terça-feira, 11 de julho de 2023

Que tipo de mundo multipolar os BRICS podem criar?

Os BRICS ainda na época de Dilma Roussef, hoje presidente do seu banco oficial

 

Os profetas do mundo multipolar anunciam a aurora dos novos tempos com a mesma intensidade que os economistas, ideólogos e jornalistas do velho mundo hegemonista anglo-saxão tentam esconder os crimes e sabotagens do imperialismo estadunidense, em decadência histórica.

         Entre uns e outros, estamos nós, simples trabalhadores, alguns com consciência de classe, outros milhares sem, que tentam se situar num mar de disputas por vezes irracionais e falsas.

         Tendemos a simpatizar com os BRICS (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) por serem supostamente economias em desenvolvimento, antigas colônias da Europa, se contrapondo ao mundo dominado pelo imperialismo anglo-saxão (dito “Ocidental”).

         Certamente o mundo atual, dominado pelo capitalismo estadunidense é desprezível por ser cruel, desigual, desumano e violento; o que nos coloca a necessidade de superá-lo se queremos, de fato, um mundo mais humanizado e melhor. Porém, a questão inevitável é: o que vem em seu lugar? Rússia e China – as principais lideranças do bloco dos BRICS –, dada a natureza dos seus governos, sempre minimizada ou mesmo glorificada pelos seus apoiadores acríticos, podem conduzir o mundo para a multipolaridade? Se sim, como? No que, precisamente, ela consiste?

         Esta multipolaridade poderá substituir com êxito a hegemonia estadunidense ou apenas criará uma outra “hegemonia multipolar”, com uns poucos “polos” a mais e uma grande periferia com pequenas elites econômicas dominantes de uma maioria de pessoas miseráveis? Isto é: conseguirão criar um mundo melhor do que o existente ou apenas novas formas de dominação, mais refinadas e sutis? Tal mundo multipolar conseguirá reintroduzir valores humanos e socialistas na economia e na sociedade ou apenas modificarão e refinarão as formas de capitalismo?

        

Os bilionários do Partido Comunista chinês e a oligarquia russa dão as diretrizes do “mundo multipolar”

         Ainda que como latino-americanos tenhamos certa simpatia pela crise hegemônica dos EUA, a desdolarização e o fim deste verdadeiro “império do caos”, uma vez que o seu “desenvolvimento” é garantido pelo nosso subdesenvolvimento, a multipolaridade proposta por China e Rússia é dúbia e possivelmente não nos reserve nada além de comércio internacional em suposto pé de igualdade – o que é, no mínimo, questionável, pois desde já a China tem interesse nas matérias-primas brasileiras, latino-americanas e africanas. Dividirão eles seus segredos tecnológicos e industriais com a periferia do sistema?

         Os profetas do mundo multipolar (nomeadamente: Elias Jabbour, Pepe Escobar, a TV 247 e intelectuais ligados ao PT e ao PCdoB), ainda que denunciem corretamente muitos dos crimes do imperialismo estadunidense e inglês, tornam-se ufanistas e, por isso, não podem deixar de cometer exageros e equívocos. Até que ponto o “sul global” – tão judiado e massacrado pelo imperialismo “atlanticista” – não é uma estratégia de sedução por parte de governos com interesses geopolíticos bem definidos, como os que possuem os “bilionários comunistas” do Partido Comunista chinês (PCC) e os oligarcas russos? Como o “mundo multipolar” pode ser apresentado como possuindo apenas uma ou duas capitais, como Pequim e Moscou?

         Pepe Escobar, talvez o mais destacado destes “profetas”, explicou como chegar ao mundo multipolar nas conferências promovidas pela TV 247 em sua visita ao Brasil: “vai depender da opinião pública dos países dos BRICS estar empenhada em apoiar as decisões de suas elites político-econômicas”. Então bastaria a população de cada um dos países do bloco apoiar suas elites para garantir a chegada à nova ordem mundial, dentro de uns 10 ou 15 anos. Tudo isso soa como um estranho conselho que serve perfeitamente como apoio político aos “bilionários comunistas” da China e aos oligarcas russos – isto é, suas respectivas burguesias muito bem disfarçadas de “elites progressistas”, que lideram o processo que já está em curso.

         Além disso, Pepe Escobar é enfático ao dizer que o objetivo do PCC não tem como objetivo o desenvolvimento e os interesses da classe trabalhadora chinesa, mas os da classe média. Mesmo admitindo os vários motins quase diários de operários chineses contra suas péssimas condições de trabalho, Pepe não se incomoda, nem se constrange com tais objetivos, e ainda afirma que o governo de Xi Jinping visa conscientemente a transformação da China em um “país de classe média” – no Brasil e nos EUA temos uma noção bastante preocupante de como pensa e age esta classe. Então, o que pode resultar deste mundo multipolar? Por que os profetas do mundo multipolar não problematizam estas questões?

         O ódio e o rechaço à ordem mundial hegemonizada pelos EUA é compreensível, mas ela não pode, nem deve nos cegar. Manter a lucidez é uma das condições para a consciência de classe e para a construção de um mundo novo.

 

Os BRICS e a guerra da Ucrânia

         Parte da disputa entre o bloco liderado pelo imperialismo estadunidense e os BRICS se dá na guerra da Ucrânia. Nela Pepe Escobar sustentou em diversas oportunidades uma visão um tanto exagerada das vitórias russas.

         Não há nada a objetar em relação às suas denúncias acerca dos crimes cometidos pelos EUA, OTAN e seu complexo militar-industrial, que se utilizam da vida do povo ucraniano como moeda de troca, enquanto fingem lágrimas de crocodilo por ele em frente às câmeras da grande mídia internacional. Porém, há um flagrante exagero de “salvação do mundo” a partir de uma suposta vitória russa por parte dele e de muitos setores da esquerda. Para os trabalhadores do mundo – e para o povo ucraniano e russo em particular – não há perspectiva alguma de futuro. A destruição será devastadora, tanto material quanto emocional. Isso não significa desconsiderar a importância da vitória da oligarquia russa sobre o complexo militar-industrial dos EUA, mas aqui novamente não podemos nos cegar.

         Mesmo que o jornalismo praticado por Pepe Escobar seja necessário e muito importante como contraponto fundamental à mídia oficial comandada pelos EUA, há que se ter certos cuidados. Em suas lives na TV 247, durante mais de um ano, Pepe Escobar superestimou as vitórias russas e subestimou o estrago feito pelos EUA no mercado de gás europeu, bem como na consciência da opinião pública mundial. Os objetivos norte-americanos não são necessariamente ou prioritariamente militares.

         Mesmo que a vitória militar da Ucrânia sobre a Rússia não aconteça – o que é o mais provável; e o próprio governo e o complexo industrial-militar ianque sabem disso – vários objetivos geopolíticos estratégicos imediatos foram atingidos pelos EUA (Pepe Escobar só agora, em meados de junho de 2023, reconhece isso).

         São eles:

         1) Obrigar a Rússia a sair da toca e se mostrar ao mundo, o que serve como base para a campanha midiática diária do imperialismo estadunidense e inglês. Como se pode ver, o governo Biden está se lixando para a vida do povo ucraniano. Se necessário for, manterá a guerra até a destruição completa da Ucrânia ou até a última gota de sangue ucraniana para obrigar que a Rússia “se mostre” (isto é, saia da defensiva e vá para a ofensiva).

         2) Sabotagem e destruição da crescente hegemonia econômica russa sobre o setor energético da Europa, o que sabota também mais ou menos diretamente a influência chinesa, que vinha em sua esteira. Ainda que isso tenha sido compensado pelo ingresso no gigantesco mercado interno chinês em substituição ao europeu.

         3) O caos econômico, que é a especialidade econômica do imperialismo norte-americano, polariza a geopolítica e propicia condições para se selarem alianças políticas e militares. Força países europeus a aumentaram o antagonismo com a Rússia, levando, em contrapartida, a uma aproximação com os EUA. Quanto mais tempo a guerra durar, melhor para a política de caos sustentada pelos EUA. Além disso, nos últimos dias o governo Biden estreitou laços com a Índia, para inviabilizar ou, pelo menos, dificultar a vida interna e o funcionamento dos BRICS. Sabe-se que China e Índia mantém diversos pontos e zonas de conflito e os EUA buscam explorar isso, além de pequenas e grandes provocações em relação à Taiwan.

***

         Nas viagens internacionais do primeiro semestre de 2023, Lula sofreu várias críticas por suas declarações sobre a guerra da Ucrânia. Ele disse, corretamente, que os EUA e a União Europeia (UE) não querem parar com o conflito; e que a Ucrânia era tão responsável pela guerra quanto a Rússia.

         Por ter pronunciado tais declarações, singelas e óbvias para quem observa seriamente a guerra, sofreu uma enxurrada de ataques de todos os lados: grande mídia, governos de outros países (todos tendo grandes interesses na continuidade da guerra), diplomatas, “especialistas”, etc. Ataques, em sua maioria, parciais, de gente interessada e financiada direta ou indiretamente pelos EUA, pois desta guerra depende a sua atual estratégia geopolítica. A enxurrada de ataques midiáticos piorou com a visita do ministro das relações exteriores russo Sergei Lavrov à Brasília em abril de 2023.

 

A situação do Brasil frente aos BRICS e o futuro do país no bloco

         Nas questões de política internacional, como a guerra da Ucrânia, Lula até chegou a ladrar como um cão de caça, mas dada a estreitíssima margem de manobra que sobra para aqueles que pretendem jogar o jogo das instituições democrático-burguesas (ditas “republicanas”), logo viu-se com a coleira curta. A voz grossa e rouca foi ficando baixinha, quase fininha e inaudível. Mudou a tônica, começando por condenar a “violação da integridade territorial” da Ucrânia pela Rússia, o que também é uma realidade, mas “esqueceu” de contrabalançar esta afirmação com a necessária lembrança de que a Ucrânia é financiada e armada por OTAN-EUA-EU, cujo objetivo central é provocar a Rússia – e este é o ponto central da atual guerra. Desmascarar parcialmente e diplomaticamente não contribui para o seu fim. Para de fato acelerar o seu fim é necessário escancarar suas verdadeiras raízes e interesses. Foi com esse método que a 1ª Guerra Mundial foi encerrada. Como sempre, para isso há que se ter coragem e estar disposto a pagar um preço demasiado caro (preço este que o governo Lula não quer pagar).

         Em nenhum dos países que compõe os BRICS há mais vulnerabilidade e possibilidade de se perder o poder do que no Brasil (talvez na África do Sul, por ser tão semicolonial quanto o Brasil). A continuidade do Brasil nos BRICS depende, essencialmente, dos governos de orientação petista. Uma eventual eleição ou golpe de um governo neofascista ou da direita tradicional tende a sabotar as ações do Brasil no bloco ou, então, a fazê-lo agir como cavalo de Tróia, mesmo que parte da elite nacional ligada ao agronegócio esteja interessadíssima em manter boas relações com a China.

         Ainda que os governos petistas se perpetuem por mais algumas gestões e o bloco aprofunde suas relações, inclusive a partir da desdolarização, no Brasil não há uma perspectiva de desenvolvimento econômico que não tenha o agronegócio como centro, o atendimento preferencial dos interesses de suas respectivas classes médias nacionais e o consumismo predatório como meta final.

         Talvez a ascensão de China e Rússia como futuras lideranças globais, ainda que mantenham um discurso de falsa modéstia de “não quererem ser hegemônicas”, reflita um processo histórico inevitável e irreversível. O problema, no entanto, é vender tal ideia como sendo resultado de uma evolução “socialista” ou como uma grande novidade progressista, capaz de humanizar o mundo atual e elevá-lo muito além do que é hoje o mundo hegemonizado pelos EUA.

 

As tendências atuais e futuras dos BRICS

         Em essência, os BRICS não apresentam nenhuma proposta multipolar que vá além de uma utilização do capitalismo estatal, com suposta cooperação internacional baseado num suposto comércio “ganha-ganha”, que não dá nenhuma garantia ou apresenta alguma tendência real de se transformar em uma economia socialista, a não ser o fato de se apoiar no desenvolvimento a partir do Estado e do suposto controle de setores do mercado.

         Hoje há uma grande unidade política entre os governos de China e Rússia – secundados pelos demais membros dos BRICS – porque estão enfrentando diretamente o poder ianque, mas ela se manterá uma vez atingido o “mundo multipolar”? No momento em que o imperialismo estadunidense e inglês for superado, as rusgas, contendas e disputas entre os bilionários chineses e a oligarquia russa, da qual Putin é um dos principais expoentes, tenderão a sair das sombras.

         Mais ainda: poderão eles promover um mundo sem guerras, mais humanizado, equânime e integrado, mantendo-se dentro das regras do jogo capitalista (embora “multipolarizado”)? Frente à desdolarização, as moedas serão também multipolares ou o rublo e o yuan aceitarão dividir as preferências com outras pelas transações comerciais internacionais? É isto que devemos nos perguntar sempre que ouvimos as profecias sobre os BRICS e o seu “mundo multipolar” em nascimento. Evitar ilusões é o melhor meio de se ingressar nele.