seu império, confundindo-os como “inimigos do Ocidente” e “da liberdade”.

         A “liberdade” de imprensa ocidental é demonstrada pela perseguição implacável a jornalistas como Julian Assange, e pessoas como Edward Snowden, que ousam enfrentar os interesses estadunidenses em nome do acesso à verdade. Esta “liberdade” também se expressa na manipulação descarada e sem escrúpulo da privacidade das pessoas através das redes sociais, dos seus algoritmos, bem ao estilo do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.

 


Os valores ocidentais e europeus são apenas negativos?

         Julgamos importante encontrar uma visão equilibrada, que saiba estabelecer um olhar crítico sobre a herança ocidental e europeia, mas que saiba também separar o joio do trigo, o progressivo do regressivo; aquilo que pode ajudar na emancipação proletária e humana daquilo que serve para justificar a exploração, a colonização e a opressão.

         O neofascismo de Milei, Trump e Bolsonaro, como corrente internacional, certamente defende os “valores ocidentais” naquilo que têm de pior, negativo, repressivo e opressor, servindo perfeitamente para justificar a exploração e a fonte de sua riqueza. Temem perder seus privilégios históricos e imediatos, por isso recorrem à fraude e à distorção para sustentar a parte retrógrada desses valores, se escondendo atrás de justificativas “nobres”, de tradição e de “alerta” em relação à “ameaça comunista”, “oriental”, “de fora”, aos “valores ocidentais”, como a propriedade e a família burguesa, sempre associados indiscriminada e acriticamente à liberdade.

         Ao invés de fazermos a crítica à herança cultural do Ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do ponto de vista dos povos colonizados, explorados e assassinados, das mulheres e dos povos africanos, indígenas e asiáticos, joga-se fora a criança com a água suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é pensada; ou se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do zero, como se não houvesse nada de positivo.

         O fato do neofascismo exaltar o pior da cultura ocidental – isto é, tudo aquilo que precisamos renunciar e superar –, não exclui o fato de que ela tem muitas contribuições que transcendem o colonialismo e a exploração, sendo parte do tesouro cultural humano. Revisitar esses valores com o olhar crítico é parte importante desta tarefa de renunciar ao que tem de ruim e saber superar estes valores, incorporando seus pontos positivos.

         O discurso de Milei em Davos visa, portanto, tensionar a dicotomização do pensamento e tenta salvar os valores ocidentais decadentes que sustentaram e ainda sustentam o imperialismo estadunidense e europeu, do qual é um vassalo. Parte do movimento sindical e da esquerda responde, com tonalidades identitárias não refletidas, esquecendo-se de olhar através desta lente do “caminho do meio” para dificultar um pouco mais a vida do neofascismo, que usa deste estratagema da psicologia de massas do “nós contra eles”, para adquirir vantagens política na manipulação emocional da classe trabalhadora na América e no mundo todo.

         Contudo, um dos valores ocidentais mais cultivados pelas pessoas (incluindo militantes nos seus diferentes matizes), e que mais contrasta com o pensamento oriental, é a ambição egocêntrica desmedida. É bonito e louvável, segundo o Ocidente, ser ambicioso e procurar a fama individual visando acumular riquezas. Diluir-se no todo causa um pavor descomunal no ser humano ocidental, que não mede esforços para sobressair-se de alguma forma. Não apenas os valores ocidentais se baseiam na ambição, mas o próprio funcionamento do capitalismo depende dela, cultivando-a em muitas esferas. Basta reparar o abuso das propagandas e de consumismo, ambos baseados em formas de insuflar o egotismo.

         Se é importante sabermos reconhecer a contribuição sincera e a importância individual de cada ser humano (fatores levados até o extremo da demência pelo neoliberalismo ocidental), é crucial para a superação dos “valores ocidentais” trilhar um caminho da virtude que seja natural e espontâneo; criar e não se apossar; agir e não esperar.

         Como diz a sabedoria milenar oriental: quem só vê beleza em vencer é quem se alegra em matar; e quem se alegra em matar, não verá realizado o seu propósito no mundo; o vencedor de uma guerra ministra um ritual fúnebre!

         Milei, como um ambicioso vassalo do imperialismo ocidental, procurar reordenar o sistema financeiro argentino para sustentar a máquina de guerra do complexo industrial-militar dos EUA que usa da força bruta, real e simbólica, visando perpetuar os piores valores ocidentais que, sem sombra de dúvida, devemos renunciar. Da mesma forma, é importante relembrar os bons valores ocidentais de luta pela liberdade e emancipação humana (sem nunca esquecer “do todo”) nesta luta contra os supostos auto intitulados porta-vozes do “mundo Ocidental”, que são, em essência, porta-vozes de uma nova forma de fascismo.

         Este é, em síntese, o conjunto de ideias e valores que Milei e cia. querem defender com unhas e dentes, já que, no momento, é o neofascismo o melhor “valor ocidental” capaz de preservar a sua fonte de riqueza.


domingo, 25 de fevereiro de 2024

Lançamentos do nosso blog

 

*Por Santiago Marimbondo

Se há uma esfinge que se não decifrada ameaça nos devorar (como um dragão mítico) quando se pensam os fenômenos geopolíticos que definem o cenário internacional no século XXI certamente a questão da ascensão da China à posição de potência global nas últimas décadas é a fundamental. Se desde a expansão capitalista, primeiramente capitaneada pela Inglaterra no século XIX, a posição global do então império chinês foi rebaixada a patamares não antes conhecidos em sua milenar história (o período de submissão chinesa às potências capitalistas ocidentais é conhecido hoje na narrativa oficial da burocracia estatal que dirige o estado como “século da humilhação”) a partir da revolução vitoriosa no país em 1949, e mais centralmente a partir das reformas pró-capitalistas levadas a cabo por Deng Xiaoping, o país reconquistou uma posição e influência no cenário internacional; agora dentro do contexto da economia-mundo capitalista, que se estrutura no ocidente pelo menos desde o século XV em suas diferentes fases de expressão, e que no mundo contemporâneo se manifesta dentro das relações assimétricas e hierarquicamente organizadas entre os diferentes estados nacionais no contexto da fase imperialista do modo de produção burguês.

Nesse sentido, se torna questão fundamental para todos aqueles que buscam refletir sobre as formas de estruturação atuais das relações capitalistas concretas, sua manifestação efetiva dentro das relações conflituosas entre os múltiplos capitais representados pelos diferentes estados ao redor do globo, os motivos e causas dessa nova posição global da China, que tende a ser elemento definidor, nos mais diferentes aspectos, das relações internacionais no novo século.

Para nós trabalhadores que buscamos lutar contra a reprodução de nossa condição de subalternidade, de alienação e estranhamento impostos pelas relações reificadas e fetichistas que se colocam no capitalismo, portanto, esse debate também se faz essencial. Por vezes, fruto das mais imediatas e prementes necessidades concretas que afetam nossas vidas, nós membros da classe trabalhadora somos levados a crer que as grandes questões políticas e geopolíticas, os debates sobre fatores chave que estruturam nossa realidade social, são questões a serem pensadas e debatidas apenas pelos “especialistas” autodeclarados que encontram espaço midiático nos meios de comunicação oficiais, porta-vozes bem pagos das posições da classe dominante dentro do sistema.

Faz parte da construção da hegemonia social burguesa e reprodução de nossa condição de subalternidade a reprodução dessa perspectiva; a superação dessa condição de subalternidade pressupõe que nós trabalhadores nos coloquemos a refletir, pensar de forma crítica, buscar respostas independentes, de forma coletiva, a todas as questões fundamentais que fazem parte da estruturação da realidade social onde estamos inseridos.

Assim, é preciso saudar calorosamente a iniciativa do camarada Lucas Berton, professor precário do ensino público estadual no Rio Grande do Sul, de publicar sua pesquisa e reflexão séria sobre os elementos que explicam essa rápida ascensão global chinesa, como iniciativa fundamental e exemplar de um intelectual orgânico da classe trabalhadora que visa ter não uma relação passiva e reativa com os fenômenos sociais definidores de sua época, mas uma relação ativa e militante, que entende que a reflexão teórica detida e aprofundada sobre esses fenômenos é essencial para uma ação prática e transformadora.

Leia o prefácio do livro na íntegra em:
https://quilombospartacus.wordpress.com/2023/02/14/a-ascensao-mundial-da-china-prefacio-ao-livro-de-lucas-berton/


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Budismo, taoísmo e socialismo

 

O budismo e o taoísmo têm muito a ensinar ao movimento socialista.

         O movimento socialista tem muito a aprender com o budismo e o taoísmo, que são tradições milenares.

         Há uma tendência muito séria entre os militantes para tornarem-se dogmáticos e mecânicos, apelando para a polarização irrefletida. Na maioria das vezes esta polarização adquire contornos nitidamente contraproducentes. Partem de uma análise correta acerca das classes sociais para tensionarem os polos sociais, entrando num círculo vicioso.

         Tais métodos, mais dogmáticos do que nunca no presente, também são utilizados entre a própria esquerda, o que gera uma verdadeira Torre de Babel. O “caminho do meio” budista é um importante pensamento que obriga a perceber os excessos e os problemas de cada um dos polos extremos, e busca lembrar sempre que fazemos parte, antes de mais nada, de uma totalidade muito maior do que nós e do que qualquer movimento ou país.

         Esta dose de “bom senso” acalma os ânimos e leva a um exercício de paciência e tolerância, sem falar nos benefícios de pararmos para pensar sobre as nossas próprias limitações e sombras interiores. Tais práticas não fazem parte da atividade militante, acostumada a olhar exclusivamente para o social como forma de escapar das inevitáveis questões éticas individuais e dos próprios vazios existenciais.

         O budismo é uma tradição filosófica e religiosa extremamente maleável e não sectária, que ao longo de 25 séculos tem se adaptado a diferentes culturas e à evolução da sociedade. Esta maleabilidade e não-sectarismo é uma necessidade para o movimento socialista, que parece enredado em teias dogmáticas e segregacionistas por motivos equivocados e, muitas vezes, infantis. Nestas teias acaba-se num beco sem saída com o movimento estagnado, perdendo-se a capacidade dialética de interpenetração.

         Poucos são aqueles que se dedicam a estudar a teoria e a história do movimento socialista. Mais restrito ainda é o grupo que estuda outras áreas científicas, lê outras literaturas e pensa para além de um campo apenas. Quem não sabe sustentar um argumento político sem atacar pessoal ou pejorativamente um adversário, é porque está sendo guiado por outras forças mais sombrias, como, talvez, o egocentrismo, e deveria, por isso mesmo, pensar sobre sua prática, inclusive estudando, refletindo e meditando mais para expandir a visão de mundo e a capacidade argumentativa.

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         Muitos dos princípios budistas, ainda que possam ser contraditórios com a teoria socialista, apontam para uma comunhão de ideias com a sociedade comunista.

         Por exemplo, o budismo vê no desapego às posses e propriedades parte fundamental de sua doutrina, o que caminha no mesmo sentido da ideia geral de uma sociedade comunista. No capitalismo, muita gente procura as religiões e deus como forma de ganho pessoal e prosperidade material, inclusive “pagando promessa” – dentre outras razões, é por isso também que as religiões evangélicas ganham tanto espaço no Brasil e na América Latina, se tornando parte fundamental da dominação capitalista.

         Grande parte da população – sobretudo a classe média – tem verdadeiro horror ao discurso “socialista” de retribuir o salário de todos (ou quase todos) com o salário médio de um operário (tal como o defendido pela Comuna de Paris). Toda a condenação à “ausência de liberdade” supostamente ocasionada pelo “socialismo” tem a ver, no fundo, com o medo do fim da “liberdade econômica de acumular riqueza”. Como combater essa mentalidade? Apenas pela força?

         Como o budismo apresenta o desapego a partir de uma lógica mais “espiritual”, possivelmente tenha mais apelo para as mentes religiosas que pululam por entre a massa da classe trabalhadora. Lhes afirmar que devem abandonar toda a crença religiosa por ser ilusória, só poderá abrir-lhes um vácuo de desespero, que lhes jogará nos braços das classes dominantes e das suas respectivas religiões organizadas. O budismo tem um bom caminho não apenas para dialogar com o sentimento espiritual presente na classe trabalhadora, como também, a depender de sua prática, pode cumprir um papel central na mudança interior, dita “espiritual”, pois vai no sentido da construção de um ser humano novo, mais desapegado e empático aos demais. Não haverá socialismo e comunismo sem o cotidiano e paciente exercício da compaixão.

         A visão econômica, exclusivamente materialista do socialismo, predominante até aqui, prende a mente a ganhos imediatos, simplesmente materiais, de curta duração, e impede o vislumbre de uma continuidade maior – isto é, ignora a busca inconsciente que existe na psique humana de contato com a eternidade (características centrais do sentimento numinoso e religioso presente nos seres humanos). Os ganhos materiais, fruto da luta sindical, social e política, podem empolgar a classe trabalhadora até um determinado ponto, mas não a ganha automaticamente para o ateísmo e lhe deixa brechas de vazios existenciais inescapáveis, que podem facilmente serem preenchidos por forças reacionárias.

         Há, por entre as organizações militantes, uma preocupação exclusiva de “se ganhar aquilo que a burguesia nos roubou”, o que é compreensível e, até certo ponto, correto; mas que redunda e se encerra no reforço de ganhos meramente materiais e, em última instância, individuais; muitas e muitas vezes não são necessariamente universais – vejam o enredo sem fim do economicismo mais rasteiro das categorias que lutam separadamente. Isto é, por mais contraditório que parece, um ganho na luta sindical e mesmo política geral tende a reforçar o individualismo. Ao invés de gerar desapego e crescimento da segurança individual e coletiva, reforça o sentimento de posse – o que é uma contradição pra quem pretende construir o comunismo.

         A frase final do Manifesto Comunista “os proletários nada tem a perder com uma revolução comunista, a não ser os seus grilhões”, exige um alto grau de desapego, o que cria certa dificuldade em ser praticada. Ela é analisada estritamente do ponto de vista material, o que significa dizer: a burguesia tem toda a riqueza; nós não temos nada. Queremos partilhar a fonte de riqueza da burguesia com toda a sociedade. Contudo, apenas alguns proletários chegam a esta visão tão elevada. Em sua maioria, como estão condicionados pela realidade específica das suas categorias profissionais e pela mentalidade produzida pela sociedade capitalista, tendem a resumi-la apenas à algum tipo de ganho ou vantagem particular para si e sua própria família.

         Essa é uma das formas que o capitalismo tem mantido sua influência sobre o proletariado, tencionando-o à direita com bastante sucesso. Uma vez que falta uma dimensão religiosa saudável ao pensamento socialista, a luta dos trabalhadores fica presa às questões exclusivamente materiais, facilitando a sedução e o desvio ético de grupos de trabalhadores ou mesmo da grande maioria da classe proletária por parte da burguesia e suas religiões institucionalizadas.

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         Dado o profundo caráter religioso do ser-humano, se uma sociedade socialista não apontar entre suas preocupações para uma espécie de transcendência, a “simples” educação pública será insuficiente, pois a crise existencial individual das pessoas não encontrará eco para se expressar, e a compaixão, o afeto e a felicidade individuais serão impossíveis. Nessas circunstâncias, as pessoas se voltam para o hedonismo, para o autocentramento como fator determinante de seu interesse no mundo, de seus relacionamentos, assim como de sua ação econômica. Reforçam, portanto, as relações capitalistas de produção.

         Que resultados pode haver se o povo for obrigado a abandonar suas crenças religiosas – tal como ocorreu na Rússia stalinista? O povo acabará cultuando sua religião de forma clandestina, tal como se fosse um “contrabando de fé” – ou cultuará o líder político de forma religiosa. Além de cultivar um ódio secreto contra o governo, tal proibição impositiva será inútil. O melhor será tentar dialogar com este sentimento, apresentando uma visão transcendental própria, que reforce os valores da sociedade comunista. Tais valores parecem existir em muitas destas religiões, ainda que de maneira mística e muitas vezes grosseiramente exageradas, como é o caso da exploração da fé popular a partir das inúmeras igrejas evangélicas atuais.

         O budismo, ao contrário, demonstra um caminho religioso que pode reforçar a construção de uma sociedade mais inclusiva, integrada, igualitária e democrática, isto é, princípios importantes para uma sociedade comunista. Não se trata de defender que seja tratado como uma “religião oficial”, mas de estabelecer pontes possíveis, teóricas e práticas, que consigam evoluir em direção a uma sociedade melhor e ao autoaperfeiçoamento individual.

         O taoísmo, por sua vez, busca apontar o caminho da virtude. Na sociedade capitalista tudo é transformado em mercadoria e “premiado”. Desde os alunos nas escolas, que buscam através das melhores notas a aprovação; até os trabalhadores que esperam o “prêmio” – o salário – no final do mês, se estendendo até a busca por outras formas de reconhecimentos egocêntricos, como fama, moda, palcos e palanques.

         Segundo Lao-tsé, se a virtude é premiada, as pessoas agirão pelo prêmio e não pela virtude em si mesma. O prêmio, a recompensa, o “estímulo-resposta” atrai as pessoas à disputa, assim como a ostentação de riquezas atrai ladrões. Por isso, uma educação e uma prática social voltada ao cultivo da virtude deve ser um dos objetivos de uma sociedade comunista, e não o simples retorno material da riqueza social produzida. Esta prática é eminentemente “espiritual”. Quando a virtude não é mais natural, é preciso lembrar da benevolência. Quando a benevolência não é mais natural, as pessoas fazem o bem em nome do dever. Quando as pessoas já não sabem naturalmente o que é certo, criam-se os preceitos por meio dos ritos. Os ritos são o verniz da lealdade e da sinceridade, e o início dos mal-entendidos, das divisões e das discórdias.

         Assim sendo, o apogeu de uma sociedade comunista deve ser uma economia que consiga trazer benefícios aos outros por si mesma. Tudo deve trabalhar para isso: a produção, as relações sociais, a prática laboral, a educação pública, a grande mídia, as redes sociais. Segundo o budismo, a essência de cada ser (ainda que a maioria não pense a respeito disso) é a capacidade de gerar benefícios ao outro, mas isso exige a qualidade espiritual que é a habilidade de conseguir olhar o outro ser não a partir de seu próprio contexto, mas a partir do contexto do outro – e nos referimos aqui às diversas esferas da realidade de cada ser.

         Os princípios básicos do budismo são: não causar sofrimento, trazer benefício aos seres e dirigir a própria mente. São preceitos aplicáveis à qualquer âmbito e, certamente, muito importantes para sociedades socialistas e comunistas. É a essência do processo para gerar méritos e tem implicações diretas sobre o processo econômico e social. Se a atividade econômica gera danos, causará entraves e inevitáveis conflitos sociais e políticos; até mesmo guerras. Se trouxerem benefícios e soluções, como o equilíbrio e a harmonia – o máximo que for possível –, avançaremos. Muito da nossa dificuldade surge quando acabamos presos em armadilhas de nossa própria ignorância, movidos por impulsos internos e externos que nos levam a direções equivocadas. Por esta razão, meditar para dirigir a mente e guiá-la pela virtude torna-se importante.

         O economista burguês, o marxista doutrinário preso unicamente à esfera macro econômica e os diversos tipos de cientistas apresentam grandes dificuldades e contradições nas suas análises e propostas, uma vez que estão intoxicados por ideias antigas e estáticas que funcionam como um filtro para a sua visão, impedindo-os de ver o novo. Dirigir a mente através da meditação também significa purificar a visão. Esse conselho é inteiramente válido em qualquer sentido.

         O budismo e o taoísmo podem desempenhar um papel em todo este processo, não necessariamente como tradições religiosas, mas com ideias que possam oferecer segurança verdadeira às pessoas. Os pensamentos budistas e taoístas podem colaborar com os diálogos entre posições diferentes, pois ajuda-nos a compreender muito bem a questão cognitiva e a impermanência.

         Em síntese: o socialismo e o comunismo, para se reciclarem, precisam de uma visão e uma cultura universal mais lúcida. Uma cultura de paz, proposto pelo budismo e pelo taoísmo, necessita de uma economia mais humanizada, solidária, cooperativa e menos competitiva; portanto, mais socialista!

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         O budismo e o taoísmo não estão em frontal contradição com as conclusões científicas ocidentais. Tampouco se opõem a elas ou tentam se adaptar a elas sutilmente, buscando legitimidade, como fazem a maioria das religiões organizadas. Sendo tradições religiosas e filosóficas, o budismo e o taoísmo desenvolvem uma visão aberta, reconhecidas pelo físico Fritjof Capra como já tendo antecipado muitas das conclusões científicas que a Física só atingiria em meados do século XX. A visão da conexão universal e interdependência entre todas as coisas, a impermanência, presentes no budismo e no taoísmo, enriquecem a dialética hegeliana e marxista, lhes abrindo caminhos de maleabilidade e novas formas de adaptação não-sectária a partir da visão do caminho do meio.

         A rememoração decorada de toda a filosofia materialista não pode resolver o problema da busca religiosa presente no indivíduo, muito menos convertê-la. Há que se respeitar esse sentimento e aprender a dialogar com ele.

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         O que há na mente da maioria das pessoas nesta existência é sofrimento e incerteza, o que gera aflição e desespero, que não são o resultado exclusivo da sociedade capitalista, mas da própria existência humana. Vemos, então, o surgimento de um medo, muitas vezes doentio, que se disfarça de distintas formas – e estes medos, obviamente, são manipulados pelo sistema atual.

         Para muitos cientistas e pensadores, como Carl Sagan, a morte provavelmente é um sono profundo e sem sentido, onde tudo acaba. Este cenário gera medo desesperador na maioria das pessoas e é parte fundamental de suas preocupações diárias. A religião, portanto, não pode ser debatido com rótulos ou proibições, mas com reflexão coletiva e a compreensão da importância da psique humana se conectar com o cosmos – o que pressupõe entendê-lo até onde nos é possível (e aí está todo o nosso problema: até onde nos é possível!).

         Tanto se a visão de Sagan for correta, como se não for, a condução budista de buscar uma mente serena e tranquila, cultivando-a lúcida e virtuosamente frente ao samsara, que é e a roda da vida terrestre, é um caminho a ser seguido e aperfeiçoado. As “práticas religiosas”, que na maioria das religiões organizadas, reduz-se a criar e reforçar o espírito de rebanho, que leva a uma profunda dependência dos pastores e gurus, no budismo e no taoísmo se traduzem pela meditação e aperfeiçoamento do indivíduo, cuja finalidade é o controle sobre a própria mente e sobre si mesmo. Isto é, treinar a mente para não entrar em desespero perante um ciclo perpétuo de incertezas, sofrimento e dor da vida terrestre.

         Na natureza há processos que não podem ser abreviados pela evolução da ciência, como, por exemplo, o germinar de um broto que vence a semente, a quebra da crisálida pela futura borboleta, e a evolução interior do ser humano, que não pode ser compreendida e superada por outras pessoas, se não por nós mesmos, na solitária luta individual. Melhores condições materiais promovidas pela sociedade socialista podem auxiliar esta luta solitária, mas não podem resolvê-la por si mesma.

         O budismo e o taoísmo buscam a sabedoria natural, o autoaperfeiçoamento, o desapego das posses materiais, o treinamento da mente. Assim, podem contribuir decisivamente no campo psíquico e espiritual para o desenvolvimento de uma sociedade socialista dando paciência e a força necessária para a superação das lutas individuais solitárias, que ocorrem em momentos muito diferentes para cada pessoa – diferentemente de um processo revolucionário social, que é por natureza coletivo, mas que sofre decisivas influências individuais. Podem ser, portanto, importantes pontos de apoio para a mudança interior.

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         Falar que o budismo tem muito a ensinar ao socialismo não exclui o fato de se perceber que há muita contradição entre estas duas doutrinas – algumas irreconciliáveis em um primeiro momento e talvez insuperáveis para as mentes mais ortodoxas e petrificadas. Apesar disso, ambas são parte de realidades e culturas humanas, compondo uma mesma totalidade, quer gostemos ou não. Isso não significa suprimir ou ignorar as polêmicas, como propõe certas escolas budistas, mas torná-las menos destrutivas, contraproducentes e egocêntricas; e mais complementares.

         Um aporte importante para o pensamento socialista da parte budista e taoísta diz respeito ao combate ao egocentrismo, muito presente no movimento socialista. Certamente ambos podem ajudar a trazer a tona o problema do ego dos “dirigentes” marxistas, que é um tanto grande e, por vezes, arrogante. Criar um controle operário da produção e uma autogestão social exigem novas formas de relações humanas e, sobretudo, o controle sobre o egocentrismo desmedido desenvolvido pelos sistemas econômicos e políticos anteriores. Para Lao-tsé, um líder é melhor quando as pessoas mal sabem que ele existe, pois quando seu trabalho estiver feito, seu objetivo cumprido, todos dirão: “nós mesmos o fizemos”. Este não deve ser o espírito de uma sociedade comunista?

         Justamente neste ponto é importante levar em consideração a interdependência da relação entre a mudança interior e exterior. Tanto o budismo quanto o socialismo são parciais: o primeiro atribui tudo a mudança interior; o segundo, atribui tudo à mudança exterior. Cabe aqui procurarmos um “caminho do meio” entre ambas percepções; ou seja: uma fluidez dialética entre as duas concepções de mudança.

         O budismo busca um auto aperfeiçoamento pessoal através da meditação e do despertar de uma vida interior. Não há como construir o socialismo sem a busca de uma visão mais humana cultivada pessoalmente, de mudança interior permanente, a qual a simples organização social não pode oferecer, nem suprir. O ser humano busca o contato com o eterno desde os primórdios, e continuará buscando, apesar de qualquer ideologia ou regime político. É um sentimento interior extremamente forte, que será transformado em outro, como uma ideologia política, social, filosófica, artística ou esportiva – que por sua vez, também não o suprirá.

         O socialismo de orientação marxista, no geral, tende a atribuir a mudança interior exclusivamente a mudança exterior. Chega ao ponto de dizer que a tentativa de mudança interior é “perda de tempo” se o exterior não for modificado. É possível aqui encontrar uma confluência com o budismo, que valoriza a mudança interior prioritariamente, e atribui a esta mudança à única forma de mudar o mundo exterior, o que certamente pode ser questionado de ambos os lados.

         Seria uma via de duas mãos, literalmente um caminho do meio: valorizar a mudança interior, o aperfeiçoamento pessoal, a meditação, o desenvolvimento da compaixão; ao mesmo tempo em que somente a mudança interior não pode ser nada sem uma mudança exterior que crie uma estrutura social mais justa e igualitária que se infiltre por todos os poros do indivíduo e ajude a consolidação da mudança interior, criando um regime social capaz de incentivá-la, tolerá-la e sustentá-la.

 


É possível intervir sobre o samsara?

         A noção de samsara – isto é, a realidade que conhecemos e percebemos como o mundo material, “terrestre” – é, sobretudo, algo assustador, que deixa uma grande dúvida acerca da concretização do socialismo, porque para o budismo este mundo é irreformável (ele é o que ele é! Portanto, segundo o budismo, intervir sobre ele seria inútil e até mesmo nocivo). No samsara também estaria a parte cruel e violenta da natureza, contra a qual nada podemos fazer, a não ser buscar o equilíbrio e compreensão para com ela e com nós. Em muitas escolas budistas não fica claro se o nirvana seria aqui mesmo, no samsara, ou numa outra “vida” ou “realidade superior”. Alguns mestres budistas dão a entender que sim, outros que não. Contudo, muitos dizem que é possível atingir o nirvana aqui mesmo e que esta mente tranquila é um ponto de apoio fundamental para as relações dentro do samsara tal como ele é.

         Esta visão budista sobre o samsara ser irreformável, talvez mais realista e, também, mais pessimista, sobre a vida na terra, uma vez que leva em consideração vários fatores muito além da economia, pode abrir novas perspectivas de intervenção sobre esta “roda da vida”, que massacra e traz grande sofrimento às pessoas que estão perdidas neste “oceano de sofrimento”. A teoria socialista, por sua vez, possibilita contribuir muito para ajudar no melhoramento deste mundo externo (o samsara), sem o quê, tampouco o mundo interior pode existir sem sofrer profundas e graves influências.

         Melhorar as condições existenciais certamente contribuiria decisivamente para a prática meditava e para a consolidação do Dharma (o caminho) e da virtude para todos os seres sencientes. Lao-tsé disse: “Se queres iluminar o mundo, ilumina-te. Se queres eliminar o sofrimento do mundo, elimina a escuridão em ti. A maior dádiva que podes dar ao mundo é a tua autotransformação”. É o resumo do que dizem quase todas as escolas de pensamento oriental.

         Se nos empenharmos na mudança do mundo seriamente, isso deve, necessariamente, nos transformar também. Ao vermos organizações políticas de esquerda que geram pessoas desumanizadas, insensíveis, arrogantes e egocêntricas, mas que “professam a mudança social” sem a coragem de se olhar no seu próprio espelho profundo, devemos constatar que há algo de muito errado. Em essência, esta forma viciada “de mudar o mundo” seria parte do problema e, portanto, do próprio sistema.

         Olhando o nosso planeta, a sociedade e o ego frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição? Provavelmente ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz nenhum esforço para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que tenta mudar. Se você está consciente de toda a sua atividade interna, seus pensamentos, seus sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o quão condicionado é, o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da autolibertação, tão importante para estimular, de fato, uma revolução social. Um movimento socialista e comunista que desdenha da “mudança interior”, que só reconhece o externo, o econômico, o material, será incapaz de mudar a sociedade, gerando apenas reedições pobres e mesquinhas das sociedades de classe que já existiram e, portanto, ajuda a perpetuar o próprio samsara.

 

***

 

Post-Scriptum:

Anexo I:

         Este texto não foi o único a tentar encontrar paralelos entre o budismo e o socialismo. Um ilustre comunista alemão já havia tentado erguer algumas pontes antes:


Parábola de Buda sobre a casa incendiada



Gautama, o Buda, ensinou
A doutrina da roda da cobiça, à qual estamos atados, e aconselhou
Livrar-se de toda a cobiça e assim
Sem ambição penetrar no Nada, que ele denominou Nirvana.
Perguntaram-lhe, então, um dia seus alunos:
Como é esse Nada, mestre? Todos nós queremos
Livrar-nos de toda cobiça, como nos aconselhas, dize-nos porém
Se esse Nada, no qual então penetraremos
É talvez como o ser-um com tudo criado
Ao deitar-se alguém na água, corpo leve, ao meio-dia
Sem pensamentos quase, com preguiça deitado na água, caindo no sono
Mal sabendo então que puxa a coberta
Afundando rapidamente. Se esse nada, portanto,
É assim contente, um bom Nada, ou se esse teu Nada
é simplesmente um Nada, frio, vazio, sem sentido.

Longamente silenciou Buda, e disse, então, displicente:
Nenhuma resposta para vossa pergunta.
Mas à noite, quando haviam partido
Sentado ainda sob o pé de fruta-pão, contou o Buda aos outros
Aos que não haviam perguntado, a seguinte parábola:
Há pouco tempo vi uma casa.
Queimava.
A chama lambia o telhado.
Aproximei-me e notei que havia pessoas dentro.
Cheguei à porta e gritei-lhes que o telhado estava em fogo, incitando-as a sair rapidamente.
Mas as pessoas pareciam não ter pressa.
Uma delas me perguntou, enquanto o calor lhe chamuscava a sobrancelha.
Se não soprava o vento, se não estava confundindo com outra casa e coisa assim.
Sem responder, afastei-me novamente.
Estes, pensei, têm que queimar, até pararem de fazer perguntas.
Em verdade, amigos,
Àquele que ainda não sente o chão quente o bastante para trocá-lo por qualquer outro, em vez de lá ficar,
a este, nada tenho a dizer.

Assim fez Gautama, o Buda.
Mas também nós, não mais ocupados com a arte de suportar
Antes ocupados com a arte de não suportar, e apresentando sugestões varias de natureza terrena, e aos homens ensinando a desvencilhar-se dos tormentadores humanos,
achamos que àqueles que
À vista dos iminentes esquadrões de bombardeiros do Capital gastam tempo a perguntar
Como pensamos em fazer isto, como imaginamos aquilo
E o que será de suas economias e de seus trajes de domingo após uma reviravolta
Nada temos a dizer.


Bertold Brecht

***

Anexo II:



***

Anexo III:



sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Javier Milei eleito presidente da Argentina


Hegel diria que os povos do mundo são incapazes de aprender uns com os outros.
O povo argentino, constituído de uma elite tipicamente colonial e uma massa miserável, possui, em seu interior, razões distintas para eleger Milei.
Para a elite argentina e estadunidense, Milei é uma arma de guerra — sobretudo contra os BRICs. Para o povo, uma esperança manipulada e, portanto, furada — reforçando e mexendo em crenças esotéricas e religiosas bizarras.
Muita gente no Brasil e no mundo culpa o "desgaste do peronismo", o que "justificaria" a eleição de Milei. Certamente contribuiu o impasse político que o peronismo representa (o mesmo vale para o petismo no Brasil), mas não foi a única causa. Talvez nem a principal.
A estrutura econômica da Argentina, sua crônica crise financeira, resultado de sua evolução histórica; e a manipulação da psicologia de massas — não combatida e não debatida pela esquerda, que sempre reproduz o mesmo ramerrão político — são os motivos centrais, visto que o neofascismo já construiu uma espécie de "internacional" em diversos países e regiões. Milei faz parte disso.
Em geral, os estados latino-americanos — e o Estado argentino em especial —, que emergiram do processo de internacionalização da economia entre os séculos XIX e XX, apresentaram uma débil capacidade extrativa própria e uma forte dependência do financiamento externo. Como sempre, os recursos do Estado passam a ser disputados por "projetos nacionais": de um lado a elite procurando manter um projeto excludente, de enriquecimento de poucas famílias e, geralmente ligado às burguesias internacionais mais dinâmicas; de outro, projetos "desenvolvimentistas" de cunho "distributivo", que buscam a conciliação com setores golpistas e arrivistas, que mantém o alto preço do dólar e a dependência extrema desta moeda, pois lhes garante lucros maiores e mais imediatos. Seu "projeto de país" passa a ser, então, manter esta dependência internacional.
O peronismo sempre representou uma ameaça para estas bases de acumulação dos setores economicamente dominantes na Argentina. Milei, como Bolsonaro no Brasil e Trump nos EUA, segue a mesma receita: utiliza a confusão, o misticismo, as fake news, declarações bizarras e tonitruantes, o suposto "combate à corrupção" e à "gastança do ineficiente Estado" para confundir, dividir e reinar.
Nada do que é realmente essencial no discurso e na prática neofascista é combatido pela atual militância de "esquerda", seja em que esfera for. A "esquerda" atual a nível mundial não está preparada para enfrentar este movimento internacional. Precisa se reciclar, mas não dá mostrar de caminhar nesse sentido. Enquanto isso, os monstros nascem e crescem nesta recusa da esquerda em se renovar e na repetição do "mais do mesmo".

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Uma nova tentativa de diálogo sobre o dogmatismo “religioso” do movimento socialista


A ciência Ocidental é produto da mente apolínea:
espera que, pela denominação e classificação, pela fria luz do intelecto,
a noite arcaica seja repelida e derrotada. (...)
Caminhando em meio à natureza, vemos, identificamos, nomeamos, reconhecemos.
Esse reconhecimento é nosso apotropaion, ou seja, nosso isolamento do medo.
(Camille Paglia).

Olhar por trás da segurança
Da história consagrada nos textos,
dar meia volta
e olhar sobre o ombro
até o primitivo terror
(T.S.Elliot).

Quem se dedica à pesquisa do inconsciente se depara com coisas insólitas,
que um racionalista evita com horror, afirmando depois nada ter visto.
O lado irracional da vida ensinou-me a não rejeitar o que quer que seja,
mesmo que isso vá de encontro a todas as nossas teorias
(aliás, de vida tão curta)
ou pareça, por outro lado, momentaneamente inexplicável.
Isso nos deixa inquietos: não temos plena certeza
de que a bússola esteja apontando na direção verdadeira;
mas não é na segurança, na certeza e na tranquilidade
que se fazem as descobertas.
(C.G. Jung).

 

         Mal o texto Dogmatismo e omissões do movimento socialista em relação ao sexo e à religiosidade humana foi publicado e alguns dias depois já tinha recebido uma pronta “resposta” do blog Coerência Marxista, que, ao que tudo indica, é um dos poucos leitores assíduos de nosso blog.

         É interessante notar como perdemos boas oportunidades de trocas e de crescimento coletivo em nome de ataques “teóricos”, muitas vezes de cunho pessoal, cuja finalidade maior é saciar o ego. Apesar desse tipo de “diálogo”, digamos, um tanto viciado, vamos tentar pensar juntos sobre o nosso texto e a resposta do blog Coerência Marxista, para ir mais além.

         Em primeiro lugar, queremos reconhecer que o nosso texto foi, por vezes, arrogante, tal como é grande parte dos textos “marxistas”, que usam um linguajar que pretende dar conclusivos “xeques-mates” e coloca, às vezes, indistintamente muita gente em balaios de gato. Isso certamente causou parte da ira e do descontentamento do Coerência Marxista. Talvez o referido blog não veja problema nisso, tanto é que o reproduz; mas nós vemos. Queremos ser melhores do que fomos ontem, nos aperfeiçoando e tentando evitar a arrogância.

         Ainda que a linguagem do nosso texto tenha soado arrogante e em parte ofensiva, queremos sustentar de uma maneira mais adequada e menos belicosa o conteúdo dele. A crítica ao nosso texto nos dá a oportunidade de repensá-lo, é claro, desde que estejamos afim de pensar de forma renovada.

         Não conseguimos entender o porquê de tamanha virulência contra o nosso blog, dado que a nossa influência social sobre a classe trabalhadora – grande objetivo do blog Coerência Marxista – é praticamente nula. Não podemos acreditar que pensem que influenciamos algum tipo de “massas”. Por certo, tentamos, mas estamos muito longe disso. A explicação mais plausível que encontramos para a resposta que recebemos é que, de certa forma, o blog Coerência Marxista demonstra involuntariamente que o nosso texto atingiu sua finalidade. Qual seja? A de demostrar como grande parte da militância de esquerda vivencia o marxismo como um substituto para a religião na psique humana, que ao ver parte de suas bases questionadas, desencadeia uma série de ataques fundamentalistas visando manter a “pureza dos seus princípios”, já que é deles que tiram um sentido para as suas vidas.

Um pequeno exemplo extraído das redes sociais

         Tal tipo de “ataques fundamentalistas” se dão desta forma porque são resultado de uma cegueira, que confunde o juízo, movido, no mais das vezes, por uma raiva irracional que está presente dentro de nós e que é desencadeada quando nossos valores que nos dão segurança pessoal são questionados. A seguir vamos tentar explicar melhor algumas de nossas conclusões ao blog Coerência Marxistas que, na sua resposta, apresentam muitas omissões que falam muito!

 

1.

         O blog Coerência Marxista pergunta “quem é a esquerda nova e quem é a velha?”, dando a entender que foi um equívoco nosso blog não diferenciar, nem explicitar a quem nos referíamos.

         O texto que postamos é uma crítica global à atual esquerda, em quase todas as suas esferas e níveis. Poucos agrupamentos ou militantes não sofrem do mal que foi criticado. É, portanto, uma crítica ao próprio marxismo, que é visto como perfeito (ou semiperfeito pela maioria das organizações de esquerda – talvez Gramsci tenha sido um dos pensadores marxistas que mais se preocupou com certas lacunas, como o problema da religião).

         Há diferenças políticas entre as esquerdas sim. O restante dos vários artigos do nosso blog faz essa diferenciação, porém, o que o texto que postamos no dia 13 de junho quis criticar serve para quase toda ela, sem exceção. Se o nosso texto é severo, em particular, para com o marxismo (e o trotskismo), isso não significa que não reconheça nele(s) todos os seus méritos. Ao contrário, está criticando o que considera os seus pontos fracos (ou ele está isento de pontos fracos?).

         Por exemplo, no caso do nosso texto, deu-se ênfase aos problemas teóricos negativos relacionados ao “espírito do tempo” (existem também os positivos, que não foram abordados porque não era esse o objetivo). Podemos destacar a excessiva ênfase no cientificismo como “plena solução” e o completo menosprezo à intuição – algo que como falamos, reflete bem o positivismo do século XIX (o mesmo excesso pode ser visto na psicanálise freudiana).

         As organizações menores sofrem com o messianismo e o purismo “religioso” não declarado; já as organizações maiores, como o PT e o PCdoB, mesclam-se oportunistamente às religiões organizadas e surfam na sua onda, sem crítica alguma.

 

2.

         Um problema central que apresentamos no nosso texto e que compreendemos ser equivocado no marxismo, terminando por se espraiar para distintas organizações de esquerda, é o caso do messianismo e da cosmogonia.

         Isso não significa que o marxismo como teoria política e econômica deixe de ter valor. Só denota que seria interessante depurá-lo de determinados excessos que tendem a fazê-lo exagerar – misticamente, sem o admitir! – alguns elementos da realidade. Por exemplo, na espera pelo despertar do sujeito social, a forma como ele se expressa e a redenção quase religiosa que “causará” – isso não é parecido, para dizer o mínimo, à pregação pela vinda redentora de um messias?

         O próprio texto de resposta do blog Coerência Marxista é um atestado involuntário desse messianismo, reafirmado-o inconscientemente por distintos meios. De certa forma o nosso texto foi um pouco leviano no linguajar e ríspido demais em algumas colocações, uma vez que questionar valores e a segurança pessoal de alguém (ou de organizações inteiras) deve ser feito sempre de uma maneira mais refletida e serena, nunca leviana.

 

3.

         Um dos principais erros da resposta do blog Coerência Marxista se dá em relação ao conceito de numinoso. Não conhecemos, nem nos referenciamos no autor que foi citado por ele. O texto do nosso blog se baseia no conceito de Carl G. Jung, ao qual certamente o Coerência Marxista não conhece – e, se por ventura o conhece, provavelmente o menospreze.

         O numinoso, para Jung, é um efeito que se apodera e domina o sujeito humano, que passa a ser mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. O dado mais importante talvez seja que o caráter numinoso consiste em que a pessoa se sinta subjugada por este sentimento. De modo particular, o pensamento numinoso tem sua origem na experiência vital. Assim, a imagem numinosa é muito mais uma expressão de processos inconscientes do que o resultado de uma operação racional. Ela está incluída na categoria das realidades psicológicas, surgindo daí o problema relativo a seus pressupostos psíquicos. Temos que pensar aqui num processo de formação de símbolos que se estende por vários séculos e tende constantemente a tornar-se consciente. Todos nós, em alguma medida, já sentimos os efeitos do numinoso.

         Para o indivíduo, enquanto fenômeno psíquico, o numinoso é sentido como objetivamente real. Nesta constatação acham-se incluídas, naturalmente, todas as afirmações (até mesmo contrastantes) que algum dia já foram ou ainda serão de caráter numinoso. A numinosidade do objeto torna difícil que se lhe dê tratamento racional, pois é o caráter afetivo que se destaca na mente.

         Tudo isso não seria da mais alta importância para militantes que se colocam como tarefa fazer uma revolução socialista com a classe trabalhadora, hoje dominada pelos mais diversos tipos de religiosidade com seus respectivos sentimentos numinosos? Ao que tudo indica, para o blog Coerência Marxista a resposta é não!

         Quem não tem concepções religiosas – como é o caso do blog Coerência Marxista – não gosta de reconhecer-se como portador de um déficit. Apela para a sua mentalidade esclarecida. Quem se fixa nesse ponto de vista dificilmente admite o caráter numinoso do objeto religioso, e este, não poucas vezes, o impede de pensar criticamente, pois pode acontecer que sua fé na racionalidade estrita, como no iluminismo, no cientificismo, no “ateísmo”, no “marxismo” – isto é, em teorias e ideologias que podem tomar o lugar psíquico da fé religiosa – seja abalada. Não apenas passa a encarar a dúvida como coisa desagradável e penosa, como passará a temê-la. Se chegar a temê-la, tenderá, então, a reforçar a sua fé inabalável nas teorias ou ideologias que podem tomar o lugar psíquico da fé religiosa com gritos e declarações tonitruantes.

         O blog Coerência Marxista ainda faz uma pergunta sobre se a geografia seria uma ciência numinosa porque nós, seres humanos, seríamos menores do que a Terra. O sentimento numinoso não está relacionado apenas ou prioritariamente ao tamanho, mas, sobretudo, ao sentimento psicológico relativo ao “sagrado”, ao transcendental. A própria formulação da pergunta deixa evidente que o blog que nos criticou não entendeu nada sobre o conceito de numinoso. Nesse caso, os melhores remédios seriam o estudo dedicado e a humildade.

 

4.

         Entender o conceito de numinoso como Jung o entende não significa que “nada pode ser feito” ou que a ciência “para nada serve”, mas tem a função de demonstrar certos limites do conhecimento humano, que são visíveis a olho nu e precisam ser reconhecidos se queremos que ele avance. Sobretudo demonstra como outras forças psíquicas entram em jogo na formação intelectual da maioria das pessoas. Para o blog Coerência Marxista, ainda que reconheça que existem “mistérios” que a química e a física não explicam, isto é apenas um detalhe que não precisa causar preocupação.

         No quesito da linguística e das palavras, Coerência Marxista parece nunca ter refletido uma vírgula sobre os limites da linguagem, pois pensa que tudo é acessível às palavras – e, sobretudo, às explicações cartesianas baseadas em fórmulas. Bastaria o exemplo de se tentar explicar as cores a um cego de nascença ou música a um surdo através da fala ou mesmo da escrita para vermos as limitações das palavras. Nestes casos, a experiência direta não pode ser substituída por uma narrativa.

         Reduzir a complexidade do problema a uma fórmula é justamente o que faz o pensamento mecânico. Grande parte da esquerda resume tudo a fórmulas “supersimples”. Talvez este seja um dos motivos pelo qual a influência da esquerda torna-se cada vez menor no mundo atual.

         Por mais importante que sejam as fórmulas para o raciocínio matemático, físico e químico, elas não podem solucionar o problema das lacunas da ciência e das questões transcendentais (tampouco o podem nas questões da política revolucionária). A matemática é apodítica, totalmente baseada na lei da causalidade. Esta última é questionável, uma vez que, partindo de uma boa hipótese de David Hume, a causalidade não é mais do que uma crença baseada na ação sobre o hábito, que deixa de perceber os fenômenos novos.

         O blog Coerência Marxista afaga a doce esperança de que com o acúmulo aleatório (ou semialeatório) de informações científicas pela humanidade venhamos formar um dia um todo pleno de sentido – e que explique tudo! Mas ninguém pode ter certeza disso, uma vez que nenhum cérebro humano (nem a totalidade consciente de cérebros humanos) é capaz de abranger a gigantesca soma final deste saber produzido em massa. Compreender o desenvolvimento científico desta forma em nada o anula ou o menospreza, mas o coloca sob uma perspectiva mais realista, já que problematiza os seus limites e abre a possibilidade de se pensar em soluções e alternativas.

         Os marxistas, a grosso modo, consideram-se cientistas (o blog Coerência Marxista, por suposto, também). Um cientista geralmente se esquece que a maneira objetiva de tratar um tema pode ferir valores emocionais em proporções indesculpáveis (como fazendo uma análise antropológica da religião de alguém, por exemplo, sem nenhuma preocupação com a forma). No mais das vezes, o intelecto científico é desumano, e, com certa razão e até certo ponto, não pode permitir-se o privilégio de ser diferente. Consequentemente, é inevitável que se torne insensível e sem consideração, mesmo quando baseado em motivos positivos.

         Muitas organizações e militantes agem assim também nas suas vidas pessoais e no trato com o outro no dia-a-dia. A arrogância desmedida e irrefletida rompe pontes entre nós, entre a classe trabalhadora, entre a sociedade em geral, em prol de certezas políticas e teóricas, no mínimo, questionáveis. Assim, erguem-se, estupidamente, barreiras sectárias desnecessárias. As forças conservadoras da sociedade, ainda que baseadas em interesses desprezíveis, prestam mais atenção nestes “detalhes”.

 

5.

         Além de Jung, o blog Coerência Marxista também ignorou o nome de Fritjof Capra, no qual grande parte das ideias do nosso texto que foi “criticado” se baseia.

         Capra dedicou sua vida à pesquisa e à demonstração da semelhança – para não dizer plena identidade – entre as conclusões da física moderna e do pensamento místico Oriental. As expressou em duas obras capitais: O ponto de mutação e O tao da física. Tirou daí conclusões pertinentes sobre o esgotamento do tipo de evolução científica e civilizatória que conhecemos.

         Ele afirma: “No século XX os físicos penetraram a fundo no mundo submicroscópico, em regiões da natureza muito afastados do mundo macroscópico em que vivemos. O nosso conhecimento da matéria nesse nível já não provém da experiência sensorial direta; em consequência, a linguagem comum já não é mais adequada para descrever os fenômenos observados. Os físicos nucleares proporcionaram aos cientistas os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas. Como os místicos, os físicos passaram a lidar com experiências não sensoriais da realidade e, também como eles, tiveram de enfrentar os aspectos paradoxais dessas experiências. A partir desse momento, os modelos e as imagens da física moderna tornaram-se vinculados aos da filosofia Oriental” (extraído de Sabedoria incomum).

         Capra insiste na limitação e no esgotamento da evolução científica baseada na visão newtoniana e cartesiana. A ciência, em sua opinião, não deveria ficar restrita a medições e análises quantitativas, mas basear-se, sobretudo, nos processos. Para ele, outros aspectos, como a quantificação ou o uso da matemática, são frequentemente desejáveis, mas não fundamentais. Capra ainda aponta que a teoria quântica mudou consideravelmente a concepção clássica de ciência ao revelar o papel crucial da consciência do observador no processo de observação e invalida, assim, a ideia de uma descrição objetiva da natureza.

         O pensamento como processo e o papel do observador também são características das tradições místicas do Oriente. Essa teoria das partículas subatômicas da física quântica reflete a impossibilidade de se separar o observador científico dos fenômenos observados. Os místicos orientais nos afirmam e reafirmam que todas as coisas e eventos que percebemos são construções da mente, surgindo de um estado particular de consciência e dissolvendo-se novamente caso esse estado seja transcendido. Essas novas conclusões trazem problemas ao debate filosófico do marxismo que precisam ser enfrentadas seriamente, e não com citações canônicas de fragmentos de textos dos “mestres inquestionáveis”.

         No entanto, Capra não propõe que os físicos comecem a meditar e se convertam à alguma religião, ou sequer sugere uma síntese entre ciência e religião Oriental. Ele simplesmente advoga a ideia de que é preciso desenvolver uma interação dinâmica entre a intuição mística e a análise científica. Isto é, o mesmo que o texto do nosso blog originalmente propôs no campo da teoria política e foi mal compreendido.

         Desta conclusão difícil, mas bem refletida, para a conclusão do blog Coerência Marxista de que a proposta para solucionar os problemas analisados pelo nosso texto “é mais religião e mais loucura”, ou de que tratamos o socialismo “como artigo de luxo para servir aos seres dotados de atitudes místicas”, existe não um fosso, mas um abismo que expressa diferenças forçadas e tolas de quem sente medo porque os seus dogmas e suas seguranças foram questionados. Nem propusemos que se crie qualquer tipo de religião ou solução religiosa. Quisemos apenas destacar uma constatação de fatos observáveis em dois extremos dos movimentos sociais, seja entre a militância de esquerda, seja na visão religiosa da maioria da classe trabalhadora.

 

6.

         A militância atual trata “a massa” da classe trabalhadora como algo disforme, uma espécie de argila, em que a vanguarda, o partido ou a teoria que estes detêm, conseguem modelar o pote ou o artefato de cerâmica. Não há interação e compreensão numa relação nova, recíproca, harmoniosa e criadora, mas, na prática, imposição daquilo que já se sabe, desconsiderando uma série de fatores, tal como um lado sendo o portador da luz da sabedoria e da “verdade plena”; e o outro, da total escuridão da ignorância. Não há trocas, porque um lado se superestima; enquanto o outro é desconsiderado completamente naquilo que de fato é.

         Aqui não se trata de adotar um discurso e uma prática “basista” ou espontaneísta, mas de perceber como os valores da massa, bem como ela em si mesma, é vista como a encarnação da ingenuidade, totalmente engada e manipulada inescrupulosamente por direções traidoras, sem espaço algum, por menor que seja, para uma escolha livre que parta dela mesma. Basta esperar um despertar da massa pela “política correta” das organizações de esquerda, tal como um alinhamento dos astros, para ocorrer o terremoto revolucionário.

         Sim. Isso é o que todos nós, socialistas, queremos: a mudança! Mas devemos reconhecer, humildemente, que algo de errado vem sendo feito, não apenas na prática, mas também a partir das insuficiências teóricas – incluindo a sua dogmatização pela militância de esquerda, inconscientemente ávida por preencher o seu vazio existencial. Para os dogmáticos não é necessário compreender a psicologia de massas. Tudo o que supostamente precisamos saber já estão nos cânones. Bastaria, então, segui-los e não “traí-los”. Séculos de cristianismo, com seus rituais, exegeses, heresias, excomunhões, assassinatos, etc., não poderiam passar incólumes pelas práticas de organização política e social.

         A situação da classe trabalhadora hoje é diferente do século XIX – é distinta ainda de país para país, de região para região. Vivemos uma época de crises emocionais e existenciais, com altos índices de depressão, ansiedade, suicídios, explosões de violência e de extrema apatia. O iluminismo guilhotinou o cristianismo e a religião, deixando o espaço psíquico humano desprovido de um substituto, obrigando-os a buscar em diversas outras áreas, como os relacionamentos humanos, incluindo os abusivos e vazios, as agremiações que são “maiores do que nós” (igrejas evangélicas, associações, movimentos, partidos, sindicatos, torcidas de futebol, etc.); além das drogas, remédios e do “recurso” ao suicídio. Dentro deste vácuo, a ciência tende a tornar-se, de certa maneira, um substitutivo para a religião. Porém, como é muito técnica, fria, “apolínea”, não pôde, até o momento, suprir algo que exige mais humanidade, mais contato, que misture os limites e as fronteiras.

         Assim, podemos dizer que o atual individualismo transformou-se numa realidade subjetiva imperiosa muito maior do que a coletividade era até então, ainda que esta continue sendo determinante. Tanto para a construção do socialismo, quanto para os dias atuais de capitalismo selvagem, compreender o funcionamento da mente coletiva, consciente e inconsciente, e a que sofre individualmente, é decisivo.

         O blog Coerência Marxista busca refugiar-se nos textos clássicos, nos cânones das explicações dos grandes revolucionários do passado. Sobre o stalinismo cita – provavelmente de cor – os livros de Trotski. Em relação aos motivos que levaram à ascensão do stalinismo, está objetivamente correto e bem decorado. Mas não é disso que estamos falando aqui. O pensamento stalinista é grosso, arcaico, rígido. Para ele basta colocar em cima da entrada das igrejas a frase “a religião é o ópio do povo” e a questão se resolve. Ou seja, tudo o que precisamos saber já está contido na direção do partido e na “teoria”. A religião que Stalin produziu de si mesmo endossa os argumentos do texto que deu origem a este debate: não é possível extirpar a religiosidade da mente humana – ela apenas mudará de forma e se infiltrará em outras esferas psíquicas.

         No caso específico da construção do socialismo, a educação pública e a grande mídia “controlada pela classe trabalhadora” não serão suficientes se não dialogarem e não levarem em consideração as necessidades transcendentais da psique humana, capaz de gerar um novo olhar de compaixão, afeto, felicidade, integração com a natureza, com o universo e com a humanidade em geral – isto é, uma relação com o infinito e o eterno. Sem este diálogo, as pessoas tendem a se voltar para o hedonismo, para o autocentramento como fator determinante de seu interesse no mundo, de seus relacionamentos fechados em si mesmos, assim como dos seus estritos interesses econômicos pessoais e familiares. Os interesses materiais, econômicos, são importantes, mas não podem suprir todas as demandas subjetivas, que continuaram existentes e pulsantes.

         A compaixão, como expressão de uma mudança interior que seja ativa, não é um comportamento piedoso individual, meramente contemplativo, mas uma inteligência lúcida e uma forma de atuação no mundo. Falta isso à maioria dos militantes hoje em dia, que muitas vezes tratam outros seres humanos como lixo por não conquistar sua concordância imediata; se orgulham do seu intelecto, mas não tem a menor preocupação com a sua conduta diária, com o respeito, a ponderação, a empatia. Pensam que se já detém a compreensão do programa socialista, acham nisso alguma suposta razão para se julgarem superiores.

         Portanto, a preocupação em mudar o interior das pessoas (algo subjetivo) é tão importante quanto mudar o exterior (socializar os meios de produção); e isso, repetimos e reforçamos, é menosprezado pela militância atual, pois a mudança interior não se dá de forma automática, sendo tratada como algo menor, sem valor, idealista, digno de piedade e rechaço. O blog Coerência Marxista reforça a noção rasa e simplória deste automatismo econômico: não é necessário se preocupar com as questões subjetivas da psique humana, seus sofrimentos, que seguem caminhos tortuosos, nem pensar soluções políticas para isso (até onde nos é possível); tudo de fundamental ocorreria automaticamente com a expropriação dos meios de produção.

         Na contramão da complexidade do problema, o blog Coerência Marxista sugere resolver a questão da mudança interior com palavras de ordem supersimples, como os bolcheviques propuseram em 1917: pão, paz e terra. Isso não nos parece uma “solução”, mas uma resposta pueril, decorada e pouco criativa. Em 1917 foi decisivo para a mudança exterior. Hoje não tem sido.

 

7.

         Sobre o fato de nosso texto ter partido de uma reflexão de Perry Anderson – e ele ser considerado um “socialista reformista” –, parece apenas a repetição de um pensamento ortodoxo das religiões organizadas, que na maioria das vezes manifesta rechaço e ojeriza aos textos de outras tradições. Não sabem lidar com o diferente, nem pensar a partir deles, a não ser rotulando-os, combatendo-os ou queimando-os na fogueira da santa inquisição.

         O fato de Perry Anderson ser reformista não invalida partirmos de uma de suas reflexões.

 

8.

         Outra questão abordada pelo blog Coerência Marxista diz respeito ao sexo. Porém, a deixou reduzida apenas ao ponto específico do relacionamento monogâmico ou “aberto”, pensando, com isso, ter solucionado um debate extremamente complexo e inexplorado pelo marxismo.

         O movimento socialista é, no geral, omisso sobre este tema. Ou fala em linhas gerais sobre emancipação feminina, igualdade social entre os sexos; ou se restringe a um silêncio profundo, como se este tema fosse questão de foro íntimo, tal como a escolha religiosa de cada pessoa.

         As questões sexuais estão diretamente relacionadas aos problemas emocionais e psicológicos da massa humana (e dos seus indivíduos). A militância em geral – e o blog Coerência Marxista, em particular – tende a reduzir tudo a um debate hedonista: o sexo é para a libertação do prazer, sem fim e sem limites. Coloca-se tudo abaixo e pronto! A questão está resolvida! Pra que ficar “falando tanta asneira” por coisas tão simples e óbvias?

         Mas a realidade insiste em ser muito mais complexa do que quer os esquemas formais. Sexo mexe com a biologia profunda, que desencadeia pulsões e forças psíquicas por vezes incontroláveis; ele é considerado por pensadores ao estilo de Freud, Jung, Camille Paglia, Erich Neumann, Willian Blake – dentre outros – como uma “força daimônica”, capaz de reproduzir os terrores da natureza ctônica. Se esta força não for levada em consideração, pode ser autofágica, paralisar ou destruir a sociedade, incentivando o caos e a violência.

         Segundo Camille Paglia, por exemplo, “o sexo é um poder muito mais sombrio do que admite o feminismo. As terapias sexuais behavioristas julgam possível o sexo sem culpa, impecável. Mas o sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente da cultura. O sexo é o ponto de contato entre o homem e a natureza, onde a moralidade e as boas intenções caem diante de impulsos primitivos. (...) O erotismo é um reino tocaiado por fantasmas. É o lugar além dos confins, ao mesmo tempo amaldiçoado e encantado. (...) O sexo é daimônico. Este termo vem do grego daimon, que significa um espírito de divindade inferior à dos deuses do Olimpo. (...) O cristianismo transformou daimônico em demoníaco. Os daimons gregos não eram maus – ou melhor, eram ao mesmo tempo bons e maus, como a própria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é o domínio daimônico. De dia somos criaturas sociais, mas à noite mergulhamos no mundo dos sonhos, onde reina a natureza, onde não existe lei, mas apenas sexo, crueldade e metamorfose. O próprio dia é invadido pela noite daimônica. (...). As operações do sexo são convulsivas, do intercurso à menstruação e ao parto: tensão e distensão, espasmo, contração, expulsão, alívio. O corpo é retorcido em inchação e abandono. Sexo não é o princípio do prazer, mas a servidão dionisíaca do prazer-dor. Tanta coisa é uma questão de superar resistência, no corpo ou no amado, que o estupro será sempre um perigo presente” (Camille Paglia, Personas sexuais, Cia das letras, páginas 15 e 37).

         Reparem as contradições e complexidades da questão sexual, reduzida à suposta liberação a partir do relacionamento poligâmico. Que consequências podem advir de uma compreensão rasa e reducionista do debate sexual?

         Para além disso, há também a estreita relação entre sexualidade e religiosidade, desenvolvida em uma luta permanente de aceitação e repressão que se deu ao longo dos milênios. O livro intitulado “A sexualidade sagrada”, de Georg Feuerstein, demonstra com argumentos eloquentes a evolução das práticas religiosas e ritualísticas que envolviam o sexo desde a pré-história, passando pelas civilizações antigas, medievais, até as modernas. Este livro é recomendado porque faz um bom resumo do assunto, mas certamente não é o único. A dissociação do sexo de sua dimensão sagrada não deixou de ter consequências políticas, religiosas e psicológicas – em síntese, não deixou de ter profundas consequências práticas que ainda povoam o inconsciente coletivo e tem reflexos políticos e sociais ignorados.

 

9.

         Na questão do casamento não monogâmico, isto é, do “relacionamento aberto”, também é necessário pontuar grandes diferenças.

         Este caso é ilustrativo porque se trata de um dos elementos importantes para a construção de uma nova sociedade, evitando julgamentos destrutivos e trabalhando para a superação da moral atual. O fato de muitas pessoas (e, principalmente, muitos militantes) propagarem e supostamente já praticarem o “relacionamento aberto” não significa que estejam necessariamente construindo uma nova forma de relacionamento “socialista”, revolucionária ou, simplesmente, novas formas mais saudáveis de se relacionar. Tudo tem que ser examinado com muito cuidado e critério, concretamente, sobretudo no trato entre si e no grau de autonomia emocional e real que desenvolve nas pessoas envolvidas.

         Em muitos casos ocorre a infiltração de pensamentos, sentimentos e utilitarismos burgueses, dado que vivemos no capitalismo selvagem e bárbaro. Se não temos uma nova cultura moral tolerante e acolhedora, na atual sociedade burguesa muito provavelmente esta modalidade de relacionamento pode ser infiltrada por motivações narcisistas, hedonistas e utilitaristas; muitas vezes se escondendo atrás de justificativas “modernas”, “progressistas”, “socialistas”, “marxistas”.

         Não há relacionamento aberto possível sem se preocupar com o outro; sem ser sensível com suas demandas e tempos; sem paciência e, sobretudo, sem que o entorno, a sociedade, a moral, o julgamento alheio, estejam se modificando para melhor (por menor que seja este passo adiante). É necessário, sobretudo, a autorreflexão, auto reconhecimento e maturidade — artigos raros, em especial, a última, uma vez que a sociedade capitalista, suas instituições, mídias e religiões organizadas, infantilizam as massas de seres humanos, injetando-lhe incontáveis doses diárias de hedonismo e narcisismo egocêntrico como forma de dominação e submissão.

 

10.

         Parte fundamental da vida interior das pessoas – sobretudo as que compõem a classe trabalhadora – diz respeito à religiosidade, ao medo da morte, das inseguranças da vida, da visão errônea de se sentirem sozinhas e pequeninas (o que as leva a se associarem a qualquer coisa, incluindo às religiões organizadas, como as igrejas evangélicas, que exploram o seu sentimento numinoso). Parte dessas inseguranças diz respeito, sim, ao sistema econômico, ao desemprego, à miséria. A outra parte diz respeito aos anseios congênitos da espécie, expressos nas buscas religiosas por sentido e “contato com o eterno”, que podemos constatar em distintas épocas e civilizações (e ainda hoje!). O debate sobre a mudança interior das pessoas pode se iniciar com a socialização dos meios de produção, como “nos ensina” o blog Coerência Marxista, mas ele não é automático, nem é inevitavelmente desencadeado se não for pensado, arquitetado e estimulado conscientemente.

         O “eu” (e o seu mundo interior, repleto de “eus”) não está separado da realidade externa. Ao contrário. São partes de um mesmo todo que se influenciam mutuamente. Ignorar este fato é mutilar a mudança social; é condená-la a ser parcial e, portanto, ineficaz. Trata-se de uma relação dialética entre os mundos exterior e interior que não pode ser menosprezada.

         O que se quer dizer com mudar o interior das pessoas? Há importância alguma nisso ou se trataria apenas de mais um discurso idealista, burguês, determinado a enrolar e a desviar o proletariado da luta pela superação de suas direções traidoras?

         Tudo o que você é, o que pensa, o que sente, o que faz em sua vida diária, é projetado para fora, e acaba constituindo parte do mundo a sua volta.

         Se somos infelizes, confusos, arrogantes e intimamente caóticos, através da projeção, isso se torna o mundo e a sociedade para nós. Se o nosso relacionamento é estreito, egocêntrico, limitado, patriótico, preconceituoso – seja em que esfera for –, projetamos isso para fora de nós e contribuímos com o caos no mundo. O mundo é parte do que você vê e projeta nele, tal como nos demonstra a física quântica e o pensamento místico Oriental. A realidade é uma coisa peculiar. Ela está aí quando você não está olhando, mas quando você a olha com ganância, raiva ou medo, aquilo que você capta é o sedimento de sua ganância, raiva ou medo, e não a realidade.

         A dificuldade consiste em que nunca desejamos estar incertos e temos medo de perder tudo. A mente vendo-se incerta, busca a certeza, criando assim o temor. Do temor nasce a imitação, o estabelecimento da autoridade – política, teórica, religiosa, etc. – visto que a mente exige um estado de continuidade, onde se veja e se sinta como certa. Mas a mente que corre atrás de certezas, nunca tem espaço onde seja possível o aparecimento e o contato com o real.

         Tomemos como exemplo o mal que cada um sofre desde a infância. Você é magoado pelos próprios pais, depois na escola, na universidade, no trabalho, através do julgamento, da comparação, da competição. Durante toda a vida existe este processo de ser comparado, julgado, magoado. Na maioria das vezes, de forma inconsciente.

         O que se torna este “eu”, este “meu”?

         Ele pode ser entendido como um nome, uma forma, um fardo de memórias, de esperanças, frustrações, anseios, sofrimentos, prazeres vivenciados e esperados, alegrias passageiras. Queremos que esse “eu” evolua e veja além de si próprio; torne-se empático, sociável; evite o egoísmo e o egocentrismo. A socialização dos meios de produção não cria isso automaticamente.

         Vendo o mundo, a sociedade e o “eu” frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição? Provavelmente ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz nenhum esforço para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que tenta mudar. Se você está consciente de toda a sua atividade interna, seus pensamentos, seus sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o quão condicionado é, o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da autolibertação, tão importante para estimular, de fato, uma revolução social.

         Um ambiente materialmente favorável, sem preocupações subjetivas, pode apenas fortalecer a perigosa tendência de se esperar que tudo se origine de fora – inclusive a mudança interior que a realidade externa não pode providenciar. Não há contradição e conflito entre o interno e o externo. Isso precisa ser pensado desde agora, pois é necessário renovar o arsenal teórico. Quem se nega a fazer isso contribui com a mesmície, que não pode nos fazer sair deste mato sem cachorro em que estamos.

         Não há nada de misterioso ou místico nisso. Sabemos de tanta coisa que está se passando no mundo e tão pouco a respeito de nós mesmos! Não comecemos pelo limite extremo do problema, que é o fim do “eu”, mas pelas coisas pequenas, pelo dia-a-dia, pelas manifestações miúdas do cotidiano. Deve-se tentar, em essência, observar sem um observador, um julgador, um condenador que já tem tudo pronto de antemão. Esse é o primeiro passo para poder se interferir nessas micro teias que ajudam a sustentar o macro.

 

11.

         Por acaso, para construir uma sociedade sem Estado e sem classes sociais não é necessário desvendar o segredo do ego, trazer à tona suas contradições, suas forças ocultas inconscientes, suas influências egoístas e narcisistas, seus distintos medos e inseguranças? Estimular a mudança e superação disso não é fundamental para uma sociedade comunista? Tais mudanças, repetimos, não chegaram nem perto de acontecer em Cuba, China ou Rússia apenas com a socialização dos meios de produção. Ao contrário, com uma mudança inicial nos meios de produção tudo veio de fora e o que se reforçou foi centralmente o espírito de submissão e, portanto, de rebanho. A burocratização também é um resultado desse processo e da ausência de tais preocupações.

         Não seria muito importante que o combate ao egocentrismo partisse das próprias organizações de esquerda, que deveriam superar seu samba de uma nota só e buscassem novos caminhos, novas explicações, novas relações? Sem recorrer ao processo de autoconhecimento de si mesmo, se depurando permanentemente dos erros, dos medos, das inseguranças, dos ódios desmedidos, da indiferença perante o outro, como poderia uma organização de militantes adquirir as qualidades necessárias para estimular uma revolução? Nos referimos aqui a tentar; a começar uma caminhada que desbrave um novo roteiro, um novo caminho político, social e psicológico! Quantos dirigentes políticos, sindicais e militantes apenas alimentam o próprio ego e levam a “sua base” a alimentá-lo também? E para onde isso tem nos levado?

         Ao que tudo indica, para o blog Coerência Marxista, nada disso tem relevância. Tudo já está contido nas bíblias sagradas da esquerda e nas fogueiras das santas inquisições aos hereges. Não há problema em sermos blogs adversários. Buscamos construir uma unidade na diversidade cultural, de opiniões, de interpretações – desde que honestas e comprometidas com a emancipação proletária, que ao fim e ao cabo, deve visar a emancipação humana em geral. O blog Coerência Marxista busca a ridicularização dos “oponentes” – de blogs como o nosso que influenciam menos de 1% da sociedade!

         O medo e a insegurança em relação às dúvidas, ao novo, a aquilo que não conhecemos ainda, não é um bom conselheiro para quem se pretende revolucionário, principalmente quando vemos que tudo está estagnado e em crise. Faz parte da coragem revolucionária a capacidade de encarar o não visto, o não vivido, o não respondido; mas, sobretudo, vale encarar os nossos próprios medos interiores, que a gente projeta pra fora, ofendendo e atacando os outros quase que gratuitamente, confundindo amigos com inimigos, ao mesmo tempo em que tenta se defender destes medos escondendo-nos atrás de imagens que fazemos de nós mesmos como “campeões da interpretação correta da realidade externa e do marxismo”. Não há nada de original nisso.

 

12.

         Uma sociedade socialista mais desenvolvida e plena não poderá solucionar todos os problemas humanos e sociais. Isso seria irreal, dado que a natureza da vida é constituída num equilíbrio entre prazer e dor, alegria e sofrimento, vida e morte, altos e baixos. Portanto, não pode criar uma unidade coletiva que transporte o indivíduo para um impossível estado de felicidade permanente, mas sim alertá-lo e instruí-lo a adquirir firmeza e paciência diante do sofrimento e das contradições que inevitavelmente persistirão. A vida acontece num equilíbrio entre a alegria e a dor. Por certo que condições materiais melhores, mais igualitárias, com garantias mínimas de dignidade, emprego, saúde, educação, cultura, etc., fazem uma diferença considerável no sofrimento humano, colocando-o num novo patamar, mas certamente não poderá erradicá-lo. O avanço científico da medicina, por exemplo, ajudou a diminuir as dores do parto, mas não a erradicou; tampouco acabou com inúmeros problemas pré e pós-parto.

         É a sociedade capitalista que vende a ideia de uma vida plenamente feliz a partir da compra da casa própria, do último carro do ano, do emprego rentável e da ilusória imagem de “sucesso” e de “ser alguém na vida”. Todos dão as mãos e sorriem como uma família eternamente feliz, tal como aparecem nas propagandas de margarina. Uma sociedade socialista, esperamos, não deve reproduzir os erros de cinismo e hipocrisia da sociedade atual. Mais do que isso: não deve adaptar estas ilusões para ganhar influências efêmeras sobre a classe trabalhadora com as mesmas peças publicitárias falsas e cínicas.

         A possibilidade de uma revolução socialista depende da necessidade de que a classe trabalhadora pare de fugir de si mesma e consiga olhar a verdade frente a frente, olho no olho. É nesse sentido que a mudança interior é fundamental e precisa ser pensada, estudada, estimulada pelas organizações de esquerda, sem o quê não existe revolução possível. A busca pela plenitude da vida não se encerra na melhora das condições materiais da sociedade, mas no aumento da liberdade de pensamento, de segurança emocional e da capacidade de suportarmos a verdade nua e crua das dúvidas e incertezas inevitáveis da vida, sabermos lidar com as frustrações para pararmos de buscar desesperadamente lideranças, gurus e outros subterfúgios que nos afastem dos nossos desafios interiores.

         A rememorização decorada de toda a filosofia materialista não pode resolver o problema, que é muito mais complexo. Há que se aprender a respeitar humildemente todos os sentimentos interiores humanos e dialogar com eles, ampliando a nossa visão e a nossa lucidez. Com sua resposta, o blog Coerência Marxista julga estar “defendendo o marxismo” contra as “asneiras revisionistas, idealistas e loucas” do nosso blog. 

         Doce ilusão! O que está fazendo, na realidade, é empobrecendo o marxismo, as possibilidades que ele abre, e a própria capacidade reflexiva humana.