domingo, 21 de outubro de 2018

Quem teme a frustração, não pode fazer uma revolução! Em defesa do bolchevismo!


Se diz violento ao rio que tudo arrasta
Mas ninguém diz violento as margens que o oprimem
(Bertolt Brecht)

Quem teme lobos não vai à floresta
(Lenin)

        Há uma visão na “esquerda” que, reproduzindo ecos de cima, insiste em igualar o bolchevismo (isto é, o leninismo e o trotskismo) ao stalinismo. Não se trata, é claro, de meros problemas linguísticos ou da autoproclamação dos stalinistas, que se diziam os legítimos herdeiros do bolchevismo. Esta perspectiva está definitivamente fora da compreensão deste texto.
Por certo, como já demonstrou Trotsky em inúmeros artigos, existem traços em comum entre bolchevismo e stalinismo, tal como existe em quase todas as teorias e culturas políticas. Também há uma relativa ligação histórica, o que parece ser a “prova definitiva”. No entanto, tudo isso não nos faz avançar um único centímetro na crítica a estas experiências “socialistas”. Ao contrário! Nos faz retroceder a etapas já superadas do pensamento socialista e, de quebra, ainda nos faz renunciar a uma teoria política que ensinou ao proletariado como tomar o poder e conservá-lo, pela primeira vez na história.
        Além da má fé (no caso burguês), o debate também é pautado pela ignorância, que desconhecendo fatos históricos e a teoria revolucionária, acaba reproduzindo inúmeros erros do senso comum (no caso proletário). O atual nível de formação da “esquerda” brasileira, profundamente atolada numa miséria teórica sem precedentes, acaba sendo o lamentável palco para este tipo de compreensão já desmascarada por inúmeros artigos e fatos históricos.
O presente texto não está levando em consideração nem a má fé, nem a ignorância. Partimos do pressuposto de que os ativistas que sustentam esta compreensão errônea acreditam que o “bolchevismo é igual ao stalinismo” sinceramente. Por isso, se faz necessário uma reflexão acerca do que escreveram aqueles que passaram pela experiência deste processo extraordinário, pioneiro, complexo e contraditório, que foi a Revolução Russa.

A reação dentro da Revolução Russa originou o stalinismo
    Marx e Engels já identificaram, no passado, que a toda revolução corresponde uma contrarrevolução. Basta olhar qualquer processo revolucionário na história e isso torna-se bastante clarividente. A reforma protestante e a contra-reforma católica (em 1517 e 1545); a Revolução Francesa (jacobinismo versus girondinismo) e a posterior ascensão de Napoleão; à Revolução Cubana responderam os cubanos ricos com a invasão da Playa Girón, em 1961; dentre outros. Fica cada vez mais claro aquilo que Trotsky escreveu tantas vezes: o stalinismo foi a reação termidoriana[i] à grande explosão popular, de importância histórico-universal, que foi a Revolução Russa. O grau de perversão e crueldade do stalinismo foi a resposta ao impacto profundo da primeira revolução proletária vitoriosa da história.
        Esta conclusão é quase uma correspondência exata da lei física de ação e reação. Ao contrário desta interpretação, muitos ativistas tentam explicar a degeneração da Revolução Russa em stalinismo pelos “erros” e “excessos” do bolchevismo “contra os trabalhadores”, como se Stalin fosse a continuação exata dele e o seu resultado inevitável. Condenam o bolchevismo porque este não traz embutido em si mesmo uma garantia milagrosa contra a degeneração, tal como se tivessem proposto realizar uma tarefa fácil e a-histórica. Os argumentos que igualam o bolchevismo ao stalinismo se repetem ao longo do tempo, sendo possível fazer uma síntese das suas principais conclusões. Esta repetição indica certas tendências que procuram saídas reconfortantes, fora da luta de classes, que é cruel e contraditória por natureza (não por iniciativa dos trabalhadores, evidentemente, mas da burguesia).
        Dentre os argumentos que se repetem, está a ânsia por uma “volta ao marxismo puro”, lá de Marx e Engels, no século XIX (lá estariam condensadas as soluções de todos os problemas). Os seus seguidores seriam inescrupulosos deturpadores, corruptores e oportunistas. Ainda que a quase totalidade o seja, nem todos o são. Até mesmo entre os reformistas e oportunistas incorrigíveis existem boas contribuições; há que se procurá-las com lupa, mas existem. Um dos revisionistas que renegam a revolução e abraçam a frente popular stalinista, mas que possui inegáveis contribuições ao pensamento socialista, é Gramsci, por exemplo. Querer o retorno ao “marxismo puro” é uma contradição com o próprio pensamento marxista, que exige uma aproximação com a realidade concreta e todo o tipo de avanço científico e dos movimentos sociais. Poderia Marx ignorar a experiência da União Soviética? O velho revolucionário alemão se absteria ou colocaria um sinal de igual na disputa de valor histórico-universal entre o stalinismo e o trotskismo, que marcou todo o século 20?
        Buscar a origem do stalinismo no bolchevismo é exatamente a mesma coisa, num sentido mais geral, que querer buscar a origem da contrarrevolução nos princípios que desencadearam a revolução[ii].

De novo o debate sobre a dialética classe-direção: a questão dos sovietes
        Outro argumento que se repete é o que afirma o malefício da hegemonia dos bolcheviques nos sovietes. Todos reconhecem estes organismos populares como uma grande conquista da revolução e do movimento operário, mas não reconhecem o papel que os bolcheviques cumpriram neles. Os “manipuladores” bolcheviques teriam se apoderado deles e os deturpado. Este, talvez, seja o argumento mais equivocado e injusto, que coloca novamente o debate acerca da dialética entre classe e direção.
        Os sovietes estão no centro da Revolução Russa, chegando ao ponto de ser parte indispensável de sua vitória. Sem a organização dos sovietes, certamente não teria havido o triunfo revolucionário. Surgidos na revolução de 1905, os sovietes foram reprimidos durante o período de reação (1907-1916), ressurgindo em 1917. Entre fevereiro e outubro de 1917 os sovietes foram totalmente hegemonizados pelos mencheviques, que lhes imprimiram um caráter conciliador. Se estabeleceu, então, um período de duplo poder entre os sovietes e o governo provisório, empenhado em reestabelecer todas as instituições burguesas do país. Sovietes e instituições burguesas não poderiam conviver muito tempo nesta disputa não declarada pelo poder; alguém teria que terminar se impondo sobre o outro. A política menchevique, contudo, levava ao poder burguês e a subordinação total (isto é, a destruição) dos sovietes. Foram os bolcheviques que imprimiram um caráter de independência de classe aos sovietes, preparando as condições para que tomassem o poder em outubro de 1917, não, casualmente, durante um dos congressos de sovietes de toda a Rússia.
        A maioria bolchevique resolveu o duplo poder em favor dos sovietes. Esta maioria conquistada pelos bolcheviques não se sustentaria um único minuto se não fosse a expressão dos operários e camponeses em luta durante o processo revolucionário. Tampouco uma pequena fração do movimento operário russo, como foram os bolcheviques até setembro de 1917, poderia ter mantido o poder durante uma cruel guerra civil, caso não fosse a expressão direta dos interesses das massas trabalhadoras.
        Ignorando todos estes detalhes fundamentais, muitos companheiros argumentam que “os sovietes tinham que continuar livres” e que necessitavam se “centralizar pela classe” ou “pelo mundo do trabalho”, como se os bolcheviques representassem algo alheio à classe e ao mundo do trabalho. Ora, não existe uma “classe abstrata” com “interesses abstratos de classe”. De 1917 até a ascensão ao poder da burocracia stalinista, os bolcheviques foram a encarnação consciente dos interesses da classe operária russa. Nesse sentido foram uma direção política reconhecida da classe. Cumprindo este papel certamente cometeram erros, mas jamais traições, como foi o caso do stalinismo. Os camaradas que pensam desta maneira ignoram o fato de que não existe uma massa abstrata e perfeita; isto é, sem contradições. A massa possui distintos níveis de consciência e em grande parte é atrasada em razão das suas condições de vida e de educação. Portanto, querer uma “revolução perfeita” é pressupor que ela pode se homogeneizar do ponto de vista da consciência de forma espontânea, o que é praticamente impossível. Seria pressupor que a burguesia e os seus agentes diretos e indiretos abdicariam de tencioná-la no sentido da restauração do seu velho poder e de ter influência sobre ela. É precisamente esta pressão permanente feita pela burguesia nacional e internacional que tenciona no sentido da degeneração da revolução, além, é claro, dos problemas internos da própria massa, que tem um nível cultural baixo e sofre com o seu alto grau de heterogeneidade. Estes dois problemas – pressão da contrarrevolução burguesa e atraso de parte das massas – estão interligados.
        Os sovietes foram a forma organizada da aliança entre a classe e a sua vanguarda mais consciente, que estava no partido bolchevique. Não é o mero fator da vanguarda se organizar em partido que significa a sua inevitável degeneração, como defendem erroneamente muitos desses companheiros, mas a política que sustenta e a pressão que este partido cede ou combate. Respondendo à mesma polêmica, no longínquo ano de 1937, Trotsky escreveu: “Os que opõem uma abstração de sovietes à ditadura do partido deveriam compreender que somente graças à direção dos bolcheviques os sovietes saíram do pântano reformista para o papel de órgãos do Estado proletário”[iii]. Muitos companheiros também defendem, erroneamente, que os sovietes não eram instituições de um Estado de novo tipo (alguns chegam ao cúmulo de dizer que se tratava de um “Estado burguês”).
        Os camaradas não compreendem (ou não querem compreender) a importância e o papel da direção política da classe trabalhadora. Atribuem a qualquer direção ou partido (indistintamente ao programa ou a política que defendem) o papel de “burocratizadores por natureza”. Este menosprezo à direção política, entendendo que a classe se dirige espontaneamente mesmo com distintos níveis de consciência e heterogeneidade, tende a caminhar para a desorganização política e à subordinação inconsciente às direções burguesas declaradas e não declaradas. Certos camaradas pensam que se “centralizar pela classe”, tal como ela é, representaria um antídoto contra a degeneração, o que é um grave erro. O proletariado se subdivide em vários segmentos, como vanguarda e retaguarda. Isto é um fato sociológico. Não se pode igualar a sua vanguarda com a sua retaguarda, ainda que se tenha que levar em consideração os anseios da retaguarda. Neste caso, se condena o bolchevismo pela ousadia de ter tomado o poder e, de quebra, se transforma esta grande experiência num crime. Ao invés de estudá-lo em detalhes, estes camaradas apenas viram as costas ao processo histórico e se voltam para a metafísica.

Em defesa do bolchevismo!
Não satisfeitos com nossas respostas, que se sustentam em fatos históricos insofismáveis, alguns destes camaradas ainda afirmam que os bolcheviques foram autoritários após 1917, no período compreendido entre 1918 e 1923. Ora, camaradas, é preciso fazer uma reconstrução histórica. Mesmo no auge do processo revolucionário os bolcheviques procuraram as outras frações operárias para construir um governo em comum, como os mencheviques e os Socialistas Revolucionários (narodiniks), mesmo possuindo as mais profundas divergências políticas e programáticas. Estes deram as costas ao chamado dos bolcheviques, como atesta este trecho escrito por Trotsky: “O comitê central do nosso partido buscou uma aliança com os Socialistas Revolucionários (SRs) de esquerda. Propusemos a eles que tomasse parte na construção do governo dos sovietes. Eles hesitavam e diziam que o governo deveria ter o caráter de uma coalizão entre os partidos soviéticos. Mas os mencheviques e os SRs de direita havia rompido com o Congresso dos Sovietes porque eram defensores decididos de uma coalizão com os partidos anti-soviéticos. Assim, só nos restava deixar os SRs de esquerda a tarefa de tentar trazer seus colegas de direita para o campo da revolução; porém, enquanto eles se ocupavam dessa causa sem esperança, nós nos sentíamos obrigados a assumir toda a responsabilidade pelo governo”[iv].
Os SRs de “esquerda” flertaram com o Conselho de Comissários do Povo durante algum tempo, mas depois romperam totalmente, inclusive cometendo um atentado contra a vida de Lenin. Os bolcheviques viram-se sozinhos, apenas com o apoio dos operários e camponeses mais avançados, tendo que enfrentar uma coalizão de 14 exércitos imperialistas. Há ainda, outros camaradas que sustentam o “autoritarismo bolchevique” reivindicando a liberdade aos partidos burgueses, que foram totalmente proibidos. Estes camaradas certamente nunca refletiram sobre o termo marxista conhecido como “ditadura do proletariado”. Neste caso, apenas refletem a pressão ideológica da burguesia, que sempre reclamará a “liberdade” para os seus partidos (por acaso o MDB, o PSDB, o Democratas, o PSL e tantas outras máfias políticas que, no essencial, defendem exatamente o mesmo, não deveriam ser proibidos? O que eles fariam em um regime socialista?). Também nunca refletiram sobre as contradições de um processo revolucionário, que descamba para a luta armada. Quem pensa que uma revolução é uma estrada de tijolos amarelos e que a classe operária pintará um mundo cor de rosa precisa acordar se quer realmente lutar por uma revolução socialista.
Foi por isso que Lenin escreveu que: “uma revolução, uma revolução real, profunda, do povo, para usar a expressão de Marx, é o processo incrivelmente complicado e penoso de morte de uma velha ordem social e o nascimento de uma nova, o ajustamento das vidas de dezenas de milhares de pessoas. Uma revolução é a mais aguda, mais furiosa e desesperada luta de classes e guerra civil. Nenhuma grande revolução da história escapou da guerra civil. Se não houvesse circunstâncias excepcionalmente complicadas, não haveria revolução. Quem teme os lobos, não vai à floresta”.
Qual era a situação da URSS logo após o triunfo da Revolução de Outubro de 1917? Um “Estado operário” recém fundado, repleto de contradições e dividido entre 5 formas de economia, com instituições políticas totalmente novas e nunca utilizadas antes, cercado de inimigos, dentre os quais o que viria a se tornar o nazi-fascismo. Somava-se a isso um baixíssimo nível cultural, de um país recém liberto de uma monarquia “semi-feudal”, com inúmera tradições burocráticas e medievais. Ao peso do boicote do imperialismo no mercado mundial, se somou a derrota dos processos revolucionários na Europa e a invasão dos 14 exércitos imperialistas que desencadearam uma furiosa guerra civil que matou a melhor parcela da vanguarda operária que estava a frente dos sovietes e do partido bolchevique.
Cabe observar cuidadosamente certas peculiaridades da Rússia: o burocratismo, o atraso secular, o autoritarismo dos governos czaristas (que governaram por séculos – basta ver a mentalidade dos seus funcionários e do povo russo nas várias obras de Dostoiévski e Tolstói), a inexistência de uma sociedade civil organizada, a repressão, trabalhos forçados, a tortura, deportação e execução de prisioneiros políticos (que era prática comum na história russa). Para muitos dos camaradas com quem procuramos polemizar, a degeneração se explica por ações isoladas do governo bolchevique, ou simplesmente por esse ser um “partido”. Claro que as ações do governo podem ser decisivas para o futuro de um sistema econômico e de uma revolução, tal como as ações do bolchevismo o foram em determinados casos, mas isso não pode ser considerado como o essencial em uma análise que se pretenda “marxista”. No geral, as ações dos governos bolcheviques estavam em consonância geral com os interesses dos trabalhadores russos, cometendo erros, equívocos e excessos em casos específicos que estavam marcados por guerras civis cruéis, desencadeadas não pelos bolcheviques, mas pelo imperialismo e pela burguesia russa. Quem não entendeu isso, não entendeu a questão de um ponto de vista classista e não poderá lutar por uma revolução!
É nesse contexto que se inserem os erros e excessos denunciados pelos camaradas no caso de Kronstadt[v], por exemplo; ou no caso da repressão ao exército ucraniano liderado pelo anarquista Nestor Makno, que exigia total autonomia do exército vermelho (o que pode ser questionável de um ponto de vista da estratégia militar). O mesmo não pode ser dito sobre os Processos de Moscou (1936-1938) e a coletivização forçada, já sob o governo de Stalin, que tinha um caráter bem diferente e o Estado soviético já somava 20 anos. Deveria se ter primado pelo desenvolvimento de outra cultura política e utilizar outros mecanismos, como os econômicos, ao invés das mentiras judiciais e dos métodos militares completamente dissociados das decisões dos sovietes. Isso tudo só demonstra que há um abismo entre o governo revolucionário dos primeiros anos da revolução e os anos posteriores do governo burocrático da camarilha comandada por Stalin. Colocar os dois erros no mesmo “saco de gato” denota certa ausência de análise dialética e influências não-proletárias.
Muitos dos referidos camaradas ainda sustentam que o problema foi o “centralismo” de Lenin, que se transformou no centralismo despótico de Stalin. Isso é uma distorção grosseira, pois o centralismo leninista foi uma necessidade para unificar o partido na época da clandestinidade (1899 até 1917), fortalecer o trabalho político, dar uma linha comum às diversas organizações revolucionárias, tal como uma via de duas mãos. Sem isso não teria havido a Revolução de 1917, apenas grupos clandestinos trabalhando separada e caoticamente, tal como baratas tontas. Algumas conclusões mais radicais contra o bolchevismo por parte de alguns camaradas parecem apontar que o melhor teria sido não tomar o poder (ou se tivessem tomado e seguido suas orientações políticas, o governo soviético não duraria 1 dia).
Lenin jamais defendeu que os militantes deveriam se submeter acriticamente a qualquer decisão de Comitê Central, nem que o centralismo de cima pra baixo deveria ser a forma do Estado socialista (tal como Stalin sempre defendeu, inclusive atribuindo esta bizarrice a Lenin). Tudo isso são distorções grotescas de pessoas interessadas em difamar o leninismo ou que nunca abriram uma única página dos seus livros. O centralismo democrático correspondia a condições de clandestinidade e extrema desorganização do movimento operário russo. Uma vez que outras condições materiais e sociais fossem atingidas, esta forma organizativa poderia ser substituída por outra. Lenin foi meridianamente claro sobre isso. Quem erigiu o centralismo em lei dogmática e absoluta foi Stalin e sua camarilha. Os elementos “mais preparados” defendidos por Lenin não são selecionados entre burocratas de Estado e “iluminados”, como ironizam os camaradas com quem polemizamos, mas os melhores revolucionários, mais conscientes, mais capazes de resistir às pressões ideológicas e políticas da burguesia; não “na teoria”, por decreto de governo ou por conveniências políticas de bastidores, mas pela experiência concreta na luta de classes.
Por tudo isso, Trotsky escreveu na sua última obra, não casualmente uma biografia de Stálin, o que segue: “é bastante tentador inferir que o futuro stalinismo já estava enraizado no centralismo bolchevique ou, de forma mais radical, na hierarquia clandestina dos revolucionários profissionais. Naturalmente, existem perigos de um tipo ou de outro no próprio processo de escolher e arranjar pessoas com pontos de vista avançados e soldá-las em uma organização fortemente centralizada. Mas as raízes de tais perigos nunca serão encontradas no chamado ‘princípio’ do centralismo; devem ser buscadas na falta de homogeneidade e no atraso dos trabalhadores – isto é, nas condições sociais gerais que tornam imperativa a direção muito centrípeta da classe por sua vanguarda. A chave para o problema dinâmico da direção está nas inter-relações reais entre a máquina política e seu partido, entre a vanguarda e sua classe, entre centralismo e democracia. Essas inter-relações não podem, por sua natureza, ser estabelecidas a priori e permanecer imutáveis. Elas dependem de condições históricas concretas; seu equilíbrio móvel é regulado pela luta vital das tendências que, representadas por seus extremos, oscilam entre o despotismo da máquina política e a impotência do prolixismo”[vi].
        Este trecho sustenta a importância de centralizar o trabalho revolucionário em um partido (entendido como organização dos trabalhadores conscientes contra o capital, e não como partido institucional e eleitoral numa perspectiva burguesa) em razão do atraso político e da alienação da maioria da massa. No entanto, este partido está submetido à condições históricas concretas e não ideais. Uma vez que não haja esta compreensão sobre a necessidade de uma direção para o processo revolucionário, caímos numa espécie de espontaneismo[vii] que é avesso ao espírito organizador e conscientizador da filosofia marxista (muito bem compreendido pelo bolchevismo). A noção de “dirigir” o proletariado não significa subjugá-lo, tratá-lo como gado; mas conscientizá-lo, conquistá-lo através do debate, da justeza das suas palavras de ordem em meio ao caos e à confusão das massas, tal como os bolcheviques o fizeram em 1917.
É por isso que a crítica de Otto Rühle contra o bolchevismo, escrita em 1939, é injusta e problemática. Ela coloca Lenin no mesmo saco que Stalin a partir de distorções grosseiras do processo histórico. Transforma os equívocos do bolchevismo numa caricatura grotesca e monstruosa, equivalendo o bolchevismo não apenas ao stalinismo, mas ao fascismo. Com uma grande borracha redutora apaga todo o passado bolchevique na clandestinidade; ignora as saudáveis polêmicas que o Iskra[viii] travou contra os partidos da IIª Internacional, os espaços cedidos para Rosa Luxemburgo apresentar sua versão de partido aos trabalhadores russos, a educação revolucionária contra a conciliação de centena de milhares de operários, dentre outras características extremamente positivas que nos faltam hoje. Um outro adepto da igualação entre bolchevismo e stalinismo é Noam Chomsky, o linguista norte-americano, que, a despeito de suas boas contribuições políticas de denúncia à ação do imperialismo ianque, tende a nos oferecer uma “saída” política diferente do bolchevismo que termina por misturar o anarquismo com a democracia burguesa.
Poderíamos concordar que a afirmação feita pelos bolcheviques (e reafirmada depois pelo stalinismo) de que “se pode exercer a ditadura do proletariado somente através do Partido Comunista” está equivocada desde que partíssemos de uma ressalva. O partido revolucionário é elemento fundamental e determinante de uma revolução, embora possam existir outras forças que exerçam a ditadura do proletariado, como o “Estado Comuna” ou outra forma de organização popular hoje desconhecida. Lenin e Trotsky sintetizaram a experiência russa desta maneira em razão da experiência exitosa da organização operária a partir dos partidos comunistas. Provavelmente existam outras maneiras de exercer a ditadura do proletariado e não apenas essa. Porém, a ressalva que se faz é que esta frase tem dois significados profundamente distintos: um dito pela boca do bolchevismo (Lenin e Trotsky); outro, completamente diferente, pela boca de Stalin.
A política praticada pelo stalinismo a partir de 1925 é completamente avessa a toda compreensão verdadeiramente leninista. O centralismo stalinista é burocrático e autoritário. Não conhece “via de duas mãos”, mas apenas o despotismo e as imposições de cima para baixo. Não há debate de ideias, apenas dogmas, decretos e ordens. Otto Rühle e Noam Chomsky sabem disso, mas preferem colocar um simples sinal de igual entre o bolchevismo e o stalinismo. Quando alguns camaradas, reproduzindo o espírito da crítica de Rühle, afirmam que ao invés de um centralismo de uma organização política devemos nos “centralizar pela classe”, isso pode ser compreendido, logicamente, como se “centralizar pelo espontaneísmo da classe”, ou seja, pela classe tal como ela é hoje. E a nossa classe hoje possui uma consciência burguesa ou pequeno burguesa. A citação de Trotsky defende a necessidade de um partido que tenha um “centralismo” político para lutar dentro da classe por uma política justa, que esbarrará num turbilhão de outras compreensões que jamais poderão dar a unicidade necessária para a luta revolucionária consciente contra a burguesia. Centralizar democraticamente significa debater e aplicar uma política justa no seio da classe, visando organizá-la para uma revolução com vistas a superar o capital; e jamais subordiná-la, enganá-la, bajulá-la. Aqui, novamente, o problema não é o “centralismo” em si, mas como ele é utilizado e compreendido.
Nesse sentido, defender o bolchevismo não significa ignorar seus erros, nem dogmatizá-lo. Há que se revisitá-lo permanentemente, mas reconhecer e preservar o seu valor histórico tal como ele merece: foi a primeira conquista do poder pelo proletariado! O que queremos sustentar com tudo isso é que não existem talismãs contra a degeneração: apenas o curso da luta real e teórica pode decidir. Certamente deve-se buscar as causas das derrotas, mas isso deve ser feita de forma dialética. Não é o caso dessas análises que jogam tudo fora, ignorando que uma revolução é um fenômeno complexo, que mexe com forças gigantescas, contrárias e dinâmicas, não sendo possível nenhuma garantia de um êxito perfeito.
Não podemos idealizar as massas. A autoridade é parte concedida pelos subordinados e parte construída em cima dos medos (medo da punição, da demissão, da perseguição, da desagregação – o chamado “espírito de rebanho” da filosofia nietzschiana). Um partido revolucionário, para receber esse nome, necessita desenvolver a ideia de que as massas não devem seguir nenhuma liderança ou partido por medo (inclusive ele próprio), mas por convicção, por compreender as suas ideias e perceber a justeza de suas posições. Foi precisamente este o papel do bolchevismo sob Lenin. Somente este método pode preparar as condições para dissolver a necessidade de uma direção e criar coragem e capacidade para que as massas avancem para a autogestão. Em suma: precisam ser ensinadas, desde a mais tenra infância, a agir desse modo. Porém, isso só será possível em um outro regime social, que chamamos de socialismo. É uma calúnia atribuir ao bolchevismo a intenção de “centralizar tudo em si, obrigar as massas a obedecê-los, tratá-las como crianças”. Isto é, precisamente, o stalinismo. O bolchevismo exigia disciplina e respeito às decisões da maioria (ou tudo isso não é necessário para se fazer uma revolução?); tampouco idealizava as massas e, muito menos, o seu espontaenísmo.
Há que se examinar com lupa todas as posições que procuram igualar bolchevismo e stalinismo. Os trabalhadores conscientes devem desconfiar duplamente daqueles que lhes dizem que não é necessário partido, direção, programa e política. Os verdadeiros amigos do proletariado dizem-lhe claramente: precisamos que os trabalhadores criem uma organização (partido), uma estratégia (programa) e uma política (ação social consciente) que defenda os seus pontos de vistas. E estes amigos ainda acrescentarão: não é sábio jogar fora a experiência das derrotas e, muito menos, das vitórias!

Frustração e revolução!
      Muitos camaradas querem um processo revolucionário livre de contradições, quase como uma estrada de tijolos amarelos. Isso nunca existiu e nunca existirá. A toda revolução corresponde uma contrarrevolução. E uma contrarrevolução traz sempre o germe da degeneração, do medo, da traição. Os trabalhadores avançados precisam estar plenamente conscientes de que quem luta pode ser traído e derrotado. Não há uma fórmula mágica, nem um jeito de acabar com a frustração. Aos trabalhadores conscientes cabe se preparar para tudo isso e não se deixar paralisar ou criar empecilhos de antemão. Estudar e tirar as lições históricas de tudo. Quem teme a frustração jamais poderá fazer uma revolução!
O espírito de um revolucionário deve ser como o de Marx, que escreveu o seguinte: “As revoluções proletárias, como as do século 19, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem-se constantemente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para começar de novo, troçam profunda e cruelmente das hesitações dos lados fracos e da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário para que este tire da terra novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade dos seus próprios fins, até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso”[ix].
        O principal caminho é o da luta teórica, que deverá classificar e testar todas as posições políticas através do debate de ideias e, principalmente, da prática. As experiências que ficam devem ser agarradas com unhas e dentes pelos trabalhadores conscientes e ser incorporada ao marxismo e às teorias socialistas como grandes relíquias do pensamento humano. De resto, sobram apenas lamentações, aos quais teremos que deixá-las para quem vai visitar o famoso muro de Jerusalém.
        Devemos ir além da dicotomia cristã de “bem X mal” e do pragmatismo burguês, que classifica tudo conforme a ótica de um consumidor de classe média que compra um produto e exige seus direitos no PROCON se ele “não funciona”; ou seja, aquela visão simplista que afirma: “o socialismo não dá certo”, tal como se ele fosse construído nas nuvens e pudesse ser medido pelo lucro individual e não como um processo histórico repleto de contradições. Uma revolução engendra uma guerra civil contra os exploradores, o que acarreta violência, conflitos políticos, civis e militares. Tudo isso pode nos levar à degeneração (tal como aconteceu na Rússia durante o curso da década de 1920). Não podemos esperar uma revolução mágica e “perfeita” a partir de uma receita de bolo (como “se centralizar pelo espontaneísmo da classe”), sem contradições ou problemas novos. O socialismo e o comunismo não acabarão com as contradições. Apenas criarão novas bem distintas das atuais, que se baseiam na exploração do trabalho e na miséria humana. Não sabemos exatamente quais serão elas; e seria um exercício vão tentarmos adivinhar. Porém, a experiência com as revoluções do século 20 nos dão algumas pistas.
        O debate para superar a “crise do socialismo” está muito menos no peso da “ditadura do proletariado”, no regime do terror e na sua posterior degeneração expressa nos regimes stalinistas (que tem causas bastante compreensíveis e evidentes), do que na necessidade de desenvolver a psicologia de massas do socialismo, a educação, a autonomia individual que respeite a coletividade e a individualidade dentro daquela, que combata a apatia, a repressão moral-sexual e o espírito de rebanho. Os problemas do “socialismo” expressos no século 20 – tal como a sua degeneração em ditadura stalinista – é causa ou consequência do espírito de rebanho presente em grande parte da massa? Quem pode afirmar seguramente qual dessas duas opções é a preponderante? É justamente esta problemática que está colocada para a futura geração de revolucionários que poderá superar esta crise, e não os olhos no passado que condena as vitórias do proletariado e exalta o espontaneísmo. É saber como casar a direção política das massas com o seu espontaneísmo, sem castrá-lo ou oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás da própria cauda ou o que é pior: canalizado e dirigido pela burguesia! São precisamente estas questões que a burguesia quer esconder dos trabalhadores, lançando preconceitos anti-partido, anti-organização e anti-bolchevique.
        A grande contradição a ser resolvida por nós no atual período histórico é: uma massa de trabalhadores que tende ao “rebanho” cego e à falta de iniciativa que busque sua liberdade (chegando ao cúmulo de combater a ação de indivíduos ou organizações socialistas, exaltando candidatos e partidos fascistas). A questão é: a crítica injusta ao bolchevismo ajuda ou atrapalha a solução desta contradição? Fortalece a luta contra o espontaneísmo ou ajuda a jogar areia nos olhos dos trabalhadores? Todos os socialistas, incluso Marx e Lenin, pensavam que as mudanças na base econômica iriam resolver a alienação dos trabalhadores automaticamente. Porém, a experiência com a Revolução Russa demonstra que é necessário uma intervenção muito mais consciente nesse processo, inclusive do ponto de vista psicanalítico, ajudando a criar a futura psicologia de massas e a autonomia necessária à autogestão.
        A engenharia política do bolchevismo demonstrou um caminho e uma técnica para a insurreição popular, que deve sempre ser tratada da maneira mais cuidadosa possível. A degeneração do Estado soviético, longe de ser de responsabilidade direta do bolchevismo, necessita ter uma política consciente de combate à burocratização, às pressões internacionais e nacionais, bem como uma educação para a autonomia, a autogestão, a emancipação política, econômica, moral e sexual das massas. Os sinais mais evidentes para a construção do socialismo não serão dados pelos índices de crescimento econômico, mas pela capacidade da educação pública e da política criarem indivíduos independentes, críticos e autônomos que trabalhem em consonância com a coletividade. A sua capacidade de iniciativa e empreendedorismo nada tem a ver com a compreensão burguesa, mas com a construção e a solidificação de uma sociedade em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.
        Talvez a grande questão para qualquer revolução que pretenda criar um novo governo e um novo sistema econômico seja estabelecer um novo equilíbrio que seja diferente do atual, que está visivelmente saturado. A sociedade, bem como os sistemas bioecológicos presentes na natureza, baseiam-se em equilíbrios. Os sistemas econômicos e as classes sociais criaram diversos tipos de equilíbrios ao longo da história. Nesse sentido, a revolução e o comunismo devem criar um novo equilíbrio, com novas instituições que deem suporte a este novo equilíbrio. Os revolucionários precisam refletir suas tarefas nesses termos, embora isso jamais possa redundar num reformismo e numa adaptação ao sistema atual (no caso, ao equilíbrio vigente na nossa época). O partido revolucionário deve estar atento a busca desse novo equilíbrio dentro da massa, para que a nova sociedade consiga se estabelecer da melhor maneira possível e gere o peso correto capaz de equilibrá-la.
        Os bolcheviques – meio consciente, meio inconscientemente – deram os primeiros passos nesse sentido. O stalinismo destruiu esses passos e apagou as pegadas na areia.


NOTAS


[i] "Termidoriano" vem de "termidor", uma expressão que foi instituída pela Revolução Francesa a partir do seu novo calendário. Neste "novo" período do ano (correspondente a 27 de julho de 1794 do calendário cristão) os jacobinos foram derrotados por uma fração da direita reacionária – os girondinos – que abriu o caminho a Napoleão, sem, no entanto, chegar a restaurar o regime feudal. Trotsky utiliza o termo, por analogia, para designar a tomada do poder pela burocracia stalinista no seio do Estado Operário, sem, apesar disto, restaurar plenamente o capitalismo.
[ii] “Bolchevismo e stalinismo”, de Leon Trotsky.
[iii] Idem.
[iv] “A revolução de outubro”, de Leon Trotsky. Em algumas edições do mesmo livro o título é “Como fizemos a revolução de outubro?”.
[v] O caso de Kronstadt seria marcado por uma repressão do governo bolchevique (ainda dirigido por Lenin e Trotsky) contra os marinheiros e soldados dessa fortaleza no mar do norte (próximo à Finlândia) que, em meio à guerra civil contra os 14 exércitos imperialistas, exigiam maiores liberdades políticas e econômicas. Com medo de incentivar tendências burguesas, o então governo bolchevique reprimiu duramente a manifestação, fato que ainda hoje é denunciado pelos anarquistas.
[vi] TROTSKY, Leon. Stálin, Editora Movimento, São Paulo, setembro de 2017
[vii] A espontaneidade revolucionária é uma tendência a acreditar que a revolução social pode e deve ocorrer espontaneamente a partir de baixo, sem a ajuda ou orientação de uma parte de vanguarda, e que não pode e não deve ser provocada por ações de indivíduos ou partidos que possam tentar fomentar tal revolução.
[viii] Antigo jornal bolchevique, no qual foi publicado o livro de Lenin “Que Fazer?” e muitas polêmicas teóricas (inclusive de adversários do bolchevismo).
[ix] Trecho de "O 18 brumário de Luis Bonaparte", de Karl Marx.

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