sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Jornalismo criminoso

A reportagem do Jornal Nacional de 23 de fevereiro sobre a "crise" da Petrobrás é revoltante: uma forma descarada e desavergonhada de manipulação e de entrega da soberania do país. Não se trata apenas de manipulação, mas de mau caratismo, canalhice no mais alto nível; isto é: um verdadeiro crime! Falam pela boca dos repórteres e da emissora a elite internacional do mercado, interessada em manter sob seu "direito inalienável" o poder de decidir os preços do combustível, condenando e combatendo qualquer possibilidade do governo intervir sobre eles.
A Rede Globo faz o jogo da entrega da soberania nacional, sem nenhuma crise de consciência: é abertamente lesa-pátria e impõe goela abaixo uma narrativa para facilitar a entrega dos recursos naturais (como o petróleo e os combustíveis, que tem reflexo direto no controle ou não da inflação). A reportagem (leia-se: propaganda doutrinária neoliberal militante) condenou duramente os poucos acertos dos governos do PT, como, por exemplo, o controle governamental dos preços dos combustíveis e, como sempre, associou ardilosamente esta ação essencial para o povo pobre à corrupção.
É este tipo de "reportagem imparcial" que cria distorções sistemáticas da realidade para manter a economia de rapina que subjuga o país há mais de 500 anos. Como não há mais espaço para a tirania do chicote contra os escravos, é necessário o chicote ideológico "invisível" e da violência simbólica. A reportagem de hoje serve para tornar invisível a ação predatória de um mercado desregulamentado, que apenas concentra ainda mais renda em poucas mãos. Este é, precisamente, o objetivo de desmontar a política da Petrobrás de controle de preços.
Não há nada de imparcial nesse jornalismo. É a serviço da elite financeira do mercado que a Rede Globo trabalha descaradamente para iludir o povo sobre "não intervir" na Petrobrás. Ao justificar o fim do controle dos preços, alegando a mentirosa "necessidade" de se pautar pelo valor internacional dos combustíveis, abre precedente para o descontrole da inflação e o aumento dos preços que será descarregada sobre as constas da população. Tudo isso (incluso a reportagem) é parte da dominação maquiavélica do sistema.

As críticas a Bolsonaro apresentadas na reportagem foram reles despiste, uma vez que tanto Rede Globo quanto governo Bolsonaro trabalham pelo desmantelamento total da Petrobrás, pelo fim da política de controle de preços (ainda que o governo Bolsonaro faça demagogia para tentar controlar o descontentamento dos caminhoneiros) e, principalmente, defendem em uníssono, de forma desesperada e incondicional, a agenda de privatizações. Picuinhas para consumo de parte da população, mas unidade indestrutível no essencial: a política econômica! 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

A luta entre o movimento makhnovista e o bolchevismo: confrontações entre o real e o imaginário – uma polêmica inédita com o anarquismo


Nestor Makhno (ao centro) junto dos seus guerrilheiros

Grande parte dos anarquistas sustenta que o bolchevismo foi o responsável pela opressão e a destruição da revolução russa. Para ilustrar, sempre trazem como exemplo a luta entre o movimento liderado por Nestor Makhno e o governo bolchevique. Aí, segundo os anarquistas, residiria não apenas a demonstração da “real conduta” bolchevique e a suposta superioridade da teoria anarquista sobre a “comunista”, mas também os verdadeiros motivos da degeneração da revolução russa.

         A confrontação teórica deste artigo tem como base o livro do principal historiador do makhnovismo, Piotr Arshinov, História do movimento makhnovista (1918-1921). Neste embate, será evitado o método messiânico que pretende proclamar o bem todo de um lado e o mal completo no seu adversário – método presente tanto no makhnovismo, quanto no bolchevismo (embora com diferentes variações). Portanto, cada ideia será ponderada e medida pelo seu peso na realidade.

         Cabe lembrar que o anarquismo compreende que o objetivo central de uma revolução é a completa destruição estatal e de toda a autoridade no exato momento em que o processo revolucionário ocorre. Para os marxistas (e os bolcheviques, em particular), ao contrário, tal ação é impossível por não corresponder às condições materiais concretas, que carrega uma pesada herança do passado; sendo, portanto, necessário um período de desenvolvimento controlado por um Estado proletário que crie as condições materiais para a sua auto dissolução.

 

O contexto histórico da luta entre o movimento makhnovista e o bolchevismo: a guerra civil revolucionária de 1918-1921

         Os bolcheviques, para se defender das acusações makhnovistas de repressão e traição, argumentam que seus acusadores ignoram categoricamente a difícil conjuntura que viviam de enfrentamento à contrarrevolução. Cabe lançar um olhar sobre a situação. O embate entre o movimento makhnovista e o bolchevismo tem como cenário a Ucrânia de 1918-1921: país dilacerado por uma feroz guerra civil, tal como estava todo o ex-império russo após a invasão dos exércitos imperialistas, em 1918, levando o governo bolchevique a ficar quase restrito à Moscou. Nada mais do que 14 exércitos, liderados pelos reacionários Koltchak e Denikin, e financiados por Inglaterra, França, EUA e boa parte dos grandes bancos internacionais – o famigerado exército branco –, lutavam contra a revolução, procurando destituir os bolcheviques do poder. Tal luta não poderia deixar de se estender à Ucrânia, região intermediária entre a Rússia e a Europa.

         Nas palavras de Piotr Arshinov: “Desde o primeiro dia da tomada de Guliaipolé [aldeia populosa da Ucrânia] por Denikin, um grande número de camponeses foi fuzilado, as habitações saqueadas e centenas de carriolas de carros, carregados de víveres e de toda a espécie de objetos pertencentes aos habitantes da aldeia, conduzidos pelos cossacos para o Don e Kuban. Quase todas as mulheres judias de Guliaipolé foram violadas”[i]. E mais adiante: “Foi por isso que o Exército de Makhno foi seguido por milhares de famílias camponesas que abandonavam as suas aldeias, conduzindo o seu gado e levando as suas coisas. Uma fila contínua se estendia por centenas de quilômetros, uma verdadeira emigração de povos (...). Durante a retirada, essa massa enorme e pesada de fugitivos disseminou-se por toda a Ucrânia; a maior parte deles perdeu para sempre todos os seus bens e habitações, uma grande quantidade perdeu também a vida”[ii]. E ainda: “A região insurgida estava, no verão de 1919, numa situação tal que toda a obra de edificação revolucionária era absolutamente impossível”[iii].

         Este foi o triste retrato não apenas da Ucrânia ao longo da guerra civil, mas de toda a Rússia nos difíceis anos que se seguiram à revolução de 1917. Em um contexto como esse, todas as ideologias são postas à prova – e não apenas elas, mas também a conduta dos seres humanos. Devemos partir dessa realidade complexa para entender os acontecimentos históricos e não de abstrações de princípios morais, por mais importante que eles sejam. Aqui ocorre um medo crônico e infantil dos anarquistas de sujar o seu “purismo” e o seu “revolucionarismo” entrando em contato com as podridões inevitáveis que emergem das massas humanas em situações como estas. Ou seja, esperam um caminho revolucionário sem contradição alguma, perfeito e exato; em uma massa humana também perfeita e exata.

         O exército guerrilheiro, ligado a Makhno, teve papel importante no combate ao exército branco, sem dúvida, embora tenha trazido também suas profundas contradições – geralmente ignoradas pelos anarquistas, que tendem a lançar todo o mal sobre a “repressão” bolchevista. Não podemos esquecer que os seres humanos são seres contraditórios, possuindo em seu interior igualmente coisas boas e ruins. Se em tempos de calmaria já demonstram tendências perversas, imaginem em uma guerra civil! Um período terrivelmente severo de contrarrevolução traz à tona tudo o que há de ruim e de desmotivador na espécie humana. Há, por isso mesmo, que se ter muito cuidado e prudência nesta análise.

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Cabe aqui uma questão de ordem sobre o método. A obra de Piotr Arshinov e o pensamento anarquista em geral (talvez com algumas exceções) – bem como a grande mídia e a intelectualidade burguesa –, além de desconsiderarem a conjuntura de guerra civil, desconsideram também as diferenças entre o bolchevismo dirigido por Lenin e Trotski e o “bolchevismo” dirigido por Stalin. A “repressão” ao movimento makhnovista seria a prova definitiva desta identidade. Neste artigo partimos das boas conclusões da obra de Trotski sobre a degeneração da revolução soviética, sobretudo no seu livro A revolução traída, de 1937. Por mais que não se concorde com a teoria e a prática trotskista, existem inúmeros fatos e dados históricos fundamentais e incontestáveis, além de reflexões filosóficas, que precisam ser conhecidas e refletidas pelos anarquistas na sua crítica.

Não se trata aqui, obviamente, de ignorar que houveram excessos e erros da parte dos bolcheviques em meio a uma atroz guerra civil – inclusive tais erros, sobretudo vindo das camadas mais inexperientes do bolchevismo, podem ter tomado ares de crimes sádicos –, mas pintá-los exatamente com as mesmas cores que se pinta a burguesia, tal como faz Arshinov, é um exagero e um desserviço à classe trabalhadora porque, como foi dito, ignora as contradições inerentes a um processo revolucionário e porque, também, aqueles a quem criticamos não aplicaram o nosso projeto de governo e sociedade – numa palavra: a nossa ideologia. Nesse sentido, o livro de Arshinov é um verdadeiro panfleto anti-bolchevique que sofre dos mesmos erros que critica (fala que os bolcheviques caluniam o movimento makhnovista, mas os exageros de Arshinov não ficam nada atrás). Arshinov não iguala apenas bolchevismo e stalinismo, mas traça um sinal de igual entre o primeiro e a monarquia russa e a burguesia internacional, como se fossem a mesma coisa (às vezes dá a entender que é até pior). Tais afirmações seriam baseadas em algum rigor histórico, sustentando uma análise equânime, ou apenas em ódio ideológico resultante de uma guerra civil?

         Os anarquistas geralmente respondem, indignados, que a prova definitiva é o fato dos “bolcheviques fuzilarem os guerrilheiros makhnovistas” e “destruir seu movimento”; mas o exército makhnovista também fuzilou soldados e militantes bolcheviques. Como se vê, ambos movimentos cometeram erros que merecem ser analisados dentro da perspectiva que cada vertente política imprime para a coerência e o desenvolvimento da revolução. É por isso que o debate político deve sair do campo do “purismo” e analisar o mais refletida e honestamente possível o contexto histórico, evitando-se, até onde é possível, todo o tipo de emoção incompreendida e de narcisismo ideológico. Numa guerra civil, qualquer penalidade mais suave que a morte raramente tem efeito dissuasório.

O general contrarrevolucionário Anton Denikin (ao centro).

Estatismo x anti-estatismo: os makhnovistas eram desprovidos de autoridade e de aparato estatal?

“A grande questão é que os bolcheviques são estatistas e, por isso, autoritários”, dizem os anarquistas, “e isso, por si só, leva qualquer revolução à degeneração”. Em algumas passagens do livro de Arshinov podemos vê-lo atribuir automaticamente o egoísmo ao estatismo, como se houvesse relação direta de causa e efeito. Engels já respondeu de forma satisfatória os argumentos anarquistas sobre autoritarismo e anti-autoritarismo no seu famoso artigo Sobre a autoridade[iv]; por isso, não cabe acrescentar muito mais ao que já foi dito sobre este tema. O que queremos aqui é dar outras perspectivas a esta discussão, tirando-a deste ping-pong.

         O livro de Arshinov traz inúmeras declarações que atestam a existência de um exército makhnovista centralizado em um Estado-maior, de conselhos de representantes, sovietes e uma infinidade de gradações de comandantes, ordens e despachos. Assim sendo, declarar que não se representa nenhuma autoridade é completamente diferente de não ser nenhuma autoridade de fato. Não adianta camuflar a realidade afirmando se tratar da “representação pura”, “autêntica” ou “natural”, porque se trata, em última análise, de ser exatamente uma direção política dos camponeses ucranianos. O que faz uma direção política senão despachar ordens, apresentar um programa e uma estratégia? Se se reúne para decidir questões gerais em uma sociedade dividida em classes e com diferentes níveis de consciência (e eles existiam, conforme atesta Arshinov sobre os camponeses despolitizados e antissemitas), se está cumprindo um papel de autoridade, mesmo que juremos de pés juntos que nós representamos a “anarquia”.

         No capítulo 7 da obra de Arshinov, que trata de uma das vitórias dos makhnovistas sobre o exército branco, intitulando-o como “era de liberdade” que instituiu uma suposta “região livre” e, portanto, administrada pelo anarquismo (ou seja, uma região supostamente “sem autoridade”), lemos que foi permitida a livre circulação de 5 ou 6 jornais de orientação política diversa, incluindo os social-revolucionários (SRs – ex-narodiniks) de esquerda e de direita, além dos mencheviques e dos próprios bolcheviques. Contudo, Arshinov escreve que a única restrição que julgaram necessário impor aos bolcheviques, aos SRs de esquerda e a outros estatistas “foi a de não poderem formar comitês revolucionários jacobinos que tinham, como fim, exercer sobre o povo uma ditadura”[v].

         Isto é, exerceram a mesma autoridade que exerce a burguesia com suas “liberdades democráticas”: tudo o que se transforme em organização direta e prática que ameace o poder estabelecido, primeiro deve ser classificado como “errado” e “ditadura”, de acordo com a nossa ideologia; depois deve ser perseguido e dissolvido. Sejamos francos, companheiros, que os marxistas e bolcheviques foram mais honestos ao falarem em ditadura do proletariado e em um necessário período de transição que vai levar algum tempo e que deve partilhar o poder entre correntes de trabalhadores (tal como foi a Comuna de Paris). Não douram a pílula chamando isso de “fim” ou “ausência da autoridade”.

         O que fez Makhno contra os bolcheviques que ousaram organizar comitês “deste gênero” nas cidades que foram “apoderadas por suas tropas”? “Ameaçou trespassar com as suas armas todos os membros do comitê comunista no caso de estes tentarem levar a cabo mesmo a menor medida autoritária contra o povo trabalhador. Em Yekaterinoslav, também um comitê revolucionário do gênero foi dissolvido, da mesma maneira. Quanto a este ponto de vista, os makhnovistas operavam com muita energia e consequência. Ao garantirem e defenderem a completa liberdade de expressão e associação, não deviam vacilar, sem dúvida, em tomar todas as medidas possíveis contra organizações políticas que se atrevessem a impor, pela força, a sua vontade e autoridade a todos os trabalhadores. E quando, no mês de dezembro de 1919, o Comandante do 3º Regimento Insurrecional Makhnovista, Crimea Polonsky, encontrou-se comprometido numa organização autoritária do gênero, foi executado juntamente com outros membros dessa organização”[vi].

Isto é: apenas Makhno detinha o privilégio “natural” da representação “pura” e “democrática” dos trabalhadores, o que significaria, nos seus sonhos, uma suposta não-autoridade ou “democracia pura”. Este idílio quer dar a entender que chamar de autoridade o ato de “trespassar pelas armas os adversários políticos” seria uma blasfêmia. Justificam-no afirmando se tratar de supostas “ideologias autoritárias”. Mas quem define o que é “autoritário” ou não? A nossa ideologia, é claro! Tal visão absurda está expressa na afirmação de que os camponeses que fugiam da repressão da contrarrevolução juntavam-se a Makhno, “para o qual convergiam como para o seu guia natural[vii]. Os desertores que se uniam ao exército vermelho bolchevique, ao contrário, eram “iludidos”. Tal visão deturpada, narcísica e paternalista, dá a entender qual foi o método que Arshinov utilizou para escrever seu livro: se os “bandidos bolcheviques” levantam uma bandeira política, trata-se de autoritarismo; mas se Makhno levanta uma bandeira política é a expressão “natural das coisas”.

E não foram apenas os “bandidos bolcheviques” que foram “trespassados pelas armas”, mas camponeses antissemitas ou aqueles que não obedecessem às ordens não-autoritárias dos conselhos liderados por Makhno. Segundo Arshinov: “toda a requisição e confisco individuais, assim como a troca de cavalos e de veículos com os camponeses, sem autorização por escrito dos chefes, serão severamente punidos. (...) E todo o insurgido que suportasse um ato semelhante, se cobriria de vergonha e atrairia contra ele o castigo do Exército Revolucionário Popular. Os interesses da revolução e de uma luta bem compreendida para as nossas ideias exigem que a disciplina fraternal mais rigorosa seja observada em nossas fileiras. O mais profundo respeito e a maior obediência do ponto de vista militar, para com os comandantes escolhidos por nós, são absolutamente indispensáveis. A grande causa que nos é dado defender exige-o, e nós levaremos assim, a bom termo, essa causa, que seria comprometida se não tivéssemos disciplina. (...). Assinado: O comandante do Exército Revolucionário Insurrecional da Ucrânia: Pai Makhno”[viii].

Eis aí, escondido atrás de inúmeros sofismas como “disciplina fraternal mais rigorosa” e de “comandantes escolhidos por nós”, a autoridade, a hierarquia e o Estado – todos não declarados, é claro; e encobertos pela balela de “guia natural”. Se exige disciplina à hierarquia de poder, existe Estado e autoridade, por mais que juremos de pés juntos que somos a encarnação da anti-autoridade. E, nesse caso, trata-se, antes de tudo, de uma direção política, assim como o bolchevismo o foi, sem fazer tanta demagogia com as palavras. Talvez seja por isso que Arshinov afirmou que “ao terror dos bolcheviques responderam com golpes não menos rudes”[ix].

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Fernando Claudín, no seu longo trabalho A crise do movimento comunista, também analisa como os anarquistas adaptaram oportunistamente sua teoria às imperiosas exigências militares durante a guerra civil espanhola de 1936-1939. Ele escreve: “a ‘revolução libertária’ que os anarcossindicalistas implementaram na Catalunha e em Aragão, e procuravam estender a outras áreas da zona republicana, não só era absolutamente incompatível com a restauração do Estado republicano democrático-burguês – era-o também com as exigências mais elementares, militares e econômicas, da guerra. (...) Independentemente da validade ou não das concepções anarcossindicalistas sobre o sistema social que deveria substituir o capitalismo, evidente era a sua incompatibilidade com as exigências da guerra. Demonstrou-o inapelavelmente a prática, e também é significativo que, no plano da análise, até os autores mais simpáticos às realizações sociais da CNT durante a guerra civil sejam obrigados a reconhecer esse aspecto fundamental. Na medida em que os anarcossindicalistas procuraram enfrentar a guerra com eficácia, tiveram que abandonar, sucessivamente, os seus postulados essenciais. E quando não o faziam, a tentativa de implementá-los constitui um enorme obstáculo para resolver o problema mais imediato e angustiante da revolução: derrotar a contrarrevolução, personificada nos exércitos dos generais espanhóis e de seus aliados estrangeiros. Essa tarefa exigia um poder ditatorial, uma unidade máxima, o sacrifício transitório de qualquer aspiração de melhorias materiais etc. A tarefa poderia ser resolvida por um poder proletário revolucionário ou por um poder burguês – mas, nunca, sem poder”[x].

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Uma das grandes questões a ser debatida é que os anarquistas não compreendem (ou não querem compreender) a importância e o papel da direção política da classe trabalhadora, negando que Makhno e sua teoria propunham-se a ser uma direção política. Os anarquistas transformam o espontaneísmo popular em doutrina oficial e atribuem a qualquer direção, partido ou Estado (indistintamente ao programa ou a política que defendem) o papel de “burocratizadores por natureza” – uma espécie de tradução para a política moderna do pecado original bíblico. É precisamente o espontaneísmo popular, cultuado da forma mais bárbara, que eles entendem como não-autoridade; e condenam com as palavras mais duras (até com o fuzilamento, em caso de guerra civil) aqueles que não concordam com essa ideologia. Este menosprezo à direção política, entendendo que a classe se dirige espontaneamente mesmo com distintos níveis de consciência e heterogeneidade, tende a caminhar para a desorganização política e à subordinação inconsciente às direções burguesas declaradas ou não declaradas – e terminam por chamar isso, orgulhosamente, de “autodeterminação das massas”.

Certos camaradas anarquistas pensam que se “centralizar pela classe”, tal como ela é, representaria um antídoto ou talismã contra a degeneração política (ou seja, este seria o suposto erro dos bolcheviques, que não teriam respeitado os “interesses da classe”, nem suas aspirações “naturais”). Mas isso é um erro de “purismo”, já que o proletariado se subdivide em vários segmentos, como vanguarda e retaguarda, com outros tantos níveis de consciência e conduta intermediários. Isto é um fato sociológico reconhecido até mesmo por Makhno, que a entende desta forma: “o assassínio desta [a revolução russa] apenas ocorreu graças à enorme ingenuidade infantil do povo, e ainda mais por causa das baionetas dos mercenários que, na sua cegueira, se vendiam ao partido leninista”[xi]. A “ingenuidade infantil” de um trabalhador, por exemplo, pressupõe um determinado nível de consciência.

Nesse caso, temos uma nítida demonstração que o anarquismo se acha o herdeiro natural da “massa” tal como ela é e que os bolcheviques seriam manipuladores desprezíveis e inescrupulosos. Ou seja, se trataria de elementos estranhos à classe trabalhadora e, portanto, não de uma legítima disputa de ideias por distintas direções políticas (no caso o bolchevismo “marxista” de um lado e o anarquismo makhnovista de outro), mas dos “bandidos estatistas” contra os “totalmente puros e corretos” que “seriam a expressão autêntica das massas”. Como foi dito, Arshinov afirma no seu livro que os “estatistas são indivíduos egoístas”; isto é, se atribui um egoísmo congênito a quem acredita que só poderemos atingir o comunismo por intermédio de um Estado enquanto ainda não temos condições materiais e culturais para a sua supressão plena. Não seria uma compreensão de que não podemos fazer proselitismo sobre o fato de que após a revolução precisaremos de um Estado proletário, mas de uma “aspiração consciente à sujeição das massas, pelo seu fundo essencialmente dominador e explorador. (...) [considerando o bolchevismo] como o único e verdadeiro autor de todos os males e de todos os horrores com que o poder soviético submergia no país”[xii]. Isso não é apenas uma calúnia, mas uma propaganda anti-bolchevique dicotômica, muito mais raivosa do que a própria burguesia imperialista foi capaz.

Propor a supressão imediata do Estado (o que, como vimos, não foi feito por Makhno) é idealismo filosófico no mais alto grau! Os bolcheviques expressavam tanto quanto os makhnovistas os anseios das massas por vias e estratégias diferentes. Afirmar que o makhnovismo era o seu guia natural[xiii] e único é uma espécie de messianismo religioso. Sabemos que o stalinismo afirma algo semelhante, mas esta responsabilidade é dele, e não do bolchevismo, que procurou dividir o poder com outras vertentes políticas, como os mencheviques e SR’s “de esquerda”. Apenas a grande mídia burguesa e o anarquismo desonesto (ou ignorante) tenta atribuir o totalitarismo ao bolchevismo de Lenin.

Trotski escreveu: “O comitê central do nosso partido buscou uma aliança com os SRs de esquerda. Propusemos a eles que tomasse parte na construção do governo dos sovietes. Eles hesitavam e diziam que o governo deveria ter o caráter de uma coalizão entre os partidos soviéticos. Mas os mencheviques e os SRs de direita haviam rompido com o Congresso dos Sovietes porque eram defensores decididos de uma coalizão com os partidos anti-soviéticos. Assim, só nos restava deixar os SRs de esquerda a tarefa de tentar trazer seus colegas de direita para o campo da revolução; porém, enquanto eles se ocupavam dessa causa sem esperança, nós nos sentíamos obrigados a assumir toda a responsabilidade pelo governo”[xiv].

E o que fizeram os SRs? Procuraram as tropas de Makhno para combater os bolcheviques[xv], que já enfrentavam, da mesma forma que o movimento makhnovista, a contrarrevolução branca liderada por Denikin e Wrangel. Pior do que isso: mencheviques e SRs (de esquerda e de direita) participaram da conspiração de Krasnáia Gorka, em 1919 (isto é: no auge da guerra civil), que tinha por objetivo entregar Petrogrado aos exércitos brancos. Nesta conspiração participaram também os cadetes (democratas constitucionalistas, o partido da burguesia liberal russa)[xvi].

A grande mídia, somada aos intelectuais burgueses (acadêmicos ou não), a “esquerda” reformista e os próprios anarquistas adoram aludir à “ditadura totalitária de partido único dos bolcheviques”, mas ignoram ou omitem esses dados históricos fundamentais sobre a opção política seguida pelos demais partidos soviéticos. Dito de outra forma: a noção de que o sistema soviético ou a ditadura do proletariado deva ser uma ditadura de partido único é uma invenção exclusiva do stalinismo.

O purismo individual tende a se frustrar por não ver a realidade histórica se encaixar numa solução milagrosa e, frequentemente, termina por se unir (consciente ou inconscientemente) à propaganda da reação. Por tudo isso é muito importante procurarmos ser cuidadosos com o que reproduzimos ou deixamos de reproduzir no campo da ideologia.

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Outra questão importante de método: não se pode igualar a vanguarda da massa com a sua retaguarda, ainda que tenhamos que levar em consideração seus anseios (aqui muitos anarquistas pulam contra aqueles que querem “dirigir autoritariamente a massa” – isto é, gritam contra a vanguarda –, tratando-a como um todo monolítico, ignorando fenômenos sociológicos e psicológicos que apenas perpetuam o espontaneísmo). Neste caso, se condena o bolchevismo pela ousadia de ter tomado o poder e, de quebra, se transforma esta grande experiência num crime.

         Imaginar que uma revolução terá uma linha reta entre a revolta popular “pura” e os interesses da massa humana (envolta a inúmeros preconceitos, confusões, com diferentes níveis de consciência e de ilusões) e que, portanto, nenhum conflito ocorrerá no seio das massas trabalhadoras que demandem algum tipo de repressão, é o mesmo que renunciar à revolução, porque não existe um “movimento puro” que não se confronte com a sua parte atrasada que, direta ou indiretamente, acabará por reproduzir os ecos das classes dominantes. Ou seja, tomar o poder através de uma revolução vai colocar muito provavelmente o setor avançado da classe contra o seu setor atrasado. E o que acontecerá se não se reprimir “autoritariamente” tal “setor atrasado” que se levantar contra o poder revolucionário? O “setor atrasado”, reproduzindo as ideologias e ações da classe dominante, reprimirá autoritariamente o seu setor avançado e será a ponta de lança da restauração da velha ordem.

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Os makhnovistas também “denunciaram” a utilização de técnicos e especialistas militares do czarismo e da burguesia pelo exército vermelho, como se isso comprovasse uma “traição”. Sobre isso, os bolcheviques assim se justificaram: para realizar a construção de um novo exército do nada, bem como de outras medidas necessárias ao desenvolvimento econômico e social, seria necessário “uma organização ideal. E uma vez que a nossa organização estatal está muito longe de ser perfeita (o que nada tem de surpreendente, considerando que ela é jovem, nova, e as dificuldades extraordinárias do seu desenvolvimento), lançar-se na realização em vasta escala e imediatamente de qualquer coisa de completo ou mesmo de muito vasto nesse terreno, seria cair numa quimera extremamente perniciosa em termos de organização. Mas é possível fazer muito de parcial para nos aproximarmos do ideal neste aspecto”[xvii].

E continuam: “o nosso partido luta e lutará implacavelmente contra a presunção pseudo-radical, mas de fato ignorante, de que os trabalhadores estão em condições de vencer o capitalismo e o regime burguês sem aprender dos especialistas burgueses, sem os utilizar e sem passar por uma longa escola de trabalho ao lado deles. É claro que, paralelamente, o partido não fará nem a mínima concessão política a essa camada burguesa, o partido reprime e reprimirá implacavelmente todos os seus propósitos contrarrevolucionários. (...) A contradição entre o estado de espírito de homens ocupados na longa escola do trabalho ao lado dos especialistas militares e o estado de espírito das pessoas entusiasmadas com a tarefa imediata de ‘reprimir implacavelmente propósitos contrarrevolucionários’ dos especialistas militares pode levar facilmente, e leva, a fricções e conflitos”[xviii].

E, em comparação com a situação da Ucrânia, concluem, confirmando a experiência da guerra civil espanhola de 1936-1939, que “a anarquia, os seus vestígios, os seus restos e sobrevivências causaram, tanto ao nosso exército, como ao ucraniano, infinitamente mais calamidades, desagregações, derrotas, catástrofes, baixas e perdas de material de guerra do que todas as traições dos especialistas militares”[xix].

A resistência a utilização dos oficiais czaristas não era apenas de anarquistas, mas havia entre os próprios bolcheviques, sendo denunciada enfaticamente pelos mencheviques, SRs e anarquistas como uma “traição”. Durante a revolução de 1917 os bolcheviques tinham denunciado o militarismo e estimulado o soldado a revoltar-se contra a disciplina, considerando o oficial como seu inimigo. Foram, portanto, obrigados a modificar o estado de espírito que eles mesmos criaram antes de erigir o exército vermelho.

Quando a força militar russa esfacelou-se após a proclamação da paz e das negociações de Brest-Litovsk, parte dos bolcheviques julgava ser possível organizar uma “guerra revolucionária” contra a Alemanha, mesmo sem exército regular. Nesse sentido, aproximavam-se das posições anarquistas. Conforme atestou a invasão alemã, que tomou um território praticamente indefeso, não era possível qualquer ação militar de resistência. Se a Alemanha não tomou a Rússia foi porque enfrentava outros tantos problemas próprios. Portanto, estavam correndo contra o tempo e não havia como criar do nada um exército regular sem recorrer aos antigos oficiais czaristas.

Nesse sentido, Trotski argumentou que “a herança cultural de que se apossara a revolução, deveria ser salva, cultivada e desenvolvida, e, enquanto ela tivesse de defender-se, a habilidade e o conhecimento militares devia ser considerados como parte dessa herança”. Tais conclusões, apesar de contraditórias, criava a possibilidade de erigir um exército, no menor tempo possível, capaz de enfrentar não apenas a Alemanha, mas a contrarrevolução que se erguia. Isso também foi possível graças a engenharia político-militar desenvolvida por Trotski, que submeteu todos os oficiais ao controle de comissários políticos.

O próprio chefe da contrarrevolução e ex-general czarista, Denikin, em luta contra o exército vermelho e a guerrilha makhnovista, teve de reconhecer: “o governo soviético pode orgulhar-se da habilidade com que escravizou a vontade e o cérebro dos generais e oficiais russos, fazendo deles um instrumento involuntário, mas obediente...”[xx]. Ao final da guerra civil, os oficiais “czaristas” constituíam apenas um terço dos corpos de comando. Não sem problemas de método e de percurso, dois terços foram promovidos das fileiras dos próprios combatentes, constituídos, em sua maioria, de operários e camponeses.

 

A visão dos makhnovistas em relação aos mencheviques e SRs: haveria revolução de outubro sem o bolchevismo?

         Arshinov e os anarquistas makhnovistas fazem uma distorção grosseira da história da revolução. Tentam apagar o papel determinante cumprido pelos bolcheviques não apenas para a revolução de outubro de 1917, como para a posterior hegemonia dos sovietes, dos quais, o próprio makhnovismo se utilizou. Assim o historiador anarquista se expressa: “a revolução russa e o sistema autoritário dos comunistas são dois antípodas. (...) Durante a revolução russa, o poder comunista não é nem foi senão a forma mais sutil, mais flexível e, ao mesmo tempo, a mais tenaz da reação. (...) Ao alto do forte movimento dos camponeses e dos operários que deu a revolução de outubro de 1917, elevou-se o sistema autoritário dos comunistas”[xxi].

         Isso pode parecer uma simples propaganda da mídia burguesa (com alguns requintes de distorção histórica), mas não: trata-se da propaganda makhnovista sobre o papel dos bolcheviques na revolução russa. Qualquer indivíduo honesto que estudar a revolução russa com um pingo de boa vontade perceberá que até outubro de 1917 os bolcheviques não apenas eram a extrema minoria dos sovietes, como as suas principais lideranças eram constantemente perseguidas e presas (muitas delas, como Lenin, foram obrigadas a sair da Rússia). De fevereiro até a revolução de outubro de 1917, nenhuma autoridade e nenhuma “verdade” eram aceitas sem exame[xxii].

Como, então, os bolcheviques poderiam expressar “a mais tenaz reação” frente “ao forte movimento dos camponeses e operários” e ainda assim ganhar sua liderança? Acaso haveria condições para que Lenin e Trotski coagissem uma massa humana a apoiá-los sem nenhum tipo de poder estatal sólido, senão a força de suas ideias e palavras de ordem que refletiam os anseios da massa? Admitiriam, então, os anarquistas makhnovistas que o forte movimento dos camponeses e operários era, em sua essência, reacionário, por se submeter acriticamente a uma direção reacionária?

         É claro que não. São as afirmações de Arshinov que se constituem em uma flagrante propaganda reacionária. Reconstituamos os fatos históricos: os sovietes estão no centro da revolução russa, chegando ao ponto de ser parte indispensável de sua vitória. Sem a organização soviética, certamente não teria havido o triunfo revolucionário. Surgidos na revolução de 1905, os sovietes foram reprimidos durante o período de reação (1907-1916), ressurgindo em 1917. Entre fevereiro e outubro de 1917 os sovietes foram totalmente hegemonizados pelos mencheviques, que lhes imprimiram um caráter conciliador, os deixando totalmente à mercê do governo provisório. Se estabeleceu, então, um período de duplo poder entre os sovietes e o governo provisório, que estava empenhado em reestabelecer todas as instituições burguesas do país e reprimir as movimentações populares. Sovietes e instituições burguesas não poderiam conviver muito tempo nesta disputa não declarada pelo poder; alguém haveria de terminar se impondo sobre o outro. A política menchevique levava ao poder burguês e a subordinação total (isto é, a destruição) dos sovietes. Foram os bolcheviques que imprimiram um caráter de independência de classe a eles, preparando as condições para que tomassem o poder em outubro de 1917, não, casualmente, durante um dos congressos de sovietes de toda a Rússia[xxiii].

         Uma vez conquistando a maioria nos sovietes, os bolcheviques resolveram o duplo poder entre os sovietes e o governo provisório burguês em favor dos primeiros. Esta maioria conquistada pelos bolcheviques não se sustentaria um único minuto se não fosse a expressão dos operários e camponeses em luta durante o processo revolucionário. Tampouco uma pequena fração do movimento operário russo, como foram os bolcheviques até setembro de 1917, poderia ter mantido o poder – praticamente sem exército! – durante uma cruel guerra civil, caso não fosse a expressão direta dos interesses das massas trabalhadoras.

         Afirmar, portanto, que “os sovietes tinham que continuar livres” e que necessitavam se “centralizar pela classe” ou “buscar seu guia natural”, como se os bolcheviques representassem algo alheio à classe trabalhadora e ao mundo do trabalho, demonstra não apenas a clara transformação do espontaneísmo em um programa político preferível à revolução, como, através da omissão de críticas, evidencia o apoio indireto dos makhnovistas à direção menchevique ou dos SRs, consciente ou inconscientemente, já que eram estes que estavam no poder com a burguesia. Ao contrário do que quer Arshinov, não existe uma “classe abstrata” com “interesses abstratos de classe”. De 1917 até a ascensão ao poder da burocracia stalinista, os bolcheviques foram a encarnação consciente dos interesses da classe operária russa e internacional.

         Respondendo à mesma polêmica, Trotski escreveu: “Os que opõem uma abstração de sovietes à ditadura do partido deveriam compreender que somente graças à direção dos bolcheviques os sovietes saíram do pântano reformista para o papel de órgãos do Estado proletário”[xxiv]. Assim sendo, se seguíssemos a orientação política dos anarquistas makhnovistas, não haveria revolução russa e nem poder dos sovietes. Haveria apenas o triunfo da conciliação de classes através do governo provisório saído da revolução de fevereiro de 1917, que não titubearia em esmagar os sovietes na primeira ocasião.

Dito de outra forma: o espontaneísmo da rebelião popular de operários e camponeses seria canalizado politicamente para o apoio ao governo provisório burguês de Kerenski que, dentre outras maldades, previa uma possível restauração monárquica. Nisso, contaria com o apoio político, direto ou indireto, de mencheviques, SRs e anarquistas.

 

Parte do exército makhnovista

Acordos instáveis e banditismo

         Numa conjuntura extremamente complexa, que culminou em uma guerra civil violenta, os acordos militares não poderiam ser diferentes disso. De um lado, os bolcheviques exigiam a subordinação das tropas de Makhno ao exército vermelho (muitas vezes de forma dura); do outro, os makhnovistas resistiam a estas exigências (apelando, na maioria das vezes, à uma espécie de paixão “purista” que ignorava determinadas complexidades). Com comunicações exíguas e difíceis, e em um ambiente empesteado de boatos, sabotagens e “telefones sem fio”, é bastante compreensível que qualquer acordo militar entre ambas frações políticas fossem instáveis e de vida curta. Sem falar no fuzilamento de soldados de ambos os lados, o que não tardaria a deteriorar as relações definitivamente.

         Ainda que Arshinov negue, certamente pesaram os ressentimentos nacionais históricos na relação entre a Ucrânia e o império grão-russo, marcados pela opressão secular imposta pela Rússia czarista. Haveria tempo hábil de se repensar toda a relação conturbada de séculos entre estas nações em meio ao caos de uma guerra civil contra exércitos imperialistas? Apenas aqueles que pensam que existem estradas de tijolos amarelos nas encruzilhadas históricas e não se preparam para as tormentas da conjuntura, podem responder que sim. Isso, é óbvio, não deve invalidar certas tentativas, bem como uma análise a posteriori que busque as causas do desentendimento e procure entendê-las, retificá-las e, se possível, superá-las.

         Se por um lado, a crítica dos anarquistas makhnovistas contra os bolcheviques em razão da dura repressão desencadeada por eles possuem, sim, elementos de verdade que precisam ser refletidos por todos aqueles que reivindicam o legado bolchevista; por outro, há que se pesar, também, as ações anarquistas naquele contexto e o que precipitavam.

         Na guerra civil russo-ucraniana houveram inúmeros episódios de banditismo, como não poderia deixar de ser. Se criou um perfil social descrito por Arshinov como o Naletchik; isto é, aquele indivíduo que faz dos roubos à mão armada um gênero de profissão, chegando a se tornar um tipo muito espalhado por toda a Rússia. Os Naletchiks se aproveitavam da situação bélica e certamente ajudaram a espalhar boatos, ações terroristas e dificultaram a relação já deteriorada entre bolcheviques e makhnovistas. Os últimos acusam os primeiros de iniciarem uma luta contra o movimento makhnovista a pretexto de combaterem o banditismo.

         Houveram verdades e mentiras acerca das acusações do bolchevismo nesses episódios. Tudo isso dará muita dor de cabeça aos historiadores na tentativa de desenredar os nós de propaganda e contrapropaganda dos dois movimentos. Um fato, trazido pelo próprio Arshinov, corrobora com a acusação bolchevique: trata-se do arrivista, de nome Grigoriev, que chegou a liderar uma tropa que seguidamente descambava para o banditismo. Segundo Arshinov: “Grigoriev nunca foi um revolucionário. A sua conduta, tanto nas fileiras de Petliura como nas dos bolcheviques, teve, constantemente, um espírito de aventura”[xxv]. E mais adiante: “A guerra que Grigoriev tinha declarado aos sovietes inspirou-se não em motivos revolucionários, mas pessoais, no princípio, e contrarrevolucionários, em seguida. Não possuindo uma ideologia estável, agregava-se a qualquer movimento em que visse uma vantagem de momento para ele: ao de Petliura, para começar; para acabar, ao de Denikin”[xxvi].

         E mais adiante afirma que “Grigoriev tentou, por diversas vezes, durante a sua revolta, pôr-se em relações com Makhno. Mas só um dos seus telegramas dirigidos a Guliapolé chegou ao seu destino; esse telegrama era assim concebido: ‘Batko’ (pai) por que hesitas com os comunistas? Dá-lhe uma sova!”[xxvii]. Ainda que os makhnovistas não tenham aderido ao movimento de Grigoriev, mesmo que muito tentados, os boatos reforçavam a desconfiança, dado todo o ambiente de incertezas.

         Pra piorar tais desconfianças, com a desculpa de se aproximar das “massas com espírito revolucionário influenciadas por Grigoriev” (o que é um paradoxo, para dizer o mínimo), “Makhno pôs-se em relações com os seus destacamentos, pretendendo querer unificar todas as forças dos insurgidos”[xxviii] (Grigoriev era um insurgido?). “Pela iniciativa de Makhno, um congresso dos insurgentes governos de Kherson, Yekaterinoslav e da Turida devia reunir-se em 27 de julho de 1919, na aldeia de Sentovo, perto de Alexandria. A ordem do dia do congresso comportava a organização de um programa de ação para toda a Ucrânia insurrecional [um programa de ação com um aventureiro?], segundo as necessidades do momento [de quem?]. Perto de 20 mil pessoas – camponeses insurgidos, os destacamentos de Grigoriev, Makhno – reuniram-se nesse dia em Sentovo. No número dos oradores inscritos figuravam Grigoriev, Makhno e outros representantes das duas correntes. Grigoriev foi o primeiro a tomar a palavra. Convidava os camponeses e insurgidos a empregar todas as suas forças para expulsar os bolcheviques do país [que estavam em luta contra Denikin, diga-se de passagem] sem desprezar nenhuma força aliada. Dizia mesmo estar disposto a aliar-se, neste sentido, a Denikin: uma vez sacudido o jugo do bolchevismo, o povo veria então o que se deveria fazer. Esta declaração foi funesta a Grigoriev. Makhno e o seu camarada Tchubenko, tomando a palavra imediatamente, declararam que a luta contra os bolcheviques não seria verdadeiramente revolucionária se não fosse travada em nome da Revolução Social. Uma aliança com os piores inimigos do povo – os generais – só podia ser uma aventura contrarrevolucionária e criminosa. Grigoriev convidava-os todos a tomar parte nessa contrrarevolução”[xxix].

         Além deste problemático congresso com Grigoriev, Makhno recebeu também um delegado enviado pelo general Wrangel[xxx] – um dos chefes da contrarrevolução burguesa –, que lhe entregou uma mensagem pedindo: “nos ajudeis com todas as vossas forças a esmagar as tropas de Trotski. O nosso comandante superior vos ajudará na medida de suas forças; fornecendo-vos o material e as munições necessárias; e enviando-vos especialistas”[xxxi]. Apesar de Arshinov afirmar que o emissário de Wrangel foi sumariamente fuzilado – e que os bolcheviques sabiam “perfeitamente” do incidente (o que é questionável, dadas as dificuldades de comunicação e os boatos) –, ele também afirma que “toda a gente estava convencida de que Makhno trabalhava de acordo com Wrangel”[xxxii].

         Vamos entender, por partes, significados e consequências de tais ações: o que esperar de um congresso para construir um “programa de ação” com um aventureiro contrarrevolucionário? Por que não se propôs o mesmo congresso aos bolcheviques; sobretudo por intermédio dos sovietes ucranianos? Mesmo que Makhno tenha “rechaçado” a proposta contrarrevolucionária de Grigoriev e de Wrangel, que espécie de impacto tal congresso e aquele “convencimento de toda a gente” poderiam ter em meio uma guerra civil, cheia de boatos e sabotagens, numa época em que as comunicações se faziam por telegrama (quase uma espécie de “telegrama sem fio”)?

         Grande parte dos breves acordos militares selados entre os bolcheviques e o movimento makhnovista tiveram tais fatores como pano de fundo, bem como acusações, denúncias e fuzilamentos de ambos os lados. Que acordos poderiam resultar de tudo isso?

***

         Em sua propaganda anti-bolchevique, o movimento makhnovista não poupa tintas: chama-os de estatistas egoístas, promotores de um terror igual ao das classes dominantes[xxxiii]; além de possuírem uma aspiração consciente à sujeição das massas, pelo seu fundo essencialmente dominador e explorador”[xxxiv]. Ou ainda: o caráter revolucionário e proletário do bolchevismo é lenda[xxxv]. Os bolcheviques, segundo Arshinov, respondiam de forma não menos dura, dizendo que Makhno seria um aliado de Wrangel.

         Sabemos da dureza das palavras bolchevistas e, de muitos exageros cometidos, sobretudo quando se tratam de militantes inexperientes ou temerosos, como é o caso de Dybenko e Kamenev. Contudo, segundo Isaac Deutscher, reconhecido biógrafo de Trotski – justamente por realizar um trabalho imparcial, ainda que com visível apreço pelo biografado –, “a tarefa a ser realizada [durante a guerra civil de 1918-1921] era centralizar o exército vermelho e estabelecer um só comando. Trotski dissolveu os guardas vermelhos e os destacamentos camponeses. A incorporação das unidades de guerrilheiros não foi satisfatória porque contagiou os destacamentos regulares com o ‘espírito de guerrilha’. Por fim, Trotski ordenou a dissolução completa das unidades de partisans e ameaçou com punição rigorosa os comandantes e comissários que incorporassem tais unidades. Insistiu na organização de todo exército em divisões e regimentos constituídos com uniformidade. Isso levou a numerosos conflitos com as guerrilhas, especialmente com o exército guerrilheiro comandado por Makhno. (...) Fizeram-se várias tentativas inúteis de reconciliação com os guerrilheiros de Makhno. No curso de uma delas, Trotski declarou publicamente falsa a acusação de que Makhno colaborara com os guardas brancos, embora denunciasse enfaticamente o comportamento dos seus partisans, por motivos políticos e militares. Por fim, a cavalaria de Budienni dispersou e eliminou os destacamentos de Makhno”[xxxvi].

         Os programas militares eram contraditórios: um exigia um exército centralizado para lutar contra a contrarrevolução imperialista; o outro exigia a guerra de guerrilhas e destacamentos isolados com comando próprio. Os anarquistas podem denunciar e rechaçar com razão o fato da cavalaria do exército vermelho eliminar os destacamentos makhnovistas, mas não podem deixar de reconhecer que Trotski retificou-se publicamente sobre as acusações de colaboracionismo lançadas sobre Makhno, principalmente por se tratar de um cenário extremamente complexo e repleto de boatos de guerra. Nem Arshinov, nem os anarquistas atuais fazem o favor de reconhecer.

 

Sobre o caráter de classe do campesinato

         Devemos dar uma atenção especial à questão da idealização das massas camponesas por parte do makhnovismo. Em sua propaganda contra ele, os bolcheviques acusavam Makhno de “idealizar o campesinato”, tratando-o como uma das forças mais puras da revolução. O bolchevismo em geral, e Trotski em particular, compreendia o campesinato como parte constituinte da pequena-burguesia. Eles não consideravam os pequenos proprietários como uma força revolucionária independente, mas sim como uma massa amorfa, dispersa, com limitados interesses locais, incapaz de uma ação nacional coordenada[xxxvii] – apesar de que em meio à guerra civil Makhno tenha conseguido organizar parcialmente tais setores em razão da destruição completa de suas propriedades pela contrarrevolução. Tal episódio ocorrido na Ucrânia seria, muito provavelmente, passageiro, assim como o foi na Rússia.

         Sobre isso, Arshinov escreveu: “Foi Trotski, chegando então à Ucrânia, que deu o modelo para esta campanha: o movimento insurrecional não era, segundo ele, senão um movimento dos ricos proprietários agrícolas (kulaks), procurando estabelecer o seu poder na região. Todos os discursos dos makhnovistas e dos anarquistas sobre a comuna libertária dos trabalhadores não eram senão um truque de guerra, pois os makhnovistas e anarquistas aspiravam, na realidade, a estabelecer a sua própria autoridade anarquista, que seria, por fim, a dos ricos kulaks (O jornal A caminho, nº51, artigo de Trotski: ‘A Makhnovitchina’)”[xxxviii].

         Por um lado, certamente o bolchevismo cometeu exageros na sua luta pela centralização militar, qualificando a relação de Makhno com os camponeses como “truque de guerra”, além de diminuir a importância do camponês, pois nem todos eram kulaks; por outro lado, Arshinov e Makhno cometem o erro oposto: idealizam o campesinato lhe dando qualidades muito além das que possuíam naquele contexto. No entanto, a afirmação de que os makhnovistas queriam estabelecer a sua própria autoridade anarquista está correta, como já vimos. Foi exatamente o que se passou. E afirmar que eles não representavam nenhuma autoridade não apaga o fato de eles serem uma autoridade na prática, repleta de “conselhos”, “Estado-maiores”, comandantes, deliberações e ordens do dia; de “disciplinas rigorosas”, obediência à hierarquia e declarações oficiais assinadas pelo pai Makhno. Todo o livro de Arshinov está repleto de documentos e afirmações nesse sentido.

         Nele, o termo “massas populares” aparece, seguidamente, como sinônimo de “camponeses”, embora sem maiores precisões. Ainda que a todo momento acusem os bolcheviques do “crime de dirigir as massas”, de “lhe impor suas vontades”, de usar o “terror das classes dominantes”, contrapondo tudo isso a si mesmo, que seria o “movimento natural” das massas trabalhadores, “saindo das camadas mais profundas do povo”[xxxix], Arshinov conclui que “grande parte de nossos teóricos possui suas origens na intelligentsia”[xl]. Aqui a hipocrisia chega ao auge, pois o anarquismo sempre criticou o bolchevismo por defender que teóricos “de fora” da classe operária “lhe dirigissem” (ver O que fazer?, de Lenin), quando na essência, expõem neste último trecho a mesma concepção, só que de forma não assumida.

***

         Arshinov expressa, a seguir, a referida idealização das massas camponesas quando declara que “os comunistas não cessam de pintar os camponeses como uma força reacionária saturada de instintos mesquinhos e estreitos de pequenos proprietários. Esse espírito de propriedade, o espírito do lucro e a avareza não dominarão? Não voltarão os camponeses as costas à cidade, abandonando-a sem o socorro necessário? Estamos firmemente convencidos de que não”[xli].

         Frente ao “espírito do lucro” e da “avareza” que se relevou na prática e que levou muitos camponeses a “voltarem as costas à cidade”, contrariando o “firme convencimento de Arshinov” e levando o governo bolchevique a apelar para o comunismo de guerra (que criou a política de requisição forçada de grãos durante a guerra civil, sendo abandonada posteriormente na NEP), o nosso autor assim “justifica” os instintos mesquinhos dos camponeses ricos: “Para a massa dos camponeses, a pólvora e o chumbo estão ligados tão intimamente ao poder dos comunistas, que olham com desconfiança até a troca de mercadorias, posta em moda pelo governo nestes últimos tempos, e preferem negociar com os especuladores privados do que com os representantes da autoridade. A única solução possível da questão dos víveres durante a revolução só se encontrará na base dos laços revolucionários que unam a cidade e os campos trabalhadores. Os camponeses jamais quererão ceder de bom grado os produtos do seu trabalho aos funcionários do Estado”[xlii].

         Pra justificar os vergonhosos instintos de classe dominante dos camponeses, que preferiram negociar com especuladores privados ao invés dos “representantes da autoridade”, Arshinov tenta lhes atribuir uma qualidade anarquista inata que não existe; ou se ela existe, deveria reconhecê-la como abertamente reacionária, porque beneficia os especuladores privados sem nenhum contraponto. Pretende, também, inventar uma solução mágica de que somente os “laços revolucionários que unam a cidade e os campos trabalhadores” podem resolver impasses reais, quando a conjuntura histórica era marcada por Denikins e Wrangeis, exércitos brancos e sabotagens de toda a ordem. Inevitavelmente, tais laços necessitarão de uma autoridade revolucionária e da criação de condições materiais (sempre ignoradas pela teoria anarquista) que levarão, muito provavelmente, dezenas de décadas para conseguirem surgir e se firmar.

         Lamentavelmente, a realidade, cruel e dura como é, frustrará muitas “almas puras e delicadas” que ainda preferem acreditar que ela segue o caminho da nossa vontade pessoal, “casualmente”, porque ela fecha com a ideologia que queremos.

 

Mais uma vez (e como sempre), Kronstadt!

         Outro acontecimento que é sempre invocado pelos anarquistas (dentre outros) contra o bolchevismo diz respeito à repressão do governo soviético, ainda sob a direção de Trotski e Lenin, aos marinheiros de Kronstadt (uma fortaleza militar localizada no mar do norte), que se sublevaram durante a guerra civil com algumas exigências de “abertura política”. O que, de fato, se passou e como foi a relação do governo bolchevique com os marinheiros de Kronstadt?

         Com o mesmo espírito que perpassa todo o seu livro, Arshinov aborda o tema: “durante a revolução russa, o poder comunista não é nem foi senão a forma mais sutil, mais flexível, e, ao mesmo tempo, a mais tenaz reação. Desde os seus primeiros momentos, uma luta se levantou entre esse poder e a revolução. Neste combate, as massas trabalhadoras da Rússia já perderam as primeiras conquistas da sua revolução: a liberdade de organização, de palavra, de imprensa, a abolição da pena de morte etc. Essa luta passou, de uma maneira ou de outra, por toda a vasta extensão da Rússia, penetrando em cada aldeia e cada oficina: o seu apogeu foi atingido pela insurreição revolucionária da Ucrânia; estendeu-se em seguida de novo a vários governos da Rússia Central e fez-se ouvir no levante dos marinheiros de Kronstadt”[xliii].

         De forma nada humilde, Arshinov apresenta o movimento insurrecional ucraniano como o apogeu da revolução russa, além de não trazer nenhuma informação sobre o que se passou no levante de Krostadt – deixando subentendido, evidentemente, mais um “crime autoritário” do bolchevismo. Geralmente faltam dados a respeito deste episódio, que se desenrolou em 1921, num momento crítico da guerra civil. Será que, de fato, os bolcheviques utilizaram da demagogia e do proselitismo com os marinheiros de Kronstadt antes de tomar o poder em outubro de 1917 para, em seguida, reprimi-los brutalmente? Qual era o contexto e o que aconteceu?

         Como é sabido, no auge da guerra civil as liberdades democráticas básicas foram restringidas, como a eleição livre para os sovietes e as frações dentro do partido bolchevique. Em um ambiente marcado pela guerra, fome, sabotagem, conspiração e boataria, esta foi a decisão de ferro tomada pelo comitê central bolchevique numa experiência sem precedentes. Cada pessoa que, apesar de estar fora da pressão histórica em que foram tomadas e no conforto do lar, se coloque no lugar e pense como seria o modo “correto” de agir em uma situação como essa. Tais medidas, como não poderiam deixar de ser, tiveram efeitos negativos em vários setores da sociedade; em especial, entre os marinheiros de Kronstadt, que desde 1917 tiveram um caráter rebelde e de questionamento. Quem tornou, efetivamente, estas medidas de restrição das liberdades civis e de militarização do trabalho como o alicerce permanente da sociedade da União Soviética foi o stalinismo. Para Lenin (que polemizou contra Trotski sobre este tema), seriam passageiras.

         Ainda durante 1917, ocorre uma sublevação em Kronstadt que não se curva a nenhuma autoridade. Os marinheiros resistiam a qualquer tentativa de lhes impor disciplina. Em fins de maio daquele ano, os ministros mencheviques do governo provisório acusaram os marinheiros perante o soviete de Petrogrado. Trotski saiu em defesa deles, não procurando lhes desculpar os excessos, mas alegando que seriam evitados se o governo não tivesse nomeado para altos cargos homens odiados da antiga aristocracia russa. Segundo Trotski, tais “ministros” tinham se negado a lutar contra o perigo dos Cem Negros (grupo contrarrevolucionário que realizava pogroms de judeus e representava o que havia de mais atrasado na sociedade russa), preferindo declarar guerra aos marinheiros e soldados de Kronstadt[xliv].

         Ao longo do ano de 1917, a fortaleza de Kronstadt foi decisiva para a tomada do poder em outubro, chegando Trotski a alcunha-la de “a glória e o orgulho da revolução”[xlv]. Quando ocorreram as referidas restrições das liberdades civis em 1921, Trotski, que chefiava o exército vermelho, propõe medidas ainda mais drásticas, como a militarização do trabalho e a intensificação de um monolitismo estatal, o que, evidentemente, gerou descontentamento nos marinheiros e soldados da fortaleza. O levante era chefiado por anarquistas, que intensificaram o espírito de insubordinação militar em meio à guerra civil.

Issac Deutscher escreve que “as tripulações dos navios de guerra foram tomadas de uma febre política que lembrava a excitação de 1917. Nas reuniões aprovaram resoluções exigindo a liberdade para os trabalhadores, uma política nova para os camponeses e eleições livres para os sovietes. (...) Dentro em pouco o grito ‘abaixo a tirania bolchevique’ ressoava por Kronstadt. Os comissários bolcheviques no local foram rebaixados e detidos. Um comitê anarquista assumiu o comando e em meio ao entusiasmo de marinheiros, a bandeira da revolta foi hasteada. (...) Não foi formulado nenhum programa definido. (...) Os bolcheviques denunciaram os homens de Kronstadt como amotinados contrarrevolucionários chefiados por um general branco. A denúncia parece ter sido infundada. Tendo, por tanto tempo, combatido motim após motim, todos patrocinados ou estimulados pelos guardas brancos, os bolcheviques não podiam acreditar que eles não tivessem também influído naquela revolta. Algum tempo antes, a imprensa branca exilada fizera alusões sombrias ao descontentamento que estava fermentando em Kronstadt e isso aumentou as suspeitas. O politburo, a princípio inclinado a iniciar negociações, finalmente resolveu sufocar o levante. Não poderia tolerar o desafio da armada e temia que a revolta, embora não tivesse possibilidades de transformar-se numa revolução, agravasse o caos dominante. Mesmo depois da derrota dos guardas brancos, numerosos grupos rebeldes e amotinados percorriam o país, desde o litoral até o mar Cáspio, saqueando e pilhando cidades e assassinando representantes do governo”[xlvi].

Talvez a justificativa de que a repressão foi uma forma de conter o descontrole e o caos total em meio a uma guerra civil não convença quem não pode ser convencido, mas o fato é que, seguindo os critérios de Trotski apresentados ainda em 1917, para poder condenar e reprimir a insubordinação dos marinheiros de Kronstadt, os bolcheviques combateram, de armas nas mãos, não apenas as milícias ultra reacionárias dos Cem Negros, mas também os cadetes e os exércitos brancos.

***

Muito além da descrição do caos generalizado promovido pela rebelião, ao contrário do que Deutscher aponta, o levante tinha um programa mais ou menos definido, ainda que não fosse nítido. Segundo Lenin: “o traço característico dos acontecimentos de Kronstadt é exatamente a vacilação do elemento pequeno-burguês. Algo totalmente formado, claro, definido, existia bem pouco. Nebulosas palavras de ordem de ‘liberdade’, de ‘liberdade de comércio’, de ‘emancipação’, de ‘sovietes sem bolcheviques’, ou novas eleições para os sovietes, ou a libertação da ‘ditadura do partido’, etc. Tanto os mencheviques como os SRs declaram que o movimento de Kronstadt é ‘seu’. (...) Todos os elementos dos guardas brancos se mobilizam imediatamente ‘em favor de Kronstadt’ com uma rapidez, podemos dizer, radiotelegráfica. (...) Em mais de meia centena de jornais dos guarda brancos, que se editam no exterior em língua russa, desencadeiam uma furiosa campanha por sua energia ‘em favor de Kronstadt’. Os grandes bancos, todas as forças do capital financeiro, abrem contas de ajuda a Kronstadt. O inteligente líder da burguesia e dos latifundiários, o democrata-constitucionalista [cadete], explica pacientemente ao imbecil Viktor Tchernov, de modo direto (e aos mencheviques Dan e Roskov, presos em Petrogrado, por estarem comprometidos com os acontecimentos de Kronstadt, de um modo indireto), que não há porque se apressar com a Constituinte, que se pode e se deve manifestar em favor do poder soviético, mas sem bolcheviques. (...) E não me refiro propriamente ao fato de Miliukov ser mais inteligente como pessoa do que eles, mas ao fato de que um líder de um partido da grande burguesia, devido à sua situação de classe, vê com mais clareza, compreende melhor a essência de classe do assunto e suas relações políticas, do que os líderes da pequena-burguesia”[xlvii].

         Como se pode ver, a questão é muito mais complexa do que apenas “autoritarismo bolchevista”, embora, como sabemos, isso não impedirá que simplificações grotescas e pueris continuem sendo feitas e apresentadas como “argumentos políticos”.

 

Lenin era um agente da Alemanha?

         A conhecida calúnia lançada contra Lenin de que no seu regresso para a Rússia, em abril de 1917, através de um trem fretado que cruzou a Alemanha, ele teria fechado um “acordo secreto” com o governo alemão para destruir os esforços de guerra do seu país, apesar de já refutada, é absurdamente requentada por alguns anarquistas na atualidade. Segundo o governo provisório burguês, liderado pelos cadetes, essa volta “comprovaria” a ligação de Lenin como um agente secreto da Alemanha. Em 1917, tal calúnia encontrou eco nos mencheviques e SRs, que conheciam Lenin de longa data, mas não tiveram a dignidade de desmenti-la. Justiça seja feita, este argumento de desespero não foi invocado por Arshinov em seu livro.

         Uma vez que neste texto estamos tentando fazer uma reconstrução histórica, vale a pena abordar este tema também. Quem serviu de ponte entre Lenin e o governo alemão foi o deputado social-democrata suíço Grimm, que era pacifista e também tinha participado da conferência internacional de Zimmerwald, em 1915. Dois anos mais tarde, ele ajudou a preparar a viagem de Lenin desde a Suíça até a Rússia, via Alemanha. Tal “compromisso secreto” consistia em pleitear a liberdade de soldados alemães feitos prisioneiros pelo governo russo em troca de uma viagem em segurança sem nenhuma interferência no seu vagão.

Para quem não quer entender e que, na falta de argumentos, busca forjar desconfianças na teoria da conspiração (sempre mais atrativa para os cérebros impressionistas), é inútil responder que Lenin decidiu viajar através da Alemanha depois que todas as outras vias, como França e Inglaterra, lhe foram negadas. Também é inútil argumentar que muitos dos seus adversários mencheviques voltaram junto com Lenin, ou um pouco depois, pelo mesmo itinerário. Verificou-se posteriormente que cerca de quinhentos emigrados russos voltaram da Suíça via Alemanha – destes, cerca de quatrocentos eram antibolcheviques e “social-patriotas”[xlviii].

         Todos eles eram, também, agentes alemães? Além do mais, este suposto “acordo secreto” que transformaria Lenin em agente alemão não se refletiu nem por um só momento na sua política enquanto esteve no poder soviético. Ao contrário, incentivou como lhe era possível naquele contexto uma revolução na Alemanha. Nem mesmo Arshinov foi capaz de requentar uma acusação tão baixa.

 

Uma comparação com as revoluções lideradas por Zumbi dos Palmares e Toussaint L’Ouverture

         Segundo Engels, no seu artigo Sobre a autoridade, “a revolução é o ato mais autoritário que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ter combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários”[xlix]. Basta lançar um breve olhar sobre a história para constatar a veracidade da afirmação. Isso não é uma opção, mas uma triste constatação das exigências da luta contra as classes dominantes. Evidentemente que tal ato, por impor a vontade de uma classe sobre outra, gera contradições inevitáveis, abrindo precedentes para a degeneração. A realidade é contraditória (e uma guerra mais ainda). Não fomos nós que a fizemos assim; ela é o que é. Temos que nos conscientizar do fenômeno e tentar trabalhar para minimizar seus inevitáveis impactos. Tomar um remédio forte e amargo gera, inevitavelmente, efeitos colaterais. De nada adianta praguejarmos e denunciarmos tais efeitos, sem compreendê-los, procurando fazer demagogia sobre um remédio sem eles, que infelizmente não existe (até que alguém consiga provar o contrário...).

         Cabe aqui uma comparação com dois outros movimentos de emancipação da classe oprimida: a revolução liderada pelos quilombolas de Palmares ao longo do século 17, no Brasil; e a revolução haitiana de 1791-1804 que aboliu a escravidão negra.

No primeiro caso, Zumbi, quando assumiu o governo, “instaurou uma ditadura: algo assim como uma ditadura de salvação pública. (...) As circunstâncias a impunham. A capitulação de Gamga-Zumba ainda estava por produzir suas piores consequências, levando-se em conta que importantes chefes militares haviam desertado para Cucaú e que o inimigo contaria doravante com as mais completas informações sobre a organização interna da república negra. Os que perseveravam na rebelião tinham pela frente a perspectiva de uma guerra em condições mais desfavoráveis do que nunca. A pátria dos escravos estava em perigo. (...) Há informações precisas de que Zumbi sem perda de tempo subordinou toda a vida de Palmares às exigências da guerra implacável que se anunciava. Deslocou povoações inteiras para lugares mais remotos. Incorporou às milícias e submeteu a adestramento intensivo todos os homens válidos. Multiplicou os postos de vigilância e observação na orla das matas. (...) Finalmente, decretou a lei marcial: os que tentassem desertar para Cucaú, seriam passados pelas armas”[l].

         O mesmo podemos apontar sobre a revolução haitiana liderada por Toussaint L’Overture, que foi ainda mais longe que Zumbi. Além de se aliar ao exército republicano francês, sabendo jogar muito bem com as suas contradições, Toussaint, num dado momento da revolução que gerou uma contradição aguda, acabou fuzilando o general negro, seu discípulo, “Moïse – um dos mais fiéis partidários da abolição total da escravidão negra – para demonstrar fidelidade aos franceses. A ausência deste general seria decisiva para perder o controle de determinadas regiões do Haiti durante a guerra contra as tropas de Lecrec, o cunhado de Napoleão”[li].

         Ou seja, Zumbi e Toussaint instauraram ditaduras de salvação pública durante uma guerra desesperada pela libertação e passaram pelas armas aliados próximos. Todos esses erros autoritários, por acaso, comprometeram sua causa? Apenas para aqueles que vivem nas nuvens, possuindo uma “alma pura e delicada”, no mais das vezes, intolerante às frustrações, e que esperam uma revolução como uma estrada de tijolos amarelos, podem jogar tudo fora sem compreender a essência do fenômeno histórico e a conjuntura em que cada movimento se deu.

         Vejamos, agora, o que diz Lenin: “a república soviética era uma fortaleza sitiada pelo capital mundial. Só podemos conceder o direito de a utilizar como refúgio contra Koltchak [Denikin e Wrangel] e, em geral, o direito de habitar nela, àqueles que participam ativamente na guerra e nos ajudam por todos os meios”[lii]. Sabemos da dureza dessas palavras, mas que diferenças há entre este trecho escrito por Lenin e o que fez Zumbi e Toussaint? O grande erro consiste, na verdade, em que aquelas pessoas que temem lobos, continuam querendo ir à floresta[liii]. Ao invés de chorarmos os efeitos colaterais e o gosto terrivelmente amargo do remédio, deveríamos entender a dialética da contrarrevolução, nos preparando para ela, aumentando a nossa capacidade de tolerância à frustração.

 

Pai Makhno? O papel da psicologia de massas e os erros bolchevistas

Estaria o problema da degeneração do bolchevismo e da extinta União Soviética na utilização do Estado como método de transição ao socialismo – tal como preconiza a teoria anarquista – ou nas condições materiais e históricas da Rússia, somadas à ausência de preocupações relacionadas à psicologia de massas?

O debate para superar a “crise do socialismo” e compreender o que se passou na União Soviética está menos no peso da “ditadura do proletariado” realizada pelo Estado, no regime do terror e na sua posterior degeneração expressa nos regimes stalinistas (que tem causas bastante compreensíveis), do que na necessidade de desenvolver a psicologia de massas do socialismo, a educação, a autonomia individual que respeite a coletividade e a individualidade dentro daquela, que combata a apatia, a repressão moral-sexual e o espírito de rebanho. Os problemas do “socialismo” expressos no século 20 – tal como a sua degeneração em ditadura stalinista – é causa ou consequência do espírito de rebanho presente em grande parte da massa? Quem pode afirmar seguramente qual dessas duas opções é a preponderante? É justamente esta problemática que está colocada para a futura geração de revolucionários que poderá superar a crise, e não os olhos no passado que condena as vitórias do proletariado como “crimes autoritários” e exalta o espontaneísmo como “guia natural”. É saber como casar a direção política das massas com o seu espontaneísmo, sem adestrá-lo ou oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás da própria cauda; ou o que é pior: deixá-lo canalizado e dirigido pela burguesia! São precisamente estas questões que os anarquistas não respondem, lançando preconceitos anti-partido, anti-organização e anti-bolchevique.

Que efeitos se produzem na criação e na educação de incontáveis gerações humanas uma concepção hierárquica estatal, uma administração mecânica da sociedade, o medo da responsabilidade social, a intensa necessidade de um líder (ou de um “pai”) e um profundo anseio por autoridade somado a um pensamento mecanicista no domínio científico? Não se eliminam séculos de opressão social da estrutura mental dos seres humanos da noite para o dia. Os trabalhadores e as trabalhadoras conscientes, suas organizações sindicais e políticas, não podem mais ignorar os efeitos do espírito de rebanho na estrutura psicológica das massas. Idealizar a massa, esquecendo-se destas contradições intestinas, é um erro muito grave que gera diversos empecilhos para a emancipação da classe trabalhadora.

Da mesma forma, a evolução socialista de uma sociedade futura não pode ser medida apenas pelos índices econômicos – por mais importantes que o sejam –, mas também pelo grau de autonomia e confiança que cria nos indivíduos isolados e na massa em geral (nos seus mais distintos segmentos). A evolução socialista deve ser medida, sobretudo, pela capacidade educacional de criar indivíduos conscientes, independentes, críticos e autônomos. A principal vitória do socialismo – para além da industrialização, da eliminação do analfabetismo, do desenvolvimento de condições materiais básicas para o proletariado – estará na sua capacidade de formar adultos socialmente auto-suficientes do ponto de vista intelectual e emocional (mas sempre ligados entre si pelos interesses gerais da sociedade), para que estes possam educar as crianças no mesmo sentido. Sabemos que é a educação autoritária de crianças pequenas, ensinando-as a serem medrosas e submissas, que assegura aos políticos oportunistas e demagogos, aos pastores e a um führer, a obediência e a fé de milhões de trabalhadores[liv].

No livro A revolução traída, Trotsky levanta questões pertinentes para a psicologia de massas, as quais não são colocadas pelos anarquistas. Por exemplo, quando ele tenta explicar parte da degeneração do partido bolchevique e a ascensão de uma camada de burocratas: “Politicamente, tratava-se de reabsorver a vanguarda revolucionária em um material humano desprovido de experiência e de personalidade, mas em contrapartida, acostumado a obedecer os chefes”.

Porém, Trotski não consegue responder a seguinte questão justamente por lhe faltar a discussão sobre a psicologia de massas: por que mesmo com toda a experiência revolucionária persistiram aqueles indivíduos “acostumados a obedecer os chefes”? Por que estes elementos atrasados e “sem personalidade” triunfaram sobre a oposição de esquerda no partido bolchevique? O que o debate psicanalítico, junguiano e reichiano sobre a psicologia de massas poderia contribuir para superar a postura de estar “acostumado a obedecer chefes”? A repressão militar do stalinismo, o isolamento da União Soviética e o refluxo da revolução mundial explicam quase tudo, mas não tudo[lv].

Isaac Deutscher, na sua biografia de Trotski, tenta buscar respostas para tais indagações: “todo partido revolucionário imagina, a princípio, que sua tarefa é simples: tem de eliminar um ‘punhado’ de tiranos ou exploradores. É certo que habitualmente os tiranos e os exploradores constituem uma minoria insignificante. Mas a velha classe dominante não viveu isolada do resto da sociedade. No curso do seu prolongado domínio, cercou-se por uma rede de instituições, compreendendo grupos e indivíduos de muitas classes e deu vida a muitas ligações e fidelidades que nem mesmo uma revolução destrói totalmente”[lvi]. Aqui chegamos, precisamente, aos problemas da psicologia de massas. Como intervir sobre estas ligações que “nem mesmo uma revolução destrói totalmente”?

Os anarquistas, por sua vez, veem méritos em práticas reacionárias espontâneas (que, muitas vezes, é uma mera reprodução dos hábitos), idealizam as massas e sequer se colocam estas questões. Ao contrário disso, no livro de Arshinov vemos uma série de citações acríticas sobre a guerrilha e os camponeses quando tratam Makhno como o pai da insurreição urcraniana. Inclusive o autor chega a criticar a postura dos bolcheviques de questionar tal tipo de tratamento. Não são poucas as assinaturas, despachos ou expressões envolvendo e clamando o pai Makhno. O autoritarismo paterno no seio da família patriarcal, nos dirá a psicanálise freudiana e a economia sexual reichiana, é uma das bases do autoritarismo social, reproduzida por inúmeros regimes políticos. O movimento makhnovista, na pessoa de Arshinov, e os anarquistas atuais, parecem não ver nenhum problema nisso.

Para Arshinov, “a makhnovitchina entende a revolução social no seu verdadeiro sentido. Compreende que a vitória e a consolidação da revolução, o desenvolvimento de todas as vantagens que daí advém só são possíveis com uma aliança íntima entre as classes laboriosas da cidade e do campo. (...) [os camponeses] consideram os operários das cidades como seus próprios irmãos, como membros da mesma grande família dos trabalhadores”[lvii]. Cabe perguntar aqui quem seria o pai desta família? Arshinov não responde, mas deixa subentendido. O pai não é “vendido” pela sociedade patriarcal como uma espécie de “guia natural”? A cultura política escondida por trás da palavrinha “pai” remete às estruturas ideológicas de regimes autoritários e paternalistas, tanto no ocidente, quanto no oriente (basta ver a psicologia de massas do fascismo e do confucionismo). Se queremos, de fato, combater o autoritarismo, não deveria ser uma obrigação anarquista condenar o termo “pai Makhno”?

Não haverá possibilidade de construção da sociedade socialista – e muito menos o avanço para a sociedade comunista – se não trabalharmos duramente para a superação do espírito de rebanho das massas[lviii]. É somente nesta superação que poderemos criar as condições para a sua auto suficiência (que deve ser, dialeticamente, individual e coletiva) e, a partir desta, para a autogestão da sociedade sem Estado, com os seus processos administrativos e econômicos coletivos. Durante um tempo, inevitavelmente precisaremos do Estado para este processo reeducativo em larga escala.

Superar o espírito de rebanho requer que as organizações proletárias se debrucem honestamente sobre os problemas da repressão sexual, da família patriarcal, da moral neurótica, da educação repressiva, castradora e autoritária (além de se auto examinarem internamente a todo momento); ao mesmo tempo em que devem procurar mobilizar a classe trabalhadora contra a exploração e a opressão econômica da burguesia e do imperialismo. Todos estes processos devem ser vistos como faces de uma mesma moeda. Nem o bolchevismo atingiu tal perspectiva, muito menos o makhnovismo. Este foi um dos principais elementos da degeneração da revolução russa – e não a simples justificativa da utilização do Estado como instrumento político para o período de transição, mesmo sabendo de todas as contradições contidas neste processo.

***

         Quando lemos as declarações dos bolcheviques redigidas, em sua maioria, por Lenin, contra a invasão dos exércitos brancos liderados por Denikin, Wrangel e Koltchak, não podemos deixar de nos espantar com a dureza das palavras e das concepções[lix]. Tais palavras – desesperadas e apaixonadas, escritas no calor de uma luta de morte para tentar convencer milhões de pessoas – reafirmavam a mais estrita necessidade de coesão e firmeza militar. Elas eram seguidas pelas ações mais enérgicas (bem características de Lenin e do bolchevismo), que não podiam deixar de ter inúmeras consequências e efeitos colaterais (muitos imprevisíveis); embora, infelizmente, ainda não tenhamos descoberto outro remédio menos amargo para lidar com os gananciosos e incorrigíveis membros das classes dominantes.

         Erguido em um tempo relativamente curto, sendo “temperado com o aço”, o bolchevismo desenvolveu uma técnica e uma engenharia política que, ao mesmo tempo que demonstrou pela 1ª vez à classe operária mundial como conquistar o poder (e como mantê-lo), também pode causar catástrofes e desastres se cair em mãos de pessoas com mentalidade estreita e psicopática (pior se forem os dois casos juntos, como desgraçadamente aconteceu na Rússia com Stálin).

         Aqui vale lembrar as tristes, mas rispidamente sóbrias, palavras do artigo de Trotski intitulado Bolchevismo e stalinismo: “quando os bolcheviques faziam concessões às tendências pequeno-burguesas dos camponeses, quando estabeleciam regras restritas para o ingresso no partido, quando depuravam este partido de elementos que lhe eram estranhos, quando proibiam outros partidos, quando introduziram a NEP, quando cediam as empresas em forma de concessões, ou quando firmavam acordos diplomáticos com os governos imperialistas, extraíam desse feito fundamental uma conclusão que, desde o começo, lhes era teoricamente clara: a conquista do poder, por mais importante que seja, não converte o partido em dono todo-poderoso do processo histórico. Certamente que, tendo-se apoderado do aparelho do Estado, o partido tem a possibilidade de influenciar no desenvolvimento da sociedade com uma força sem precedentes, mas, em troca, é submetido a uma ação múltipla por parte de todos os outros elementos desta sociedade. Ele pode ser alijado do poder por golpes diretos das forças hostis ou, com o ritmo mais lento da evolução, degenerar interiormente, mesmo mantendo-se no poder. É precisamente esta dialética do processo histórico que os pensadores sectários não compreendem, tratando de encontrar um argumento definitivo contra o bolchevismo na putrefação da burocracia stalinista. No fundo, estes senhores dizem: ‘um partido revolucionário é ruim quando não traz em si garantias contra a sua própria degeneração’. Enfocado por um critério semelhante, o bolchevismo está evidentemente condenado: não possui nenhum talismã. Mas esse mesmo critério é falso. O pensamento científico exige uma análise concreta: como e por que o partido se decompôs? (...) A conclusão que chegamos é a seguinte: evidentemente o stalinismo ‘surgiu’ do bolchevismo; mas não surgiu de um modo lógico e sim dialético; não como sua afirmação revolucionária, mas como a sua negação termidoriana, o que não é a mesma coisa”[lx].

***

         Arshinov, no início do seu livro, afirma que o “tratado de Brest-Litovsk, concluído pelos bolcheviques, escancarou as portas da Ucrânia aos austro-alemães”[lxi]. Com esta forma leviana de colocar a questão, ele quis demonstrar que o bolchevismo estava pouco se lixando para a Ucrânia, o que está longe de ser verdadeiro. Quem conhece a complexidade da correlação de forças envolvida nas negociações de paz de Brest-Litovsk, sabe que isso não passa de uma agitação propagandística anarquista, apagando o fato de que o poder de fogo estava do lado alemão e que os delegados soviéticos, liderados por Trotski, fizeram o possível e o impossível para tentar evitar a entrega de territórios, bem como para sublevar a classe trabalhadora europeia. No caso de alguma dúvida, é aconselhável ler a obra de Isaac Deutscher, O profeta armado, que descreve longamente o drama destas negociações.

         Nelas, a burguesia ucraniana participou, bem como outros grupos aventureiros organizados na Rada (uma espécie de parlamento burguês ucraniano), que tentaram tirar o máximo de lucro das desavenças entre as “potências maiores”, no caso, Rússia e Alemanha. Mesmo acompanhado pelo pior tipo de arrivismo, Trotski e os delegados soviéticos toleraram a participação da Ucrânia nestas negociações que, num dado momento, traiçoeiramente tentou fechar uma paz em separado com o Kaiser alemão.

         Apesar de tudo isso, houveram interferências problemáticas do governo soviético russo na Ucrânia, reconhecidas por uma mensagem privada de Trotski a Lenin. Nela, Trotski declara expressamente que “a administração soviética na Ucrânia baseara-se, desde o início, em pessoas enviadas da Rússia e não em elementos locais. Pediu, então, um rompimento com esse método de governo”[lxii]. Tal método, contudo, não foi rompido a tempo, sendo mantido e aprofundado pelo stalinismo na sequência dos acontecimentos.

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Tal artigo que aqui se encerra não pretende responder se os bolcheviques estavam corretos em reprimir a guerrilha makhnovista. Aqui não se tratou de encontrar respostas morais aos problemas concretos, mas fazer uma difícil reconstrução histórica levando-se em consideração as problemáticas da revolução russa, caras tanto ao bolchevismo quanto ao makhnovismo.

         Esta experiência amarga deve servir para fazer a esquerda refletir sobre os seus desafios e a relação que estabelece entre si. Certamente o bolchevismo cometeu erros e excessos resultantes do desespero em manter o governo funcionando. Conservar as estruturas sociais em meio à guerra civil e ao caos é tarefa hercúlea e, como nos falou Trotski, quando o partido cedia e decretava, estava se moldando e se deformando. Em muitas oportunidades, o bolchevismo se expressou através de simplificações que são muito perigosas, sem mencionar alguns requintes de arrogância e empáfia, como, por exemplo, Lenin mencionando Makhno em um discurso na conferência dos comitês de instrução política, o colocando no mesmo balaio de gato que Kerenski, Iudénitch e Koltchak[lxiii]. Um acordo entre o governo soviético liderado pelos bolcheviques com a guerrilha ucraniana de Makhno através dos sovietes de ambos países seria totalmente inviável?

         Para nós, que estamos olhando de fora daquele doloroso processo histórico, parece que era possível. Contudo, certamente um acordo não dependeria apenas dos bolcheviques, ainda que estes tivessem a maior parcela de responsabilidade. Por outro lado, pudemos demonstrar como o movimento makhnovista e o anarquismo, a despeito de defenderem a ausência de autoridade, na verdade instituem a autoridade da sua “não-autoridade”. Repetem, assim, os mesmos erros de Nietzsche que, ao propor uma suposta ausência de moral, cria a moral de “não ter moral”[lxiv].

         Tais sofismas, que tendem a glorificar as supostas “almas puras e delicadas” – como Arshinov descreve um dos militantes makhnovistas[lxv] –, intolerantes à frustração, não estão aptos a olhar a amarga realidade de frente. Nesse sentido, criam diversos empecilhos políticos em nome de uma quimera, muitas vezes, totalmente descolada da realidade, tratando inimigos como amigos; e amigos como inimigos. Para reciclar as relações entre as diversas organizações militantes da esquerda se faz necessário refletir profundamente sobre os fatos expostos nesta tentativa de reconstrução histórica. Dentro desta reciclagem, vai ser muito importante que aqueles que reivindicam o legado bolchevique se empenhem numa revisão autocrítica de determinadas posturas assumidas pelo bolchevismo, assim como os anarquistas devem refinar melhor os seus argumentos, superando a dicotomia do bem versus o mal.




REFERÊNCIAS:


[i] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 148).

[ii] Idem.

[iii] Idem (página 177).

[v] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 171).

[vi] Idem (página171 e 172).

[vii] Idem (página 147 – grifos meus).

[viii] Idem (páginas 248 e 249 – grifos meus).

[ix] Idem (página 183).

[x] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (páginas 262 e 263, nota de rodapé).

[xii] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 82).

[xiii] Idem (página 147).

[xv] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 124).

[xvi] LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso, Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (página 169).

[xvii] Idem (página 174).

[xviii] Idem (página 170).

[xix] Idem.

[xx] Estas e outras informações dos 3 últimos parágrafos são de DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (páginas 492, 495 e 497).

[xxi] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 286).

[xxii] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 309).

[xxiv] Idem.

[xxv] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 120).

[xxvi] Idem (página 149).

[xxvii] Idem (página 125).

[xxviii] Idem (página 150).

[xxix] Idem (páginas 150 e 151 – grifos meus).

[xxx] Idem (página 194).

[xxxi] Idem (páginas 194 e 195).

[xxxii] Idem (página 195).

[xxxiii] Idem (página 185).

[xxxiv] Idem (página 82).

[xxxv] Idem (página 290).

[xxxvi] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 497).

[xxxvii] Idem (página 200).

[xxxviii] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 130).

[xxxix] Idem (página 270).

[xl] Idem (página 271).

[xli] Idem (página 303).

[xlii] Idem.

[xliii] Idem (página 287).

[xliv] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (páginas 321 e 322).

[xlv] Idem (página 333).

[xlvi] Idem (páginas 608 e 609).

[xlvii] A Nova Política Econômica (NEP), capitalismo de Estado – transição – socialismo. De vários autores, dentre eles Lenin, Trotsky, Valentino Gerratana. Organizado e traduzido por BERTELLI, Antonio Roberto. Global Editora, São Paulo, 1987 (páginas 173 e 174).

[xlviii] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 325).

[l] FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Editora graal, biblioteca de história, Rio de Janeiro, 1984 (página 124).

[lii] LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso, Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (página 173).

[lvi] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 407).

[lvii] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 289 – grifos meus).

[lviii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/01/pre-requisitos-para-democracia.html (um estudo sobre a influência do espírito de rebanho na “democracia”).

[lix] Ver: “Todos à luta contra Denikin! – carta do CC do PCR (bolchevique) às organizações do partido” in LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso, Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (páginas 161 até 175).

[lx] TROTSKY, Leon. “Bolchevismo e Stalinismo” in A questão do partido – Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Kairós editora, São Paulo, 1978.

[lxi] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 49).

[lxii] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 453 – nota de rodapé).

[lxiii] LENIN, Vladmir I. Obras Escolhidas em três tomos (tomo 3). Edições progresso, Moscou; edições Avante!, Lisboa, 1986 (página 402).

[lxv] ARSHINOV, Piotr. História do movimento makhnovista (1918-1921). Editora Faísca Entremares, Brasil, 2018 (página 263).