terça-feira, 26 de março de 2019

O Rio de Janeiro continua feio


A cidade maravilhosa é maravilhosa para alguns e abjeta para a maioria. Poderíamos facilmente parafrasear a marchinha: “cidade escandalosa, cheia de desigualdades mil!”.
Nela, prazer e sofrimento, ostentação e miséria partilham o mesmo espaço. Cidade sedutora e injusta, onde vive em estado de latência constante uma guerra civil não declarada. Os milhares de turistas que a visitam todos os meses nem sempre notam que lá mora uma elite que espezinha o próprio povo, metamorfoseando a escravidão negra em vendedores ambulantes, moradores de rua e trombadinhas sem perspectivas de vida.

Favelas e feudos
            Desembarcando no Galeão pegamos um Uber. A Linha Vermelha está cercada por grandes tapumes com cenas de futebol que, segundo dizem as autoridades, “serve para preservar as comunidades do barulho da auto-estrada”.
O Complexo da Maré é, na verdade, uma maré de favelas, que não cessa de aumentar. E os turistas verem isso torna-se um pouco desconfortável. Mas estas mesmas autoridades não tem coragem de assumir que a favela é a “sujeira” e os tapumes são o “tapete”.
Desde os grandes vitrais do Galeão se pode vislumbrar uma belíssima capela toda iluminada que se ergue sobre um morro. Passando pelos tortuosos viadutos que levam da Ilha do Governador – onde se encontra o Galeão – até a Linha Vermelha, o motorista do Uber nos esclareceu: “é a Igreja da Penha”. Logo em seguida complementa: “está cercada pelo Complexo do Alemão”. Teriam os católicos dali melhor forma de penitência? 
“A situação está piorando assustadoramente”, disse nosso motorista, que mora numa comunidade disputada pelo tráfico de drogas. “Lá eles fecham as ruas, desfilam com fuzil na mão e o governo não entra. Os moradores são extorquidos por uma facção e por outra ao mesmo tempo”.
As milícias e os traficantes agem no morro como agiam os senhores feudais e a Igreja na Europa medieval. Lá o Estado não entra. E nem faz muita questão! Todos os seus olhos estão voltados para as zonas turísticas, onde certamente não hesitaria um minuto em declarar guerra ao tráfico caso alguma facção ousasse tentar colocar as mãos.
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As milícias partiram para uma cruzada nacional: dos morros do Rio de Janeiro se alçaram ao governo federal. Este discurso do medo da violência urbana, criado e mantido por eles, foi o combustível para impulsionar o voo. Ouvindo o motorista do Uber pude compreendê-lo um pouco melhor.

Dois Rios de Janeiros: um bom e um não!
            Espremida pelo oceano de favela e pelo Atlântico está a Zona Sul: um oásis em meio a fome e a miséria. A vendedora de Copacabana viaja de São João de Meriti, na baixada fluminense, até lá para vender queijo assado na beira da praia, sob um sol escaldante, andando de uma ponta a outra várias vezes ao dia. Ela sente o peso da miséria, mas não percebe a contradição social.
A beira da praia é um shopping informal, repleta de vendedores de todos os tipos: alô água; alô cerveja; alô caipirinha! Olha o biscoito “grobo” e a quentinha! Chegou o camarão assado e o queijo na brasa! Querem uma cadeira de praia ou um guarda sol?  Óculos escuros, cangas, saídas de banho, chapéus ou eletrônicos vendidos pelos haitianos? 
Leme, Copacabana, Arpoador, Ipanema e Leblon! O circuito de praias “interligadas” da Zona Sul é uma cidade à parte, cosmopolita, movimentadas dia-e-noite, faça chuva ou faça sol. Aquele clima de verão o ano inteiro, naquela areia quente e macia, regada à água de côco, torna-se um paraíso sobre a Terra. Mas o paraíso de uns é o inferno-não-percebido de outros.?
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            Volta e meia alguém comenta ou grita: “uns moleques roubaram uma bolsa lá em Ipanema e tão vindo pra cá”; ou então: “tem uma movimentação estranha ali”. Olhos sobressaem preocupados e vigilantes por entre os óculos escuros. E a contradição latente, a guerra civil não declarada, a pólvora prestes a explodir segue o seu rumo. “Esses trombadinhas malditos vem aqui atrapalhar a nossa paz”; mas ninguém fala nada sobre a elite nacional e o seu sistema que atrapalham a paz do futuro dos trombadinhas.
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            A beira da praia da Zona Sul também é lugar de encontros. O “micro empresário” paulista que conversa com o casal português; a senhora dinamarquesa que convida a família de Buenos Aires a visitá-la na Europa; o casal composto por uma carioca e um austríaco que conversam descontraidamente com um casal gaúcho; os italianos que fogem do inverno europeu e se atiram na areia sem guarda sol para manter o bronzeado no escaldante verão carioca; o estadunidense que fala português cheio de sotaque com um grupo de jovens negros da favela Cantagalo num quiosque em Ipanema.
            O Rio de Janeiro não é apenas uma cidade de contradições sociais de classe, mas de encontros internacionais.

O latifúndio de Botafogo e a mureta da Urca
            Botafogo é um bairro intermediário entre a Zona Sul, o centro e as favelas. Possui muitos prédios históricos, comércio pujante e uma movimentada vida noturna na rua Voluntários da Pátria. Das calçadas do bairro se pode ver, de um lado, o Redentor com seus braços abertos sobre a Guanabara e, do outro, o Pão-de-açúcar e a enseada (onde Darwin ficou hospedado quando da sua famosa vinda à América do Sul). Hoje o custo de vida não é tão caro quanto na Zona Sul. Ficamos nesse bairro por estas qualidades e, também, por conhecê-lo melhor do que os outros.
            Nosso apartamento nos brindava com uma vista de frente para o Pão-de-açúcar e os barcos da enseada. Passamos horas contemplando aquela vista, observando os bondinhos subindo e descendo. Não muito distante do nosso apartamento se encontra a estação de metrô de Botafogo, que é um ponto de conexão entre linhas de ônibus e trem subterrâneo. O metrô do Rio é movimentado, seguro, mas muito caro (a passagem custa R$4,30).
            Conforme a tradição aristocrática portuguesa, Botafogo surgiu como uma sesmaria (latifúndio), dado pelo fundador da cidade, Estácio de Sá, ao seu amigo Francisco Velho. Anos mais tarde ele revendeu suas terras a João Pereira de Souza “Botafogo”, que deu seu apelido ao bairro. Esta história não se restringe apenas ao bairro da enseada, mas a muitos outros lugares do Rio, que também surgiram de grandes latifúndios, como o Cantagalo e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Esta raiz aristocrática de Botafogo preservou-se nas épocas posteriores, como no início da República Velha, quando era habitado por “magnatas de uma vaidade singular” que, conforme Lima Barreto, entendiam que “o Rio é Botafogo; o resto é a cidade indígena e negra”. Estes magnatas vaidosos animaram “os especuladores para embelezar areais à custa dos cofres públicos organizando uma verdadeira jogatina com os preços dos terrenos das restingas que eles compraram por dez-réis-de-mel-coado”[i].
            Próximo de Botafogo está a Urca, que pra mim é como se fosse um pedacinho da Itália no Brasil, com casinhas floridas e típicas, enfeitadas por azulejos coloridos e banhadas por um mar calmo e cheio de embarcações. Contornando toda a “costa” da Urca está a famosa mureta, onde muitos cariocas se encontram para ver o pôr-do-sol, beber cerveja e comer pastel de camarão no Bar da Urca. Dali se pode avistar o aterro do Flamengo, os aviões que decolam e partem do aeroporto Santos Dummont, e uma pequena parte da baía de Guabanara. É um patrimônio da cidade não reconhecido como ponto turístico.

O sem-chinelos e o Leblon
            Numa manhã ensolarada desembarcamos no metrô do Leblon. O comércio despertava: portas abrindo-se, pessoas varrendo a calçada, colocando placas e mesas na rua. Um morador de rua negro e sem chinelos nos abordou com uma voz manhosa. Pedia desesperadamente dinheiro para comprar na banca de revistas um par de chinelos havaianas (sim, em algumas bancas do Rio é possível comprar chinelos de praia). Ele tinha apenas R$4 (faltavam R$16). Frente a minha negativa ele se pôs a chorar e a espernear em meio a vários transeuntes que passavam apressados para assumir a sua vida cotidiana no famoso bairro; todos só não estavam completamente alheios àquela cena porque olhavam o mendigo com certo receio.
            Não foi o único que vimos vestindo apenas bermuda ou calção, sem nenhum tipo de calçado (o futuro nos reservará um “movimento dos sem-chinelos”?).

A abordagem dos moradores de rua e a indiferença assustada da classe média
            O Rio de Janeiro abriga centenas de milhares de pedintes. É o resultado da situação periférica do país no mercado mundial e da atuação de sua elite, que mantém o Brasil nesta condição. Sem alternativas, eles migram para a Zona Sul para mendigar. Em meio à fartura, à ostentação e à indiferença de muitos turistas e da classe média (que os trata como se fossem nada), a abordagem de alguns é dúbia. Pedem, imploram, choram; gritam que “estão como fome”; ameaçam veladamente aumentando o tom de voz e chegam a emitir sons selvagens.
            A classe média da Zona Sul convive com estas abordagens diariamente. Fomos testemunhas. Ela vive no paraíso e quer desfrutar dele, mas sempre olhando com medo para os lados. Prefere fazer como os três macaquinhos, fechando os olhos, os ouvidos e a boca para não perceber a contradição e a angústia. Deita nas esteiras da praia, mas volta e meia levanta os olhos assustados para ver se não vai ocorrer nenhum arrastão. A mesquinharia é tanta que apoiam qualquer demagogo autoritário para manter seu padrão de vida sem ter que mexer nas bases sociais que lhes dá sustentação.
A partir daí “gozam” as belezas naturais da cidade com medo da própria sombra e sempre choramingando que “este país não dá certo”.

O assalto em Ipanema
            Chegamos em Ipanema por volta de umas 18h. Pudemos ver as diversas tonalidades do entardecer e o pisca-pisca das luzes da favela do Vidigal, que desponta ao longe, no morro dos dois irmãos. Ficamos sentados num quiosque conversando e bebendo. O entardecer foi dando lugar à noite fechada. Alguns pedintes nos abordaram no método já descrito. Seguiram adiante.
            As centenas de milhares de pessoas que aproveitavam a praia se transformaram em meia dúzia, entre vendedores ambulantes e uns poucos grupos de amigos ou casais que ficavam sentados aqui e acolá, na praia ou no calçadão. Quando o relógio bateu 22h começamos a nos arrumar para voltar ao metrô, com destino à Botafogo.
            Neste interim, gritos foram ouvidos da praia. Um casal, sentado próximo ao mar, se debatia e se enfrentava com um assaltante, que tentava levar a bolsa da garota. As pessoas se levantaram e ficaram olhando, perplexos. Ninguém teve coragem de fazer nada e polícia não se via num raio de 10 quilômetros. O trombadinha se pôs a correr pela praia a passos largos e sumiu no breu. Um clima terrivelmente ruim tomou conta do ambiente e uma insegurança neurótica começa a se apossar das nossas mentes, como se a nossa própria sombra fosse nos trair.
            Cenas como essa não são apenas comuns no Rio de Janeiro, mas totalmente institucionalizadas no país inteiro (embora no Rio sejam muito mais evidentes e vergonhosos). Numa tarde de domingo, mesmo com a beira da praia fervilhando, também pudemos ver um episódio como este, quando um menino se pôs a tentar roubar (e não conseguiu) uma corrente de ouro de um homem que andava de bicicleta. Ao perceber um trombadinha tentando lhe saquear a correntinha, o homem lhe correspondeu com cotoveladas. E tudo isso em meio a uma multidão passiva, indiferente e assustada.

Os blocos de carnaval e o prefeito evangélico
            Há quem diga que a alma do Rio é o carnaval; e que a sua fama superou a de Veneza. Alguns foliões cariocas mais empolgados chamam este momento nem tão fugaz de “céu sobre a Terra”.
            Eu, particularmente, nunca gostei de carnaval. Tal como os Engenheiros do Havaí, “danço no silêncio e choro no carnaval”. Mas como estava lá, me entreguei o quanto pude ao espírito de Baco, que parece encontrar algum ambiente naquelas ruas. Na temporada que estivemos no Rio era pré-carnaval, mas os tamborins estavam tão aquecidos que era como se fosse. Pode-se sentir um frenesi no ar e uma busca de corpos. Dionísio estava à solta (ainda que seja muito desconfortável tomar vinho pelo calor e pelos preços) para fazer o seu elogio da loucura.
            Os evangélicos, por sua vez, arautos da repressão moral, não gostam de frenesis e corpos que se buscam. Tragicamente o atual prefeito do Rio é da “PIURD” (o Partido da Igreja Universal do Reino de Deus). Se esforçou para usar qualquer desculpa (como as fortes chuvas e enchentes que assolaram a cidade) e a confusão de permissões para dificultar ao máximo o tráfego de blocos carnavalescos. Nos tempos de Lima Barreto existia a “Liga pela Moralidade”, que averiguava as roupas femininas e o nível da “exaltação das ruas”; hoje ela está, sem se declarar, no comando da prefeitura.
            Apesar disso, pudemos comprovar que o poder de persuasão de Dionísio é muito maior do que o do Espírito Santo.

O terreirão do samba à luz do luar
            Se não era afeito ao carnaval e às suas escolas de samba, o mesmo não ocorre com o partido alto e as rodas de samba, produtos da melhor poesia popular. Às costas da imponente e badalada Marquês de Sapucaí, encontra-se o terreirão do samba, onde o couro come todas as noites de sábado que antecedem o carnaval.
            Nada mais simples do que um grande espaço (que mais parece um estacionamento), com alguns bares, mesas, cadeiras e uma roda de sambistas bem ao centro. Esta é a autêntica música popular brasileira: totalmente gratuita! De lá ouvimos o grupo Galo cantô e a Velha Guarda da Imperatriz Leopoldinense, composta por senhores e senhoras de cabelos grisalhos, vestidos de verde e branco, com direito a chapéu de malandro. As melhores melodias, a animação mais autêntica e sincera de gente simples, dedicada à resistência do samba. Na parede em direção aos banheiros se pode vislumbrar pinturas de uma parte importante do rol do samba: Dona Yvone Lara, Clara Nunes, Mauro Diniz, Beto sem braço. Se não existem negros no governo Bolsonaro ou se eles são a extrema minoria nas universidades e nos cargos de comando, no terreirão do samba eles são a absoluta maioria.
            Samba é filosofia, fidalguia do salão; tem a força e a magia que acende o coração. E pra nossa alegria, o terreirão foi além: por trás das grades de ferro se erguia a torre do relógio da Central do Brasil. Essa luz tão divina iluminou o grupo Fundo de Quintal, que subiu no palco que se encontrava um pouco mais atrás fazendo a ciranda do povo.
            De fato o Fundo de Quintal perdeu muito de sua autêntica expressão popular dos anos 1980 e 1990, mas vê-los tocar é, ainda assim, um privilégio. Em nenhum lugar do mundo se toca samba como no Rio de Janeiro e desfrutar desta raiz popular na fonte é como se os trens lotados clamassem a cada manhã, igual ao golpe do gol do peito do maracanã.
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            Se o terreirão do samba nos lembrou dos clamores da nega Celeste, Copacabana nos apresentou o Bip Bip, um barzinho de resistência política e cultural que surpreende pela melodia, pela simplicidade e pelo calor humano. O bar é tão pequeno que a roda de samba ocupa todo o espaço interno, obrigando as pessoas – dentre as quais estão muitos turistas – a ficarem na rua. Gente simples, grandes músicos, militantes, intelectuais e boêmios se reúnem religiosamente todas as noites de domingo neste pico, fazendo do Bip Bip um patrimônio carioca, conforme atesta a plaquinha redonda bem no topo da porta de entrada.
            E já que ninguém faz samba só porque prefere, o terreirão do samba e o Bip Bip nos atestaram que o poder da criação popular no Rio de Janeiro marca como um giz, se tornando eterno porque é raiz. Naquele inesquecível domingo chuvoso em Copacabana, com a rapidez de uma estrela cadente os poetas se deixaram levar pela magia, de onde brotavam versos e melodias e, quando notamos atrás de nós, uma calçada cheia “de povo” se pôs a cantar.

Um pedaço de Portugal no Brasil
            Todo mundo só dá bola para o Corcovado e o Pão-de-açúcar, mas o centro histórico do Rio de Janeiro é um presente para quem gosta de arquitetura e história; e, além disso, as belezas naturais da zona portuária, com seus prédios coloniais e históricos não ficam muito pra trás. Certamente estas não são “belezas fáceis” e “banais”: há que se ter um olho treinado, mas para quem conseguir enxergar além, temos um verdadeiro tesouro a céu aberto, por onde também vagam outros tantos moradores de rua, trombadinhas, gatos e cachorros sem dono.
Aliás, o Rio é a cidade dos gatos de rua! Há uma visível supremacia dos felinos abandonados sobre os cães. No morro de Santa Teresa vimos um gatinho cinza caminhando por entre o arame farpado de uma grande construção colonial; e na vegetação das pedras do Arpoador vimos outro dormindo.
As ruelas do centro histórico no entorno da Confeitaria Colombo, por sua vez, nos levam de volta para os tempos do Machado de Assis. Elas desembocam no Real Gabinete Português de Leitura; a biblioteca frequentada pelo romancista e que ainda hoje conserva os livros da época. A arquitetura e as estátuas do palacete são magníficas. Bem próximo dali está a Praça Tiradentes, local onde o inconfidente foi enforcado em 21 de abril de 1792. Entre um e outro está a Igreja de São Francisco de Paula, erguida em 1759, que teve missas frequentadas pelo Imperador Dom Pedro II.
No Largo da Carioca e na Cinelândia há uma grande aglomeração humana de camelôs, vendedores ambulantes de toda a espécie e moradores de rua. Mas há grandes construções históricas como a Biblioteca Nacional e o Teatro Municipal, ambos duramente criticados por Lima Barreto por seu caráter elitista, bem como o magnífico Mosteiro de São Bento. Segundo o escritor, “depois que se mudou para a Avenida e ocupou um palácio americano”, se afastou ainda mais do povo. “A velha Biblioteca”, escreve ele, “era melhor, mais acessível, mais acolhedora, e não tinham a empáfia da atual. Como é que o Estado quer que os malvestidos, os tristes, os que não têm livros caros, os maltrapilhos ‘fazedores de diamantes’, avancem por escadarias suntuosas, para consultar uma obra rara, com cujo manuseio, num dizer aí das ruas, têm a sensação de estar pregando à mulher do seu amor?”[ii].
Ironicamente, foi na “livraria” da Biblioteca Nacional que comprei seu livro de crônicas escrito entre 1900 e 1922, intitulado Lima Barreto – Cronista do Rio, infelizmente a um alto preço. Nele, estão contidos genialmente críticas a todos os problemas do Rio de Janeiro moderno: enchentes, a derrubada de prédios históricos; bondes e trens lotados; a formação alienante da cultura do futebol e do carnaval do nosso país; uma crítica sobre a índole dos políticos brasileiros, seus discursos ocos e as “reformas urbanas” que só atingiam os mais pobres; o contraste entre a pobreza e os hotéis de luxo (que começavam a despontar no seu tempo); as feiras e os mafuás e o retrato falado do mundo suburbano. Também foi um exímio crítico dos burocratas de Estado e do funcionalismo público que, no geral, menosprezavam o povo. Leitura indispensável não apenas para entender o Rio, mas o Brasil moderno.
Do centro, aonde se encontra a Biblioteca Nacional, para os arcos da Lapa e a escadaria Selarón, que levam ao topo do Morro de Santa Teresa, é um passeio. Os ares da Lapa, com seus barzinhos, teatros e igrejas, lembram muito Salvador. Ali vivem centenas de milhares de mendigos, habituados a conversar com turistas e forasteiros. O ambiente boêmio e simples, marcado por uma arquitetura característica, que mescla elementos coloniais e modernos, é belo e nos faz voltar alguns séculos para trás. Ver o fluxo de turistas na escadaria Selarón e no alto do Morro de Santa Teresa é perceber que ali é, sem dúvida, outro ponto de encontro internacional em meio a uma paisagem bem suburbana.

Conhecendo a ilha da Moreninha
            Nos últimos dias decidimos ir visitar a lendária ilha de Paquetá, no meio da baía de Guanabara. As barcas, que chegam e saem de hora em hora, tem o seu porto no meio do Rio antigo: o Paço Imperial. Lá estão prédios históricos, de uma belíssima arquitetura colonial, Igrejas medievais e uma grande estátua de Dom João VI. Há, no Rio de Janeiro, um grande culto à monarquia que não se vê no resto do Brasil (que se traduz também no culto ao militarismo; inclusive à ditadura militar).
            Aguardando para embarcar num barzinho popular bem em frente da entrada, fomos abordados por uma moradora de rua que não conseguia falar, apenas grunhia. Contribuímos com o que podíamos dando nossos níqueis àquela triste figura (que perdeu completamente sua humanidade provavelmente vivendo nas ruas) e embarcamos pontualmente num grande barco catamarã. A viagem é incrível, desde a proximidade com a Ilha Fiscal, que nos permite vislumbrar a arquitetura dos prédios, lembrando alguma coisa da Rússia; até passar por baixo da ponte Rio-Niterói, onde se encontram centenas de navios e barcos. Nas proximidades da Ilha de Paquetá existem inúmeras outras ilhas inabitadas, de onde despontam uma exuberante mata verde.
            Chegando na Ilha, desembarcamos num grande portão em que “agenciadores de turismo” aguarda os forasteiros para ganhar algum dinheiro, levando-os nas suas bicicletas características (na ilha não existem carros, mas apenas estas bicicletas e carros de campo de golfe). O exotismo da ilha não está apenas na sua “baía” de chegada, que forma uma bela paisagem de barcos de pescadores, mas, também, as suas habitações e igrejas do século XIX. A mais famosa é a suposta casa da “moreninha”, a personagem central do famoso romance de Joaquim Manuel de Macedo.
            Próximo do local de desembarque se pode ver a Igreja Bom Jesus do Monte, pequena, mas possuindo um bonito estilo colonial. Na mesma rua se pode ver um canhão transformado em monumento público. Segundo o que se pode ler na sua placa, era utilizado para dar salvas de tiros quando o Rei Dom João VI chegava na ilha. Próximo dali está a famosa “praia da moreninha”; embora hoje esteja um tanto suja. Sua água é quente comparado às praias atlânticas do Rio. Lá faz muito calor, e os moradores parecem não se importar com o fluxo permanente de turistas pelas ruas: caminham sem camisa, cumprimentam os vizinhos, conversam em voz alta. Apesar da praia não ser muito convidativa para um banho, nela existe um belíssimo trapiche, chamado “ponte da saudade”, de onde se pode tirar boas fotos e apreciar a paisagem.
            Entre a “praia da moreninha” e o local de desembarque existe a casa do pintor Pedro Bruno, que cultiva um belo jardim e uma réplica perfeita da estátua da Vênus de Milo. Aliás, a Ilha de Paquetá é pitoresca por uma coluna com frisos de cenas gregas, muito conservada e bonita. Estar nessa ilha dá uma estranha sensação de voltar no tempo (e não apenas por suas casas e igrejas antigas).

O Rio do amanhã
            O Rio é uma cidade histórica. Como parte fundamental da história do Brasil, reúne construções e arquiteturas que remontam vários séculos e diversas influências. Naturalmente, possui muitos museus importantes, como o Museu da República e o Museu nacional, que desgraçadamente pegou fogo em razão do desaso das autoridades e dos frequentes cortes de verbas para o serviço de pagamento da “dívida” pública. Nesta breve visita à cidade não pudemos visitar todos eles, mas demos destaque a um museu no seu dia gratuito: o Museu do Amanhã.
            Sediado em um grande prédio futurista na zona portuária, o Museu do Amanhã é voltado para refletir o futuro (seria inspirado pela música do Cazuza?) e a relação do ser-humano com o cosmos, o aumento descontrolado da população mundial, os impactos na Terra e na natureza. Pouco ou nada aborda sobre a miséria gerada pelo capitalismo, o que é uma grande falha; mas nem por isso o museu deixa de ter profundos méritos. Em uma conjuntura de retorno à Idade Média, a sua existência defendendo as conquistas científicas é um alento. O mais bonito, talvez, seja o contraste que o prédio do museu produz com as construções coloniais do centro da cidade e a baía de Guanabara ao fundo. Tudo isso pode ser vislumbrado pelas janelas do museu.
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            E o Rio do amanhã? Como ele será? Em um país da periferia do capitalismo, campeão de desigualdades sociais, a tendência é que continue se “enfeiando” cada vez mais, institucionalizando a barbárie e reproduzindo, dia após dia, a guerra civil latente não declarada entre “feudos de favela”, de um lado; e as riquezas e hotéis de luxo para turistas, de outro. No meio disso tudo, uma classe média manipulada pelo medo e pelo egoísmo, alimentando um mesquinho e vil “ódio ao pobre” que apenas serve como testa de ferro de uma elite empenhada em vender o país a preço de banana e explorar a sua mão-de-obra.
            Não é uma casualidade que a maioria dos turistas ainda pense que o Rio seja a capital do Brasil: ele é o retrato mais perfeito do país. As grandes belezas e riquezas naturais da cidade são desfrutadas por poucos, que são observados atônitos por uma maioria que trabalha, em meio ao fogo cruzado de traficantes e políticos inescrupulosos que vendem a ideia de que a saída é se submeter cada vez mais ao mercado, que justamente gera todas essas mazelas.
           


CITAÇÕES


[i] RESENDE, Beatriz (org.). Lima Barreto: cronista do Rio. Editora Autêntica, Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2017.
[ii] Idem.

quarta-feira, 20 de março de 2019

Tiros em Nova Zelândia

Me assusta a naturalidade com que meus alunos me mostraram o vídeo do terrorista de "supremacia branca" e de extrema direita assassinando os frequentadores da Mesquita da Nova Zelândia. Era exatamente como um jogo de vídeo game qualquer. O caso não é o primeiro e prenuncia que não será o último.
Me espantou ainda mais o fato de que eles não percebem o culto da violência e a cultura do assassinato nesses jogos, não casualmente utilizado como treinamento por soldados norte-americanos. Banalizaram as mortes ao ponto de confundir ficção e realidade. Mesmo ficando chocado e perplexo, eu sou condescendente com meus alunos porque são jovens; porque ainda precisam viver mais pra abrir os olhos e ver muita coisa.
Me assusta mesmo a tentativa da maioria dos eleitores do Bolsonaro tentando fechar os olhos para o discurso do ódio e do armamento, que só pode redundar em mais catástrofes como a que vivemos em Suzano. Pra esses, nada tem a ver com nada: foi um raio em céu sereno. Pra eles, o discurso do ódio é um mero acaso; como se não tivesse consequência alguma.
A sociedade está doente; e sabemos que não é de hoje. E ao invés de caminharmos no sentido da sanidade, nos vendam os olhos e nos fazem caminhar para o abismo afirmando que esse é o futuro, essa é a liberdade!
A grande mídia banaliza tudo: e tudo se torna "normal"! O caso de Suzano, da Mesquita da Nova Zelândia e tantos outros nos EUA, no Brasil e no mundo, nada tem a ver com a sanha assassina da direita e do capitalismo em decadência. Trata-se apenas de "loucos" alheios ao discurso do ódio, da xenofobia, da "supremacia branca", do armamento, das guerras, da indústria bélica. É tudo tão natural e auto explicável que nada tem a ver com a falta de perspectiva que o sistema nos impõe: os bancos nos saqueiam tudo (previdência, direitos trabalhistas, férias, 13º, o futuro); vemos aumentar escandalosamente os miseráveis que se proliferam por todas as ruas do país e do mundo, a indústria bélica e as guerras comerciais, híbridas e "quentes"; se legaliza a cultura do bullying, do estupro, a mercantilização de todas as relações humanas; mas o problema é apenas o "comunismo", o "ser-humano" in abstractum! E os zumbis repetem, cheios de orgulho de si mesmos, cheios de egocentrismos.
Estamos vivendo dolorosamente o esgotamento de um sistema econômico e a necessidade de um novo: tudo isso são sintomas. E a enxurrada ideológica é tão grande, tão baixa, tão nefasta, levada a cabo pelos Olavos, pelos Bannons, pelos "Bolonsaros", que condenam o politicamente correto e libertam as taras e o lado podre humano, que fica tudo embaçado. Resistir com lucidez é uma tarefa de Hércules.
Banalizar o desumano é tudo o que os governos da extrema direita precisam fazer para sustentar um sistema em decadência histórica. E a primeira medida para a resistência é não aceitar o desumano como banal.

Por Eduardo Cambará, ex-operador de call center e atual professor da rede pública.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Nom ducor duco

O foco das nossas atenções deve ser sempre a Avenida Paulista: eles estão todos lá! "Conduzem o país e não são conduzidos". Seus interesses especulativos se sobrepõem a todo o restante. Seus negócios são vendidos como o "futuro do país"; o seu "êxito econômico", como o "êxito do Brasil".

Tudo falso até a medula! Fazem esse jogo cínico e baixo desde a época do café.


Qual será mesmo o sacrifício dos "moradores" da Avenida Paulista em relação à Previdência? À saúde e à educação pública? Se preocupam eles com ciência e tecnologia nacional? Ou com o desenvolvimento industrial e autônomo? Para eles o livre mercado não passa da submissão aos interesses dos monopólios e do sistema financeiro, e jamais o desenvolvimento do mercado nacional.

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Uma das maiores contradições internas do nosso país é a disputa não declarada: São Paulo X Brasil. Muitos autores, como Jessé Souza e Pepe Escobar, perceberam certas contradições entre os interesses de São Paulo e os do Brasil. O primeiro se desenvolve em detrimento do segundo, enquanto, cinicamente, temos que ouvir que se trata de uma maria-fumaça puxando 26 vagões vazios. No entanto, não responde porque os 26 vagões estão vazios. Pepe Escobar chega a tratar São Paulo como uma espécie de "região autônoma" (quase como uma Zona Econômica Especial chinesa), tipo Hong Kong, Taiwan ou Singapura.

Os trotskistas brasileiros organizados na extinta Liga Comunista Internacionalista (LCI), já na década de 1930, perceberam a contradição de forma incipiente e intuitiva, mas brilhante, colocando-a no centro gravitacional da guerra civil de 1930. A elite de São Paulo pretendia manter a estrutura política e econômica da República Velha, que lhe beneficiava amplamente, em detrimento do desenvolvimento político e econômico do restante do país.

O varguismo, que compreendeu a situação muito melhor que o PCB (enredado em dogmas e cânones), lançou uma luta inicial e vacilante contra a elite paulista, mas terminou rendido em razão dos seus métodos, em última análise, burgueses (o malfadado trabalhismo). A elite paulista, muito mais poderosa do que o restante das elites regionais — incluso a do Rio de Janeiro, que vacilava para ela em razão dos interesses mais ou menos comuns —, acabou por recompor o seu poder em novas bases, conforme atesta os documentos da LCI e o texto desse blog O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, sobretudo a partir da constituinte de 1932-1934, justamente por ser o maior colégio eleitoral do país.

Para o desenvolvimento econômico e social do Brasil é necessário submeter a elite paulistana a um projeto nacional, que tenha como foco o fortalecimento do mercado interno (e não apenas de si mesmo). É necessário, portanto, que pare de conduzir e agora seja conduzida. A mentalidade e os interesses da elite de São Paulo estão voltados para o mercado mundial e para a manutenção das condições de lucro e rendimento "ensimesmado" na maior cidade das Américas — isto é, tem que deixar de ser uma "região autônoma". É fundamental unificar taxas e tarifas, mas, sobretudo, apostar em um modelo de desenvolvimento harmônico e interligado, que leve em consideração os anseios das regiões mais atrasadas. A estrutura está montada a tal ponto que o "investimento" procura preferencialmente São Paulo em detrimento do resto do país; e basicamente nenhum governo federal tem coragem de enfrentar e remediar esta falta de planejamento.

A riqueza captada e produzida por São Paulo deve ser investida no desenvolvimento das regiões mais longínquas, criar uma infraestrutura produtiva, de transporte, comunicação e indústria. Devemos reproduzir aqui, de certa forma, o modelo empregado por Tito na Iugoslávia, onde as regiões mais ricas impulsionavam o desenvolvimento das regiões mais atrasadas.

Para isso, infelizmente, teremos que enfrentar firmemente a bilionária elite tecnocrata-financeira que habita os arranha-céus da Avenida Paulista. Se a China e o seu PCC não tivessem um projeto corrompido de capitalismo de Estado "com características chinesas", seriam uma valiosa ajuda internacional para quebrar a espinha dorsal do poder econômico e político da elite paulistana; mas, ao que tudo indica, são seus esteios mais seguros, como demonstra as melosas homenagens à China promovidas pelo prédio da FIESP, que estampou a bandeira chinesa no 70º aniversário de fundação da "República Popular" chinesa, e os "oas" deprimentes ao capital chinês de parasitas como João Dória (PSDB e cia.).

Temos que ter como uma das tarefas da revolução brasileira colocar abaixo esse odioso lema de "Non ducor, duco", por um mais humilde e condizente com um país do tamanho e da diversidade do Brasil. Que São Paulo seja a parte mais dinâmica do mercado brasileiro e não o seu dono.

domingo, 10 de março de 2019

No país do carnaval

Nunca gostei de carnaval. Gosto de samba partido alto, mas nunca gostei de escola de samba e samba-enredo. Sendo o carnaval um fenômeno de massas no Brasil nunca o entendi e nunca fiz questão de entendê-lo. Desde criança me parecia se tratar de uma explosão de alegria sem o menor cabimento.
Visitando as duas maiores cidades do país do carnaval e vivenciando parte desse frenesi digno de Baco, pude o entender um pouco mais (já que Porto Alegre de fato não é uma cidade das mais carnavalescas). Não foi apenas o desfile do Rio de Janeiro em que algumas escolas mudaram o foco da alienação para a conscientização política, como o Paraíso do Tuiuti e, agora, a Mangueira, mas os milhões de LGBTs que tomaram as ruas (no bloco da Pablo Vittar em São Paulo, por exemplo) e desafiaram as barbaridades políticas e morais que o novo governo e a elite desse país enfiam goela abaixo do povo!
Quisera nós o carnaval pudesse ser isso sempre e se aprofundar nisso cada vez mais, desmentindo as "histórias pra ninar gente grande" e dando voz para as marias, Mahins, Marielles e Malês. Foi um inesperado momento de luta que causou tremores e preocupações no governo das fake news.

Por Eduardo Cambará, ex-operador de call center e atual professor da rede pública.