domingo, 22 de setembro de 2019

Tentando dar um sopro de vida às discussões teóricas da esquerda...

Os textos abaixo foram redigidos no início de 2019 após algumas discussões polêmicas ocorridas em um debate promovido pela Ação Anti Fascista de Porto Alegre sobre a Psicologia de massas do fascismo. A atividade, convocada com a finalidade de debater este tema, atraiu muitos ativistas, militantes e curiosos. Dentre estes, estavam dois companheiros que militaram juntos numa organização revolucionária, chamada Liga Marxista (LM), e que foi extinta recentemente. São os companheiros João de Barro (JB) e Eduardo Cambará (EC), que redigiram os textos abaixo, permeados por contribuições de Trotsky e W. Reich. 

Nesta polêmica surgiram 4 textos: 1) Introdução à discussão sobre o fascismo e uma crítica a Reich (este escrito ainda em 2018); 2) Reich, Trotsky e os delírios da esquerda; 3) Resposta ao Eduardo Cambará; e 4) Considerações finais a JB; que seguem publicados na íntegra.

Apesar da discussão ter se tornado áspera e trazer questões pontuais desta extinta organização, inclusive adquirindo contornos pessoais, julgamos ser de vital importância publicá-la para tentar dar um sopro de vida às discussões teóricas da esquerda, marcadas pelo oportunismo, sectarismo e (por que não?) pela mesmice. Seguem, então, os referidos textos, assinados pelos seus autores.

Introdução à discussão sobre fascismo e uma crítica a Reich

O trabalho a seguir é uma crítica às posições de Reich sobre o fascismo, as quais, após a sua vitória na Alemanha, sofreram radical transformação. A sua postura revolucionária inicial evoluiu para uma interpretação psicologista delirante. Uma vez que esse Reich obsessivo estava sendo resgatado, resolvemos alertar para esse equívoco, valendo-nos dele mesmo. Não tivemos sucesso. A defesa dessas posições reacionárias continuou, caracterizando não mais um engano, mas um oportunismo. Queremos apenas melhor caracterizar o absurdo dessas posições.

Reich foi decisivamente abalado pela ascensão do fascismo, concomitante à consolidação do stalinismo. Alemão e membro do Partido Comunista, foi perseguido por ambos, e mais tarde, refugiado nos EUA, pelo mackartismo americano. Dominado pela obsessão, abandonou a sua interpretação revolucionária expressa no seu livro Materialismo Dialético e Psicanálise (1929), onde defende que a psicologia é uma ciência auxiliar da sociologia: “a psicanálise só se interessa pelo psiquismo das massas na medida em que nelas surgem fenômenos individuais (o problema do chefe, por exemplo); na medida em que, pelo conhecimento do indivíduo, ela pode explicar as manifestações da almas das massas”. Rompendo radicalmente consigo mesmo, passa a adotar uma visão psicologista, evoluindo para uma interpretação biológica do comportamento, como se a espécie humana se assemelhasse a uma colméia de abelhas.

No Prefácio à 3ª edição em língua inglesa, corrigida e aumentada, de 1942, confessa a sua mudança radical: “Minha revisão da segunda edição, reflete a revolução ocorrida no meu pensamento”; “por volta de 1930, eu desconhecia as relações naturais que se estabelecem entre os trabalhadores, na democracia do trabalho”; “os conceitos partidários do marxismo usados neste livro tiveram que ser riscados e substituídos por novos conceitos”; “o abismo que separa a visão puramente econômica da visão biossociológica é intransponível. À teoria do ‘homem de classe’ opunha-se a natureza irracional da sociedade animal do homem”; “a psicologia marxista, desconhecendo a psicologia de massas, opôs o burguês ao proletário. Isso é psicologicamente errado”; “a sociologia e a psicologia adquiriram, assim, uma sólida base biológica (grifo meu), o que não pode deixar de exercer influência sobre o pensamento”; “tudo o que é autenticamente revolucionário, toda a arte e a ciência, provém do cerne biológico (idem) natural do homem”.
 
Abundam as contradições, que não vamos analisar. A psicologia, de ciência auxiliar da sociologia, passa a explicar o fascismo: “o fascismo não é mais do que a expressão politicamente organizada da estrutura do caráter do homem médio ...”. “... as massas humanas, depois de séculos de opressão, são absolutamente incapazes de liberdade”; “em suma, atribuímos às massas humanas toda a responsabilidade por todos os processos sociais”; “...na base do fascismo está a irresponsabilidade das massas humanas de todos os países, nações, raças, etc.”; “tudo o que acontece na vida social é determinado, ativa ou passivamente, pela estrutura das massas humanas”. A isso chama de “peste emocional”.   Para ele, “o objetivo da sociologia deixou de ser, de modo geral, a economia, para se concentrar na estrutura (psicológica) das massas humanas”. Isso quer dizer que não só o fascismo se explica pela psicologia, mas a própria sociologia vira um apêndice da psicologia.
 
Sobre a revolução russa, inicialmente, admite que “a eliminação do analfabetismo e a transformação de um país agrícola em um país industrializado são, certamente, feitos importantíssimos ...”.  No entanto, considera que “o irracionalismo das massas” explicaria “primeiro a paralisação e depois a degeneração autoritária do processo revolucionário, a princípio, tão promissor”. Toda a culpa recairia sobre as massas: “seria absurdo atribuir a culpa a Stálin ou a qualquer outro”; “aprendemos, pelo exemplo do aparelho de Estado russo, que ele se tornou necessário, e não foi difícil compreender que, apesar de todo o seu irracionalismo, cumpriu uma função racional de congregar e dirigir a comunidade russa”; “elas e só elas são responsáveis”; “não se pode censurar o governo soviético por ter voltado aos métodos de controle autoritário e moralista: ele teve de fazê-lo para não por em perigo o resto”. Ao culpar as massas e absolver Stálin, assume uma postura reacionária.
 
A psicologia das massas é um elemento real, que não se pode ignorar, definidos por Reich com muita propriedade: “Hitler insistiu incansavelmente que devemos nos dirigir às massas não com argumentos, provas e conhecimentos, mas por meio de sentimentos e crenças”; “a massa de indivíduos apolíticos, ..., facilmente se deixa seduzir pelo discurso místico de um nacional-socialista”; “mas ser apolítico não é, como se acredita, um comportamento de passividade, mas sim um comportamento ativo, uma defesa contra a consciência das responsabilidades sociais”; “o indivíduo volta para ele (para o fascista) toda a sua atenção, não porque o programa fascista lhe diga mais que o programa revolucionário, mas porque a entrega ao furer e à sua ideologia lhe proporciona um alívio momentâneo da sua permanente tensão interior”.  O erro crasso consiste em considerar a psicologia um fator determinante sobre as condições sociais. Ao contrário, ela é uma função da realidade social. Os elementos psicológicos são historicamente determinados pela vida social, e não o contrário.
 
Não é verdade que o fascismo esteja em cada um de nós e que o mesmo seja culpa das massas, muito menos que as mesmas sejam “incapazes de liberdade”. Esse determinismo reacionário, a ser verdadeiro, tornaria inexplicável a luta de classes, as revoluções e insurreições. Pode-se afirmar que todas as tentativas de socialismo terminaram sistematicamente derrotadas. Mas Reich transforma essas derrotas em algo inevitável. Mas não é assim. Elas têm causas perfeitamente identificáveis e não são inevitáveis, e a culpa não recai sobre as massas. As condições da sua vitória podem ser perfeitamente estabelecidas. 
     
A submissão das massas ao chefe tem causas histórias para além da psicologia e não acontece em quaisquer circunstâncias. Determiná-las é uma tarefa da sociologia política e apenas secundariamente da psicologia. Não haveria fascismo sem a traição da social-democracia e do stalinismo. O fascismo é um fenômeno de massas, principalmente, das classes médias desesperadas, em momentos de derrota, quando essas se colocam a serviço do capital financeiro, que lhes oferece, em troca da submissão, a escravização de outros povos. As classes médias são mais suscetíveis à psicologia individual, e não podem ter um programa próprio para a sociedade. Só lhes resta seguir à burguesia ou ao proletariado. Por ser um movimento imperialista, não pode existir fascismo tupiniquim. O que vemos é um neo-fascismo a serviço do imperialismo hegemônico, que nada pode oferecer às massas. É o último recurso da grande burguesia contra o socialismo. Não é o seu regime predileto. Somente nessas circunstâncias, grandes massas de classe média, e parte do proletariado, entregam a sua alma ao um furer salvador. A psicologia das massas é apenas um dos fatores, secundário, que se soma aos fatores sociais determinantes.
   
Reich, após substituir a sociologia política na explicação da sociedade pela psicologia, desbanca a própria psicologia em nome de uma interpretação biológica: “as massas humanas, ..., tornaram-se biologicamente rígidas e incapazes de liberdade ...”; “as guerras são motivadas biologicamente”; “a mentalidade escrava está profundamente enraizada no próprio corpo, tornou-se uma segunda natureza,...”.

Esse mesmo impressionismo o levou também à idealização dos Estados Unidos: “nessa época (1934) eu não tinha conhecimento de que se desenvolvera nos Estados Unidos uma atitude nova quanto à economia sexual, que viria a facilitar mais tarde a aceitação da economia sexual”; “só assim se compreende que, até o momento deste trabalho, não se tenha podido desenvolver nos Estados Unidos nenhum aparelho de Estado totalitário, enquanto, na Europa, todas as revoluções trouxeram invariavelmente consigo novas formas de despotismo ...”; “os fundadores da revolução americana tiveram de construir a sua democracia em terreno estrangeiro e em bases inteiramente novas, a partir do nada”; “... nos Estados Unidos, as tentativas de preservar os velhos ideais democráticos e os esforços com vistas a desenvolver a verdadeira autogestão foram muito mais vigorosos do que em qualquer outro país”. Por ironia da história, foi o macartismo americano que o perseguiu e matou, porque não poderia tolerar a sua revolucionária “economia sexual”. E a suposta autogestão americana é a mesma que escravizava dezenas de países sob uma fachada democrática. 

O fascismo segundo Reich e Trotsky
Reich contra Reich:
No momento em que o neo-fascismo cresce em todo o mundo, assumindo diversas roupagens, a discussão do seu significado volta à ordem do dia. Surge quem defenda a visão psicológica de Wilhelme Reich, segundo a qual, o fascismo seria fruto da “peste emocional”, conseqüência da “estrutura do caráter das massas”. Queremos discutir o real papel da psicologia de massas comparado ao da luta de classes, e a relação entre o fascismo do século XX e o neo-fascismo atual. Defendemos que o fascismo é um fenômeno social, que se vale, em certas circunstâncias, como fator secundário, da psicologia das massas. Em 1929, Reich publicou Materialismo Dialético e Psicanálise, no qual demonstra a compatibilidade entre a dialética e a psicanálise e onde defende que a psicologia é uma ciência auxiliar da sociologia. Mais tarde, após a vitória de Hitler, rompendo consigo próprio, adotou uma compreensão psicologista, inclusive, biologista do fascismo.  
     
A sua teoria da sexualidade escandalizou o mundo burguês, inclusive, a burocracia stalinista. Como conseqüência, foi expulso da Sociedade Psicanalítica, do Partido Comunista, perseguido pelo nazismo e pelo macarthismo americano. Posteriormente, como conseqüência talvez dessa perseguição, veio a manifestar uma tendência obsessiva.  No seu livro Psicologia de Massas do Fascismo, versão profundamente alterada de 1942, o fascismo passa a ser explicado exclusivamente pela “estrutura do caráter das massas”, que seria uma formação psicológica obra do patriarcalismo milenar. Ao contrapor o Reich dos primeiros tempos ao Reich obsessivo, rendemos homenagens ao Reich revolucionário, o cientista da sexualidade humana. No prefácio a esse livro, Psicologia de Massas do Fascismo, rompe com o marxismo: rejeita os conceitos de comunista, socialista, dialética, luta de classes e toda a sociologia marxista, passando a defender o psicologismo e o apoliticismo. 

Inicialmente, no Materialismo Dialético e Psicanálise (1929), defendia que a “psicanálise só se interessa pelo psiquismo das massas na medida em que nelas surgem fenômenos individuais (o problema do chefe, por exemplo); na medida em que, pelo conhecimento do indivíduo, ela pode explicar as manifestações da alma das massas, tais como o medo, o pânico, a obediência, etc. Mas parece que fenômenos da consciência de classes lhe são dificilmente acessível; e os problemas tais como o movimento de massas, a política, a greve, que são do domínio da sociologia, escapam ao método psicanalítico. Ela não pode, portanto, substituir a sociologia, nem sequer extrair de si própria uma doutrina sociológica. No entanto, pode desempenhar, relativamente à sociologia, o papel de ciência auxiliar ...” . Já em 1934, no texto A Aplicação da Psicanálise à Pesquisa Histórica, abre exceções a esse método, afirmando “ter finalmente encontrado uma formulação provisória que tentava dar, na sociologia, um lugar à psicanálise”, passando a explicar a formação das ideologias pela psicanálise e, posteriormente, termina por explicar o fascismo pela psicologia. A psicanálise pode apenas explicar os aspectos irracionais da psicologia de massas. E mesmo essa irracionalidade não é uma fatalidade, define apenas tendências. A psicologia humana é essencialmente dialética, uma luta entre tendências antagônicas: “os traços de caráter podem, em determinados conflitos, transformar-se no seu direto contrário”; “o ódio pode significar amor e vice-versa” (1). Para Freud, os instintos humanos são ambivalentes, admitem diversas possibilidades.  
 
Não se pode explicar o fascismo, exclusivamente e nem principalmente, por essa irracionalidade, embora não se possa, também, desconhecer a importância dela para a sua vitória: “o contágio místico é o pré-requisito psicológico mais importante para a absorção da ideologia fascista pelas massas”; “certas palavras são usadas como um fetiche (comunista, bolchevique, vermelho)”; o fascismo “apela para o conteúdo emocional do misticismo”; “na psicologia de massas o furer nacionalista é a personificação da nação”; “ele atrai todas as atitudes emocionais que foram, num dado momento, devidas ao pai, severo, protetor e poderoso”; “é a necessidade das massas de proteção” (2). Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud afirma que as massas desorganizadas assemelham-se à primitiva horda. Suas características são muito semelhantes ao antes descrito: influenciável, crédula, intolerante, impulsiva, irracional, não precisa de lógica, entrega-se a instintos: “o que ela exige dos seus heróis é força, inclusive, violência”; “ela quer ser dominada, oprimida e temer seus senhores”; “com razão e argumentos não se pode lutar contra certas palavras e fórmulas”; “elas exigem ilusões”; “não podem viver sem chefe ...”. 
 
Segundo Trotsky, “a pequena burguesia necessita de uma instância superior, acima da nação e da história, que a proteja contra a competição, a inflação, a crise ...”; “Hitler é a sombra mitológica da própria pequena burguesia ...”; “o medo animal à igualdade, a hostilidade invejosa a quem tem uma casa ou um automóvel, a fábula da raça superior, a esperança no renascimento colonial; o delírio do nacionalismo”; “os mitos e as manias ainda estão enraizados nas massas, apesar dos avanços tecnológicos. Que reserva inesgotável de trevas,  ignorância e selvagismo! A desesperança as pôs de  pé e o fascismo lhes deu uma bandeira”; “o pequeno burguês crê que o fascismo  usará a força para fazer justiça” (3); “sem a compreensão dessa psicologia das massas, ..., é impossível elaborar uma política revolucionária” (4). A psicologia explica o fanatismo, a submissão, o ódio e as ilusões irracionais, que o fascismo soube explorar muito bem. Mas as razões profundas do fascismo não estão na “estrutura do caráter” das massas, mas na luta de classes. O desenvolvimento psicológico depende do social; “as disposição e as pulsões humanas são formas vazias prontas a receber conteúdos sociais, ...” (5). Com a vitória do fascismo, Reich transformou essa psicologia no elemento preponderante. Na verdade, a psicologia apenas adaptou-se à sociedade de classes baseada na exploração e na repressão.  E, uma vez criada, a psicologia também influencia a realidade social, mas não adquire independência em relação a ela. São os interesses de classe que explicam a sociedade e o fascismo. 

O modo de vida social é profundamente conservador, reflete os costumes e a ideologia social dominante, que legitima a repressão e a exploração. O indivíduo, politicamente inconsciente, sente-se isolado, desamparado. Essa alienação, impotência e os medos inconscientes, são a causa do apoliticismo geral. Mas a despolitização é só um aspecto do problema. Não existe solução individual. Apenas, a organização coletiva pode oferecer uma perspectiva. Embora conservadoras, as massas são forçadas a sair da sua letargia em momentos excepcionais, como as guerras e as crises, e podem assumir tanto posição reacionária como revolucionária, dependendo da conjuntura, da organização e das suas direções. 
   
As classes médias são heterogêneas, sentem-se beneficiárias do capitalismo. Normalmente, identificam-se com a burguesia, aspiram à ascensão social e tem medo de perder o seu status. Não podem oferecer uma alternativa própria à sociedade, porque não têm coesão e não participam da produção. Seguem à burguesia, mas, em certos momentos, também podem seguir o proletariado, se este demonstra a sua força. As crises sociais, a fraqueza do proletariado e a impotência da pequena burguesia, são fatores que favorecem o seu apoio ao fascismo. Este é psicologicamente sedutor, apela aos seus instintos irracionais, lhe vende ilusões e lhe exime de responsabilidade.
 
O proletariado difere-se da pequena burguesia: é mais numeroso, participa da produção, está concentrado em grandes fábricas, é mais homogêneo, o seu trabalho está socializado e as suas lutas atingem o coração do capitalismo, a produção. É alienado apenas dos frutos desse trabalho. A sua situação lhe confere um caráter objetivamente revolucionário, embora seja subjetivamente alienado, fato que o torna apenas mais receptivo à organização, ás lutas e à propaganda socialista, que são tarefas políticas. Em certas circunstâncias, também, pode ser recrutado pelo fascismo. Disso, não se deduz a afirmação de Reich de que as “massas são incapazes de liberdade”. Não existe essa fatalidade. A Comuna de Paris, as três revoluções russas (1905, fevereiro e outubro de 1917), a revolução alemã de 1918, que criou Conselhos Operários, a revolução chinesa, entre outras tantas, demonstram o contrário, mesmo que todas essas revoluções a curto ou longo prazo tenham terminado derrotadas. Mas essas derrotas não eram inevitáveis. É preciso compreendê-las.

Atualmente, essas condições sociais sob o capitalismo sofreram grandes alterações, algumas favorecem a luta do proletariado, outras à dificultam.  Com a automatização, o contingente do proletariado industrial foi reduzido, mas cresce no oriente (China, Índia, etc.), que se transformou na fábrica do mundo. E cresce também o setor assalariado de serviços e o lumpesinato. A monopolização da economia, que concentra capitais gigantescos, em grande parte ociosos, torna mais difíceis as lutas sindicais. Ao mesmo tempo, é mais premente a expropriação desse capital parasita. A restauração do capitalismo na ex-URSS e na China, pelas mãos da própria burocracia, representou profunda derrota do proletariado internacional, equivalente à derrota sofrida com a vitória do fascismo. A sua organização foi virtualmente destruída. Seus partidos transformaram-se em agencias do capital e os sindicatos apelegaram-se. Disso se conclui apenas que é preciso recomeçar. Mas as derrotas não duram para sempre, como não durou o fascismo. O socialismo não é inevitável. A luta de classes abre sempre duas possibilidades, a vitória da burguesia ou do proletariado. A humanidade encontra-se diante da famosa alternativa de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. O fascismo é uma das faces dessa barbárie, que se soma à miséria social.
   
O fascismo é uma confluência de múltiplos fatores, (objetivos, subjetivos e psicológicos): a degeneração do capitalismo, a luta inter-imperialista, uma grande crise social, o medo ao comunismo (representado pela então URSS), o desamparo da pequena burguesia e os seus medos conscientes e inconscientes. É uma manifestação típica da decadência do capitalismo na época de domínio dos monopólios. Nem sempre a pequena burguesia atuou como instrumento do capital, muito menos do fascismo: “Já ficou demonstrado, pela experiência da Comuna de Paris ....  e, depois dela, pela experiência da revolução de outubro, ..., que a aliança entre a grande burguesia e a pequena burguesia não é indissolúvel” (6). A próspera Alemanha chegou tarde à divisão do mercado mundial, e a derrota na primeira guerra a jogou em profunda crise social.  O nazismo representou o desespero das classes médias diante dessa crise, uma reação contra as condições do tratado de Versalhes e o desejo de revanche da burguesia alemã.

A vitória nazista, também, não teria acontecido sem a traição do Partido Socialista, que apoiou a primeira guerra, e do Partido Comunista, que frustrou o desejo de unidade do proletariado, dividido entre esses dois partidos, com a sua política ultimatista e divisionista, que caracterizava a social-democracia de social-fascista. A Alemanha, que sucumbiu ao nazismo, foi também o berço do maior movimento socialista da história. Os operários alemães haviam derrubado a monarquia e criado os Conselhos Operários. A política burguesa do PS impediu a tomada do poder por esses Conselhos e o sectarismo do PC pavimentou o caminho para Hitler.  

O neofascismo e o terrorismo neofascista
O neo-fascismo brota em todos os lugares. Pouco tem a ver com o     fascismo do século XX. O conceito de fascismo “tem um caráter de generalização. Os fenômenos históricos nunca experimentam uma repetição completa” (7). O neo-fascismo, embora tenha semelhanças com o fascismo, difere dele em aspectos importantes. O fascismo foi um movimento espontâneo e plebeu das classes médias, posto a serviço de uma potência em ascensão, a Alemanha e, secundariamente, a Itália, contra o perigo da revolução proletária, vitoriosa na URSS. Em geral, o neo-fascismo é um movimento criado pelo imperialismo decadente, os EUA e seus satélites, para a manutenção do seu domínio mundial e dos seus mercados, ameaçados por novas potências emergentes, principalmente, a China e, em segundo plano, a Rússia. Assume variadas formas, de acordo com os seus interesses geopolíticos. Assemelha-se ao fascismo pelo terrorismo de Estado ou pelo terrorismo mercenário, pela xenofobia e racismo (no caso, os imigrantes). Como todo fascismo, é um movimento anti-proletário, embora o proletariado venha de profunda derrota. Apesar das semelhanças, as diferenças são mais importantes.  

O neo-fascismo é um método acessório do imperialismo, usado na exata medida das suas necessidades. Tanto o fascismo clássico, como o neo-fascismo atual, nunca foram a forma de governo preferida da burguesia. Esta se valeu de Hitler e Mussolini como último recurso contra o perigo socialista. Atualmente, esse perigo foi postergado com a restauração do capitalismo na URSS e na China. O neo-fascismo tem sido uma espécie de navio quebra-gelo, que abre caminho para a democracia burguesa, mesmo que esta seja, cada vez mais, uma casca sem conteúdo, mas menos traumática, que dá mais estabilidade aos negócios capitalistas. Vejam o nazi-sionismo: é semelhante ao nazismo pelo racismo e xenofobia; um se diz ariano, o outro adota o conceito de “povo eleito”, os judeus; usa de métodos fascistas contra os palestinos, confinados em gigantescos campos de concentração (Cisjordânia e Gaza). Diferente do fascismo, é um Estado teocrático, dando poderes de Estado, nas questões da família, aos fundamentalistas judeus e financiando as suas colônias em territórios palestinos. Mas, internamente, mantém um regime parlamentar, aparentemente democrático. Algo semelhante ao que acontece na Ucrânia. Os EUA e a Europa armaram as bandas neo-fascistas do Setor Direito para depor o governo pró-russo. Mas o golpe não implantou um governo fascista, mas uma democracia parlamentar de fachada, mantendo o neo-fascismo com participação limitada, a espera de novas ordens. “A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido gosta de arrancar um dente” (8). 

O terrorismo neo-fascista (Talibã, Al Qaeda, Estado Islâmico e tantos outros) são grupos mercenários recrutados e armados pelo imperialismo. A xenofobia e o terrorismo os assemelham ao fascismo. Mas, diferentemente dele, são grupos religiosos fundamentalistas.  O talibã foi criado pelos EUA para se opor à intervenção soviética na Afeganistão. Posteriormente, fugiu do controle e voltou-se contra o seu criador. Os demais têm sido usados para preparar a intervenção imperialista em países estratégicos, barrando a expansão chinesa e russa, seus gasodutos, e desestabilizando os governos caídos em desgraça, através do método conhecido como “caos construtivo”. São usados como amigos, para desestabilizar esses governos, e como inimigos, para justificar a intervenção direta. O seu recrutamento pelos serviços secretos se nutre, em grande parte, da colônia de exilados na Europa, exatamente fruto desse terrorismo. É financiado pelos petrodólares da Arábia Saudita, Catar, etc, ou diretamente pelo imperialismo. Como pano de fundo, encontra-se a cultura fundamentalista, que tem sido financiada há um século pelos mesmos patrocinadores, que criaram inicialmente a Irmandade Muçulmana, para se contrapor ao nacionalismo árabe de Nasser e à influência soviética. Dessa forma, o pan-arabismo e a maioria dos estados laicos foram destruídos. A função do neo-fascismo é pontual, não a criação de estados fascistas.

O neo-fascismo cresce também como partidos políticos na Europa. O principal deles é a Frente Nacional francesa. O anti-comunismo é substituído pela xenofobia contra os imigrantes e contra os muçulmanos, em geral. Alimenta-se, como o fascismo, da crise social, do desespero das classes médias e de setores da própria classe operária, traída pelas suas direções. É mais um partido da ordem parlamentar burguesa, com a qual não pode romper, porque não teria apoio da sua burguesia, e disputa o poder contra todos os partidos burgueses. E, também, não pode questionar a supremacia da Alemanha, porque a França é um imperialismo de terceira categoria e a sua burguesia contenta-se com o seu lugar subalterno. Fora a demagogia xenófoba e nacionalista, nada tem a oferecer ao povo francês. Vimos que os demais partidos neo-fascistas europeus também se adaptam ao regime parlamentar, embora façam demagogia contra o liberalismo político, mas apoiando as ditas reformas liberais.
 
Na América Latina, o neo-fascismo desempenha esse mesmo papel acessório. No Brasil, a candidatura Bolsonaro cresceu além da conta, inclusive, para o gosto da própria burguesia. Beneficiou-se do golpe contra o PT e a candidatura Lula. Para viabilizar a sua candidatura, Bolsonaro teve que viajar aos Estados Unidos e bater continência à sua bandeira. A sua vitória eleitoral é muito improvável. E caso venha a acontecer, não implantará uma ditadura neo-fascista, embora possa fazer estragos. Seria um governo frágil, refém da direita parlamentar. Apesar de todo o alarido pró-golpe militar, essa não é a alternativa preferencial, nem do exército, nem da burguesia. 

O neo-fascismo, nas suas mais variadas formas, é como o “rex”, que o imperialismo mantém na coleira e lhe dá maior ou menor autonomia, de acordo com as suas necessidades. Entretanto, mesmo não sendo a alternativa preferencial de governo da burguesia, não podemos subestimar a sua importância e o serviço sujo que presta ao capital.  O terrorismo neo-fascista deve ser respondido à altura, com  os seus mesmos métodos e através de uma frente única dos trabalhadores. Não com métodos legalistas, como faz o PT, mas com os métodos da luta de classes. 
                                                                         
João de Barro



Citações:
1) Reich, Materialismo Dialético e Psicanálise
2) Reich, Psicologia de Massas do Fascismo
3) Trotsky, O fascismo (coletânea).
4) Trotsky, Aonde Vai a França
5) Reich, Materialismo Dialético e Psicanálise
6) Trotsky, Revolução e Contra Revolução
7) Idem, idem
8) Idem, idem.

Reich, Trotsky e os delírios da esquerda


Não fosse a excelente oportunidade de pensar uma renovação das práticas da esquerda, ficaria fora de qualquer propósito razoável responder o texto do camarada João de Barro (JB) e as suas velhas acusações inquisitórias. Segundo ele, eu fui gentilmente “advertido” de todos os malefícios da posição reichiana e, como não obteve sucesso nessas advertências, as defesas destas posições reacionárias seguiram, “caracterizando não mais um engano, mas um oportunismo”.
Interessante notar que o oportunismo está apenas no querer conhecer, estudar e desenvolver uma teoria, não havendo nenhuma crítica à prática concreta ou mesmo à produção textual e teórica dentro e fora dos movimentos que participo. Isso talvez se explique pelo fato de que ao camarada basta suas próprias conclusões para validar todo um raciocínio, tal como me acusou a quase 10 anos atrás de ser um militante infiltrado de organizações reformistas, sem nunca demonstrar uma única prova concreta e sem nunca reconhecer que isso não passou de um erro.
Sem maiores ilusões de que o presente texto mudará as posições do camarada, este debate serve, sobretudo, para pensarmos em cima das suas críticas à teoria reichiana, bem como uma resposta à contraposição dicotômica que foi feita ao trotskismo.

Economia e psicologia
         A grande preocupação de JB é que sejamos todos infectados pelo “psicologismo” de Reich, que explicaria toda a realidade e, em particular, a luta de classes. Assim, estaríamos abdicando de posições históricas dos trabalhadores, como a explicação do fascismo e do próprio capitalismo pelas questões econômicas e pela evolução da luta de classes. Cairíamos, então, em contradições insolucionáveis como “o ser-humano é inapto para a liberdade”, ou que a “mentalidade escrava seria uma segunda natureza enraizada no próprio corpo”, além de explicar as guerras através da biologia em detrimento da economia.
         Todas estas preocupações são justas, ainda que nenhuma lhe dê autorização para afirmar a atribuição a mim de uma opção consciente e irreversível em direção ao oportunismo, justamente porque nunca afirmei nada semelhante. De fato, todas estas colocações de Reich abrem profunda ruptura com o pensamento marxista. Também não objetamos a existência de “dois Reichs” contraditórios em duas fases distintas da vida. O que objetamos é a recusa de JB em querer estudar e desenvolver o “Reich progressivo” contra o “Reich reacionário”; além de jogar tudo fora como se fossem idênticos, uma vez que o primeiro já conteria em germe o pecado original do “oportunismo” e da “loucura” do segundo, contra o quê nada pode ser feito.
         Em nenhuma política expressei a posição problemática de que “as massas seriam incapazes de liberdade”, ainda que reconheçamos as suas graves e profundas limitações psicológicas e, acima de tudo, tentemos chacoalhar e trazer a tona essas contradições. Jamais esquecemos o peso decisivo da economia e das contradições de classe em qualquer análise política, conjuntural, sindical ou mesmo “psicológica”, inclusive em todas as análises que fizemos sobre o neofascismo. Menos ainda conciliamos com as burocracias sindicais, com o reformismo, com a burguesia liberal, com o imperialismo ou com quem quer que seja no campo da classe dominante. Continuo voltado para a classe trabalhadora e a necessidade imperiosa de desenvolver a sua luta de classes, ainda que hoje seja um olhar bem diferenciado, que leve vários fatores subjetivos em consideração; entre estes, o olhar da psicologia de massas.
         Permaneço valorizando a análise das crises econômicas do capitalismo como elemento decisivo para explicar o fascismo ou qualquer outro fenômeno social de massas. Porém, a questão é desenvolver uma análise que traga as novidades salutares do debate psicanalítico e reichiano; e não velhas barreiras estanques: o fascismo é explicado primeiramente pela crise econômica e apenas secundariamente pela psicologia de massas. Isso é metafísico se considerarmos que na conjuntura política brasileira que levou Bolsonaro ao poder a psicologia de massas adquiriu importância fundamental junto com as perguntas não respondidas levantadas pelo “Reich progressista”.
         O camarada JB ainda nos diz que: “A submissão das massas ao chefe tem causas histórias para além da psicologia e não acontece em quaisquer circunstâncias. Determiná-las é uma tarefa da sociologia política e apenas secundariamente da psicologia. Não haveria fascismo sem a traição da social-democracia e do stalinismo”. De fato não haveria, assim como também não haveria fascismo e a manutenção do capitalismo em decadência se não houvessem mecanismos psicológicos cultivados na massa diariamente para serem acionados em momentos de crise, como os grilhões da família patriarcal, o moralismo, a religião, o misticismo, o irracionalismo, etc. Um alimenta o outro dialeticamente e não em apenas um sentido. A submissão das massas ao chefe tem sido a regra, não a exceção. Isso não quer dizer que não existam as explosões revolucionárias (aí está a base da chamada “situação revolucionária” que são mais raras e levam à “insubmissão aos chefes”). Por outro lado, concordo que isso não nos autoriza a afirmar, como faz o “Reich reacionário”, que as massas são incapazes de liberdade (pois aí estão as inúmeras revoluções da história), mas nos coloca uma tarefa fundamental, tal como se deu o “Reich revolucionário” em 1933, de buscar suas raízes e fazer perguntas incômodas.
Se podemos afirmar que o preponderante é a economia e as traições políticas, não o é menos importante para a manutenção do capitalismo o aproveitamento que este faz da psicologia de massas e do seu irracionalismo. E não é menos importante tentarmos desenvolver formas políticas de agitação e propaganda que combatam esta irracionalismo para tentar reverter todo o processo, levando em consideração o avanço progressivo deste campo. Este é precisamente o objetivo das propostas de se debater a psicologia de massas do fascismo no movimento Anti-fascista, que foi acusado raivosamente por JB de ser “não mais um engano, e sim um oportunismo”.
         É o mesmo que dizer: nós já sabemos tudo que precisamos! Não vamos perder tempo com “bobagens psicologistas” que levam ao oportunismo! O grande esforço do “Reich revolucionário” que deve ser saudado, resgatado, e dado coerência, foi justamente o de combater o marxismo vulgar que “separa esquematicamente o ser social, na maioria das vezes o ser econômico, do ser em geral” (Psicologia de massas do fascismo – PMF). Ao contrário disso, JB propõe voltar as costas a esta tarefa teórica e política fundamental, cuja experiência com o neofascismo atual nos coloca na ordem do dia, para ruminarmos o que todos nós já sabemos e que ninguém negou: que não haveria fascismo sem crise do capitalismo; que a Alemanha nazista foi uma resposta à URSS; que a próspera Alemanha chegou tarde à divisão do mercado mundial e a derrota na primeira guerra a jogou em profunda crise social; que o nazismo representou o desespero das classes médias diante dessa crise, uma reação contra as condições do tratado de Versalhes e o desejo de revanche da burguesia alemã; e um longo etc.
         Invocamos o “Reich revolucionário”, sobretudo em razão das questões imprescindíveis levantadas por ele, que são fortes o suficientes para se manterem por si mesmas e que exigem respostas: “A recusa da observação e da prática psicológica na política proletária deu origem até agora nas discussões a uma problemática política improdutiva. Por exemplo, os comunistas explicaram a tomada do poder pelo fascismo pela política ilusória e enganadora da social-democracia. Essa explicação acaba por levar a um beco sem saída, pois que é precisamente essa a função da social-democracia enquanto pilar objetivo do capitalismo: espalhar ilusões. Enquanto ela existir é isso que fará. Essa explicação não origina uma nova prática. (...) Não é produtivo – pois não aponta uma saída – fundamentar a política unicamente na função objetiva de um partido capitalista, função que consiste em ser ele um sustentáculo do domínio capitalista. Naturalmente é preciso tornar patente a função objetiva da social-democracia e do fascismo [função essa que todos nós temos a pretensão de cumprir]. Mas a experiência ensina que a revelação sob mil formas dessa função não persuadiu as massas, portanto que a problemática socio-econômica por si só não basta. É-se levado a perguntar o que se passa nas massas para que elas não tenham podido nem querido reconhecer essa função?” (PMF – grifos meus).
Reich diz que a resposta típica é que “os trabalhadores não podem deixar de reconhecer” ou “estão alienados”. Por mais importante que sejam todas essas respostas, deixam de ter utilidade se não avançamos para as perguntas subsequentes: por que os trabalhadores não reconhecem, não compreendem ou não vão à esquerda quando são traídos pela social-democracia e o PC? Ao contrário, tendem a ir à direita, mesmo frente a uma crise econômica brutal. Poderia se responder: é o resultado da crise de direção; com o que não há diferenças. Porém, quer-se ir além: buscar as raízes desta crise de direção e a influência da psicologia de massas do capitalismo e do fascismo nesta mesma crise de direção revolucionária. Se não for assim, caímos num círculo vicioso preocupante, que não resulta em uma nova prática.
Fazer troça do pensamento de Reich por suas contradições, chamá-lo de “louco”, colocá-lo de lado como coisa inútil ou reacionária, ignorando as questões fundamentais levantadas por ele, não ajuda em nada, mas no melhor dos casos nos faz estagnar. Ignorar a repressão sexual das massas, o irracionalismo, o misticismo, virando as costas para as tarefas que isso nos impõem no sentido de respondê-las, nos tira armas de luta, de reflexão, de influência. Não estou propondo, ao contrário do que JB insinua, abandonar as boas experiências dos 200 anos de movimento operário. Ao contrário, é preciso reelaborá-las de acordo com as novas descobertas científicas.

As massas são eternas crianças?
O camarada JB ainda diz no seu esforço de explicar as “verdadeiras causas”: “A vitória nazista, também, não teria acontecido sem a traição do Partido Socialista, que apoiou a primeira guerra, e do Partido Comunista, que frustrou o desejo de unidade do proletariado”. Está fora de questão o papel da social-democracia e do PC alemão na vitória do fascismo, mas por acaso podemos ignorar o fato de que “o desejo de unidade do proletariado” era confuso e repleto de contradições, uma vez que a própria massa é composta de diversas forças e facetas auto excludente, vanguarda e retaguarda, setor consciente e inconsciente, racional e irracional; além do que é disputada por inúmeras políticas e ideologias sociais, econômicas e religiosas?
Podemos desvincular totalmente a traição do PS e do PC das massas que lhe sustentavam, como se isso não tivesse nenhuma ligação com as responsabilidades destas mesmas massas, por menores que estas sejam em comparação à traição política? Reafirmar apenas a traição do PS e do PC seria uma espécie de tantra para ganhar a totalidade das massas nos eximindo de olhar a massa tal como ela é? Que papel desempenhou o irracionalismo das massas nesta traição? Acaso não haveria nenhuma relação entre a psicologia das massas e a traição da social-democracia e do PC que merecesse um estudo aprofundado e a tentativa de novas respostas? Com toda a segurança de um padre na infalibilidade de um santo concílio, o camarada JB poderia nos assegurar tudo isso negativamente?
O fato é que respeito as leis econômicas gerais do capitalismo, suas crises, a luta de classes, na explicação do neofascismo, mas precisamos avançar para novas interpretações e métodos de luta contra ele, sem o quê, não teremos uma nova prática que a conjuntura atual exige. E nesta nova prática, denunciar as contradições e vacilações da massa ou do “homem pequeno”, no linguajar reichiano, é fundamental, porque são elas que abrem os vácuos para que ocorram as traições políticas e tudo siga igual.
“Então” – poderá dizer o camarada JB –, “você quer igualar as vacilações da massa, alienada e brutalizada pelo capitalismo, com as traições dos governos, dos partidos reformistas e da burocracia sindical como se fossem a mesma coisa?”.
A isso posso responder da seguinte maneira: não se trata de igualar! Sabemos bem o papel cumprido pelos governos, pelos partidos reformistas, pela burocracia sindical, pela repressão policial; em suma: pelo capitalismo. O que queremos estabelecer é justamente o papel das contradições da massa nesta dialética. E, para isso, a psicologia de massas é fundamental, trazendo à tona a análise do irracionalismo, da repressão sexual, do moralismo, das vacilações, das suas contradições.
É importante tirar a massa do seu papel idealizado: “perdoa-os pai, elas não sabem o que fazem!”. Se é certo que são alienadas e ignorantes, possuem hoje muito mais fontes de informação e de experiências do que no passado. Cabe, no melhor estilo reichiano do “primeiro período”, perguntar: por que o senso comum da massa em geral, que desconfia de partidos, políticos, até mesmo dos ricos e da grande mídia em alguns casos, nos momentos de crise não evolui para a revolução, mas para o abraço dengoso de qualquer charlatão fascista (vimos isso em 1922, 1933, 1964 e 2013-2016) que sabidamente vai reforçar os partidos burgueses, os políticos e os ricos?
Possivelmente a isso se responderá: é a falta do partido revolucionário! Sem dúvida isso é verdadeiro. Mas assim como ele, falta também entender porque as massas médias tendem a evoluir à direita. Não fosse assim, o isolamento dos revolucionários autênticos não seria brutal. Entender a psicologia de massas não é fundamental inclusive pra construção do partido revolucionário? Mesmo que a responsabilidade maior seja dos governos, dos partidos reformistas, da burocracia sindical e da repressão policial – e isso está completamente fora de dúvida –, as massas possuem sim, secundariamente, responsabilidade por determinadas ações e escolhas. É preciso levar isso seriamente em consideração para encontrar meios de interferir sobre esse curso, bem como procurar formas de inibir, coibir esta prática, ao mesmo tempo em que se incentiva uma nova. Além disso, o que se quer com o debate da psicologia de massas não é afirmar que “o ser-humano é incapaz de liberdade”, mas renovar os métodos, pensar experiências em relação à política sexual – especialmente entre a juventude proletária – e politizar a vida privada e as questões cotidianas para se contrapor às práticas das igrejas evangélicas e da direita neofascista, que, ao contrário da “esquerda”, leva tudo isso muito a sério.

Dialética ou dogmatismo para superar as contradições do pensamento reichiano?
         Marx e Engels foram enfáticos ao dizer que os trabalhadores conscientes deveriam acompanhar a evolução científica do seu tempo e incorporar todas as conquistas do conhecimento e da técnica na luta pela sua emancipação. Não restam dúvidas de que Freud e Reich, cada um a seu jeito, contribuíram decisivamente para a evolução da ciência e, em particular, da psicologia. Podemos continuar ignorando a descoberta do inconsciente e as suas consequências sobre a conduta individual e o movimento de massas?
         Ignorar isso se torna mais grave ainda quando somos lembrados por JB, citando Trotsky, que “o conceito de fascismo ‘tem um caráter de generalização. Os fenômenos históricos nunca experimentam uma repetição completa’”. E aqui Trotsky acerta em cheio, pois insinua, tal como Reich, a necessidade de se manter a “conservação sempre viva do método do materialismo dialético, a apreensão por este método, de modo sempre renovado, de cada fenômeno social novo” – e o fascismo já o era na época de Reich e Trotsky; com mais razão é agora o neofascismo.
Frente aos “dois Reichs”, não seria o caso, então, de se fazer uma crítica materialista dialética da teoria reichiana, tal como Marx e Engels fizeram de Hegel, Feuerbach e tantos outros? A teoria de Reich estaria irremediavelmente perdida, como a de Berstein, Kautsky ou Moreno? Ela seria apenas um arremedo de oportunismo para desvirtuar o proletariado? Reich seria um inescrupuloso oportunista, interessado em perpetuar a ordem capitalista? Ou seria Reich um louco, delirante degenerado e um charlatão, como o acusou a justiça dos EUA? Se o camarada JB responde negativamente a todas estas perguntas, podemos concluir, então, que existem mais elementos envolvidos nesta impiedosa crítica a Reich e ao “meu oportunismo” do que a política pode nos dizer.

O trotskismo sozinho explica tudo sobre a URSS?
         Não tenho dúvida do papel imprescindível e único do trotskismo pra explicar não apenas a URSS, mas todo o século 20. O camarada lembra o que Reich afirmou sobre a degeneração da URSS: “seria absurdo atribuir a culpa a Stálin ou a qualquer outro”. Tenho acordo de que se trata de uma declaração extremamente problemática que reforça a necessidade de crítica ao “Reich reacionário”. Há, porém, no livro A Revolução Sexual toda uma análise a partir de uma perspectiva da economia sexual sobre a reação stalinista contra a revolução, que se aproxima muito das posições trotskistas. Ela demonstra como o governo soviético foi abandonando as pautas progressistas em benefício das mulheres, do aborto, de outras formas de família; bem como foi reintroduzindo as condecorações e gradações no exército, o ressurgimento dos campos de trabalho forçado contra homossexuais e toda a moralidade patriarcal e burguesa. Se é certo que há problemas na visão de Reich sobre a URSS e, mesmo sobre uma idealização da democracia burguesa norte-americana, é mais certo ainda que não podemos prescindir de questões fundamentais levantadas pela psicologia de massas reichiana para explicar o triunfo do stalinismo. Quem sabe não está no desenvolvimento de sua teoria contribuições decisivas para se lutar contra a burocratização inevitável de qualquer processo na sociedade de classes?
No livro A revolução traída Trotsky levanta questões pertinentes para a psicologia de massas que, por mais esclarecedoras que sejam objetivamente para demonstrar a ascensão do stalinismo, precisam de complemento subjetivo. Por exemplo, quando explica parte da degeneração do Partido Bolchevique e a ascensão de uma camada de burocratas: “Politicamente, tratava-se de reabsorver a vanguarda revolucionária em um material humano desprovido de experiência e de personalidade, mas em contrapartida, acostumado a obedecer os chefes”.
Por que mesmo com toda a experiência revolucionária persistiram aqueles indivíduos “acostumados a obedecer os chefes”? Por que estes elementos atrasados e “sem personalidade” triunfaram sobre a oposição de esquerda, que era o partido revolucionário dentro da URSS? O que a experiência na luta pela libertação sexual poderia contribuir para superar a postura de estar “acostumado a obedecer os chefes”? A repressão militar do stalinismo, o isolamento da URSS e o refluxo da revolução mundial explicam quase tudo, mas não tudo.

O neofascismo e o século 21
Toda a análise política e econômica do neofascismo feita pelo camarada JB no seu texto está correta e é muito importante. Acredito que a esquerda deveria estudá-la e conhecê-la. Porém, despreza os impactos do neofascismo na psicologia de massas do povo, como os discursos do Bolsonaro e de Olavo de Carvalho, elaborados pelo marqueteiro do imperialismo, Steve Bannon, bem como das manifestações de rua da classe média brasileira, que precisam de novas respostas. Seriam papéis contraditórios analisar a economia e a política atual, e confrontá-la com a psicologia de massas?
Parece que para o camarada JB, sim! Vejamos uma análise importante que denota a autossuficiência: “A restauração do capitalismo na ex-URSS e na China, pelas mãos da própria burocracia, representou profunda derrota do proletariado internacional, equivalente à derrota sofrida com a vitória do fascismo. A sua organização foi virtualmente destruída. Seus partidos transformaram-se em agencias do capital e os sindicatos apelegaram-se. Disso se conclui apenas que é preciso recomeçar”. Sem dúvida a restauração do capitalismo representou uma derrota histórica para os trabalhadores e as organizações proletárias foram destruídas ou se transformaram em agências da burguesia! A solução, porém, é simplória: se conclui apenas que é preciso recomeçar!
É preciso recomeçar sempre, mas sempre do mesmo jeito? Sem nenhuma novidade? Sem nenhuma mudança ou busca de novas interpretações e práticas das vitórias e, sobretudo, das derrotas? Ninguém está propondo, ao contrário do que o camarada JB insinua, substituir uma teoria por outra ou jogar toda uma prática proletária fora. Estamos, isso sim, tentando contribuir com o enriquecimento da teoria para aprimorar as nossas armas, mesmo que estejamos apenas na singela fase do “tomar conhecimento”, sem nenhuma proposta concreta para agora justamente porque não se pode tirar “coelhos da cartola”. Mas ignorar as contribuições da psicologia de massas, por exemplo, não é uma atitude inteligente.
         A direita neofascista e o imperialismo não abrem mão dela. Enquanto Olavo de Carvalho, Steve Bannon e outros sociopatas a soldo do imperialismo afirmam que “A crítica não tem sobre a psicologia das massas o poder sugestivo que têm as crenças afirmativas, mesmo falsas”, demonstram que não desprezam como “secundário” os estudos e a intervenção sobre a psicologia de massas. Se pode objetar que estes sociopatas só estão na crista da onda porque existe uma crise econômica mundial. Isto é certo, mas insuficiente. Independentemente da crise, devemos procurar conhecer e combater todos os métodos nefastos usados pelos nossos inimigos de classe. Ignorar sua influência sobre a psicologia das massas, bem como suas “crenças afirmativas”, renunciando a busca de novos métodos de combate neste campo, é deixar o caminho livre para o imperialismo e se auto sabotar.
         Combatamos não apenas o imperialismo e o capitalismo, mas também as couraças sadomasoquistas da classe média e de grande parte da classe trabalhadora (incluso as nossas próprias). Tenho certeza de que com isso não estamos apenas totalmente dentro do campo proletário, contribuindo para a destruição dos seus grilhões de classe, como teremos todo um mundo novo por ganhar...

Com minhas melhores saudações revolucionárias, em 2 de junho de 2019
Eduardo Cambará

Resposta ao Eduardo Cambará


Concordando com ele, mesmo parecendo “fora de qualquer propósito”, respondo o seu texto. Começo afirmando que não deliro, faço críticas políticas muito bem fundamentadas, tanto que ele, com atraso de um ano quando escrevi “O Fascismo segundo Reich e Trotsky”, não pôde continuar ignorando. Também não existem “velhas acusações inquisitórias”. Militamos juntos na LM. Qualquer crítica ou caracterização que a ele tenha feito ficaram ali sepultadas, jamais as repeti fora dos seus quadros, como manda os princípios de uma organização. Mesmo porque já as esqueci e, como estou velho, morrerão comigo. Porque escarafunchar o passado? A atual polêmica nada tem a ver com isso. Diz respeito exclusivamente à análise do fascismo, se o mesmo se explica por uma visão psicologista ou sócio-política.
         Eduardo Cambará tornou-se discípulo acrítico da teoria psicologista de Reich sobre o fascismo, responsabilizando exclusivamente as massas por ele “que seriam incapazes de liberdade”, inclusive, o estalinismo também seria culpa sua, (“seria absurdo atribuir a culpa a Stálin ou a qualquer outro”). Reich a partir de 1933 rompe progressivamente com toda a teoria marxista, que defendera até então, segundo a qual a “psicologia é uma ciência auxiliar da sociologia”. Veja EC não distorça, por “ciência auxiliar” não se entende que o marxismo despreze a psicologia. Isso está muito claro nas citações que faço de Trotsky e nas minhas próprias. Jamais ignoramos a importância da psicologia. Outra coisa radicalmente distinta é explicar o fascismo exclusivamente pela psicologia. Isso é reacionarismo, mais do que oportunismo. Você diz que foi chamado de oportunista apena por “querer, conhecer, estudar e desenvolver uma teoria”. Não é assim. Você se tornou um militante do psicologismo. Diz no seu texto a mim enviado que reconhece as causas sociais, econômicas e políticas. Claro, mas com atraso de um ano e apenas em privado. De público, jamais mencionou essas causas.
          Naquela plenária você falou uma hora exclusivamente de psicologia. Apenas após a minha crítica, e por causa dela, foi obrigado a dizer que não concorda que “as massas sejam incapazes de liberdade”. Escreveu para mim: “permaneço valorizando a análise das crises econômicas do capitalismo como elemento decisivo para explicar o fascismo”. Mas “esqueceu” disso e de outras causas político-sociais no seu informe. Você se defende dizendo: “... para ruminarmos o que todos nós já sabemos e que ninguém negou: que não haveria fascismo sem crise do capitalismo .... etc., e um longo etc.”. Você não negou mas não afirmou. Por omissão passou o pacote reichiano completo. Também não é verdade que todos saibam dessas causas e que seja supérfluo mencioná-las. Esse argumento é uma vergonha.
          O que diz em privado não conta. Se você defendesse para a vanguarda o que escreveu pra mim, quem sabe, a minha crítica seria outra. Você aparentemente mudou porque não pôde ignorar aquela minha crítica na plenária. Você ignorou o meu texto anterior porque achou que poderia continuar defendendo impunemente o seu psicologismo radical. Reconhece para mim os erros de Reich: “nunca afirmei nada semelhante”; “todas as colocações de Reich abrem profunda ruptura com o pensamento marxista”. No movimento, você nunca disse isso espontaneamente. Na prática, por omissão, avalizou o Reich reacionário, que você conhece muito bem e escamoteou, mesmo após o meu texto citado. Você diz que nunca conciliou com a burguesia. Mas como se chama esse psicologismo reichiano acrítico?
         Mas mesmo em privado continua defendendo o psicologismo. Se contrapondo ao JB que diz: “a submissão das massas ao chefe tem causas históricas e não acontecem em quaisquer circunstâncias. Determiná-las é tarefa da sociologia política e apenas secundariamente da psicologia”. A isso você responde:  “o fascismo é explicado primeiramente pela crise econômica (não é apenas crise econômica, mas sociologia política) e apenas secundariamente pela psicologia das massas. Isso é metafísico ...”. “Na conjuntura brasileira, que levou Bolsonaro ao poder, a psicologia das massas adquiriu importância fundamental”. E continua Eduardo Cambará: “assim como também não haveria fascismo se não houvessem mecanismos psicológicos cultivados na massa”; “um alimenta o outro dialeticamente e não apenas em um sentido. A submissão da massa ao chefe tem sido a regra, não a exceção”.  Claro, em certo momento, condicionadas pelas causas sociais de longo prazo, a psicologia adquire “importância fundamental”. Mas você se engana: dialética não é apenas a influência recíproca de certas causas. Existe uma hierarquia entre essas causas. É a lógica do concreto, as causas e conseqüências e sua hierarquia devem ser determinadas concretamente. Não basta uma abstração de causa e efeito.
         Uma crise econômica pode ser desencadeada pela quebra de um banco. Mas as causas profundas são a super produção. Parte das massas brasileira delegaram a sua sorte ao chefe Bolsonaro, que lhes vendeu a ilusão de salvador da pátria, anticorrupção, lhes prometeu segurança. Essa psicologia de submissão, alienada, de fuga da responsabilidade social foi decisiva. Mas isso não seria determinante se não houvessem outros fatores políticos e sociais: - a traição de 15 anos do PT, a desorganização que impede qualquer sentimento coletivo, as derrotas, o conluio do PT com as máfias burguesas, a campanha orquestrada da Globo, a operação Lava Jato, as ONGs e suas fake news financiadas pelo imperialismo, o interesse imperialista de destruir a indústria nacional e a geopolítica imperialista para separar o país dos BRICs. Apenas nessas condições, as causas psicológicas se impõem e se tornam decisivas. Você inverte a ordem das causas. Não é verdade que “JB propõe voltar as costas a esta tarefa teórica e política fundamental”. De nada adianta o seu método milagroso de denunciar a submissão das massas ao chefe sem atacar as causas de fundo.  
         Você quer “buscar as raízes da crise de direção e a influência da psicologia das massas”. “Podemos desvincular a traição do PS e PC das massas que lhes sustentavam, como se isso não tivesse nenhuma ligação com as responsabilidades dessas mesmas massas”. “Porque são elas que abrem vácuos para que ocorram as traições políticas”; “não se trata de igualar (o papel das massas e das direções) queremos é estabelecer o papel das contradições da massa nessa dialética”; “é importante tirar a massa do seu papel idealizado”. Isso é uma afronta ao marxismo, que jamais idealizou as massas. Pelo contrário, afirma que a sua ideologia é a ideologia da burguesia e que o socialismo não é inevitável. Mesmo afirmando o contrário, você, como bom discípulo de Reich, culpa prioritariamente as massas pela sua submissão. Isso é semelhante a culpar os pobres pela pobreza, as mulheres pelo estupro e os negros pelo racismo. Não, “a teoria de Reich não estaria irremediavelmente perdida”, apenas é preciso colocá-la no seu lugar e a psicologia a serviço da sociologia. Nem Reich seria inescrupuloso, ele foi vítima ao fim da vida de uma obsessão impressionista.
         O “é preciso recomeçar” de JB, fora do contexto pode ser preenchido por qualquer absurdo. Significa assimilar o melhor da experiência do proletariado, das lições das suas derrotas e considerar a sua psicologia da forma correta. As mentiras de Bannon não triunfarão onde houver consciência e organização, como Reich, noutro momento, também afirma. Fora disso não há salvação psicologista milagrosa.

JB

Considerações finais a JB


Conforme o esperado, JB reforçou todas suas velhas acusações inquisitórias, acrescentando novas. A isso, cabem apenas algumas considerações finais.
1) “Qualquer crítica ou caracterização que a ele tenha feito ficaram ali sepultadas, jamais as repeti fora dos seus quadros, como manda os princípios de uma organização”. Isto é uma cínica tergiversação. Esta “caracterização” pautou sua atuação em relação a mim por quase uma década e continua pautando. Assim, a atual polêmica tem tudo a ver com isso. Me afastei da LM para preservá-la, mas não adiantou. Você a destruiu, não eu. Isso é igual ou pior do que uma infiltração. Talvez por isso “não queira escarafunchar o passado”, pois elas podem explicar parte da sua atuação na reunião da Antifa e nas suas respostas do texto anterior.
2) “Com atraso de um ano e apenas no privado” eu teria respondido suas críticas. Eu não o fiz apenas no privado. Chegou a quem tinha de chegar e, sobretudo, a quem está interessado; ao contrário da sua desculpa de se esconder atrás dos “princípios de uma organização” para não assumir publicamente a responsabilidade pelos seus erros.
Você acha que é uma espécie de Papa? Ou algum tipo de chefe inconteste da internacional comunista, a quem todo mundo deve satisfações? Respondi, como disse no texto anterior, não porque ache que lhe devo alguma satisfação, mas porque algumas questões levantadas por você são pertinentes a toda a esquerda no que diz respeito ao debate entre marxismo e psicologia de massas. No texto anterior elas já foram devidamente esclarecidas.
3) “Naquela plenária você falou uma hora exclusivamente de psicologia”: sim, o tema era “psicologia de massas do fascismo”, você queria que eu falasse de quê? Além do mais, pontuei outras causas do fascismo e, inclusive, as limitações do pensamento de Reich, como sempre fiz. Mas você, então, certamente dirá que foi por causa da sua magnífica presença ou das suas críticas que procedi dessa forma; então, voltaremos ao início, e todo o velho ramerrão inquisitório recomeçará.
4) “Você se tornou um militante do psicologismo” e “um discípulo acrítico da teoria psicologista de Reich sobre o fascismo, responsabilizando exclusivamente as massas por ele”. A isso posso responder, sem prejuízo ao debate, que JB se tornou um discípulo do método “LBI de debate”, a qual, como podemos ver, é muito profícuo para aglomerar militantes e construir organizações.
Sempre tratei a psicologia como subordinada à sociologia (pode consultar qualquer camarada atuante da CPB para tirar dúvidas). Isto não é apenas uma declaração escrita e teórica: é a minha prática militante cotidiana. Nos textos que escrevi, nas minhas declarações públicas e atuações sindicais onde disse ou demonstrei que as massas não são capazes de liberdade? Se realmente pensasse isso estaria em casa, desiludido ou, de fato, professando filosofias niilistas ou congêneres. Sempre critiquei esta visão reichiana. Sempre estive empenhado em procurar as melhores formas de incorporar a psicologia de massas e as conquistas da psicanálise ao marxismo, como ferramentas da luta de classe e, sobretudo, para a emancipação dos trabalhadores. Nunca propus ou executei o que você me acusa sobre “não denunciar suas causas de fundo” (a questão econômica). Você pateticamente tergiversa na questão da minha prática militante porque não pode responder sobre isso, fazendo tal qual a LBI, distribuindo rótulos e caracterizações para reafirmar as “suas verdades”.
Se por “militante do psicologismo” e “discípulo acrítico de Reich” você entende toda pessoa que quer “conhecer, estudar e desenvolver uma teoria”, para somá-la ao marxismo, enriquecê-lo, tal como Marx e Engels o fizeram criticando Feuerbach, Hegel e outros; então, sou tudo isso que você me rotula.
5) “A dialética não é apenas a influência recíproca de certas causas. Existe uma hierarquia entre essas causas”. A dialética também demonstra que as hierarquias não são fixas e imutáveis (caso contrário não seriam dialéticas). Você mesmo reconhece no parágrafo seguinte: “Parte das massas brasileiras delegaram sorte ao chefe Bolsonaro, que lhes vendeu ilusão de salvador da pátria...”. Assim, a psicologia de massas ganhou momentaneamente relevância sobre a economia, sem deixar de vermos a psicologia como subordinada à sociologia e à economia. E nem era a minha preocupação maior, mas sim à necessidade de pensarmos uma forma de intervir sobre essa psicologia de massas no sentido que interessa à emancipação dos trabalhadores.
6) Segundo JB, EC como “discípulo de Reich, culpa prioritariamente as massas pela sua submissão”, tal como culpa “pobres pela pobreza, as mulheres pelo estupro”, etc. Este argumento patético não pode ser levado a sério. Demonstra o nível baixo a que JB chegou.
De um trecho que escrevi, como este: “Mesmo que a responsabilidade maior seja dos governos, dos partidos reformistas, da burocracia sindical e da repressão policial – e isso está completamente fora de dúvida –, as massas possuem sim, secundariamente, responsabilidade por determinadas ações e escolhas”; JB conclui todos aqueles disparates, além de dizer se tratar de uma “afronta ao marxismo”. Se por “afronta ao marxismo” entendemos qualquer tentativa honesta de responder as suas lacunas, então só teremos, daqui por diante, novas afrontas.
7) “Fora disso não há salvação psicologista milagrosa”. Poderíamos traduzir este trecho como a demonstração de que fora do caminho milagroso de JB não há salvação. Não acho que a psicologia de massas seria uma salvação psicologista milagrosa, mas apenas um caminho a ser explorado e que pode ajudar em muito na luta pelo socialismo. É justamente a psicologia de massas que pode nos esclarecer porque as massas e a esquerda tendem à saídas messiânicas e milagrosas. A minha defesa da psicologia de massas reichiana é voltada exclusivamente para desenvolver as suas boas contribuições, por entender que elas podem, de alguma forma, como já foi dito, “ajudar na luta contra a burocratização inevitável de qualquer processo na sociedade de classes”.
*** 
Isto é suficiente para esclarecer suas “interpretações” e distorções, que terminam sempre por me atribuir “oportunismo” e outros rótulos edificantes. De resto, voltaremos sempre ao início. Enquanto não reconhecer aos envolvidos o seu erro crasso em relação a mim na LM, nem o seu próprio papel determinante na sua destruição, não temos mais nada a conversar.

EC, em 19 de junho de 2019.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Resposta do camarada Jorge à resenha

Nesta tua análise do livro sobre Toussaint L' Overture tem um universo de ideias. Proponho que nos encontremos, junto com o Paulo, para falarmos do texto que tu escreveste, mas não posso deixar de contrapor a ideia de "não levar em consideração as opiniões de brancos". Não me guio por aí. Direto ao ponto: o Hélio Negão, que não rebate o "negão", que é eleito usando o nome do Bolsonaro, não! Me interessam as opiniões e ideias que estejam a serviço da maioria explorada. Abaixo segue um poema de um negro cuja opinião/ideia me interessa. Vale o inverso para brancos que são meus irmãos. Até o nosso próximo encontro. Um grande abraço, meu irmão!


Negros

Negros que escravizam
E vendem negros na África
Não são meus irmãos
Negros senhores na América
A serviço do capital
Não são meus irmãos
Negros opressores
Em qualquer parte do mundo
Não são meus irmãos
Só os negros oprimidos
Escravizados
Em luta por liberdade
São meus irmãos
Para estes tenho um poema
Grande como o Nilo

Solano Trindade

domingo, 8 de setembro de 2019

Ao camarada Jorge: uma resenha do livro "Os Jacobinos Negros"

Caro camarada Jorge, o livro que tu me emprestou sobre a Revolução Haitiana e Toussaint L'Ouverture é brilhante e esclarecedor. Até onde eu sei, foi a única revolução de escravos vitoriosa. Não casualmente, Os Jacobinos Negros é um livro extremamente difícil de conseguir, o que me faz constatar que precisamos saudar a Boitempo por publicá-lo no Brasil. A maestria do livro é mérito de um Historiador do calibre de Cyril L.R. James (Historiador com "H" maiúsculo mesmo!), do qual nunca tinha ouvido falar, mas que daqui por diante - graças ao teu livro - procurarei tudo o que for possível encontrar dele. Inclusive aceito novas sugestões se tu tiver.

A minha leitura, em cima da tua leitura, foi muito interessante, pois acabo prestando atenção em algo que provavelmente me passaria desapercebido - e aquilo que eu considerei importante muitas vezes vocês não consideraram. E essas leituras cruzadas são fundamentais justamente para a troca de impressões, pra que todo mundo consiga entender melhor o livro.

A denúncia apaixonada da escravidão que faz C.L.R. James não é em nada exagerada. Tampouco o trecho que ele se refere a uma suposta vingança da rebelião dos escravos, que mataram inclusive crianças brancas. Segundo o que escreveu numa nota de rodapé (até onde consigo me lembrar), ele foi duramente criticado por isso, mas manteve o trecho porque demonstra claramente as contradições e o resultado nefasto da escravidão. O pensamento de James é corajoso, como toda a narrativa, a filosofia e as posições políticas deveriam ser. Sem esta qualidade fundamental elas pouco servem. É justamente por isso que sua denúncia é apaixonada, pois é autenticamente verdadeira. Mais do que isso. James foi um revolucionário; portanto ele não escreve como "gente neutra", mas como aqueles que vivem os altos e baixos da luta na vida real. Existiria um combustível literário mais perfeito para uma obra de história (que geralmente tem narrativas burocráticas e aborrecedoras)?

James sabe que pra extirpar um regime cruel e horroroso, que organizou inúmeros genocídios contra índios e africanos, não é possível a conciliação e considerações chorosas e a-históricas. Só quem sente o fardo da luta pode entender e escrever dessa maneira. Seria muito importante todo o proletariado consciente ler e reler este livro, sobretudo em função de sua conclusão, que afirma: "O sucesso não virá do isolamento da África. Os negros exigirão trabalhadores treinados e professores. O socialismo internacional precisará dos produtos de uma África livre, bem mais do que a burguesia francesa precisava da escravidão e do tráfico de escravos. O imperialismo se gaba de explorar a riqueza da África para beneficiar a civilização. Na realidade, por causa da natureza do seu sistema de produção pelo lucro, ele estrangulava a verdadeira riqueza do continente: a capacidade criativa do seu povo".

Este trecho não é apenas um tapa na cara de todo o movimento operário e "socialista" - que desconsidera a África -, mas na minha também. Lendo este trecho para alguns alunos do 3º ano da nossa escola, eles me cobraram fatos da história da África. Eu tive que reconhecer minha profunda ignorância sobre a África, mesmo tendo em minha estante livros sobre esse continente. C.L.R. James faz a gente voltar nossos olhos para a África a partir da revolução de escravos negros da América. Na minha opinião, este livro deveria ser uma obra-guia para o movimento negro. Como você sabe, eu não sou negro (e acredito que, até certo ponto, tu esteja correto em não levar em consideração opiniões de brancos), mas ainda tenho grande capacidade de empatia e percepção. Me parece que o movimento negro não dá muita atenção a este livro e está num alto nível de aburguesamento. Sei que é uma crítica dura, mas é o que vejo com meus próprios olhos, embora saiba da importância de muitas de suas conquistas políticas e culturais. Este livro, ao meu ver, daria um choque de realidade extremamente necessário ao movimento negro.

Toussaint L'Ouverture está tão distante dos "dirigentes" políticos deste movimento quanto o Sol da Terra. Que grande figura histórica é ele! Ousaria dizer que ele é um dos grandes nomes da Revolução Francesa, senão o maior. Isso porque a palavra Liberté para ele nunca foi um estandarte vazio, tal como o foi para a burguesia francesa. Toussaint está ao lado de grandes figuras como Gracus Babeuf, que perceberam para onde a grande revolução se dirigia. Por tudo isso, precisa ser resgatado na história e colocado no seu devido lugar, que é o panteão dos grandes revolucionários das causas da liberdade humana. Seu exemplo e tenacidade devem ser sempre lembrados por todos nós como um guia nos momentos difíceis.

Toussaint agiu como um grande Estadista que compreendeu o espírito que desencadeou a Revolução Francesa. Seu programa político era o mais elevado: nenhuma concessão para aqueles que queriam restaurar a escravidão. Coerente com ele, agiu entre os governos "revolucionários" franceses, os espanhóis e os mulatos, elevando a consciência e a organização dos negros haitianos contra a escravidão. Soube conceder no secundário para preservar o essencial. E ele fez tudo isso, impressionantemente, sem nenhum tipo de embasamento teórico, mas como parte do seu conhecimento empírico e das leituras que conseguiu acumular. Considerando que o marxismo surgiria apenas por volta de 1848, e Toussaint morreu em 1803, ele agiu brilhantemente, mesmo sem nenhuma teoria. Me refiro ao marxismo não como um dogma, mas como um guia para ação revolucionária (esta é a sua principal finalidade, ao contrário do que pensam os academicistas).

À luz do marxismo, porém, podemos perceber alguns erros cometidos por Toussaint, que de certo foram inevitáveis, dada a sua condição histórica. Como submergiu da escravidão em uma ilha caribenha, no final do século XVIII, quando as condições de comunicação e transporte eram as mais precárias, ele não pôde compreender o movimento histórico da Revolução Francesa na metrópole e as consequências das suas mudanças. A liderança de Toussaint correspondeu exatamente ao período de ascenso da revolução: de 1789 até 1799. Quando se inicia o período de contra-revolução (golpe de 18 brumário) que levou Napoleão ao poder, Toussaint continuou agindo em relação à França como se nada tivesse acontecido. Entendo que ele tentou ganhar tempo (e suas condições deviam ser as piores possíveis), mas não intervir conscientemente num processo revolucionário de massas cobra seu preço, como foi cobrado a ele por sua aproximação com Napoleão, na esperança de que este lhe desse ouvidos (conforme atestam as várias cartas trazidas por C.L.R. James ao longo do livro). Toussaint não compreendeu (ou, se compreendeu, não soube desenvolver uma política para combater) o caráter do governo de Napoleão. Não o interpretou como a contra-revolução triunfante (tal como Stalin representou para a Revolução Russa), mas como um "aliado republicano". Ainda que na Europa as guerras napoleônicas tenham adquirido um conteúdo progressivo por se enfrentarem com a reação feudal, nas colônias adquiriram um caráter claramente contra-revolucionário, rompendo com as decisões mais progressivas da etapa revolucionária orientada por Robespierre, que tinha decretado o fim da escravidão. 

Outro problema de Toussaint muito bem identificado por C.L.R James foi o de que o nosso "general de ébano" não abria seus planos para as massas. Esse calcanhar de Aquiles cobrou um preço alto demais. Mesmo sabendo de que a massa o seguia porque os seus poucos discursos estavam em consonância com sua prática, a longo prazo a diplomacia secreta mina esta relação e a "deseduca" para o combate. Seria necessário trabalhar para esclarecer toda a massa, elevar o seu nível e a sua compreensão, abrindo (até onde é possível) todos os planos; incluso os militares. Este é o método revolucionário por excelência. Qualquer revolução baseada na diplomacia secreta se auto sabota. A pior auto-sabotagem, no entanto, talvez tenha sido o fuzilamento de Moïse - um dos mais fiéis partidários da abolição total da escravidão negra - para demonstrar fidelidade aos franceses. A ausência deste general seria decisiva para perder o controle de determinadas regiões do Haiti durante a guerra contra as tropas de Lecrec, o cunhado de Napoleão. Talvez Toussaint tenha agido assim porque, segundo C.L.R James, ele "não confiava nos brancos, mas os negros eram tão atrasados que ele tinha que utilizar os brancos" (página 172). A escravidão inexoravelmente os condenava a este atraso.

Quando Toussaint tinha condições de expulsar o exército quase derrotado de Lecrec, resolveu fazer um acordo com ele. Este episódio lamentável, de uma ingenuidade assustadora, terminou por fazê-lo prisioneiro dos franceses. Após sua prisão, foi degredado para morrer nos calabouços de Napoleão, na França. Nestes fatos podemos encontrar alguns elementos das limitações de Toussaint, ao contrário do que aponta C.L.R. James, que atribui curiosamente o seu fracasso não à sua ignorância, mas ao seu "esclarecimento". Como isso seria possível? Na verdade a sua ignorância sobre os refluxos da Revolução Francesa e a ausência de uma teoria revolucionária talvez tenham sido as causas do seu fracasso.

Apesar disso, a Revolução Haitiana liderada por Toussaint é um marco na luta de classes, não apenas por ser a primeira e talvez única revolução de escravos vitoriosa, mas também por ser uma denúncia prática das limitações da Revolução Francesa e da Revolução Norte-Americana de 1776. Os patriarcas da independência dos EUA foram indiferentes a luta de Toussaint (senão inimigos declarados). Uma rebelião de escravos negros não era bem vista por um escravocrata como George Washington. A burguesia francesa, por outro lado, uma vez que tinha derrotado o antigo regime e consolidado o seu poder político e econômico, agora podia voltar-se para a exploração colonial novamente. Toussaint, apesar de compreender a importância da produção econômica e do trabalho, não transpôs os limites burgueses (e nem poderia, uma vez que eles estavam sendo gestados) e dava grande valor para a agricultura, ignorando a necessidade da industrialização. Mesmo durante o período do seu "governo", seus generais apossaram-se de terras, gestando uma nova "classe dominante negra".

Em contrapartida, os ideais de Toussaint, totalmente devotados à Revolução Francesa, o faziam um republicano; concepção que era infinitamente mais progressiva do que muito de seus generais. Entre estes estava Dessalines, que após a prisão e morte de Toussaint, liderou o exército revolucionário negro contra os franceses e conquistou a independência do Haiti em 1804, sendo coroado imperador (seria ele um "Napoleão negro"?). O regime político e os métodos de Dessalines eram reacionários e bárbaros. Contribuíram com o imperialismo para isolar e sufocar o Haiti.

A revolução liderada por Toussaint coloca o velho dilema de sempre: todo o debate político se resume a saber se é possível fazer mudanças sociais (sobretudo a luta pelo fim da escravidão, seja ela a negra ou a assalariada) sem recorrer aos métodos violentos de uma revolução. E, mais ainda, se no processo revolucionário (que é cruel e contraditório por natureza) é possível ser "perfeito" e evitar erros ou "atrocidades" (que na verdade, muitas vezes, é justiça de classe). Para mim - e acredito que para C.L.R. James também -, não é possível! A narrativa sobre a Revolução Haitiana é uma dura comprovação disso.

O grande equívoco de Toussaint ao fuzilar Moïse, o mais devotado de seus generais negros, não apaga a importância dos princípios da Revolução Haitiana e, tampouco, condenam a figura histórica de Toussaint. Um pequeno burguês choroso certamente o condenaria por este erro, conjuntamente com toda a sua luta e o seu programa político. A sua auto-derrota, como diz C.L.R. James, não foi uma derrota: o desafio histórico assumido por ele o impeliu a alturas que tornaram sua derrota um sacrifício que se adiciona à nossa concepção de grandeza humana (página 266).

A falta de um programa político e econômico claro, além dos problemas de comunicação e transporte do século XIX, fez do Haiti uma presa fácil do imperialismo. Livre da escravidão negra, tornou-se refém da escravidão capitalista: para romper o bloqueio econômico, o Haiti se submeteu às condições impostas pela França, concordando em pagar 150 milhões de francos pelas "perdas" decorrentes da Independência. Nascia, assim, a sua escravidão moderna: a dívida e(x)terna. Em 1915 foi a vez dos EUA, que invadiu o país e roubou toda a sua reserva de ouro. Para controlar o país, impôs os regimes militares de Papa Doc e Baby Doc, que governaram o país negro com mãos de ferro (iguais ou piores do que as da França?) de 1957 até 1986. Sua primeira "eleição livre" ocorreu apenas em 1990 e elegeu um governo de frente popular (tipo PT, com teologia da libertação e tudo o mais). Como tudo no Haiti, teve vida breve e foi deposto antes de completar 1 ano de governo por forças de direita que desencadearam uma guerra civil atroz contra os partidários do antigo governo.

As sucessivas guerras civis (tendo muitas vezes o governo dos EUA por trás) arruinaram o país e terminaram por privatizar todas as empresas públicas e criaram 18 zonas francas! Não podendo manter tropas em todo o lugar do mundo, os EUA decidiram terceirizar a ocupação do Haiti e, a partir de 2004, para tentar servir de polícia contra as facções políticas em luta, quem assume o papel de carrasco a pedido de George W. Bush não é nada mais, nada menos, do que Lula, que enviaria os "capacetes azuis" para ocupar o país irmão do Caribe como demonstração de respeito aos compromissos internacionais. É nessas zonas onde ocorrem as piores e maiores violações de direitos humanos, incluindo estupros. O Haiti, não sem a mãozinha colaboradora dos governos de "esquerda" do Brasil, permanece como uma colônia em pleno século XXI. A grande mídia comercial tenta transformar o problema do Haiti - o mais pobre de toda a América - numa vítima de uma catástrofe natural, o terremoto de 2010, para esconder o fato de que as necessidades de exploração do capitalismo imperialista terminaram por restaurar a escravidão no Haiti novamente, não a escravidão negra erradicada por Toussaint, mas a escravidão assalariada internacional.

Por poder refletir e pensar sobre tudo isso lhe agradeço a confiança pelo empréstimo do livro pelo qual, eu sei, tens um grande apreço. C.L.R. James me fez ver que o Haiti nos abre as portas da África. E que sem ela não há socialismo! Qual era o sonho de Toussaint? Navegar para a África com armas, munições e milhares dos seus melhores soldados e lá conquistar uma vasta extensão de território, colocando um fim ao tráfico de escravos e tornando milhões de negros "livres". "Se não fosse pela Revolução, esse homem extraordinário e seu bando de dotados sócios teriam passado a vida como escravos, servindo criaturas medíocres que eram seus donos, permanecendo descalços e esfarrapados assistindo a pequenos governantes inchados e medíocres funcionários da Europa passarem uns após os outros, assim como, hoje em dia, muitos africanos de talento o fazem na África" (página 243).

Pela memória de Toussaint: às armas, citoyen Jorge! Recepcionemos, conversemos e organizemos os irmãos haitianos que chegam aos milhares no Brasil e são tratados com a mais vergonhosa indiferença. Não apenas pensemos ou rezemos pelo Haiti: lutemos para honrar e passar adiante o legado de Toussaint L'Ouverture. Esta é a melhor forma de fazer "alguma coisa" pelo seu país!