domingo, 8 de setembro de 2019

Ao camarada Jorge: uma resenha do livro "Os Jacobinos Negros"

Caro camarada Jorge, o livro que tu me emprestou sobre a Revolução Haitiana e Toussaint L'Ouverture é brilhante e esclarecedor. Até onde eu sei, foi a única revolução de escravos vitoriosa. Não casualmente, Os Jacobinos Negros é um livro extremamente difícil de conseguir, o que me faz constatar que precisamos saudar a Boitempo por publicá-lo no Brasil. A maestria do livro é mérito de um Historiador do calibre de Cyril L.R. James (Historiador com "H" maiúsculo mesmo!), do qual nunca tinha ouvido falar, mas que daqui por diante - graças ao teu livro - procurarei tudo o que for possível encontrar dele. Inclusive aceito novas sugestões se tu tiver.

A minha leitura, em cima da tua leitura, foi muito interessante, pois acabo prestando atenção em algo que provavelmente me passaria desapercebido - e aquilo que eu considerei importante muitas vezes vocês não consideraram. E essas leituras cruzadas são fundamentais justamente para a troca de impressões, pra que todo mundo consiga entender melhor o livro.

A denúncia apaixonada da escravidão que faz C.L.R. James não é em nada exagerada. Tampouco o trecho que ele se refere a uma suposta vingança da rebelião dos escravos, que mataram inclusive crianças brancas. Segundo o que escreveu numa nota de rodapé (até onde consigo me lembrar), ele foi duramente criticado por isso, mas manteve o trecho porque demonstra claramente as contradições e o resultado nefasto da escravidão. O pensamento de James é corajoso, como toda a narrativa, a filosofia e as posições políticas deveriam ser. Sem esta qualidade fundamental elas pouco servem. É justamente por isso que sua denúncia é apaixonada, pois é autenticamente verdadeira. Mais do que isso. James foi um revolucionário; portanto ele não escreve como "gente neutra", mas como aqueles que vivem os altos e baixos da luta na vida real. Existiria um combustível literário mais perfeito para uma obra de história (que geralmente tem narrativas burocráticas e aborrecedoras)?

James sabe que pra extirpar um regime cruel e horroroso, que organizou inúmeros genocídios contra índios e africanos, não é possível a conciliação e considerações chorosas e a-históricas. Só quem sente o fardo da luta pode entender e escrever dessa maneira. Seria muito importante todo o proletariado consciente ler e reler este livro, sobretudo em função de sua conclusão, que afirma: "O sucesso não virá do isolamento da África. Os negros exigirão trabalhadores treinados e professores. O socialismo internacional precisará dos produtos de uma África livre, bem mais do que a burguesia francesa precisava da escravidão e do tráfico de escravos. O imperialismo se gaba de explorar a riqueza da África para beneficiar a civilização. Na realidade, por causa da natureza do seu sistema de produção pelo lucro, ele estrangulava a verdadeira riqueza do continente: a capacidade criativa do seu povo".

Este trecho não é apenas um tapa na cara de todo o movimento operário e "socialista" - que desconsidera a África -, mas na minha também. Lendo este trecho para alguns alunos do 3º ano da nossa escola, eles me cobraram fatos da história da África. Eu tive que reconhecer minha profunda ignorância sobre a África, mesmo tendo em minha estante livros sobre esse continente. C.L.R. James faz a gente voltar nossos olhos para a África a partir da revolução de escravos negros da América. Na minha opinião, este livro deveria ser uma obra-guia para o movimento negro. Como você sabe, eu não sou negro (e acredito que, até certo ponto, tu esteja correto em não levar em consideração opiniões de brancos), mas ainda tenho grande capacidade de empatia e percepção. Me parece que o movimento negro não dá muita atenção a este livro e está num alto nível de aburguesamento. Sei que é uma crítica dura, mas é o que vejo com meus próprios olhos, embora saiba da importância de muitas de suas conquistas políticas e culturais. Este livro, ao meu ver, daria um choque de realidade extremamente necessário ao movimento negro.

Toussaint L'Ouverture está tão distante dos "dirigentes" políticos deste movimento quanto o Sol da Terra. Que grande figura histórica é ele! Ousaria dizer que ele é um dos grandes nomes da Revolução Francesa, senão o maior. Isso porque a palavra Liberté para ele nunca foi um estandarte vazio, tal como o foi para a burguesia francesa. Toussaint está ao lado de grandes figuras como Gracus Babeuf, que perceberam para onde a grande revolução se dirigia. Por tudo isso, precisa ser resgatado na história e colocado no seu devido lugar, que é o panteão dos grandes revolucionários das causas da liberdade humana. Seu exemplo e tenacidade devem ser sempre lembrados por todos nós como um guia nos momentos difíceis.

Toussaint agiu como um grande Estadista que compreendeu o espírito que desencadeou a Revolução Francesa. Seu programa político era o mais elevado: nenhuma concessão para aqueles que queriam restaurar a escravidão. Coerente com ele, agiu entre os governos "revolucionários" franceses, os espanhóis e os mulatos, elevando a consciência e a organização dos negros haitianos contra a escravidão. Soube conceder no secundário para preservar o essencial. E ele fez tudo isso, impressionantemente, sem nenhum tipo de embasamento teórico, mas como parte do seu conhecimento empírico e das leituras que conseguiu acumular. Considerando que o marxismo surgiria apenas por volta de 1848, e Toussaint morreu em 1803, ele agiu brilhantemente, mesmo sem nenhuma teoria. Me refiro ao marxismo não como um dogma, mas como um guia para ação revolucionária (esta é a sua principal finalidade, ao contrário do que pensam os academicistas).

À luz do marxismo, porém, podemos perceber alguns erros cometidos por Toussaint, que de certo foram inevitáveis, dada a sua condição histórica. Como submergiu da escravidão em uma ilha caribenha, no final do século XVIII, quando as condições de comunicação e transporte eram as mais precárias, ele não pôde compreender o movimento histórico da Revolução Francesa na metrópole e as consequências das suas mudanças. A liderança de Toussaint correspondeu exatamente ao período de ascenso da revolução: de 1789 até 1799. Quando se inicia o período de contra-revolução (golpe de 18 brumário) que levou Napoleão ao poder, Toussaint continuou agindo em relação à França como se nada tivesse acontecido. Entendo que ele tentou ganhar tempo (e suas condições deviam ser as piores possíveis), mas não intervir conscientemente num processo revolucionário de massas cobra seu preço, como foi cobrado a ele por sua aproximação com Napoleão, na esperança de que este lhe desse ouvidos (conforme atestam as várias cartas trazidas por C.L.R. James ao longo do livro). Toussaint não compreendeu (ou, se compreendeu, não soube desenvolver uma política para combater) o caráter do governo de Napoleão. Não o interpretou como a contra-revolução triunfante (tal como Stalin representou para a Revolução Russa), mas como um "aliado republicano". Ainda que na Europa as guerras napoleônicas tenham adquirido um conteúdo progressivo por se enfrentarem com a reação feudal, nas colônias adquiriram um caráter claramente contra-revolucionário, rompendo com as decisões mais progressivas da etapa revolucionária orientada por Robespierre, que tinha decretado o fim da escravidão. 

Outro problema de Toussaint muito bem identificado por C.L.R James foi o de que o nosso "general de ébano" não abria seus planos para as massas. Esse calcanhar de Aquiles cobrou um preço alto demais. Mesmo sabendo de que a massa o seguia porque os seus poucos discursos estavam em consonância com sua prática, a longo prazo a diplomacia secreta mina esta relação e a "deseduca" para o combate. Seria necessário trabalhar para esclarecer toda a massa, elevar o seu nível e a sua compreensão, abrindo (até onde é possível) todos os planos; incluso os militares. Este é o método revolucionário por excelência. Qualquer revolução baseada na diplomacia secreta se auto sabota. A pior auto-sabotagem, no entanto, talvez tenha sido o fuzilamento de Moïse - um dos mais fiéis partidários da abolição total da escravidão negra - para demonstrar fidelidade aos franceses. A ausência deste general seria decisiva para perder o controle de determinadas regiões do Haiti durante a guerra contra as tropas de Lecrec, o cunhado de Napoleão. Talvez Toussaint tenha agido assim porque, segundo C.L.R James, ele "não confiava nos brancos, mas os negros eram tão atrasados que ele tinha que utilizar os brancos" (página 172). A escravidão inexoravelmente os condenava a este atraso.

Quando Toussaint tinha condições de expulsar o exército quase derrotado de Lecrec, resolveu fazer um acordo com ele. Este episódio lamentável, de uma ingenuidade assustadora, terminou por fazê-lo prisioneiro dos franceses. Após sua prisão, foi degredado para morrer nos calabouços de Napoleão, na França. Nestes fatos podemos encontrar alguns elementos das limitações de Toussaint, ao contrário do que aponta C.L.R. James, que atribui curiosamente o seu fracasso não à sua ignorância, mas ao seu "esclarecimento". Como isso seria possível? Na verdade a sua ignorância sobre os refluxos da Revolução Francesa e a ausência de uma teoria revolucionária talvez tenham sido as causas do seu fracasso.

Apesar disso, a Revolução Haitiana liderada por Toussaint é um marco na luta de classes, não apenas por ser a primeira e talvez única revolução de escravos vitoriosa, mas também por ser uma denúncia prática das limitações da Revolução Francesa e da Revolução Norte-Americana de 1776. Os patriarcas da independência dos EUA foram indiferentes a luta de Toussaint (senão inimigos declarados). Uma rebelião de escravos negros não era bem vista por um escravocrata como George Washington. A burguesia francesa, por outro lado, uma vez que tinha derrotado o antigo regime e consolidado o seu poder político e econômico, agora podia voltar-se para a exploração colonial novamente. Toussaint, apesar de compreender a importância da produção econômica e do trabalho, não transpôs os limites burgueses (e nem poderia, uma vez que eles estavam sendo gestados) e dava grande valor para a agricultura, ignorando a necessidade da industrialização. Mesmo durante o período do seu "governo", seus generais apossaram-se de terras, gestando uma nova "classe dominante negra".

Em contrapartida, os ideais de Toussaint, totalmente devotados à Revolução Francesa, o faziam um republicano; concepção que era infinitamente mais progressiva do que muito de seus generais. Entre estes estava Dessalines, que após a prisão e morte de Toussaint, liderou o exército revolucionário negro contra os franceses e conquistou a independência do Haiti em 1804, sendo coroado imperador (seria ele um "Napoleão negro"?). O regime político e os métodos de Dessalines eram reacionários e bárbaros. Contribuíram com o imperialismo para isolar e sufocar o Haiti.

A revolução liderada por Toussaint coloca o velho dilema de sempre: todo o debate político se resume a saber se é possível fazer mudanças sociais (sobretudo a luta pelo fim da escravidão, seja ela a negra ou a assalariada) sem recorrer aos métodos violentos de uma revolução. E, mais ainda, se no processo revolucionário (que é cruel e contraditório por natureza) é possível ser "perfeito" e evitar erros ou "atrocidades" (que na verdade, muitas vezes, é justiça de classe). Para mim - e acredito que para C.L.R. James também -, não é possível! A narrativa sobre a Revolução Haitiana é uma dura comprovação disso.

O grande equívoco de Toussaint ao fuzilar Moïse, o mais devotado de seus generais negros, não apaga a importância dos princípios da Revolução Haitiana e, tampouco, condenam a figura histórica de Toussaint. Um pequeno burguês choroso certamente o condenaria por este erro, conjuntamente com toda a sua luta e o seu programa político. A sua auto-derrota, como diz C.L.R. James, não foi uma derrota: o desafio histórico assumido por ele o impeliu a alturas que tornaram sua derrota um sacrifício que se adiciona à nossa concepção de grandeza humana (página 266).

A falta de um programa político e econômico claro, além dos problemas de comunicação e transporte do século XIX, fez do Haiti uma presa fácil do imperialismo. Livre da escravidão negra, tornou-se refém da escravidão capitalista: para romper o bloqueio econômico, o Haiti se submeteu às condições impostas pela França, concordando em pagar 150 milhões de francos pelas "perdas" decorrentes da Independência. Nascia, assim, a sua escravidão moderna: a dívida e(x)terna. Em 1915 foi a vez dos EUA, que invadiu o país e roubou toda a sua reserva de ouro. Para controlar o país, impôs os regimes militares de Papa Doc e Baby Doc, que governaram o país negro com mãos de ferro (iguais ou piores do que as da França?) de 1957 até 1986. Sua primeira "eleição livre" ocorreu apenas em 1990 e elegeu um governo de frente popular (tipo PT, com teologia da libertação e tudo o mais). Como tudo no Haiti, teve vida breve e foi deposto antes de completar 1 ano de governo por forças de direita que desencadearam uma guerra civil atroz contra os partidários do antigo governo.

As sucessivas guerras civis (tendo muitas vezes o governo dos EUA por trás) arruinaram o país e terminaram por privatizar todas as empresas públicas e criaram 18 zonas francas! Não podendo manter tropas em todo o lugar do mundo, os EUA decidiram terceirizar a ocupação do Haiti e, a partir de 2004, para tentar servir de polícia contra as facções políticas em luta, quem assume o papel de carrasco a pedido de George W. Bush não é nada mais, nada menos, do que Lula, que enviaria os "capacetes azuis" para ocupar o país irmão do Caribe como demonstração de respeito aos compromissos internacionais. É nessas zonas onde ocorrem as piores e maiores violações de direitos humanos, incluindo estupros. O Haiti, não sem a mãozinha colaboradora dos governos de "esquerda" do Brasil, permanece como uma colônia em pleno século XXI. A grande mídia comercial tenta transformar o problema do Haiti - o mais pobre de toda a América - numa vítima de uma catástrofe natural, o terremoto de 2010, para esconder o fato de que as necessidades de exploração do capitalismo imperialista terminaram por restaurar a escravidão no Haiti novamente, não a escravidão negra erradicada por Toussaint, mas a escravidão assalariada internacional.

Por poder refletir e pensar sobre tudo isso lhe agradeço a confiança pelo empréstimo do livro pelo qual, eu sei, tens um grande apreço. C.L.R. James me fez ver que o Haiti nos abre as portas da África. E que sem ela não há socialismo! Qual era o sonho de Toussaint? Navegar para a África com armas, munições e milhares dos seus melhores soldados e lá conquistar uma vasta extensão de território, colocando um fim ao tráfico de escravos e tornando milhões de negros "livres". "Se não fosse pela Revolução, esse homem extraordinário e seu bando de dotados sócios teriam passado a vida como escravos, servindo criaturas medíocres que eram seus donos, permanecendo descalços e esfarrapados assistindo a pequenos governantes inchados e medíocres funcionários da Europa passarem uns após os outros, assim como, hoje em dia, muitos africanos de talento o fazem na África" (página 243).

Pela memória de Toussaint: às armas, citoyen Jorge! Recepcionemos, conversemos e organizemos os irmãos haitianos que chegam aos milhares no Brasil e são tratados com a mais vergonhosa indiferença. Não apenas pensemos ou rezemos pelo Haiti: lutemos para honrar e passar adiante o legado de Toussaint L'Ouverture. Esta é a melhor forma de fazer "alguma coisa" pelo seu país!

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