Os BRICS ainda na época de Dilma Roussef, hoje presidente do seu banco oficial |
Os
profetas do mundo multipolar anunciam a aurora dos novos tempos com a mesma
intensidade que os economistas, ideólogos e jornalistas do velho mundo
hegemonista anglo-saxão tentam esconder os crimes e sabotagens do imperialismo
estadunidense, em decadência histórica.
Entre uns e outros, estamos nós,
simples trabalhadores, alguns com consciência de classe, outros milhares sem,
que tentam se situar num mar de disputas por vezes irracionais e falsas.
Tendemos a simpatizar com os BRICS
(bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) por serem
supostamente economias em desenvolvimento, antigas colônias da Europa, se
contrapondo ao mundo dominado pelo imperialismo anglo-saxão (dito “Ocidental”).
Certamente o mundo atual, dominado pelo
capitalismo estadunidense é desprezível por ser cruel, desigual, desumano e
violento; o que nos coloca a necessidade de superá-lo se queremos, de fato, um
mundo mais humanizado e melhor. Porém, a questão inevitável é: o que vem em seu
lugar? Rússia e China – as principais lideranças do bloco dos BRICS –, dada a
natureza dos seus governos, sempre minimizada ou mesmo glorificada pelos seus
apoiadores acríticos, podem conduzir o mundo para a multipolaridade? Se sim,
como? No que, precisamente, ela consiste?
Esta multipolaridade poderá substituir
com êxito a hegemonia estadunidense ou apenas criará uma outra “hegemonia
multipolar”, com uns poucos “polos” a mais e uma grande periferia com pequenas
elites econômicas dominantes de uma maioria de pessoas miseráveis? Isto é:
conseguirão criar um mundo melhor do que o existente ou apenas novas formas de
dominação, mais refinadas e sutis? Tal mundo multipolar conseguirá reintroduzir
valores humanos e socialistas na economia e na sociedade ou apenas modificarão e
refinarão as formas de capitalismo?
Os bilionários do Partido
Comunista chinês e a oligarquia russa dão as diretrizes do “mundo multipolar”
Ainda que como latino-americanos
tenhamos certa simpatia pela crise hegemônica dos EUA, a desdolarização e o fim
deste verdadeiro “império do caos”, uma vez que o seu “desenvolvimento” é
garantido pelo nosso subdesenvolvimento, a multipolaridade proposta por China e
Rússia é dúbia e possivelmente não nos reserve nada além de comércio
internacional em suposto pé de igualdade – o que é, no mínimo, questionável,
pois desde já a China tem interesse nas matérias-primas brasileiras,
latino-americanas e africanas. Dividirão eles seus segredos tecnológicos e
industriais com a periferia do sistema?
Os profetas do mundo multipolar (nomeadamente:
Elias Jabbour, Pepe Escobar, a TV 247 e intelectuais ligados ao PT e ao PCdoB),
ainda que denunciem corretamente muitos dos crimes do imperialismo
estadunidense e inglês, tornam-se ufanistas e, por isso, não podem deixar de
cometer exageros e equívocos. Até que ponto o “sul global” – tão judiado e
massacrado pelo imperialismo “atlanticista” – não é uma estratégia de sedução
por parte de governos com interesses geopolíticos bem definidos, como os que
possuem os “bilionários comunistas” do Partido Comunista chinês (PCC) e os
oligarcas russos? Como o “mundo multipolar” pode ser apresentado como possuindo
apenas uma ou duas capitais, como Pequim e Moscou?
Pepe Escobar, talvez o mais destacado
destes “profetas”, explicou como chegar ao mundo multipolar nas conferências
promovidas pela TV 247 em sua visita ao Brasil: “vai depender da opinião
pública dos países dos BRICS estar empenhada em apoiar as decisões de suas
elites político-econômicas”. Então bastaria a população de cada um dos países do
bloco apoiar suas elites para garantir a chegada à nova ordem mundial, dentro
de uns 10 ou 15 anos. Tudo isso soa como um estranho conselho que serve
perfeitamente como apoio político aos “bilionários comunistas” da China e aos
oligarcas russos – isto é, suas respectivas burguesias muito bem disfarçadas de
“elites progressistas”, que lideram o processo que já está em curso.
Além disso, Pepe Escobar é enfático ao
dizer que o objetivo do PCC não tem como objetivo o desenvolvimento e os
interesses da classe trabalhadora chinesa, mas os da classe média. Mesmo admitindo
os vários motins quase diários de operários chineses contra suas péssimas
condições de trabalho, Pepe não se incomoda, nem se constrange com tais
objetivos, e ainda afirma que o governo de Xi Jinping visa conscientemente a
transformação da China em um “país de classe média” – no Brasil e nos EUA temos
uma noção bastante preocupante de como pensa e age esta classe. Então, o que
pode resultar deste mundo multipolar? Por que os profetas do mundo multipolar
não problematizam estas questões?
O ódio e o rechaço à ordem mundial
hegemonizada pelos EUA é compreensível, mas ela não pode, nem deve nos cegar.
Manter a lucidez é uma das condições para a consciência de classe e para a
construção de um mundo novo.
Os BRICS e a guerra da
Ucrânia
Parte da disputa entre o bloco liderado
pelo imperialismo estadunidense e os BRICS se dá na guerra da Ucrânia. Nela
Pepe Escobar sustentou em diversas oportunidades uma visão um tanto exagerada
das vitórias russas.
Não há nada a objetar em relação às
suas denúncias acerca dos crimes cometidos pelos EUA, OTAN e seu complexo
militar-industrial, que se utilizam da vida do povo ucraniano como moeda de troca,
enquanto fingem lágrimas de crocodilo por ele em frente às câmeras da grande
mídia internacional. Porém, há um flagrante exagero de “salvação do mundo” a
partir de uma suposta vitória russa por parte dele e de muitos setores da
esquerda. Para os trabalhadores do mundo – e para o povo ucraniano e russo em
particular – não há perspectiva alguma de futuro. A destruição será
devastadora, tanto material quanto emocional. Isso não significa desconsiderar
a importância da vitória da oligarquia
russa sobre o complexo militar-industrial dos EUA, mas aqui novamente não
podemos nos cegar.
Mesmo que o jornalismo praticado por
Pepe Escobar seja necessário e muito importante como contraponto fundamental à
mídia oficial comandada pelos EUA, há que se ter certos cuidados. Em suas lives na TV 247, durante mais de um ano, Pepe Escobar superestimou as vitórias russas e subestimou o estrago feito pelos
EUA no mercado de gás europeu, bem como na consciência da opinião pública
mundial. Os objetivos norte-americanos não são necessariamente ou
prioritariamente militares.
Mesmo que a vitória militar da Ucrânia
sobre a Rússia não aconteça – o que é o mais provável; e o próprio governo e o
complexo industrial-militar ianque sabem disso – vários objetivos geopolíticos
estratégicos imediatos foram atingidos pelos EUA (Pepe Escobar só agora, em
meados de junho de 2023, reconhece isso).
São eles:
1) Obrigar a Rússia a sair da toca e se
mostrar ao mundo, o que serve como base para a campanha midiática diária do
imperialismo estadunidense e inglês. Como se pode ver, o governo Biden está se
lixando para a vida do povo ucraniano. Se necessário for, manterá a guerra até
a destruição completa da Ucrânia ou até a última gota de sangue ucraniana para
obrigar que a Rússia “se mostre” (isto é, saia da defensiva e vá para a
ofensiva).
2) Sabotagem e destruição da crescente
hegemonia econômica russa sobre o setor energético da Europa, o que sabota
também mais ou menos diretamente a influência chinesa, que vinha em sua esteira.
Ainda que isso tenha sido compensado pelo ingresso no gigantesco mercado
interno chinês em substituição ao europeu.
3) O caos econômico, que é a
especialidade econômica do imperialismo norte-americano, polariza a geopolítica
e propicia condições para se selarem alianças políticas e militares. Força
países europeus a aumentaram o antagonismo com a Rússia, levando, em contrapartida,
a uma aproximação com os EUA. Quanto mais tempo a guerra durar, melhor para a
política de caos sustentada pelos EUA. Além disso, nos últimos dias o governo
Biden estreitou laços com a Índia, para inviabilizar ou, pelo menos, dificultar
a vida interna e o funcionamento dos BRICS. Sabe-se que China e Índia mantém
diversos pontos e zonas de conflito e os EUA buscam explorar isso, além de pequenas
e grandes provocações em relação à Taiwan.
***
Nas viagens internacionais do primeiro
semestre de 2023, Lula sofreu várias críticas por suas declarações sobre a
guerra da Ucrânia. Ele disse, corretamente, que os EUA e a União Europeia (UE)
não querem parar com o conflito; e que a Ucrânia era tão responsável pela
guerra quanto a Rússia.
Por ter pronunciado tais declarações,
singelas e óbvias para quem observa seriamente a guerra, sofreu uma enxurrada
de ataques de todos os lados: grande mídia, governos de outros países (todos
tendo grandes interesses na continuidade da guerra), diplomatas, “especialistas”,
etc. Ataques, em sua maioria, parciais, de gente interessada e financiada
direta ou indiretamente pelos EUA, pois desta guerra depende a sua atual
estratégia geopolítica. A enxurrada de ataques midiáticos piorou com a visita
do ministro das relações exteriores russo Sergei Lavrov à Brasília em abril de
2023.
A situação do Brasil frente
aos BRICS e o futuro do país no bloco
Nas questões de política internacional,
como a guerra da Ucrânia, Lula até chegou a ladrar como um cão de caça, mas
dada a estreitíssima margem de manobra que sobra para aqueles que pretendem
jogar o jogo das instituições democrático-burguesas (ditas “republicanas”),
logo viu-se com a coleira curta. A voz grossa e rouca foi ficando baixinha,
quase fininha e inaudível. Mudou a tônica, começando por condenar a “violação
da integridade territorial” da Ucrânia pela Rússia, o que também é uma
realidade, mas “esqueceu” de contrabalançar esta afirmação com a necessária
lembrança de que a Ucrânia é financiada e armada por OTAN-EUA-UE, cujo objetivo
central é provocar a Rússia – e este é o ponto
central da atual guerra. Desmascarar parcialmente e diplomaticamente não
contribui para o seu fim. Para de fato acelerar o seu fim é necessário
escancarar suas verdadeiras raízes e interesses. Foi com esse método que a 1ª
Guerra Mundial foi encerrada. Como sempre, para isso há que se ter coragem e
estar disposto a pagar um preço demasiado caro (preço este que o governo Lula
não quer pagar).
Em nenhum dos países que compõe os
BRICS há mais vulnerabilidade e possibilidade de se perder o poder do que no
Brasil (talvez na África do Sul, por ser tão semicolonial quanto o Brasil). A
continuidade do Brasil nos BRICS depende, essencialmente, dos governos de
orientação petista. Uma eventual eleição ou golpe de um governo neofascista ou da direita tradicional
tende a sabotar as ações do Brasil no bloco ou, então, a fazê-lo agir como
cavalo de Tróia, mesmo que parte da elite nacional ligada ao agronegócio esteja
interessadíssima em manter boas relações com a China.
Ainda que os governos petistas se
perpetuem por mais algumas gestões e o bloco aprofunde suas relações, inclusive
a partir da desdolarização, no Brasil não há uma perspectiva de desenvolvimento
econômico que não tenha o agronegócio como centro, o atendimento preferencial
dos interesses de suas respectivas classes médias nacionais e o consumismo predatório
como meta final.
Talvez a ascensão de China e Rússia
como futuras lideranças globais, ainda que mantenham um discurso de falsa
modéstia de “não quererem ser hegemônicas”, reflita um processo histórico inevitável
e irreversível. O problema, no entanto, é vender tal ideia como sendo resultado
de uma evolução “socialista” ou como uma grande novidade progressista, capaz de
humanizar o mundo atual e elevá-lo muito além do que é hoje o mundo
hegemonizado pelos EUA.
As tendências atuais e
futuras dos BRICS
Em essência, os BRICS não apresentam
nenhuma proposta multipolar que vá além de uma utilização do capitalismo
estatal, com suposta cooperação internacional baseado num suposto comércio
“ganha-ganha”, que não dá nenhuma garantia ou apresenta alguma tendência real
de se transformar em uma economia socialista, a não ser o fato de se apoiar no
desenvolvimento a partir do Estado e do suposto
controle de setores do mercado.
Hoje há uma grande unidade política entre
os governos de China e Rússia – secundados pelos demais membros dos BRICS –
porque estão enfrentando diretamente o poder ianque, mas ela se manterá uma vez
atingido o “mundo multipolar”? No momento em que o imperialismo estadunidense e
inglês for superado, as rusgas, contendas e disputas entre os bilionários
chineses e a oligarquia russa, da qual Putin é um dos principais expoentes,
tenderão a sair das sombras.
Mais ainda: poderão eles promover um
mundo sem guerras, mais humanizado, equânime e integrado, mantendo-se dentro
das regras do jogo capitalista (embora “multipolarizado”)? Frente à
desdolarização, as moedas serão também multipolares ou o rublo e o yuan aceitarão
dividir as preferências com outras pelas transações comerciais internacionais?
É isto que devemos nos perguntar sempre que ouvimos as profecias sobre os BRICS
e o seu “mundo multipolar” em nascimento. Evitar ilusões é o melhor meio de se
ingressar nele.
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