Se diz violento ao rio que tudo arrasta
Mas ninguém diz violento as margens que o oprimem
(Bertolt Brecht)
Quem teme lobos não vai à floresta
(Lenin)
Há uma
visão na “esquerda” que, reproduzindo ecos
de cima, insiste em igualar o bolchevismo (isto é, o leninismo e o
trotskismo) ao stalinismo. Não se trata, é claro, de meros problemas
linguísticos ou da autoproclamação dos stalinistas, que se diziam os legítimos
herdeiros do bolchevismo. Esta perspectiva está definitivamente fora da
compreensão deste texto.
Por certo, como
já demonstrou Trotsky em inúmeros artigos, existem traços em comum entre
bolchevismo e stalinismo, tal como existe em quase todas as teorias e culturas
políticas. Também há uma relativa ligação histórica, o que parece ser a “prova
definitiva”. No entanto, tudo isso não nos faz avançar um único centímetro na
crítica a estas experiências “socialistas”. Ao contrário! Nos faz retroceder a
etapas já superadas do pensamento socialista e, de quebra, ainda nos faz
renunciar a uma teoria política que ensinou ao proletariado como tomar o poder
e conservá-lo, pela primeira vez na história.
Além
da má fé (no caso burguês), o debate também é pautado pela ignorância, que
desconhecendo fatos históricos e a teoria revolucionária, acaba reproduzindo
inúmeros erros do senso comum (no caso proletário). O atual nível de formação
da “esquerda” brasileira, profundamente atolada numa miséria teórica sem precedentes,
acaba sendo o lamentável palco para este tipo de compreensão já desmascarada
por inúmeros artigos e fatos históricos.
O presente texto
não está levando em consideração nem a má fé, nem a ignorância. Partimos do
pressuposto de que os ativistas que sustentam esta compreensão errônea
acreditam que o “bolchevismo é igual ao stalinismo” sinceramente. Por isso, se
faz necessário uma reflexão acerca do que escreveram aqueles que passaram pela
experiência deste processo extraordinário, pioneiro, complexo e contraditório,
que foi a Revolução Russa.
A
reação dentro da Revolução Russa originou o stalinismo
Marx e
Engels já identificaram, no passado, que a toda revolução corresponde uma
contrarrevolução. Basta olhar qualquer processo revolucionário na história e
isso torna-se bastante clarividente. A reforma protestante e a contra-reforma católica
(em 1517 e 1545); a Revolução Francesa (jacobinismo versus girondinismo) e a posterior ascensão de Napoleão; à
Revolução Cubana responderam os cubanos ricos com a invasão da Playa Girón, em 1961; dentre outros.
Fica cada vez mais claro aquilo que Trotsky escreveu tantas vezes: o stalinismo
foi a reação termidoriana[i] à grande explosão
popular, de importância histórico-universal, que foi a Revolução Russa. O grau
de perversão e crueldade do stalinismo foi a resposta ao impacto profundo da primeira
revolução proletária vitoriosa da história.
Esta conclusão
é quase uma correspondência exata da lei física de ação e reação. Ao contrário
desta interpretação, muitos ativistas tentam explicar a degeneração da
Revolução Russa em stalinismo pelos “erros” e “excessos” do bolchevismo “contra
os trabalhadores”, como se Stalin fosse a continuação exata dele e o seu
resultado inevitável. Condenam o bolchevismo porque este não traz embutido em
si mesmo uma garantia milagrosa
contra a degeneração, tal como se tivessem proposto realizar uma tarefa fácil e
a-histórica. Os argumentos que igualam o bolchevismo ao stalinismo se repetem
ao longo do tempo, sendo possível fazer uma síntese das suas principais
conclusões. Esta repetição indica certas tendências que procuram saídas
reconfortantes, fora da luta de classes, que é cruel e contraditória por
natureza (não por iniciativa dos trabalhadores, evidentemente, mas da
burguesia).
Dentre
os argumentos que se repetem, está a ânsia por uma “volta ao marxismo puro”, lá
de Marx e Engels, no século XIX (lá estariam condensadas as soluções de todos
os problemas). Os seus seguidores seriam inescrupulosos deturpadores,
corruptores e oportunistas. Ainda que a quase totalidade o seja, nem todos o
são. Até mesmo entre os reformistas e oportunistas incorrigíveis existem boas
contribuições; há que se procurá-las com lupa, mas existem. Um dos
revisionistas que renegam a revolução e abraçam a frente popular stalinista,
mas que possui inegáveis contribuições ao pensamento socialista, é Gramsci, por
exemplo. Querer o retorno ao “marxismo puro” é uma contradição com o próprio
pensamento marxista, que exige uma aproximação com a realidade concreta e todo
o tipo de avanço científico e dos movimentos sociais. Poderia Marx ignorar a
experiência da União Soviética? O velho revolucionário alemão se absteria ou
colocaria um sinal de igual na disputa de valor histórico-universal entre o
stalinismo e o trotskismo, que marcou todo o século 20?
Buscar
a origem do stalinismo no bolchevismo é exatamente a mesma coisa, num sentido
mais geral, que querer buscar a origem da contrarrevolução nos princípios que
desencadearam a revolução[ii].
De
novo o debate sobre a dialética classe-direção:
a questão dos sovietes
Outro
argumento que se repete é o que afirma o malefício da hegemonia dos
bolcheviques nos sovietes. Todos reconhecem estes organismos populares como uma
grande conquista da revolução e do movimento operário, mas não reconhecem o
papel que os bolcheviques cumpriram neles. Os “manipuladores” bolcheviques
teriam se apoderado deles e os deturpado. Este, talvez, seja o argumento mais
equivocado e injusto, que coloca novamente o debate acerca da dialética entre
classe e direção.
Os
sovietes estão no centro da Revolução Russa, chegando ao ponto de ser parte
indispensável de sua vitória. Sem a organização dos sovietes, certamente não
teria havido o triunfo revolucionário. Surgidos na revolução de 1905, os
sovietes foram reprimidos durante o período de reação (1907-1916), ressurgindo
em 1917. Entre fevereiro e outubro de 1917 os sovietes foram totalmente
hegemonizados pelos mencheviques, que lhes imprimiram um caráter conciliador.
Se estabeleceu, então, um período de duplo poder entre os sovietes e o governo
provisório, empenhado em reestabelecer todas as instituições burguesas do país.
Sovietes e instituições burguesas não poderiam conviver muito tempo nesta
disputa não declarada pelo poder; alguém teria que terminar se impondo sobre o
outro. A política menchevique, contudo, levava ao poder burguês e a
subordinação total (isto é, a destruição) dos sovietes. Foram os bolcheviques
que imprimiram um caráter de independência de classe aos sovietes, preparando
as condições para que tomassem o poder em outubro de 1917, não, casualmente,
durante um dos congressos de sovietes de toda a Rússia.
A
maioria bolchevique resolveu o duplo poder em favor dos sovietes. Esta maioria
conquistada pelos bolcheviques não se sustentaria um único minuto se não fosse a expressão dos operários e
camponeses em luta durante o processo revolucionário. Tampouco uma pequena
fração do movimento operário russo, como foram os bolcheviques até setembro de
1917, poderia ter mantido o poder durante uma cruel guerra civil, caso não
fosse a expressão direta dos interesses das massas trabalhadoras.
Ignorando
todos estes detalhes fundamentais, muitos companheiros argumentam que “os
sovietes tinham que continuar livres” e que necessitavam se “centralizar pela
classe” ou “pelo mundo do trabalho”, como se os bolcheviques representassem
algo alheio à classe e ao mundo do trabalho. Ora, não existe uma “classe
abstrata” com “interesses abstratos de classe”. De 1917 até a ascensão ao poder
da burocracia stalinista, os bolcheviques foram a encarnação consciente dos interesses da classe operária russa.
Nesse sentido foram uma direção política reconhecida da classe. Cumprindo este
papel certamente cometeram erros, mas jamais traições, como foi o caso do
stalinismo. Os camaradas que pensam desta maneira ignoram o fato de que não
existe uma massa abstrata e perfeita; isto é, sem contradições. A massa possui
distintos níveis de consciência e em grande parte é atrasada em razão das suas
condições de vida e de educação. Portanto, querer uma “revolução perfeita” é
pressupor que ela pode se homogeneizar do ponto de vista da consciência de
forma espontânea, o que é praticamente impossível. Seria pressupor que a
burguesia e os seus agentes diretos e indiretos abdicariam de tencioná-la no
sentido da restauração do seu velho poder e de ter influência sobre ela. É
precisamente esta pressão permanente feita pela burguesia nacional e
internacional que tenciona no sentido da degeneração da revolução, além, é
claro, dos problemas internos da própria massa, que tem um nível cultural baixo
e sofre com o seu alto grau de heterogeneidade. Estes dois problemas – pressão
da contrarrevolução burguesa e atraso de parte das massas – estão interligados.
Os
sovietes foram a forma organizada da aliança entre a classe e a sua vanguarda
mais consciente, que estava no partido bolchevique. Não é o mero fator da
vanguarda se organizar em partido que significa a sua inevitável degeneração,
como defendem erroneamente muitos desses companheiros, mas a política que
sustenta e a pressão que este partido cede ou combate. Respondendo à mesma
polêmica, no longínquo ano de 1937, Trotsky escreveu: “Os que opõem uma abstração de sovietes à ditadura do partido deveriam
compreender que somente graças à direção dos bolcheviques os sovietes saíram do
pântano reformista para o papel de órgãos do Estado proletário”[iii].
Muitos companheiros também defendem, erroneamente, que os sovietes não eram
instituições de um Estado de novo tipo (alguns chegam ao cúmulo de dizer que se
tratava de um “Estado burguês”).
Os
camaradas não compreendem (ou não querem compreender) a importância e o papel
da direção política da classe trabalhadora. Atribuem a qualquer direção ou
partido (indistintamente ao programa ou a política que defendem) o papel de
“burocratizadores por natureza”. Este menosprezo à direção política, entendendo
que a classe se dirige espontaneamente mesmo com distintos níveis de
consciência e heterogeneidade, tende a caminhar para a desorganização política
e à subordinação inconsciente às direções burguesas declaradas e não
declaradas. Certos camaradas pensam que se “centralizar pela classe”, tal como
ela é, representaria um antídoto contra a degeneração, o que é um grave erro. O
proletariado se subdivide em vários segmentos, como vanguarda e retaguarda. Isto é um fato sociológico. Não se pode
igualar a sua vanguarda com a sua retaguarda, ainda que se tenha que levar em
consideração os anseios da retaguarda. Neste caso, se condena o bolchevismo
pela ousadia de ter tomado o poder e, de quebra, se transforma esta grande
experiência num crime. Ao invés de estudá-lo em detalhes, estes camaradas
apenas viram as costas ao processo histórico e se voltam para a metafísica.
Em
defesa do bolchevismo!
Não satisfeitos
com nossas respostas, que se sustentam em fatos históricos insofismáveis,
alguns destes camaradas ainda afirmam que os bolcheviques foram autoritários
após 1917, no período compreendido entre 1918 e 1923. Ora, camaradas, é preciso
fazer uma reconstrução histórica. Mesmo no auge do processo revolucionário os
bolcheviques procuraram as outras frações
operárias para construir um governo em comum, como os mencheviques e os
Socialistas Revolucionários (narodiniks),
mesmo possuindo as mais profundas
divergências políticas e programáticas. Estes deram as costas ao chamado
dos bolcheviques, como atesta este trecho escrito por Trotsky: “O comitê central do nosso partido buscou uma
aliança com os Socialistas Revolucionários (SRs) de esquerda. Propusemos a eles
que tomasse parte na construção do governo dos sovietes. Eles hesitavam e
diziam que o governo deveria ter o caráter de uma coalizão entre os partidos
soviéticos. Mas os mencheviques e os SRs de direita havia rompido com o
Congresso dos Sovietes porque eram defensores decididos de uma coalizão com
os partidos anti-soviéticos. Assim, só nos restava deixar os SRs de esquerda a
tarefa de tentar trazer seus colegas de direita para o campo da revolução;
porém, enquanto eles se ocupavam dessa causa sem esperança, nós nos sentíamos
obrigados a assumir toda a responsabilidade pelo governo”[iv].
Os SRs de
“esquerda” flertaram com o Conselho de Comissários do Povo durante algum tempo,
mas depois romperam totalmente, inclusive cometendo um atentado contra a vida
de Lenin. Os bolcheviques viram-se sozinhos, apenas com o apoio dos operários e
camponeses mais avançados, tendo que enfrentar uma coalizão de 14 exércitos
imperialistas. Há ainda, outros camaradas que sustentam o “autoritarismo
bolchevique” reivindicando a liberdade aos partidos burgueses, que foram
totalmente proibidos. Estes camaradas certamente nunca refletiram sobre o termo
marxista conhecido como “ditadura do proletariado”. Neste caso, apenas refletem
a pressão ideológica da burguesia, que sempre reclamará a “liberdade” para os
seus partidos (por acaso o MDB, o PSDB, o Democratas, o PSL e tantas outras
máfias políticas que, no essencial, defendem exatamente o mesmo, não deveriam
ser proibidos? O que eles fariam em um regime socialista?). Também nunca
refletiram sobre as contradições de um processo revolucionário, que descamba
para a luta armada. Quem pensa que uma revolução é uma estrada de tijolos
amarelos e que a classe operária pintará um mundo cor de rosa precisa acordar
se quer realmente lutar por uma revolução socialista.
Foi por isso que
Lenin escreveu que: “uma revolução, uma
revolução real, profunda, do povo, para usar a expressão de Marx, é o processo
incrivelmente complicado e penoso de morte de uma velha ordem social e o
nascimento de uma nova, o ajustamento das vidas de dezenas de milhares de
pessoas. Uma revolução é a mais aguda, mais furiosa e desesperada luta de
classes e guerra civil. Nenhuma grande revolução da história escapou da guerra
civil. Se não houvesse circunstâncias excepcionalmente complicadas, não haveria
revolução. Quem teme os lobos, não vai à floresta”.
Qual era a
situação da URSS logo após o triunfo da Revolução de Outubro de 1917? Um “Estado
operário” recém fundado, repleto de contradições e dividido entre 5 formas de
economia, com instituições políticas totalmente novas e nunca utilizadas antes,
cercado de inimigos, dentre os quais o que viria a se tornar o nazi-fascismo.
Somava-se a isso um baixíssimo nível cultural, de um país recém liberto de uma
monarquia “semi-feudal”, com inúmera tradições burocráticas e medievais. Ao
peso do boicote do imperialismo no mercado mundial, se somou a derrota dos
processos revolucionários na Europa e a invasão dos 14 exércitos imperialistas
que desencadearam uma furiosa guerra civil que matou a melhor parcela da
vanguarda operária que estava a frente dos sovietes e do partido bolchevique.
Cabe observar cuidadosamente certas peculiaridades da
Rússia: o burocratismo, o atraso secular, o autoritarismo dos governos
czaristas (que governaram por séculos – basta ver a mentalidade dos seus
funcionários e do povo russo nas várias obras de Dostoiévski e Tolstói), a
inexistência de uma sociedade civil organizada, a repressão, trabalhos
forçados, a tortura, deportação e execução de prisioneiros políticos (que era
prática comum na história russa). Para muitos dos camaradas com quem procuramos
polemizar, a degeneração se explica por ações isoladas do governo bolchevique,
ou simplesmente por esse ser um “partido”. Claro que as ações do governo podem
ser decisivas para o futuro de um sistema econômico e de uma revolução, tal
como as ações do bolchevismo o foram em determinados casos, mas isso não pode
ser considerado como o essencial em uma análise que se pretenda “marxista”. No
geral, as ações dos governos bolcheviques estavam em consonância geral com os
interesses dos trabalhadores russos, cometendo erros, equívocos e excessos em
casos específicos que estavam marcados por guerras civis cruéis, desencadeadas
não pelos bolcheviques, mas pelo imperialismo e pela burguesia russa. Quem não
entendeu isso, não entendeu a questão de um ponto de vista classista e não
poderá lutar por uma revolução!
É nesse contexto
que se inserem os erros e excessos denunciados pelos camaradas no caso de
Kronstadt[v],
por exemplo; ou no caso da repressão ao exército ucraniano liderado pelo
anarquista Nestor Makno, que exigia total autonomia do exército vermelho (o que
pode ser questionável de um ponto de vista da estratégia militar). O mesmo não pode ser dito sobre os Processos de
Moscou (1936-1938) e a coletivização forçada, já sob o governo de Stalin, que
tinha um caráter bem diferente e o Estado soviético já somava 20 anos. Deveria
se ter primado pelo desenvolvimento de outra cultura política e utilizar outros
mecanismos, como os econômicos, ao invés das mentiras judiciais e dos métodos
militares completamente dissociados das
decisões dos sovietes. Isso tudo só demonstra que há um abismo entre o
governo revolucionário dos primeiros anos da revolução e os anos posteriores do
governo burocrático da camarilha comandada por Stalin. Colocar os dois erros no
mesmo “saco de gato” denota certa ausência de análise dialética e influências
não-proletárias.
Muitos dos
referidos camaradas ainda sustentam que o problema foi o “centralismo” de
Lenin, que se transformou no centralismo despótico de Stalin. Isso é uma distorção
grosseira, pois o centralismo leninista foi uma necessidade para unificar o
partido na época da clandestinidade (1899 até 1917), fortalecer o trabalho
político, dar uma linha comum às diversas organizações revolucionárias, tal
como uma via de duas mãos. Sem isso não teria havido a Revolução de 1917,
apenas grupos clandestinos trabalhando separada e caoticamente, tal como
baratas tontas. Algumas conclusões mais radicais contra o bolchevismo por parte
de alguns camaradas parecem apontar que o melhor teria sido não tomar o poder (ou se tivessem tomado
e seguido suas orientações políticas, o governo soviético não duraria 1 dia).
Lenin jamais defendeu que os militantes
deveriam se submeter acriticamente a qualquer decisão de Comitê Central, nem
que o centralismo de cima pra baixo deveria ser a forma do Estado socialista
(tal como Stalin sempre defendeu, inclusive atribuindo esta bizarrice a Lenin).
Tudo isso são distorções grotescas de pessoas interessadas em difamar o
leninismo ou que nunca abriram uma única
página dos seus livros. O centralismo democrático correspondia a condições
de clandestinidade e extrema desorganização do movimento operário russo. Uma
vez que outras condições materiais e sociais fossem atingidas, esta forma
organizativa poderia ser substituída por outra. Lenin foi meridianamente claro
sobre isso. Quem erigiu o centralismo em lei dogmática e absoluta foi Stalin e
sua camarilha. Os elementos “mais preparados” defendidos por Lenin não são
selecionados entre burocratas de Estado e “iluminados”, como ironizam os
camaradas com quem polemizamos, mas os melhores revolucionários, mais
conscientes, mais capazes de resistir às
pressões ideológicas e políticas da burguesia; não “na teoria”, por decreto
de governo ou por conveniências políticas de bastidores, mas pela experiência concreta na luta de classes.
Por tudo isso,
Trotsky escreveu na sua última obra, não casualmente uma biografia de Stálin, o
que segue: “é bastante tentador inferir
que o futuro stalinismo já estava enraizado no centralismo bolchevique ou, de
forma mais radical, na hierarquia clandestina dos revolucionários
profissionais. Naturalmente, existem perigos de um tipo ou de outro no próprio
processo de escolher e arranjar pessoas com pontos de vista avançados e
soldá-las em uma organização fortemente centralizada. Mas as raízes de tais
perigos nunca serão encontradas no chamado ‘princípio’ do centralismo; devem
ser buscadas na falta de homogeneidade e no atraso dos trabalhadores – isto é,
nas condições sociais gerais que tornam imperativa a direção muito centrípeta
da classe por sua vanguarda. A chave para o problema dinâmico da direção está
nas inter-relações reais entre a máquina política e seu partido, entre a
vanguarda e sua classe, entre centralismo e democracia. Essas inter-relações
não podem, por sua natureza, ser estabelecidas a priori e permanecer imutáveis. Elas dependem de
condições históricas concretas; seu equilíbrio móvel é regulado pela luta vital
das tendências que, representadas por seus extremos, oscilam entre o despotismo
da máquina política e a impotência do prolixismo”[vi].
Este trecho
sustenta a importância de centralizar o trabalho revolucionário em um partido (entendido
como organização dos trabalhadores conscientes contra o capital, e não como
partido institucional e eleitoral numa perspectiva burguesa) em razão do atraso
político e da alienação da maioria da massa. No entanto, este partido está
submetido à condições históricas
concretas e não ideais. Uma vez que não haja esta compreensão sobre a
necessidade de uma direção para o processo revolucionário, caímos numa espécie de
espontaneismo[vii] que é avesso ao espírito
organizador e conscientizador da filosofia marxista (muito bem compreendido
pelo bolchevismo). A noção de “dirigir” o proletariado não significa subjugá-lo,
tratá-lo como gado; mas conscientizá-lo, conquistá-lo
através do debate, da justeza das suas
palavras de ordem em meio ao caos e à confusão das massas, tal como os
bolcheviques o fizeram em 1917.
É por isso que a
crítica de Otto Rühle contra o bolchevismo, escrita em 1939, é injusta e
problemática. Ela coloca Lenin no mesmo saco que Stalin a partir de distorções
grosseiras do processo histórico. Transforma os equívocos do bolchevismo numa
caricatura grotesca e monstruosa, equivalendo o bolchevismo não apenas ao
stalinismo, mas ao fascismo. Com uma grande borracha redutora apaga todo o
passado bolchevique na clandestinidade; ignora as saudáveis polêmicas que o Iskra[viii]
travou contra os partidos da IIª Internacional, os espaços cedidos para Rosa
Luxemburgo apresentar sua versão de partido aos trabalhadores russos, a
educação revolucionária contra a conciliação de centena de milhares de
operários, dentre outras características extremamente positivas que nos faltam
hoje. Um outro adepto da igualação entre bolchevismo e stalinismo é Noam
Chomsky, o linguista norte-americano, que, a despeito de suas boas
contribuições políticas de denúncia à ação do imperialismo ianque, tende a nos
oferecer uma “saída” política diferente do bolchevismo que termina por misturar
o anarquismo com a democracia burguesa.
Poderíamos
concordar que a afirmação feita pelos bolcheviques (e reafirmada depois pelo
stalinismo) de que “se pode exercer a
ditadura do proletariado somente através do Partido Comunista” está
equivocada desde que partíssemos de uma ressalva. O partido revolucionário é
elemento fundamental e determinante de uma revolução, embora possam existir
outras forças que exerçam a ditadura do proletariado, como o “Estado Comuna” ou
outra forma de organização popular hoje desconhecida. Lenin e Trotsky
sintetizaram a experiência russa desta maneira em razão da experiência exitosa
da organização operária a partir dos partidos comunistas. Provavelmente existam
outras maneiras de exercer a ditadura do proletariado e não apenas essa. Porém, a ressalva que se faz é que esta frase tem
dois significados profundamente distintos: um dito pela boca do bolchevismo
(Lenin e Trotsky); outro, completamente diferente, pela boca de Stalin.
A política
praticada pelo stalinismo a partir de 1925 é completamente avessa a toda compreensão
verdadeiramente leninista. O centralismo stalinista é burocrático e
autoritário. Não conhece “via de duas mãos”, mas apenas o despotismo e as
imposições de cima para baixo. Não há debate de ideias, apenas dogmas, decretos
e ordens. Otto Rühle e Noam Chomsky sabem disso, mas preferem colocar um
simples sinal de igual entre o bolchevismo e o stalinismo. Quando alguns
camaradas, reproduzindo o espírito da crítica de Rühle, afirmam que ao invés de
um centralismo de uma organização política devemos nos “centralizar pela
classe”, isso pode ser compreendido, logicamente, como se “centralizar pelo
espontaneísmo da classe”, ou seja, pela classe tal como ela é hoje. E a nossa
classe hoje possui uma consciência burguesa ou pequeno burguesa. A citação de
Trotsky defende a necessidade de um partido que tenha um “centralismo” político
para lutar dentro da classe por uma política justa, que esbarrará num turbilhão
de outras compreensões que jamais poderão dar a unicidade necessária para a luta revolucionária consciente contra a
burguesia. Centralizar democraticamente significa debater e aplicar uma
política justa no seio da classe, visando organizá-la para uma revolução com
vistas a superar o capital; e jamais subordiná-la, enganá-la, bajulá-la. Aqui,
novamente, o problema não é o “centralismo” em si, mas como ele é utilizado e
compreendido.
Nesse sentido,
defender o bolchevismo não significa ignorar seus erros, nem dogmatizá-lo. Há
que se revisitá-lo permanentemente, mas reconhecer e preservar o seu valor
histórico tal como ele merece: foi a primeira conquista do poder pelo
proletariado! O que queremos sustentar com tudo isso é que não existem talismãs
contra a degeneração: apenas o curso da luta real e teórica pode decidir.
Certamente deve-se buscar as causas das derrotas, mas isso deve ser feita de
forma dialética. Não é o caso dessas análises que jogam tudo fora, ignorando
que uma revolução é um fenômeno complexo, que mexe com forças gigantescas, contrárias
e dinâmicas, não sendo possível nenhuma garantia de um êxito perfeito.
Não podemos
idealizar as massas. A autoridade é parte concedida pelos subordinados e parte
construída em cima dos medos (medo da punição, da demissão, da perseguição, da
desagregação – o chamado “espírito de rebanho” da filosofia nietzschiana). Um partido
revolucionário, para receber esse nome, necessita desenvolver a ideia de que as
massas não devem seguir nenhuma liderança ou partido por medo (inclusive ele
próprio), mas por convicção, por compreender as suas ideias e perceber a
justeza de suas posições. Foi precisamente este o papel do bolchevismo sob
Lenin. Somente este método pode preparar as condições para dissolver a
necessidade de uma direção e criar coragem e capacidade para que as massas
avancem para a autogestão. Em suma: precisam ser ensinadas, desde a mais tenra
infância, a agir desse modo. Porém, isso só será possível em um outro regime
social, que chamamos de socialismo. É uma calúnia atribuir ao bolchevismo a
intenção de “centralizar tudo em si, obrigar as massas a obedecê-los, tratá-las
como crianças”. Isto é, precisamente, o stalinismo. O bolchevismo exigia
disciplina e respeito às decisões da maioria (ou tudo isso não é necessário para se fazer uma revolução?); tampouco idealizava as massas e, muito menos, o
seu espontaenísmo.
Há que se
examinar com lupa todas as posições que procuram igualar bolchevismo e
stalinismo. Os trabalhadores conscientes devem desconfiar duplamente daqueles
que lhes dizem que não é necessário partido, direção, programa e política. Os
verdadeiros amigos do proletariado dizem-lhe claramente: precisamos que os
trabalhadores criem uma organização (partido), uma estratégia (programa) e uma
política (ação social consciente) que defenda os seus pontos de vistas. E estes
amigos ainda acrescentarão: não é sábio jogar fora a experiência das derrotas
e, muito menos, das vitórias!
Frustração
e revolução!
Muitos
camaradas querem um processo revolucionário livre de contradições, quase como
uma estrada de tijolos amarelos. Isso nunca existiu e nunca existirá. A toda revolução corresponde uma
contrarrevolução. E uma contrarrevolução traz sempre o germe da
degeneração, do medo, da traição. Os trabalhadores avançados precisam estar
plenamente conscientes de que quem luta pode ser traído e derrotado. Não há uma
fórmula mágica, nem um jeito de acabar com a frustração. Aos trabalhadores
conscientes cabe se preparar para tudo isso e não se deixar paralisar ou criar
empecilhos de antemão. Estudar e tirar as lições históricas de tudo. Quem teme
a frustração jamais poderá fazer uma revolução!
O espírito de um
revolucionário deve ser como o de Marx, que escreveu o seguinte: “As revoluções proletárias, como as do
século 19, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem-se
constantemente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para
começar de novo, troçam profunda e cruelmente das hesitações dos lados fracos e
da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu
adversário para que este tire da terra novas forças e volte a levantar-se mais
gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada
enormidade dos seus próprios fins, até que se cria uma situação que torna
impossível qualquer retrocesso”[ix].
O
principal caminho é o da luta teórica, que deverá classificar e testar todas as
posições políticas através do debate de ideias e, principalmente, da prática.
As experiências que ficam devem ser agarradas com unhas e dentes pelos
trabalhadores conscientes e ser incorporada ao marxismo e às teorias
socialistas como grandes relíquias do pensamento humano. De resto, sobram
apenas lamentações, aos quais teremos que deixá-las para quem vai visitar o
famoso muro de Jerusalém.
Devemos
ir além da dicotomia cristã de “bem X mal” e do pragmatismo burguês, que
classifica tudo conforme a ótica de um consumidor de classe média que compra um
produto e exige seus direitos no PROCON se ele “não funciona”; ou seja, aquela
visão simplista que afirma: “o socialismo não dá certo”, tal como se ele fosse
construído nas nuvens e pudesse ser medido pelo lucro individual e não como um
processo histórico repleto de contradições. Uma revolução engendra uma guerra
civil contra os exploradores, o que acarreta violência, conflitos políticos,
civis e militares. Tudo isso pode nos levar à degeneração (tal como aconteceu
na Rússia durante o curso da década de 1920). Não podemos esperar uma revolução
mágica e “perfeita” a partir de uma receita de bolo (como “se centralizar pelo
espontaneísmo da classe”), sem contradições ou problemas novos. O socialismo e
o comunismo não acabarão com as contradições. Apenas criarão novas bem
distintas das atuais, que se baseiam na exploração do trabalho e na miséria
humana. Não sabemos exatamente quais serão elas; e seria um exercício vão
tentarmos adivinhar. Porém, a experiência com as revoluções do século 20 nos
dão algumas pistas.
O
debate para superar a “crise do socialismo” está muito menos no peso da
“ditadura do proletariado”, no regime do terror e na sua posterior degeneração
expressa nos regimes stalinistas (que tem causas bastante compreensíveis e
evidentes), do que na necessidade de desenvolver a psicologia de massas do
socialismo, a educação, a autonomia individual que respeite a coletividade e a
individualidade dentro daquela, que combata a apatia, a repressão moral-sexual
e o espírito de rebanho. Os problemas
do “socialismo” expressos no século 20 – tal como a sua degeneração em ditadura
stalinista – é causa ou consequência do espírito de rebanho presente em grande
parte da massa? Quem pode afirmar seguramente qual dessas duas opções é a
preponderante? É justamente esta problemática que está colocada para a futura
geração de revolucionários que poderá superar esta crise, e não os olhos no
passado que condena as vitórias do proletariado e exalta o espontaneísmo. É
saber como casar a direção política das massas com o seu espontaneísmo, sem
castrá-lo ou oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás da própria cauda ou
o que é pior: canalizado e dirigido pela burguesia! São precisamente estas
questões que a burguesia quer esconder dos trabalhadores, lançando preconceitos
anti-partido, anti-organização e anti-bolchevique.
A
grande contradição a ser resolvida por nós no atual período histórico é: uma
massa de trabalhadores que tende ao “rebanho” cego e à falta de iniciativa que busque
sua liberdade (chegando ao cúmulo de combater a ação de indivíduos ou
organizações socialistas, exaltando candidatos e partidos fascistas). A questão
é: a crítica injusta ao bolchevismo ajuda ou atrapalha a solução desta
contradição? Fortalece a luta contra o espontaneísmo ou ajuda a jogar areia nos
olhos dos trabalhadores? Todos os socialistas, incluso Marx e Lenin, pensavam
que as mudanças na base econômica iriam resolver a alienação dos trabalhadores
automaticamente. Porém, a experiência com a Revolução Russa demonstra que é
necessário uma intervenção muito mais consciente nesse processo, inclusive do
ponto de vista psicanalítico, ajudando a criar a futura psicologia de massas e
a autonomia necessária à autogestão.
A
engenharia política do bolchevismo demonstrou um caminho e uma técnica para a
insurreição popular, que deve sempre ser tratada da maneira mais cuidadosa
possível. A degeneração do Estado soviético, longe de ser de responsabilidade
direta do bolchevismo, necessita ter uma política consciente de combate à
burocratização, às pressões internacionais e nacionais, bem como uma educação para
a autonomia, a autogestão, a emancipação política, econômica, moral e sexual das massas. Os sinais
mais evidentes para a construção do socialismo não serão dados pelos índices de
crescimento econômico, mas pela capacidade da educação pública e da política
criarem indivíduos independentes, críticos e autônomos que trabalhem em
consonância com a coletividade. A sua capacidade de iniciativa e
empreendedorismo nada tem a ver com a compreensão burguesa, mas com a
construção e a solidificação de uma sociedade em que o livre desenvolvimento de
cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.
Talvez
a grande questão para qualquer revolução que pretenda criar um novo governo e
um novo sistema econômico seja estabelecer um novo equilíbrio que seja
diferente do atual, que está visivelmente saturado. A sociedade, bem como os
sistemas bioecológicos presentes na natureza, baseiam-se em equilíbrios. Os
sistemas econômicos e as classes sociais criaram diversos tipos de equilíbrios
ao longo da história. Nesse sentido, a revolução e o comunismo devem criar um
novo equilíbrio, com novas instituições que deem suporte a este novo equilíbrio.
Os revolucionários precisam refletir suas tarefas nesses termos, embora isso
jamais possa redundar num reformismo e numa adaptação ao sistema atual (no
caso, ao equilíbrio vigente na nossa época). O partido revolucionário deve
estar atento a busca desse novo equilíbrio dentro da massa, para que a nova
sociedade consiga se estabelecer da melhor maneira possível e gere o peso
correto capaz de equilibrá-la.
Os
bolcheviques – meio consciente, meio inconscientemente – deram os primeiros passos nesse sentido. O
stalinismo destruiu esses passos e apagou as pegadas na areia.
NOTAS
[i] "Termidoriano" vem de "termidor",
uma expressão que foi instituída pela Revolução Francesa a partir do seu novo
calendário. Neste "novo" período do ano (correspondente a 27 de julho
de 1794 do calendário cristão) os jacobinos foram derrotados por uma fração da
direita reacionária – os girondinos – que abriu o caminho a Napoleão, sem, no
entanto, chegar a restaurar o regime feudal. Trotsky utiliza o termo, por
analogia, para designar a tomada do poder pela burocracia stalinista no seio do
Estado Operário, sem, apesar disto, restaurar plenamente o capitalismo.
[iv] “A revolução de outubro”, de Leon Trotsky. Em algumas
edições do mesmo livro o título é “Como fizemos a revolução de outubro?”.
[v]
O caso de Kronstadt seria marcado por uma
repressão do governo bolchevique (ainda dirigido por Lenin e Trotsky) contra os
marinheiros e soldados dessa fortaleza no mar do norte (próximo à Finlândia)
que, em meio à guerra civil contra os 14 exércitos imperialistas, exigiam
maiores liberdades políticas e econômicas. Com medo de incentivar tendências
burguesas, o então governo bolchevique reprimiu duramente a manifestação, fato
que ainda hoje é denunciado pelos anarquistas.
[vii] A espontaneidade revolucionária é uma tendência a
acreditar que a revolução social pode e deve ocorrer espontaneamente a partir
de baixo, sem a ajuda ou orientação de uma parte de vanguarda, e que não pode e
não deve ser provocada por ações de indivíduos ou partidos que possam tentar
fomentar tal revolução.
[viii]
Antigo jornal bolchevique, no qual foi publicado
o livro de Lenin “Que Fazer?” e muitas polêmicas teóricas (inclusive de
adversários do bolchevismo).
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