quinta-feira, 4 de abril de 2024

Milei e os valores ocidentais

 

Javier Milei discursou no fórum econômico de Davos de 2024 afirmando que “os valores ocidentais estão ameaçados” pelo “comunismo” e por países como China e Brasil. Isto é, reforçou o discurso eleitoral que o sagrou vencedor das eleições argentinas de 2023.        

         Contudo, cabe perguntar aqui o que são estes “valores ocidentais” ameaçados, bem como o que os expoentes do neofascismo – como Milei, Bolsonaro e Trump – entendem por “valores ocidentais”?


         Tal como foi comum no passado – para usar uma expressão célebre – “chutar Hegel como um cão morto”, no presente é comum chutar “os valores ocidentais” e “eurocêntricos” como um cão morto!

         Por certo, os europeus cumpriram um papel cruel no processo civilizatório, do qual precisamos rever e mesmo renunciar a uma série de heranças desses valores. No entanto, isso precisa ser feito com lucidez; o que muitas vezes não é o caso.

 

         Certamente os neofascistas, tendo, no momento, Milei e a presidência da Argentina na “vanguarda” desta podridão, se referem aos valores que mais lhe são caros: a propriedade privada e a família burguesa, que é a base de sustento da primeira.

         A sua receita é simples e cruel: jogam-se todos os valores ocidentais num balaio e tentam acionar na psique coletiva mundial o velho “nós contra eles”, sempre muito eficaz. Depois, relacionam o termo “propriedade” com liberdade, o que não é, na maioria das vezes, verdade. Logo após, juntam a ela tudo o que é emocionalmente caro a maioria das pessoas, como a família, a religião, os valores habituais cultivados cotidianamente.

 

         O que Milei não diz é que atrás da propriedade privada burguesa estão inevitavelmente relacionados o colonialismo, a exploração de povos inteiros, o rentismo do sistema financeiro, o racismo, a xenofobia, a ambição egocêntrica desmedida e descontrolada; isto é, os pilares centrais do capitalismo “ocidental” que servem de base para o imperialismo estadunidense frente à ascensão meteórica do capitalismo “oriental”, tendo a China como o carro chefe.

         Ao jogar com as forças pré-conscientes e não refletida da maioria das pessoas, Milei pretende legitimar e angariar apoio ao seu projeto de saque do país via dívida “pública”, inflação fora de controle, imposição de uma dolarização que beneficia apenas a elite argentina – isto é, vai na contramão do que desejam os países do BRICS. Inclusive inviabiliza a adesão da Argentina aos BRICS, o que é um dos principais objetivos do seu governo, amplamente apoiado pelos governos estadunidenses – sobretudo pelo possível futuro governo de Donald Trump.

 

         Em sua decadência histórica, os EUA não podem abrir mão de promover sabotagens financeiras, como criação artificial e arbitrárias de barreiras alfandegárias e guerras comerciais no mercado mundial, sem deixar de ter consequências que se desenrolem numa reação em cadeia, com consequências nefastas sobre os países e pessoas mais pobres (que são mantidos na sua área de influência a partir da manipulação emocional feita através da identificação com os “valores Ocidentais”).

         As guerras comerciais tendem a degenerar em guerra militar aberta – seja feita através da intervenção direta dos EUA como no caso do Iraque e do Afeganistão; seja através de sua “terceirização” por “aliados locais”, que depois são largados à própria sorte, como é o caso da Ucrânia e, futuramente, será de Taiwan.

         Além disso, em sua decadência econômica e política, os EUA passam a inflação monetária do dólar para os países fantoches através da impressão de mais dólares sempre que as estratégias do seu governo julgam necessárias. As elites locais abraçam a inflação sem titubear e os custos, como sempre, são passados aos mais pobres.

         A decadência do imperialismo estadunidense também se traduz por uma distorção permanente do que ele vende como “jornalismo”, que é, na realidade, uma máquina de doutrinação em massa de seus valores e necessidades propagandísticas de guerra ou de “paz”, e de forma alguma pode ser tratado como “informação”. As narrativas “jornalísticas” dos EUA e dos seus aliados “ocidentais” jogam milhões de pessoas contra os inimigos do seu império, confundindo-os como “inimigos do Ocidente” e “da liberdade”.

         A “liberdade” de imprensa ocidental é demonstrada pela perseguição implacável a jornalistas como Julian Assange, e pessoas como Edward Snowden, que ousam enfrentar os interesses estadunidenses em nome do acesso à verdade. Esta “liberdade” também se expressa na manipulação descarada e sem escrúpulo da privacidade das pessoas através das redes sociais, dos seus algoritmos, bem ao estilo do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.

 


Os valores ocidentais e europeus são apenas negativos?

         Julgamos importante encontrar uma visão equilibrada, que saiba estabelecer um olhar crítico sobre a herança ocidental e europeia, mas que saiba também separar o joio do trigo, o progressivo do regressivo; aquilo que pode ajudar na emancipação proletária e humana daquilo que serve para justificar a exploração, a colonização e a opressão.

         O neofascismo de Milei, Trump e Bolsonaro, como corrente internacional, certamente defende os “valores ocidentais” naquilo que têm de pior, negativo, repressivo e opressor, servindo perfeitamente para justificar a exploração e a fonte de sua riqueza. Temem perder seus privilégios históricos e imediatos, por isso recorrem à fraude e à distorção para sustentar a parte retrógrada desses valores, se escondendo atrás de justificativas “nobres”, de tradição e de “alerta” em relação à “ameaça comunista”, “oriental”, “de fora”, aos “valores ocidentais”, como a propriedade e a família burguesa, sempre associados indiscriminada e acriticamente à liberdade.

         Ao invés de fazermos a crítica à herança cultural do Ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do ponto de vista dos povos colonizados, explorados e assassinados, das mulheres e dos povos africanos, indígenas e asiáticos, joga-se fora a criança com a água suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é pensada; ou se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do zero, como se não houvesse nada de positivo.

         O fato do neofascismo exaltar o pior da cultura ocidental – isto é, tudo aquilo que precisamos renunciar e superar –, não exclui o fato de que ela tem muitas contribuições que transcendem o colonialismo e a exploração, sendo parte do tesouro cultural humano. Revisitar esses valores com o olhar crítico é parte importante desta tarefa de renunciar ao que tem de ruim e saber superar estes valores, incorporando seus pontos positivos.

         O discurso de Milei em Davos visa, portanto, tensionar a dicotomização do pensamento e tenta salvar os valores ocidentais decadentes que sustentaram e ainda sustentam o imperialismo estadunidense e europeu, do qual é um vassalo. Parte do movimento sindical e da esquerda responde, com tonalidades identitárias não refletidas, esquecendo-se de olhar através desta lente do “caminho do meio” para dificultar um pouco mais a vida do neofascismo, que usa deste estratagema da psicologia de massas do “nós contra eles”, para adquirir vantagens política na manipulação emocional da classe trabalhadora na América e no mundo todo.

         Contudo, um dos valores ocidentais mais cultivados pelas pessoas (incluindo militantes nos seus diferentes matizes), e que mais contrasta com o pensamento oriental, é a ambição egocêntrica desmedida. É bonito e louvável, segundo o Ocidente, ser ambicioso e procurar a fama individual visando acumular riquezas. Diluir-se no todo causa um pavor descomunal no ser humano ocidental, que não mede esforços para sobressair-se de alguma forma. Não apenas os valores ocidentais se baseiam na ambição, mas o próprio funcionamento do capitalismo depende dela, cultivando-a em muitas esferas. Basta reparar o abuso das propagandas e de consumismo, ambos baseados em formas de insuflar o egotismo.

         Se é importante sabermos reconhecer a contribuição sincera e a importância individual de cada ser humano (fatores levados até o extremo da demência pelo neoliberalismo ocidental), é crucial para a superação dos “valores ocidentais” trilhar um caminho da virtude que seja natural e espontâneo; criar e não se apossar; agir e não esperar.

         Como diz a sabedoria milenar oriental: quem só vê beleza em vencer é quem se alegra em matar; e quem se alegra em matar, não verá realizado o seu propósito no mundo; o vencedor de uma guerra ministra um ritual fúnebre!

         Milei, como um ambicioso vassalo do imperialismo ocidental, procurar reordenar o sistema financeiro argentino para sustentar a máquina de guerra do complexo industrial-militar dos EUA que usa da força bruta, real e simbólica, visando perpetuar os piores valores ocidentais que, sem sombra de dúvida, devemos renunciar. Da mesma forma, é importante relembrar os bons valores ocidentais de luta pela liberdade e emancipação humana (sem nunca esquecer “do todo”) nesta luta contra os supostos auto intitulados porta-vozes do “mundo Ocidental”, que são, em essência, porta-vozes de uma nova forma de fascismo.

         Este é, em síntese, o conjunto de ideias e valores que Milei e cia. querem defender com unhas e dentes, já que, no momento, é o neofascismo o melhor “valor ocidental” capaz de preservar a sua fonte de riqueza.


domingo, 25 de fevereiro de 2024

Lançamentos do nosso blog

 

*Por Santiago Marimbondo

Se há uma esfinge que se não decifrada ameaça nos devorar (como um dragão mítico) quando se pensam os fenômenos geopolíticos que definem o cenário internacional no século XXI certamente a questão da ascensão da China à posição de potência global nas últimas décadas é a fundamental. Se desde a expansão capitalista, primeiramente capitaneada pela Inglaterra no século XIX, a posição global do então império chinês foi rebaixada a patamares não antes conhecidos em sua milenar história (o período de submissão chinesa às potências capitalistas ocidentais é conhecido hoje na narrativa oficial da burocracia estatal que dirige o estado como “século da humilhação”) a partir da revolução vitoriosa no país em 1949, e mais centralmente a partir das reformas pró-capitalistas levadas a cabo por Deng Xiaoping, o país reconquistou uma posição e influência no cenário internacional; agora dentro do contexto da economia-mundo capitalista, que se estrutura no ocidente pelo menos desde o século XV em suas diferentes fases de expressão, e que no mundo contemporâneo se manifesta dentro das relações assimétricas e hierarquicamente organizadas entre os diferentes estados nacionais no contexto da fase imperialista do modo de produção burguês.

Nesse sentido, se torna questão fundamental para todos aqueles que buscam refletir sobre as formas de estruturação atuais das relações capitalistas concretas, sua manifestação efetiva dentro das relações conflituosas entre os múltiplos capitais representados pelos diferentes estados ao redor do globo, os motivos e causas dessa nova posição global da China, que tende a ser elemento definidor, nos mais diferentes aspectos, das relações internacionais no novo século.

Para nós trabalhadores que buscamos lutar contra a reprodução de nossa condição de subalternidade, de alienação e estranhamento impostos pelas relações reificadas e fetichistas que se colocam no capitalismo, portanto, esse debate também se faz essencial. Por vezes, fruto das mais imediatas e prementes necessidades concretas que afetam nossas vidas, nós membros da classe trabalhadora somos levados a crer que as grandes questões políticas e geopolíticas, os debates sobre fatores chave que estruturam nossa realidade social, são questões a serem pensadas e debatidas apenas pelos “especialistas” autodeclarados que encontram espaço midiático nos meios de comunicação oficiais, porta-vozes bem pagos das posições da classe dominante dentro do sistema.

Faz parte da construção da hegemonia social burguesa e reprodução de nossa condição de subalternidade a reprodução dessa perspectiva; a superação dessa condição de subalternidade pressupõe que nós trabalhadores nos coloquemos a refletir, pensar de forma crítica, buscar respostas independentes, de forma coletiva, a todas as questões fundamentais que fazem parte da estruturação da realidade social onde estamos inseridos.

Assim, é preciso saudar calorosamente a iniciativa do camarada Lucas Berton, professor precário do ensino público estadual no Rio Grande do Sul, de publicar sua pesquisa e reflexão séria sobre os elementos que explicam essa rápida ascensão global chinesa, como iniciativa fundamental e exemplar de um intelectual orgânico da classe trabalhadora que visa ter não uma relação passiva e reativa com os fenômenos sociais definidores de sua época, mas uma relação ativa e militante, que entende que a reflexão teórica detida e aprofundada sobre esses fenômenos é essencial para uma ação prática e transformadora.

Leia o prefácio do livro na íntegra em:
https://quilombospartacus.wordpress.com/2023/02/14/a-ascensao-mundial-da-china-prefacio-ao-livro-de-lucas-berton/


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Budismo, taoísmo e socialismo

 

O budismo e o taoísmo têm muito a ensinar ao movimento socialista.

         O movimento socialista tem muito a aprender com o budismo e o taoísmo, que são tradições milenares.

         Há uma tendência muito séria entre os militantes para tornarem-se dogmáticos e mecânicos, apelando para a polarização irrefletida. Na maioria das vezes esta polarização adquire contornos nitidamente contraproducentes. Partem de uma análise correta acerca das classes sociais para tensionarem os polos sociais, entrando num círculo vicioso.

         Tais métodos, mais dogmáticos do que nunca no presente, também são utilizados entre a própria esquerda, o que gera uma verdadeira Torre de Babel. O “caminho do meio” budista é um importante pensamento que obriga a perceber os excessos e os problemas de cada um dos polos extremos, e busca lembrar sempre que fazemos parte, antes de mais nada, de uma totalidade muito maior do que nós e do que qualquer movimento ou país.

         Esta dose de “bom senso” acalma os ânimos e leva a um exercício de paciência e tolerância, sem falar nos benefícios de pararmos para pensar sobre as nossas próprias limitações e sombras interiores. Tais práticas não fazem parte da atividade militante, acostumada a olhar exclusivamente para o social como forma de escapar das inevitáveis questões éticas individuais e dos próprios vazios existenciais.

         O budismo é uma tradição filosófica e religiosa extremamente maleável e não sectária, que ao longo de 25 séculos tem se adaptado a diferentes culturas e à evolução da sociedade. Esta maleabilidade e não-sectarismo é uma necessidade para o movimento socialista, que parece enredado em teias dogmáticas e segregacionistas por motivos equivocados e, muitas vezes, infantis. Nestas teias acaba-se num beco sem saída com o movimento estagnado, perdendo-se a capacidade dialética de interpenetração.

         Poucos são aqueles que se dedicam a estudar a teoria e a história do movimento socialista. Mais restrito ainda é o grupo que estuda outras áreas científicas, lê outras literaturas e pensa para além de um campo apenas. Quem não sabe sustentar um argumento político sem atacar pessoal ou pejorativamente um adversário, é porque está sendo guiado por outras forças mais sombrias, como, talvez, o egocentrismo, e deveria, por isso mesmo, pensar sobre sua prática, inclusive estudando, refletindo e meditando mais para expandir a visão de mundo e a capacidade argumentativa.

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         Muitos dos princípios budistas, ainda que possam ser contraditórios com a teoria socialista, apontam para uma comunhão de ideias com a sociedade comunista.

         Por exemplo, o budismo vê no desapego às posses e propriedades parte fundamental de sua doutrina, o que caminha no mesmo sentido da ideia geral de uma sociedade comunista. No capitalismo, muita gente procura as religiões e deus como forma de ganho pessoal e prosperidade material, inclusive “pagando promessa” – dentre outras razões, é por isso também que as religiões evangélicas ganham tanto espaço no Brasil e na América Latina, se tornando parte fundamental da dominação capitalista.

         Grande parte da população – sobretudo a classe média – tem verdadeiro horror ao discurso “socialista” de retribuir o salário de todos (ou quase todos) com o salário médio de um operário (tal como o defendido pela Comuna de Paris). Toda a condenação à “ausência de liberdade” supostamente ocasionada pelo “socialismo” tem a ver, no fundo, com o medo do fim da “liberdade econômica de acumular riqueza”. Como combater essa mentalidade? Apenas pela força?

         Como o budismo apresenta o desapego a partir de uma lógica mais “espiritual”, possivelmente tenha mais apelo para as mentes religiosas que pululam por entre a massa da classe trabalhadora. Lhes afirmar que devem abandonar toda a crença religiosa por ser ilusória, só poderá abrir-lhes um vácuo de desespero, que lhes jogará nos braços das classes dominantes e das suas respectivas religiões organizadas. O budismo tem um bom caminho não apenas para dialogar com o sentimento espiritual presente na classe trabalhadora, como também, a depender de sua prática, pode cumprir um papel central na mudança interior, dita “espiritual”, pois vai no sentido da construção de um ser humano novo, mais desapegado e empático aos demais. Não haverá socialismo e comunismo sem o cotidiano e paciente exercício da compaixão.

         A visão econômica, exclusivamente materialista do socialismo, predominante até aqui, prende a mente a ganhos imediatos, simplesmente materiais, de curta duração, e impede o vislumbre de uma continuidade maior – isto é, ignora a busca inconsciente que existe na psique humana de contato com a eternidade (características centrais do sentimento numinoso e religioso presente nos seres humanos). Os ganhos materiais, fruto da luta sindical, social e política, podem empolgar a classe trabalhadora até um determinado ponto, mas não a ganha automaticamente para o ateísmo e lhe deixa brechas de vazios existenciais inescapáveis, que podem facilmente serem preenchidos por forças reacionárias.

         Há, por entre as organizações militantes, uma preocupação exclusiva de “se ganhar aquilo que a burguesia nos roubou”, o que é compreensível e, até certo ponto, correto; mas que redunda e se encerra no reforço de ganhos meramente materiais e, em última instância, individuais; muitas e muitas vezes não são necessariamente universais – vejam o enredo sem fim do economicismo mais rasteiro das categorias que lutam separadamente. Isto é, por mais contraditório que parece, um ganho na luta sindical e mesmo política geral tende a reforçar o individualismo. Ao invés de gerar desapego e crescimento da segurança individual e coletiva, reforça o sentimento de posse – o que é uma contradição pra quem pretende construir o comunismo.

         A frase final do Manifesto Comunista “os proletários nada tem a perder com uma revolução comunista, a não ser os seus grilhões”, exige um alto grau de desapego, o que cria certa dificuldade em ser praticada. Ela é analisada estritamente do ponto de vista material, o que significa dizer: a burguesia tem toda a riqueza; nós não temos nada. Queremos partilhar a fonte de riqueza da burguesia com toda a sociedade. Contudo, apenas alguns proletários chegam a esta visão tão elevada. Em sua maioria, como estão condicionados pela realidade específica das suas categorias profissionais e pela mentalidade produzida pela sociedade capitalista, tendem a resumi-la apenas à algum tipo de ganho ou vantagem particular para si e sua própria família.

         Essa é uma das formas que o capitalismo tem mantido sua influência sobre o proletariado, tencionando-o à direita com bastante sucesso. Uma vez que falta uma dimensão religiosa saudável ao pensamento socialista, a luta dos trabalhadores fica presa às questões exclusivamente materiais, facilitando a sedução e o desvio ético de grupos de trabalhadores ou mesmo da grande maioria da classe proletária por parte da burguesia e suas religiões institucionalizadas.

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         Dado o profundo caráter religioso do ser-humano, se uma sociedade socialista não apontar entre suas preocupações para uma espécie de transcendência, a “simples” educação pública será insuficiente, pois a crise existencial individual das pessoas não encontrará eco para se expressar, e a compaixão, o afeto e a felicidade individuais serão impossíveis. Nessas circunstâncias, as pessoas se voltam para o hedonismo, para o autocentramento como fator determinante de seu interesse no mundo, de seus relacionamentos, assim como de sua ação econômica. Reforçam, portanto, as relações capitalistas de produção.

         Que resultados pode haver se o povo for obrigado a abandonar suas crenças religiosas – tal como ocorreu na Rússia stalinista? O povo acabará cultuando sua religião de forma clandestina, tal como se fosse um “contrabando de fé” – ou cultuará o líder político de forma religiosa. Além de cultivar um ódio secreto contra o governo, tal proibição impositiva será inútil. O melhor será tentar dialogar com este sentimento, apresentando uma visão transcendental própria, que reforce os valores da sociedade comunista. Tais valores parecem existir em muitas destas religiões, ainda que de maneira mística e muitas vezes grosseiramente exageradas, como é o caso da exploração da fé popular a partir das inúmeras igrejas evangélicas atuais.

         O budismo, ao contrário, demonstra um caminho religioso que pode reforçar a construção de uma sociedade mais inclusiva, integrada, igualitária e democrática, isto é, princípios importantes para uma sociedade comunista. Não se trata de defender que seja tratado como uma “religião oficial”, mas de estabelecer pontes possíveis, teóricas e práticas, que consigam evoluir em direção a uma sociedade melhor e ao autoaperfeiçoamento individual.

         O taoísmo, por sua vez, busca apontar o caminho da virtude. Na sociedade capitalista tudo é transformado em mercadoria e “premiado”. Desde os alunos nas escolas, que buscam através das melhores notas a aprovação; até os trabalhadores que esperam o “prêmio” – o salário – no final do mês, se estendendo até a busca por outras formas de reconhecimentos egocêntricos, como fama, moda, palcos e palanques.

         Segundo Lao-tsé, se a virtude é premiada, as pessoas agirão pelo prêmio e não pela virtude em si mesma. O prêmio, a recompensa, o “estímulo-resposta” atrai as pessoas à disputa, assim como a ostentação de riquezas atrai ladrões. Por isso, uma educação e uma prática social voltada ao cultivo da virtude deve ser um dos objetivos de uma sociedade comunista, e não o simples retorno material da riqueza social produzida. Esta prática é eminentemente “espiritual”. Quando a virtude não é mais natural, é preciso lembrar da benevolência. Quando a benevolência não é mais natural, as pessoas fazem o bem em nome do dever. Quando as pessoas já não sabem naturalmente o que é certo, criam-se os preceitos por meio dos ritos. Os ritos são o verniz da lealdade e da sinceridade, e o início dos mal-entendidos, das divisões e das discórdias.

         Assim sendo, o apogeu de uma sociedade comunista deve ser uma economia que consiga trazer benefícios aos outros por si mesma. Tudo deve trabalhar para isso: a produção, as relações sociais, a prática laboral, a educação pública, a grande mídia, as redes sociais. Segundo o budismo, a essência de cada ser (ainda que a maioria não pense a respeito disso) é a capacidade de gerar benefícios ao outro, mas isso exige a qualidade espiritual que é a habilidade de conseguir olhar o outro ser não a partir de seu próprio contexto, mas a partir do contexto do outro – e nos referimos aqui às diversas esferas da realidade de cada ser.

         Os princípios básicos do budismo são: não causar sofrimento, trazer benefício aos seres e dirigir a própria mente. São preceitos aplicáveis à qualquer âmbito e, certamente, muito importantes para sociedades socialistas e comunistas. É a essência do processo para gerar méritos e tem implicações diretas sobre o processo econômico e social. Se a atividade econômica gera danos, causará entraves e inevitáveis conflitos sociais e políticos; até mesmo guerras. Se trouxerem benefícios e soluções, como o equilíbrio e a harmonia – o máximo que for possível –, avançaremos. Muito da nossa dificuldade surge quando acabamos presos em armadilhas de nossa própria ignorância, movidos por impulsos internos e externos que nos levam a direções equivocadas. Por esta razão, meditar para dirigir a mente e guiá-la pela virtude torna-se importante.

         O economista burguês, o marxista doutrinário preso unicamente à esfera macro econômica e os diversos tipos de cientistas apresentam grandes dificuldades e contradições nas suas análises e propostas, uma vez que estão intoxicados por ideias antigas e estáticas que funcionam como um filtro para a sua visão, impedindo-os de ver o novo. Dirigir a mente através da meditação também significa purificar a visão. Esse conselho é inteiramente válido em qualquer sentido.

         O budismo e o taoísmo podem desempenhar um papel em todo este processo, não necessariamente como tradições religiosas, mas com ideias que possam oferecer segurança verdadeira às pessoas. Os pensamentos budistas e taoístas podem colaborar com os diálogos entre posições diferentes, pois ajuda-nos a compreender muito bem a questão cognitiva e a impermanência.

         Em síntese: o socialismo e o comunismo, para se reciclarem, precisam de uma visão e uma cultura universal mais lúcida. Uma cultura de paz, proposto pelo budismo e pelo taoísmo, necessita de uma economia mais humanizada, solidária, cooperativa e menos competitiva; portanto, mais socialista!

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         O budismo e o taoísmo não estão em frontal contradição com as conclusões científicas ocidentais. Tampouco se opõem a elas ou tentam se adaptar a elas sutilmente, buscando legitimidade, como fazem a maioria das religiões organizadas. Sendo tradições religiosas e filosóficas, o budismo e o taoísmo desenvolvem uma visão aberta, reconhecidas pelo físico Fritjof Capra como já tendo antecipado muitas das conclusões científicas que a Física só atingiria em meados do século XX. A visão da conexão universal e interdependência entre todas as coisas, a impermanência, presentes no budismo e no taoísmo, enriquecem a dialética hegeliana e marxista, lhes abrindo caminhos de maleabilidade e novas formas de adaptação não-sectária a partir da visão do caminho do meio.

         A rememoração decorada de toda a filosofia materialista não pode resolver o problema da busca religiosa presente no indivíduo, muito menos convertê-la. Há que se respeitar esse sentimento e aprender a dialogar com ele.

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         O que há na mente da maioria das pessoas nesta existência é sofrimento e incerteza, o que gera aflição e desespero, que não são o resultado exclusivo da sociedade capitalista, mas da própria existência humana. Vemos, então, o surgimento de um medo, muitas vezes doentio, que se disfarça de distintas formas – e estes medos, obviamente, são manipulados pelo sistema atual.

         Para muitos cientistas e pensadores, como Carl Sagan, a morte provavelmente é um sono profundo e sem sentido, onde tudo acaba. Este cenário gera medo desesperador na maioria das pessoas e é parte fundamental de suas preocupações diárias. A religião, portanto, não pode ser debatido com rótulos ou proibições, mas com reflexão coletiva e a compreensão da importância da psique humana se conectar com o cosmos – o que pressupõe entendê-lo até onde nos é possível (e aí está todo o nosso problema: até onde nos é possível!).

         Tanto se a visão de Sagan for correta, como se não for, a condução budista de buscar uma mente serena e tranquila, cultivando-a lúcida e virtuosamente frente ao samsara, que é e a roda da vida terrestre, é um caminho a ser seguido e aperfeiçoado. As “práticas religiosas”, que na maioria das religiões organizadas, reduz-se a criar e reforçar o espírito de rebanho, que leva a uma profunda dependência dos pastores e gurus, no budismo e no taoísmo se traduzem pela meditação e aperfeiçoamento do indivíduo, cuja finalidade é o controle sobre a própria mente e sobre si mesmo. Isto é, treinar a mente para não entrar em desespero perante um ciclo perpétuo de incertezas, sofrimento e dor da vida terrestre.

         Na natureza há processos que não podem ser abreviados pela evolução da ciência, como, por exemplo, o germinar de um broto que vence a semente, a quebra da crisálida pela futura borboleta, e a evolução interior do ser humano, que não pode ser compreendida e superada por outras pessoas, se não por nós mesmos, na solitária luta individual. Melhores condições materiais promovidas pela sociedade socialista podem auxiliar esta luta solitária, mas não podem resolvê-la por si mesma.

         O budismo e o taoísmo buscam a sabedoria natural, o autoaperfeiçoamento, o desapego das posses materiais, o treinamento da mente. Assim, podem contribuir decisivamente no campo psíquico e espiritual para o desenvolvimento de uma sociedade socialista dando paciência e a força necessária para a superação das lutas individuais solitárias, que ocorrem em momentos muito diferentes para cada pessoa – diferentemente de um processo revolucionário social, que é por natureza coletivo, mas que sofre decisivas influências individuais. Podem ser, portanto, importantes pontos de apoio para a mudança interior.

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         Falar que o budismo tem muito a ensinar ao socialismo não exclui o fato de se perceber que há muita contradição entre estas duas doutrinas – algumas irreconciliáveis em um primeiro momento e talvez insuperáveis para as mentes mais ortodoxas e petrificadas. Apesar disso, ambas são parte de realidades e culturas humanas, compondo uma mesma totalidade, quer gostemos ou não. Isso não significa suprimir ou ignorar as polêmicas, como propõe certas escolas budistas, mas torná-las menos destrutivas, contraproducentes e egocêntricas; e mais complementares.

         Um aporte importante para o pensamento socialista da parte budista e taoísta diz respeito ao combate ao egocentrismo, muito presente no movimento socialista. Certamente ambos podem ajudar a trazer a tona o problema do ego dos “dirigentes” marxistas, que é um tanto grande e, por vezes, arrogante. Criar um controle operário da produção e uma autogestão social exigem novas formas de relações humanas e, sobretudo, o controle sobre o egocentrismo desmedido desenvolvido pelos sistemas econômicos e políticos anteriores. Para Lao-tsé, um líder é melhor quando as pessoas mal sabem que ele existe, pois quando seu trabalho estiver feito, seu objetivo cumprido, todos dirão: “nós mesmos o fizemos”. Este não deve ser o espírito de uma sociedade comunista?

         Justamente neste ponto é importante levar em consideração a interdependência da relação entre a mudança interior e exterior. Tanto o budismo quanto o socialismo são parciais: o primeiro atribui tudo a mudança interior; o segundo, atribui tudo à mudança exterior. Cabe aqui procurarmos um “caminho do meio” entre ambas percepções; ou seja: uma fluidez dialética entre as duas concepções de mudança.

         O budismo busca um auto aperfeiçoamento pessoal através da meditação e do despertar de uma vida interior. Não há como construir o socialismo sem a busca de uma visão mais humana cultivada pessoalmente, de mudança interior permanente, a qual a simples organização social não pode oferecer, nem suprir. O ser humano busca o contato com o eterno desde os primórdios, e continuará buscando, apesar de qualquer ideologia ou regime político. É um sentimento interior extremamente forte, que será transformado em outro, como uma ideologia política, social, filosófica, artística ou esportiva – que por sua vez, também não o suprirá.

         O socialismo de orientação marxista, no geral, tende a atribuir a mudança interior exclusivamente a mudança exterior. Chega ao ponto de dizer que a tentativa de mudança interior é “perda de tempo” se o exterior não for modificado. É possível aqui encontrar uma confluência com o budismo, que valoriza a mudança interior prioritariamente, e atribui a esta mudança à única forma de mudar o mundo exterior, o que certamente pode ser questionado de ambos os lados.

         Seria uma via de duas mãos, literalmente um caminho do meio: valorizar a mudança interior, o aperfeiçoamento pessoal, a meditação, o desenvolvimento da compaixão; ao mesmo tempo em que somente a mudança interior não pode ser nada sem uma mudança exterior que crie uma estrutura social mais justa e igualitária que se infiltre por todos os poros do indivíduo e ajude a consolidação da mudança interior, criando um regime social capaz de incentivá-la, tolerá-la e sustentá-la.

 


É possível intervir sobre o samsara?

         A noção de samsara – isto é, a realidade que conhecemos e percebemos como o mundo material, “terrestre” – é, sobretudo, algo assustador, que deixa uma grande dúvida acerca da concretização do socialismo, porque para o budismo este mundo é irreformável (ele é o que ele é! Portanto, segundo o budismo, intervir sobre ele seria inútil e até mesmo nocivo). No samsara também estaria a parte cruel e violenta da natureza, contra a qual nada podemos fazer, a não ser buscar o equilíbrio e compreensão para com ela e com nós. Em muitas escolas budistas não fica claro se o nirvana seria aqui mesmo, no samsara, ou numa outra “vida” ou “realidade superior”. Alguns mestres budistas dão a entender que sim, outros que não. Contudo, muitos dizem que é possível atingir o nirvana aqui mesmo e que esta mente tranquila é um ponto de apoio fundamental para as relações dentro do samsara tal como ele é.

         Esta visão budista sobre o samsara ser irreformável, talvez mais realista e, também, mais pessimista, sobre a vida na terra, uma vez que leva em consideração vários fatores muito além da economia, pode abrir novas perspectivas de intervenção sobre esta “roda da vida”, que massacra e traz grande sofrimento às pessoas que estão perdidas neste “oceano de sofrimento”. A teoria socialista, por sua vez, possibilita contribuir muito para ajudar no melhoramento deste mundo externo (o samsara), sem o quê, tampouco o mundo interior pode existir sem sofrer profundas e graves influências.

         Melhorar as condições existenciais certamente contribuiria decisivamente para a prática meditava e para a consolidação do Dharma (o caminho) e da virtude para todos os seres sencientes. Lao-tsé disse: “Se queres iluminar o mundo, ilumina-te. Se queres eliminar o sofrimento do mundo, elimina a escuridão em ti. A maior dádiva que podes dar ao mundo é a tua autotransformação”. É o resumo do que dizem quase todas as escolas de pensamento oriental.

         Se nos empenharmos na mudança do mundo seriamente, isso deve, necessariamente, nos transformar também. Ao vermos organizações políticas de esquerda que geram pessoas desumanizadas, insensíveis, arrogantes e egocêntricas, mas que “professam a mudança social” sem a coragem de se olhar no seu próprio espelho profundo, devemos constatar que há algo de muito errado. Em essência, esta forma viciada “de mudar o mundo” seria parte do problema e, portanto, do próprio sistema.

         Olhando o nosso planeta, a sociedade e o ego frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição? Provavelmente ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz nenhum esforço para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que tenta mudar. Se você está consciente de toda a sua atividade interna, seus pensamentos, seus sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o quão condicionado é, o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da autolibertação, tão importante para estimular, de fato, uma revolução social. Um movimento socialista e comunista que desdenha da “mudança interior”, que só reconhece o externo, o econômico, o material, será incapaz de mudar a sociedade, gerando apenas reedições pobres e mesquinhas das sociedades de classe que já existiram e, portanto, ajuda a perpetuar o próprio samsara.

 

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Post-Scriptum:

Anexo I:

         Este texto não foi o único a tentar encontrar paralelos entre o budismo e o socialismo. Um ilustre comunista alemão já havia tentado erguer algumas pontes antes:


Parábola de Buda sobre a casa incendiada



Gautama, o Buda, ensinou
A doutrina da roda da cobiça, à qual estamos atados, e aconselhou
Livrar-se de toda a cobiça e assim
Sem ambição penetrar no Nada, que ele denominou Nirvana.
Perguntaram-lhe, então, um dia seus alunos:
Como é esse Nada, mestre? Todos nós queremos
Livrar-nos de toda cobiça, como nos aconselhas, dize-nos porém
Se esse Nada, no qual então penetraremos
É talvez como o ser-um com tudo criado
Ao deitar-se alguém na água, corpo leve, ao meio-dia
Sem pensamentos quase, com preguiça deitado na água, caindo no sono
Mal sabendo então que puxa a coberta
Afundando rapidamente. Se esse nada, portanto,
É assim contente, um bom Nada, ou se esse teu Nada
é simplesmente um Nada, frio, vazio, sem sentido.

Longamente silenciou Buda, e disse, então, displicente:
Nenhuma resposta para vossa pergunta.
Mas à noite, quando haviam partido
Sentado ainda sob o pé de fruta-pão, contou o Buda aos outros
Aos que não haviam perguntado, a seguinte parábola:
Há pouco tempo vi uma casa.
Queimava.
A chama lambia o telhado.
Aproximei-me e notei que havia pessoas dentro.
Cheguei à porta e gritei-lhes que o telhado estava em fogo, incitando-as a sair rapidamente.
Mas as pessoas pareciam não ter pressa.
Uma delas me perguntou, enquanto o calor lhe chamuscava a sobrancelha.
Se não soprava o vento, se não estava confundindo com outra casa e coisa assim.
Sem responder, afastei-me novamente.
Estes, pensei, têm que queimar, até pararem de fazer perguntas.
Em verdade, amigos,
Àquele que ainda não sente o chão quente o bastante para trocá-lo por qualquer outro, em vez de lá ficar,
a este, nada tenho a dizer.

Assim fez Gautama, o Buda.
Mas também nós, não mais ocupados com a arte de suportar
Antes ocupados com a arte de não suportar, e apresentando sugestões varias de natureza terrena, e aos homens ensinando a desvencilhar-se dos tormentadores humanos,
achamos que àqueles que
À vista dos iminentes esquadrões de bombardeiros do Capital gastam tempo a perguntar
Como pensamos em fazer isto, como imaginamos aquilo
E o que será de suas economias e de seus trajes de domingo após uma reviravolta
Nada temos a dizer.


Bertold Brecht

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Anexo II:



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Anexo III: