quinta-feira, 29 de agosto de 2019

A essência do leninismo

A crise de direção revolucionária segue desperdiçando oportunidades, levando os trabalhadores e os estudantes a becos sem saída cada vez maiores. Apesar disso, grupos de militantes revolucionários rompem aqui e acolá com organizações burocráticas e oportunistas; não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Um grupo de militantes desgarrados se encontrou nas lutas da vida e formaram um grupo de WhatsApp para trocar impressões, debater divergências e tentar combater esta hidra que é a crise de direção. Neste grupo se encontram diversas tendências políticas, desde anarquistas, até marxistas e trotskistas ortodoxos e heterodoxos, bem como ativistas desiludidos que buscam uma palavra de incentivo e esperança. O texto abaixo foi redigido pelo companheiro Eduardo Cambará para discutir com os membros do referido grupo sobre formas de organização revolucionária, espontaneísmo e, é claro, leninismo, que é sempre muito citado, mas muito mal compreendido. Esta reflexão é um pequeno tijolinho colocado na grande construção coletiva que deve ser a luta pela superação da crise de direção.

Sobre organização revolucionária e o leninismo

A maioria da esquerda entende leninismo como sinônimo exclusivo de centralismo democrático. De fato, este conceito é parte importante do leninismo, mas não é tudo. Em 99% dos casos a “esquerda” o entende e o pratica como centralismo burocrático porque o dissocia de sua compreensão política e teórica. Através de uma prática nefasta reforça a propaganda burguesa que aponta o stalinismo como consequência inevitável do leninismo. Esta compreensão metafísica do centralismo democrático e do leninismo leva muitos ativistas a virarem as costas para a riqueza de suas contribuições, ao invés de compreendê-lo dialeticamente no sentido da sua incorporação crítica à prática militante.

Eu não vejo como uma organização revolucionária hoje pode abrir mão do leninismo sem graves prejuízos de organização dos trabalhadores e da atividade prática militante. Isso nada tem a ver com tratar Lenin como um Papa infalível. Leninismo é, antes de tudo, luta contra o espontaneísmo dos trabalhadores, contra a submissão consciente ou inconsciente do proletariado à política burguesa, a arte das palavras de ordem que vão contraponto, progressiva e irreconciliavelmente, trabalhadores contra patrões, sempre levando em consideração a realidade concreta e a correlação de forças. O leninismo é, ainda, o combate sem tréguas à duplicidade e inconsistência da teoria, propaganda e das palavras de ordem vazias levantadas pelo oportunismo e/ou sectarismo. É a concretização mais realista do programa com as massas, colocando tarefas precisas.

Neste grupo acredito que temos aqueles que pensam que o espontaneísmo é necessário por demonstrar as tendências e os verdadeiros sentimentos dos trabalhadores, nos aproximando de uma concepção anarquista; e aqueles que acharão que o centralismo por si mesmo é o principal construtor de uma organização revolucionária. Eu penso que devemos ter uma linha no meio termo entre essas duas concepções. A massa sem direção leva à explosões espontâneas, tipo espoleta sem pólvora; que acaba sendo dominada e dirigida pela burguesia (as "revoluções" do mundo árabe servem de exemplo). Por mais importantes que sejam, e por mais que tenhamos que estar atentos a todos os movimentos espontâneos dos trabalhadores, qualquer mobilização precisa de um programa e de um caminho a seguir. A massa, quer queiramos ou não, é composta por vários estratos, que tem sua culminância na divisão entre vanguarda e retaguarda. Isto é um fato sociológico. Não se pode igualar a sua vanguarda com a sua retaguarda, ainda que se tenha que levar em consideração os anseios da retaguarda. Dizer que uma massa não precisa de direção é o mesmo que dizer que ela não precisa de programa político, que todos seriam igualmente bons e salutares; que não devemos interferir na consciência atrasada (geralmente burguesa) dos trabalhadores, considerando isso como "autoritarismo".

Dirigir não significa impor e oprimir, tal como foi o stalinismo e como a maior parte da "esquerda" atualmente entende a palavra “direção”. Dirigir é debater, propor, disputar, convencer (avançar, retroceder para avançar de novo, se autocriticar), saber ouvir e saber a hora de intervir. A direção deve ser conquistada, tal como fizeram os bolcheviques em 1917; e não imposta, tal como fez o stalinismo a partir de 1925 com o refluxo da Revolução Russa. É por isso que discordo de muitos companheiros que tentam explicar a degeneração da Revolução de Outubro em stalinismo pelos “erros” e “excessos” do bolchevismo “contra os trabalhadores”, como se isso fosse culpa da “mera organização em partido” e que o stalinismo seria a continuação exata do leninismo e o seu resultado inevitável. Condenam o bolchevismo porque este não traz embutido em si mesmo uma garantia milagrosa contra a degeneração, tal como se ele tivesse proposto realizar uma tarefa fácil e a-histórica.

Na contra-mão dos companheiros que questionam a importância da direção revolucionário (partido), estão aqueles que pensam que a essência do leninismo está no centralismo democrático. De fato não existe partido revolucionário sem centralismo democrático, mas isso precisa ser melhor debatido. O centralismo democrático é quase um resultado natural de um debate franco, honesto e, se necessário, duro, entre camaradas. É a disciplina livremente contratada a partir da percepção de uma política correta. Não pode existir uma real unidade em qualquer forma de militância se isso não envolver o mínimo de compromisso entre a minoria e a maioria, mas isso jamais pode ser visto como um fim em si mesmo. Resumem tudo em um sofisma: Lenin fez uma revolução porque defendia um partido centralizado. Esta conclusão simplória esconde o desejo de controle total, que para Lenin era um meio e não um fim em si mesmo, como o é para o monolitismo stalinista. Lenin foi enfático ao dizer que o partido bolchevique correspondia às condições da Rússia do início do século 20. Isso não quer dizer que podemos prescindir do centralismo democrático, mas que ele precisa ser construído de acordo com as condições concretas, sobretudo do tamanho, organização e inserção do partido ou movimento, sendo mais o resultado e um meio de organização do que uma imposição formal e burocrática de cima para baixo.

Precisamos debater como organizar os organismos de base, tempos de duração de mandatos, como compor um comitê central e como renová-lo; até onde ele pode interferir e até onde não pode? Como encontrar um equilíbrio entre a dialética espontaneísmo X centralização? Até onde a centralização mata a evolução espontânea e até onde o espontaneísmo mata uma saída revolucionária, entregando-a de bandeja para a burguesia? Como sintetizar esta dialética? Dizer simplesmente que se trata de aplicar o centralismo democrático é uma tautologia. Vivemos hoje o mesmo problema russo do início do século 20: pequenas organizações revolucionárias espalhadas por todo o Brasil e pelo mundo, tal como uma torre de Babel. Bastaria apenas centralizá-las? Quem poderia fazer isso hoje? E o mais importante: com qual política?

Acredito que nenhuma organização revolucionária de militantes pode abrir mão da experiência leninista. Eu falo por experiência própria: existe muita força nos seus métodos, de exigência e desmascaramento, que qualquer grupo de militantes não pode abrir mão se quer de fato lutar por uma revolução. Mas a força do leninismo, mais do que o centralismo democrático em si, está na sua conexão com a realidade. Podemos dizer, seguramente, que o leninismo tem força e realizou uma revolução sobretudo porque estava escrupulosamente conectado com a realidade. Sua política revolucionária era a expressão desse realismo e combatia sem tréguas e sem piedade qualquer política deslocada da realidade ou dúbia. Isto é, ao meu ver, o que mais precisamos resgatar do leninismo. É por isso que a palavra de ordem de “Fora Bolsonaro ou Fora qualquer um levantada neste período histórico de crise de direção que vivemos não tem nenhum vestígio de ligação com o leninismo.

Análise do "Fora Bolsonaro"  a partir de citações de Lenin no livro de Trotsky "Stalin - uma análise do homem e de sua influência".

As palavras de ordem e a ação da esquerda brasileira quando não são abertamente oportunistas e degeneradas, são “infantilmente inventadas” (Esquerdismo....). Do ponto de vista da propaganda do socialismo estaria correto debatermos com os trabalhadores a necessidade de tirarmos Bolsonaro pelas nossas mãos através da luta e de uma revolução. Mas não é assim que a "esquerda" compreende esta palavra de ordem, pois a trata como uma tarefa de agitação para ser concretizada agora. 

Devemos comparar o Fora Bolsonaro” de hoje com o método empregado por Lenin durante a Revolução de 1917, mais especificamente enquanto ocorriam as jornadas de julho, quando os operários estavam armados e exigiam a saída dos “ministros capitalistas” e a própria derrubada armada do governo provisório. Nesta ocasião, Lenin disse o seguinte: "O verdadeiro governo é o Soviete de Deputados Operários... Nosso partido é uma minoria no Soviete... Isso não pode ser contornado! Cabe a nós explicar - pacientemente, persistentemente e sistematicamente - a erroneidade de suas táticas. Enquanto formos uma minoria, nossa tarefa é fazer a crítica com o objetivo de abrir os olhos das massas (...) A questão é que o proletariado não está suficientemente consciente e nem suficientemente organizado. Isso deveria ser admitido. A força material está nas mãos do proletariado, mas a burguesia está alerta e pronta".

Companheiros, Lenin disso isso em junho de 1917, quando os bolcheviques somavam em suas fileiras cerca de 200 mil membros! A esquerda hoje chama o “Fora Bolsonaro em condições completamente opostas, ignorando todos os conselhos de Lenin. Portanto, servem, na prática, como bucha de canhão do oportunismo petista, abrindo caminho para o eleitoralismo burguês. Muito provavelmente se os companheiros estivessem em julho de 1917, mantendo sua posição do "Fora este ou aquele" para agitação sem condições, colocariam a Revolução Russa a perder.

Como se pode ver, o centralismo democrático não é um remédio milagroso, depende da escrupulosidade do realismo político. Se usado como um fim em si mesmo pode servir apenas para “centralizar o oportunismo, o sectarismo ou, até mesmo, o espontaneísmo. Além disso, não basta dizer que temos que ir até a massa, até os operários, até às periferias. É necessário saber o que fazer lá. Temos que reformular todo o nosso trabalho de base. Ir para a porta de fábrica ou para as periferias gritar Fora Bolsonaro sem condições não é apenas equivocado, mas um desserviço pra revolução. É necessário reformular a propaganda, a agitação, a aproximação com todos esses setores. É fundamental desenvolver um método de "politizar" os problemas cotidianos da vida pessoal e individual de cada trabalhador (incluso e fundamentalmente as suas contradições sexuais e morais), além de aprender a explicar pacientemente, persistentemente e sistematicamente. Há todo um campo de desgaste ao governo Bolsonaro que precisa ser trabalhado para avançarmos em direção à revolução no Brasil. Um pequeno exemplo: devemos demonstrar que Bolsonaro nem sequer liberal é; há todo um campo que envolve a propaganda do socialismo que precisa ser resgatado e reconstruído.

A restauração do capitalismo representou uma vitória ideológica conjuntural da burguesia, o que possibilitou que os trabalhadores seguissem anestesiados contra a ideia de “socialismo”, tornando-os reféns da barbárie criada pelo capitalismo. A crise da sociedade capitalista é vista e sentida como um beco sem saída, que tende a reforçar os sentimentos niilistas no campo ideológico e pessoal. Quando eles olham para o socialismo não se sensibilizam com as agitações das organizações e partidos de esquerda, que tendem a lhes soar como utópicas ou como a possibilidade de uma repetição mecânica do que foram os regimes stalinistas. A esquerda precisa se reinventar permanentemente, saber desenvolver crítica e autocrítica pessoal e coletiva; cultivar a sinceridade e a honestidade nos debates internos; lutar contra os seus próprios dogmas e contra a tendência inata de transformar o “socialismo” numa nova forma de messianismo e de religião. Acredito que para a massa em geral é fundamental a defesa racional do socialismo contra o irracionalismo burguês, que só pode sustentar a barbárie capitalista recorrendo à distorções teóricas e literárias grosseiras, quase uma institucionalização da mentira, do terrorismo psicológico e da idiotice; sobre a vanguarda de “esquerda” é necessário debater profundamente qual a sua estratégia ao socialismo, desmascarando aonde nos leva tal ou qual caminho, e levantando a bandeira da revolução, sempre procurando sustentá-la com uma sólida e lúcida análise da realidade que se reavalie e se autocritique permanentemente. Para isso é fundamental o exercício da verdade, da coerência e da autocrítica.

Em síntese, arrisco concluir o seguinte: para uma organização revolucionária devemos ter, sim, centralismo democrático (total liberdade de discussão e centralidade na ação, mas isso levando em consideração o grau de acordo e concordância com a política, que, como foi dito, precisa ser escrupulosamente realista); reformular totalmente o trabalho de base, a agitação e a propaganda da “esquerda” e de uma futura organização revolucionária. Esta é uma das minhas esperanças com este embrião de célula ovo ou zigoto.

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