Javier
Milei discursou no fórum econômico de Davos de 2024 afirmando que “os valores
ocidentais estão ameaçados” pelo “comunismo” e por países como China e Brasil.
Isto é, reforçou o discurso eleitoral que o sagrou vencedor das eleições
argentinas de 2023.
Contudo, cabe
perguntar aqui o que são estes “valores ocidentais” ameaçados, bem como o que
os expoentes do neofascismo – como
Milei, Bolsonaro e Trump – entendem por “valores ocidentais”?
Tal como foi comum no passado – para
usar uma expressão célebre – “chutar Hegel como um cão morto”, no presente é
comum chutar “os valores ocidentais” e “eurocêntricos” como um cão morto!
Por certo, os europeus cumpriram um
papel cruel no processo civilizatório, do qual precisamos rever e mesmo renunciar
a uma série de heranças desses valores. No entanto, isso precisa ser feito com
lucidez; o que muitas vezes não é o caso.
Certamente os neofascistas, tendo, no momento, Milei e a presidência da Argentina
na “vanguarda” desta podridão, se referem aos valores que mais lhe são caros: a
propriedade privada e a família burguesa, que é a base de sustento da primeira.
A sua receita é simples e cruel:
jogam-se todos os valores ocidentais num balaio e tentam acionar na psique
coletiva mundial o velho “nós contra
eles”, sempre muito eficaz. Depois, relacionam o termo “propriedade” com
liberdade, o que não é, na maioria das vezes, verdade. Logo após, juntam a ela
tudo o que é emocionalmente caro a maioria das pessoas, como a família, a
religião, os valores habituais cultivados cotidianamente.
O que Milei não diz é que atrás da
propriedade privada burguesa estão inevitavelmente relacionados o colonialismo,
a exploração de povos inteiros, o rentismo do sistema financeiro, o racismo, a
xenofobia, a ambição egocêntrica desmedida e descontrolada; isto é, os pilares
centrais do capitalismo “ocidental” que servem de base para o imperialismo
estadunidense frente à ascensão meteórica do capitalismo “oriental”, tendo a
China como o carro chefe.
Ao jogar com as forças pré-conscientes
e não refletida da maioria das pessoas, Milei pretende legitimar e angariar
apoio ao seu projeto de saque do país via dívida “pública”, inflação fora de
controle, imposição de uma dolarização que beneficia apenas a elite argentina –
isto é, vai na contramão do que desejam os países do BRICS. Inclusive
inviabiliza a adesão da Argentina aos BRICS, o que é um dos principais
objetivos do seu governo, amplamente apoiado pelos governos estadunidenses –
sobretudo pelo possível futuro governo de Donald Trump.
Em sua decadência histórica, os EUA não
podem abrir mão de promover sabotagens financeiras, como criação artificial e
arbitrárias de barreiras alfandegárias e guerras comerciais no mercado mundial,
sem deixar de ter consequências que se desenrolem numa reação em cadeia, com
consequências nefastas sobre os países e pessoas mais pobres (que são mantidos
na sua área de influência a partir da manipulação
emocional feita através da identificação com os “valores Ocidentais”).
As guerras comerciais tendem a
degenerar em guerra militar aberta – seja feita através da
intervenção direta dos EUA como no caso do Iraque e do Afeganistão; seja
através de sua “terceirização” por “aliados locais”, que depois são largados à
própria sorte, como é o caso da Ucrânia e, futuramente, será de Taiwan.
Além disso, em sua decadência econômica
e política, os EUA passam a inflação monetária do dólar para os países
fantoches através da impressão de mais dólares sempre que as estratégias do seu
governo julgam necessárias. As elites locais abraçam a inflação sem titubear e
os custos, como sempre, são passados aos mais pobres.
A decadência do imperialismo
estadunidense também se traduz por uma distorção permanente do que ele vende
como “jornalismo”, que é, na realidade, uma máquina de doutrinação em massa de
seus valores e necessidades propagandísticas de guerra ou de “paz”, e de forma
alguma pode ser tratado como “informação”. As narrativas “jornalísticas” dos
EUA e dos seus aliados “ocidentais” jogam milhões de pessoas contra os inimigos
do seu império, confundindo-os como “inimigos do Ocidente” e “da liberdade”.
A “liberdade” de imprensa ocidental é
demonstrada pela perseguição implacável a jornalistas como Julian Assange, e
pessoas como Edward Snowden, que ousam enfrentar os interesses estadunidenses
em nome do acesso à verdade. Esta “liberdade” também se expressa na manipulação
descarada e sem escrúpulo da privacidade das pessoas através das redes sociais,
dos seus algoritmos, bem ao estilo do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.
Os valores ocidentais e
europeus são apenas negativos?
Julgamos importante encontrar uma visão
equilibrada, que saiba estabelecer um olhar crítico sobre a herança ocidental e
europeia, mas que saiba também separar o joio do trigo, o progressivo do
regressivo; aquilo que pode ajudar na emancipação proletária e humana daquilo
que serve para justificar a exploração, a colonização e a opressão.
O neofascismo
de Milei, Trump e Bolsonaro, como corrente internacional, certamente defende os
“valores ocidentais” naquilo que têm de pior, negativo, repressivo e opressor,
servindo perfeitamente para justificar a exploração e a fonte de sua riqueza.
Temem perder seus privilégios históricos e imediatos, por isso recorrem à fraude
e à distorção para sustentar a parte retrógrada desses valores, se escondendo
atrás de justificativas “nobres”, de tradição e de “alerta” em relação à
“ameaça comunista”, “oriental”, “de fora”, aos “valores ocidentais”, como a
propriedade e a família burguesa, sempre associados indiscriminada e
acriticamente à liberdade.
Ao invés de fazermos a crítica à
herança cultural do Ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do
ponto de vista dos povos colonizados, explorados e assassinados, das mulheres e
dos povos africanos, indígenas e asiáticos, joga-se fora a criança com a água
suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é pensada; ou
se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do
zero, como se não houvesse nada de positivo.
O fato do neofascismo exaltar o pior da cultura ocidental – isto é, tudo
aquilo que precisamos renunciar e superar –, não exclui o fato de que ela tem
muitas contribuições que transcendem o colonialismo e a exploração, sendo parte
do tesouro cultural humano. Revisitar esses valores com o olhar crítico é parte
importante desta tarefa de renunciar ao que tem de ruim e saber superar estes
valores, incorporando seus pontos positivos.
O discurso de Milei em Davos visa,
portanto, tensionar a dicotomização do pensamento e tenta salvar os valores
ocidentais decadentes que sustentaram e ainda sustentam o imperialismo
estadunidense e europeu, do qual é um vassalo. Parte do movimento sindical e da
esquerda responde, com tonalidades identitárias não refletidas, esquecendo-se
de olhar através desta lente do “caminho do meio” para dificultar um pouco mais
a vida do neofascismo, que usa deste
estratagema da psicologia de massas do “nós contra eles”, para adquirir
vantagens política na manipulação emocional da classe trabalhadora na América e
no mundo todo.
Contudo, um dos valores ocidentais mais
cultivados pelas pessoas (incluindo militantes nos seus diferentes matizes), e
que mais contrasta com o pensamento oriental, é a ambição egocêntrica
desmedida. É bonito e louvável, segundo o Ocidente, ser ambicioso e procurar a
fama individual visando acumular riquezas. Diluir-se no todo causa um pavor
descomunal no ser humano ocidental, que não mede esforços para sobressair-se de
alguma forma. Não apenas os valores ocidentais se baseiam na ambição, mas o
próprio funcionamento do capitalismo depende dela, cultivando-a em muitas esferas.
Basta reparar o abuso das propagandas e de consumismo, ambos baseados em formas
de insuflar o egotismo.
Se é importante sabermos reconhecer a
contribuição sincera e a importância individual de cada ser humano (fatores
levados até o extremo da demência pelo neoliberalismo ocidental), é crucial
para a superação dos “valores ocidentais” trilhar um caminho da virtude que
seja natural e espontâneo; criar e não se apossar; agir e não esperar.
Como diz a sabedoria milenar oriental:
quem só vê beleza em vencer é quem se alegra em matar; e quem se alegra em
matar, não verá realizado o seu propósito no mundo; o vencedor de uma guerra
ministra um ritual fúnebre!
Milei, como um ambicioso vassalo do imperialismo ocidental, procurar reordenar o
sistema financeiro argentino para sustentar a máquina de guerra do complexo
industrial-militar dos EUA que usa da força bruta, real e simbólica, visando
perpetuar os piores valores ocidentais que, sem sombra de dúvida, devemos
renunciar. Da mesma forma, é importante relembrar os bons valores ocidentais de
luta pela liberdade e emancipação humana (sem nunca esquecer “do todo”) nesta
luta contra os supostos auto intitulados porta-vozes do “mundo Ocidental”, que
são, em essência, porta-vozes de uma nova forma de fascismo.
Este é, em síntese, o conjunto de
ideias e valores que Milei e cia. querem defender com unhas e dentes, já que,
no momento, é o neofascismo o melhor
“valor ocidental” capaz de preservar a sua fonte de riqueza.
Se há uma esfinge que se não decifrada ameaça nos devorar (como um dragão mítico) quando se pensam os fenômenos geopolíticos que definem o cenário internacional no século XXI certamente a questão da ascensão da China à posição de potência global nas últimas décadas é a fundamental. Se desde a expansão capitalista, primeiramente capitaneada pela Inglaterra no século XIX, a posição global do então império chinês foi rebaixada a patamares não antes conhecidos em sua milenar história (o período de submissão chinesa às potências capitalistas ocidentais é conhecido hoje na narrativa oficial da burocracia estatal que dirige o estado como “século da humilhação”) a partir da revolução vitoriosa no país em 1949, e mais centralmente a partir das reformas pró-capitalistas levadas a cabo por Deng Xiaoping, o país reconquistou uma posição e influência no cenário internacional; agora dentro do contexto da economia-mundo capitalista, que se estrutura no ocidente pelo menos desde o século XV em suas diferentes fases de expressão, e que no mundo contemporâneo se manifesta dentro das relações assimétricas e hierarquicamente organizadas entre os diferentes estados nacionais no contexto da fase imperialista do modo de produção burguês.
Nesse sentido, se torna questão fundamental para todos aqueles que buscam refletir sobre as formas de estruturação atuais das relações capitalistas concretas, sua manifestação efetiva dentro das relações conflituosas entre os múltiplos capitais representados pelos diferentes estados ao redor do globo, os motivos e causas dessa nova posição global da China, que tende a ser elemento definidor, nos mais diferentes aspectos, das relações internacionais no novo século.
Para nós trabalhadores que buscamos lutar contra a reprodução de nossa condição de subalternidade, de alienação e estranhamento impostos pelas relações reificadas e fetichistas que se colocam no capitalismo, portanto, esse debate também se faz essencial. Por vezes, fruto das mais imediatas e prementes necessidades concretas que afetam nossas vidas, nós membros da classe trabalhadora somos levados a crer que as grandes questões políticas e geopolíticas, os debates sobre fatores chave que estruturam nossa realidade social, são questões a serem pensadas e debatidas apenas pelos “especialistas” autodeclarados que encontram espaço midiático nos meios de comunicação oficiais, porta-vozes bem pagos das posições da classe dominante dentro do sistema.
Faz parte da construção da hegemonia social burguesa e reprodução de nossa condição de subalternidade a reprodução dessa perspectiva; a superação dessa condição de subalternidade pressupõe que nós trabalhadores nos coloquemos a refletir, pensar de forma crítica, buscar respostas independentes, de forma coletiva, a todas as questões fundamentais que fazem parte da estruturação da realidade social onde estamos inseridos.
Assim, é preciso saudar calorosamente a iniciativa do camarada Lucas Berton, professor precário do ensino público estadual no Rio Grande do Sul, de publicar sua pesquisa e reflexão séria sobre os elementos que explicam essa rápida ascensão global chinesa, como iniciativa fundamental e exemplar de um intelectual orgânico da classe trabalhadora que visa ter não uma relação passiva e reativa com os fenômenos sociais definidores de sua época, mas uma relação ativa e militante, que entende que a reflexão teórica detida e aprofundada sobre esses fenômenos é essencial para uma ação prática e transformadora.
O
budismo e o taoísmo têm muito a ensinar ao movimento socialista.
O movimento socialista tem muito a aprender
com o budismo e o taoísmo, que são tradições milenares.
Há uma tendência muito séria entre os
militantes para tornarem-se dogmáticos e mecânicos, apelando para a polarização
irrefletida. Na maioria das vezes esta polarização adquire contornos
nitidamente contraproducentes. Partem de uma análise correta acerca das classes
sociais para tensionarem os polos sociais, entrando num círculo vicioso.
Tais métodos, mais dogmáticos do que
nunca no presente, também são utilizados entre a própria esquerda, o que gera
uma verdadeira Torre de Babel. O “caminho do meio” budista é um importante
pensamento que obriga a perceber os excessos e os problemas de cada um dos
polos extremos, e busca lembrar sempre que fazemos parte, antes de mais nada,
de uma totalidade muito maior do que nós e do que qualquer movimento ou país.
Esta dose de “bom senso” acalma os
ânimos e leva a um exercício de paciência e tolerância, sem falar nos
benefícios de pararmos para pensar sobre as nossas próprias limitações e
sombras interiores. Tais práticas não fazem parte da atividade militante,
acostumada a olhar exclusivamente para o social como forma de escapar das
inevitáveis questões éticas individuais e dos próprios vazios existenciais.
O budismo é uma tradição filosófica e
religiosa extremamente maleável e não sectária, que ao longo de 25 séculos tem
se adaptado a diferentes culturas e à evolução da sociedade. Esta maleabilidade
e não-sectarismo é uma necessidade para o movimento socialista, que parece
enredado em teias dogmáticas e segregacionistas por motivos equivocados e, muitas
vezes, infantis. Nestas teias acaba-se num beco sem saída com o movimento
estagnado, perdendo-se a capacidade dialética de interpenetração.
Poucos são aqueles que se dedicam a
estudar a teoria e a história do movimento socialista. Mais restrito ainda é o
grupo que estuda outras áreas científicas, lê outras literaturas e pensa para
além de um campo apenas. Quem não sabe sustentar um argumento político sem
atacar pessoal ou pejorativamente um adversário, é porque está sendo guiado por
outras forças mais sombrias, como, talvez, o egocentrismo, e deveria, por isso
mesmo, pensar sobre sua prática, inclusive estudando, refletindo e meditando
mais para expandir a visão de mundo e a capacidade argumentativa.
***
Muitos dos princípios budistas, ainda
que possam ser contraditórios com a teoria socialista, apontam para uma
comunhão de ideias com a sociedade comunista.
Por exemplo, o budismo vê no desapego
às posses e propriedades parte fundamental de sua doutrina, o que caminha no
mesmo sentido da ideia geral de uma sociedade comunista. No capitalismo, muita
gente procura as religiões e deus como forma de ganho pessoal e prosperidade
material, inclusive “pagando promessa” – dentre outras razões, é por isso também
que as religiões evangélicas ganham tanto espaço no Brasil e na América Latina,
se tornando parte fundamental da dominação capitalista.
Grande parte da população – sobretudo a
classe média – tem verdadeiro horror ao discurso “socialista” de retribuir o
salário de todos (ou quase todos) com o salário médio de um operário (tal como
o defendido pela Comuna de Paris). Toda a condenação à “ausência de liberdade”
supostamente ocasionada pelo “socialismo” tem a ver, no fundo, com o medo do
fim da “liberdade econômica de acumular riqueza”. Como combater essa
mentalidade? Apenas pela força?
Como o budismo apresenta o desapego a
partir de uma lógica mais “espiritual”, possivelmente tenha mais apelo para as
mentes religiosas que pululam por entre a massa da classe trabalhadora. Lhes
afirmar que devem abandonar toda a crença religiosa por ser ilusória, só poderá
abrir-lhes um vácuo de desespero, que lhes jogará nos braços das classes
dominantes e das suas respectivas religiões organizadas. O budismo tem um bom
caminho não apenas para dialogar com o sentimento espiritual presente na classe
trabalhadora, como também, a depender de sua prática, pode cumprir um papel
central na mudança interior, dita “espiritual”, pois vai no sentido da
construção de um ser humano novo, mais desapegado e empático aos demais. Não
haverá socialismo e comunismo sem o cotidiano e paciente exercício da
compaixão.
A visão econômica, exclusivamente
materialista do socialismo, predominante até aqui, prende a mente a ganhos
imediatos, simplesmente materiais, de curta duração, e impede o vislumbre de
uma continuidade maior – isto é, ignora a busca inconsciente que existe na
psique humana de contato com a eternidade (características centrais do
sentimento numinoso e religioso presente nos seres humanos). Os ganhos
materiais, fruto da luta sindical, social e política, podem empolgar a classe
trabalhadora até um determinado ponto, mas não a ganha automaticamente para o
ateísmo e lhe deixa brechas de vazios existenciais inescapáveis, que podem
facilmente serem preenchidos por forças reacionárias.
Há, por entre as organizações
militantes, uma preocupação exclusiva de “se ganhar aquilo que a burguesia nos
roubou”, o que é compreensível e, até certo ponto, correto; mas que redunda e
se encerra no reforço de ganhos meramente materiais e, em última instância, individuais;
muitas e muitas vezes não são necessariamente universais – vejam o enredo sem
fim do economicismo mais rasteiro das categorias que lutam separadamente. Isto
é, por mais contraditório que parece, um ganho na luta sindical e mesmo
política geral tende a reforçar o individualismo. Ao invés de gerar desapego e
crescimento da segurança individual e coletiva, reforça o sentimento de posse –
o que é uma contradição pra quem pretende construir o comunismo.
A frase final do Manifesto Comunista “os proletários nada tem a perder com uma
revolução comunista, a não ser os seus grilhões”, exige um alto grau de
desapego, o que cria certa dificuldade em ser praticada. Ela é analisada
estritamente do ponto de vista material, o que significa dizer: a burguesia tem
toda a riqueza; nós não temos nada. Queremos partilhar a fonte de riqueza da
burguesia com toda a sociedade. Contudo, apenas alguns proletários chegam a
esta visão tão elevada. Em sua maioria, como estão condicionados pela realidade
específica das suas categorias profissionais e pela mentalidade produzida pela sociedade
capitalista, tendem a resumi-la apenas à algum tipo de ganho ou vantagem
particular para si e sua própria família.
Essa é uma das formas que o capitalismo
tem mantido sua influência sobre o proletariado, tencionando-o à direita com
bastante sucesso. Uma vez que falta uma dimensão religiosa saudável ao
pensamento socialista, a luta dos trabalhadores fica presa às questões
exclusivamente materiais, facilitando a sedução e o desvio ético de grupos de
trabalhadores ou mesmo da grande maioria da classe proletária por parte da
burguesia e suas religiões institucionalizadas.
***
Dado o profundo caráter religioso do
ser-humano, se uma sociedade socialista não apontar entre suas preocupações
para uma espécie de transcendência, a “simples” educação pública será
insuficiente, pois a crise existencial individual das pessoas não encontrará
eco para se expressar, e a compaixão, o afeto e a felicidade individuais serão
impossíveis. Nessas circunstâncias, as pessoas se voltam para o hedonismo, para
o autocentramento como fator determinante de seu interesse no mundo, de seus
relacionamentos, assim como de sua ação econômica. Reforçam, portanto, as
relações capitalistas de produção.
Que resultados pode haver se o povo for
obrigado a abandonar suas crenças religiosas – tal como ocorreu na Rússia
stalinista? O povo acabará cultuando sua religião de forma clandestina, tal
como se fosse um “contrabando de fé” – ou cultuará o líder político de forma
religiosa. Além de cultivar um ódio secreto contra o governo, tal proibição
impositiva será inútil. O melhor será tentar dialogar com este sentimento,
apresentando uma visão transcendental própria, que reforce os valores da
sociedade comunista. Tais valores parecem existir em muitas destas religiões,
ainda que de maneira mística e muitas vezes grosseiramente exageradas, como é o
caso da exploração da fé popular a partir das inúmeras igrejas evangélicas
atuais.
O budismo, ao contrário, demonstra um
caminho religioso que pode reforçar a construção de uma sociedade mais
inclusiva, integrada, igualitária e democrática, isto é, princípios importantes
para uma sociedade comunista. Não se trata de defender que seja tratado como
uma “religião oficial”, mas de estabelecer pontes possíveis, teóricas e
práticas, que consigam evoluir em direção a uma sociedade melhor e ao
autoaperfeiçoamento individual.
O taoísmo, por sua vez, busca apontar o
caminho da virtude. Na sociedade capitalista tudo é transformado em mercadoria
e “premiado”. Desde os alunos nas escolas, que buscam através das melhores
notas a aprovação; até os trabalhadores que esperam o “prêmio” – o salário – no
final do mês, se estendendo até a busca por outras formas de reconhecimentos
egocêntricos, como fama, moda, palcos e palanques.
Segundo Lao-tsé, se a virtude é
premiada, as pessoas agirão pelo prêmio e não pela virtude em si mesma. O
prêmio, a recompensa, o “estímulo-resposta” atrai as pessoas à disputa, assim
como a ostentação de riquezas atrai ladrões. Por isso, uma educação e uma
prática social voltada ao cultivo da virtude deve ser um dos objetivos de uma
sociedade comunista, e não o simples retorno material da riqueza social
produzida. Esta prática é eminentemente “espiritual”. Quando a virtude não é
mais natural, é preciso lembrar da benevolência. Quando a benevolência não é
mais natural, as pessoas fazem o bem em nome do dever. Quando as pessoas já não
sabem naturalmente o que é certo, criam-se os preceitos por meio dos ritos. Os ritos
são o verniz da lealdade e da sinceridade, e o início dos mal-entendidos, das
divisões e das discórdias.
Assim sendo, o apogeu de uma sociedade
comunista deve ser uma economia que consiga trazer benefícios aos outros por si
mesma. Tudo deve trabalhar para isso: a produção, as relações sociais, a
prática laboral, a educação pública, a grande mídia, as redes sociais. Segundo
o budismo, a essência de cada ser (ainda que a maioria não pense a respeito
disso) é a capacidade de gerar benefícios ao outro, mas isso exige a qualidade
espiritual que é a habilidade de conseguir olhar o outro ser não a partir de
seu próprio contexto, mas a partir do contexto do outro – e nos referimos aqui
às diversas esferas da realidade de cada ser.
Os princípios básicos do budismo são:
não causar sofrimento, trazer benefício aos seres e dirigir a própria mente.
São preceitos aplicáveis à qualquer âmbito e, certamente, muito importantes
para sociedades socialistas e comunistas. É a essência do processo para gerar
méritos e tem implicações diretas sobre o processo econômico e social. Se a
atividade econômica gera danos, causará entraves e inevitáveis conflitos
sociais e políticos; até mesmo guerras. Se trouxerem benefícios e soluções,
como o equilíbrio e a harmonia – o máximo que for possível –, avançaremos. Muito
da nossa dificuldade surge quando acabamos presos em armadilhas de nossa
própria ignorância, movidos por impulsos internos e externos que nos levam a
direções equivocadas. Por esta razão, meditar para dirigir a mente e guiá-la
pela virtude torna-se importante.
O economista burguês, o marxista
doutrinário preso unicamente à esfera macro econômica e os diversos tipos de
cientistas apresentam grandes dificuldades e contradições nas suas análises e
propostas, uma vez que estão intoxicados por ideias antigas e estáticas que
funcionam como um filtro para a sua visão, impedindo-os de ver o novo. Dirigir
a mente através da meditação também significa purificar a visão. Esse conselho
é inteiramente válido em qualquer sentido.
O budismo e o taoísmo podem desempenhar
um papel em todo este processo, não necessariamente como tradições religiosas,
mas com ideias que possam oferecer segurança verdadeira às pessoas. Os
pensamentos budistas e taoístas podem colaborar com os diálogos entre posições
diferentes, pois ajuda-nos a compreender muito bem a questão cognitiva e a
impermanência.
Em síntese: o socialismo e o comunismo,
para se reciclarem, precisam de uma visão e uma cultura universal mais lúcida.
Uma cultura de paz, proposto pelo budismo e pelo taoísmo, necessita de uma
economia mais humanizada, solidária, cooperativa e menos competitiva; portanto,
mais socialista!
***
O budismo e o taoísmo não estão em
frontal contradição com as conclusões científicas ocidentais. Tampouco se opõem
a elas ou tentam se adaptar a elas sutilmente, buscando legitimidade, como
fazem a maioria das religiões organizadas. Sendo tradições religiosas e
filosóficas, o budismo e o taoísmo desenvolvem uma visão aberta, reconhecidas
pelo físico Fritjof Capra como já tendo antecipado muitas das conclusões
científicas que a Física só atingiria em meados do século XX. A visão da
conexão universal e interdependência entre todas as coisas, a impermanência,
presentes no budismo e no taoísmo, enriquecem a dialética hegeliana e marxista,
lhes abrindo caminhos de maleabilidade e novas formas de adaptação não-sectária
a partir da visão do caminho do meio.
A rememoração decorada de toda a
filosofia materialista não pode resolver o problema da busca religiosa presente
no indivíduo, muito menos convertê-la. Há que se respeitar esse sentimento e
aprender a dialogar com ele.
***
O que há na mente da maioria das
pessoas nesta existência é sofrimento e incerteza, o que gera aflição e desespero,
que não são o resultado exclusivo da
sociedade capitalista, mas da própria existência humana. Vemos, então, o
surgimento de um medo, muitas vezes doentio, que se disfarça de distintas
formas – e estes medos, obviamente, são manipulados pelo sistema atual.
Para muitos cientistas e pensadores, como
Carl Sagan, a morte provavelmente é um sono profundo e sem sentido, onde tudo
acaba. Este cenário gera medo desesperador na maioria das pessoas e é parte
fundamental de suas preocupações diárias. A religião, portanto, não pode ser debatido
com rótulos ou proibições, mas com reflexão coletiva e a compreensão da
importância da psique humana se conectar com o cosmos – o que pressupõe
entendê-lo até onde nos é possível (e aí está todo o nosso problema: até onde nos é possível!).
Tanto se a visão de Sagan for correta,
como se não for, a condução budista de buscar uma mente serena e tranquila,
cultivando-a lúcida e virtuosamente frente ao samsara, que é e a roda da vida terrestre, é um caminho a ser
seguido e aperfeiçoado. As “práticas religiosas”, que na maioria das religiões
organizadas, reduz-se a criar e reforçar o espírito
de rebanho, que leva a uma profunda dependência dos pastores e gurus, no
budismo e no taoísmo se traduzem pela meditação e aperfeiçoamento do indivíduo,
cuja finalidade é o controle sobre a própria mente e sobre si mesmo. Isto é,
treinar a mente para não entrar em desespero perante um ciclo perpétuo de
incertezas, sofrimento e dor da vida terrestre.
Na natureza há processos que não podem
ser abreviados pela evolução da ciência, como, por exemplo, o germinar de um
broto que vence a semente, a quebra da crisálida pela futura borboleta, e a
evolução interior do ser humano, que não pode ser compreendida e superada por
outras pessoas, se não por nós mesmos, na solitária luta individual. Melhores
condições materiais promovidas pela sociedade socialista podem auxiliar esta
luta solitária, mas não podem resolvê-la por si mesma.
O budismo e o taoísmo buscam a
sabedoria natural, o autoaperfeiçoamento, o desapego das posses materiais, o
treinamento da mente. Assim, podem contribuir decisivamente no campo psíquico e
espiritual para o desenvolvimento de uma sociedade socialista dando paciência e
a força necessária para a superação das lutas individuais solitárias, que
ocorrem em momentos muito diferentes para cada pessoa – diferentemente de um
processo revolucionário social, que é por natureza coletivo, mas que sofre
decisivas influências individuais. Podem ser, portanto, importantes pontos de
apoio para a mudança interior.
***
Falar que o budismo tem muito a ensinar
ao socialismo não exclui o fato de se perceber que há muita contradição entre
estas duas doutrinas – algumas irreconciliáveis em um primeiro momento e talvez
insuperáveis para as mentes mais ortodoxas e petrificadas. Apesar disso, ambas
são parte de realidades e culturas humanas, compondo uma mesma totalidade, quer
gostemos ou não. Isso não significa suprimir ou ignorar as polêmicas, como
propõe certas escolas budistas, mas torná-las menos destrutivas,
contraproducentes e egocêntricas; e mais complementares.
Um aporte importante para o pensamento
socialista da parte budista e taoísta diz respeito ao combate ao egocentrismo,
muito presente no movimento socialista. Certamente ambos podem ajudar a trazer
a tona o problema do ego dos “dirigentes” marxistas, que é um tanto grande e,
por vezes, arrogante. Criar um controle operário da produção e uma autogestão
social exigem novas formas de relações humanas e, sobretudo, o controle sobre o
egocentrismo desmedido desenvolvido pelos sistemas econômicos e políticos
anteriores. Para Lao-tsé, um líder é melhor quando as pessoas mal sabem que ele
existe, pois quando seu trabalho estiver feito, seu objetivo cumprido, todos
dirão: “nós mesmos o fizemos”. Este não deve ser o espírito de uma sociedade
comunista?
Justamente neste ponto é importante
levar em consideração a interdependência da relação entre a mudança interior e
exterior. Tanto o budismo quanto o socialismo são parciais: o primeiro atribui
tudo a mudança interior; o segundo, atribui tudo à mudança exterior. Cabe aqui
procurarmos um “caminho do meio” entre ambas percepções; ou seja: uma fluidez
dialética entre as duas concepções de mudança.
O budismo busca um auto aperfeiçoamento
pessoal através da meditação e do despertar de uma vida interior. Não há como
construir o socialismo sem a busca de uma visão mais humana cultivada
pessoalmente, de mudança interior permanente, a qual a simples organização
social não pode oferecer, nem suprir. O ser humano busca o contato com o eterno
desde os primórdios, e continuará buscando, apesar de qualquer ideologia ou
regime político. É um sentimento interior extremamente forte, que será
transformado em outro, como uma ideologia política, social, filosófica,
artística ou esportiva – que por sua vez, também não o suprirá.
O socialismo de orientação marxista, no
geral, tende a atribuir a mudança interior exclusivamente a mudança exterior.
Chega ao ponto de dizer que a tentativa de mudança interior é “perda de tempo”
se o exterior não for modificado. É possível aqui encontrar uma confluência com
o budismo, que valoriza a mudança interior prioritariamente, e atribui a esta
mudança à única forma de mudar o mundo exterior, o que certamente pode ser questionado
de ambos os lados.
Seria uma via de duas mãos,
literalmente um caminho do meio: valorizar a mudança interior, o
aperfeiçoamento pessoal, a meditação, o desenvolvimento da compaixão; ao mesmo
tempo em que somente a mudança interior não pode ser nada sem uma mudança
exterior que crie uma estrutura social mais justa e igualitária que se infiltre
por todos os poros do indivíduo e ajude a consolidação da mudança interior,
criando um regime social capaz de incentivá-la, tolerá-la e sustentá-la.
É possível intervir
sobre o samsara?
A noção de samsara – isto é, a realidade que conhecemos e percebemos como o
mundo material, “terrestre” – é, sobretudo, algo assustador, que deixa uma
grande dúvida acerca da concretização do socialismo, porque para o budismo este
mundo é irreformável (ele é o que ele é! Portanto, segundo o budismo, intervir
sobre ele seria inútil e até mesmo nocivo). No samsara também estaria a parte cruel e violenta da natureza, contra
a qual nada podemos fazer, a não ser buscar o equilíbrio e compreensão para com
ela e com nós. Em muitas escolas budistas não fica claro se o nirvana seria aqui mesmo, no samsara, ou numa outra “vida” ou
“realidade superior”. Alguns mestres budistas dão a entender que sim, outros que
não. Contudo, muitos dizem que é possível atingir o nirvana aqui mesmo e que esta mente tranquila é um ponto de apoio
fundamental para as relações dentro do samsara
tal como ele é.
Esta visão budista sobre o samsara ser irreformável, talvez mais
realista e, também, mais pessimista, sobre a vida na terra, uma vez que leva em
consideração vários fatores muito além da economia, pode abrir novas
perspectivas de intervenção sobre esta “roda da vida”, que massacra e traz
grande sofrimento às pessoas que estão perdidas neste “oceano de sofrimento”. A
teoria socialista, por sua vez, possibilita contribuir muito para ajudar no
melhoramento deste mundo externo (o samsara),
sem o quê, tampouco o mundo interior pode existir sem sofrer profundas e graves
influências.
Melhorar as condições existenciais
certamente contribuiria decisivamente para a prática meditava e para a
consolidação do Dharma (o caminho) e da virtude para todos os seres sencientes.
Lao-tsé disse: “Se queres iluminar o
mundo, ilumina-te. Se queres eliminar o sofrimento do mundo, elimina a
escuridão em ti. A maior dádiva que podes dar ao mundo é a tua
autotransformação”. É o resumo do que dizem quase todas as escolas de
pensamento oriental.
Se nos empenharmos na mudança do mundo
seriamente, isso deve, necessariamente, nos transformar também. Ao vermos
organizações políticas de esquerda que geram pessoas desumanizadas,
insensíveis, arrogantes e egocêntricas, mas que “professam a mudança social”
sem a coragem de se olhar no seu próprio espelho profundo, devemos constatar
que há algo de muito errado. Em essência, esta forma viciada “de mudar o mundo”
seria parte do problema e, portanto, do próprio sistema.
Olhando o nosso planeta, a sociedade e
o ego frente à necessidade de uma revolução, como resolver esta contradição?
Provavelmente ela só pode ser enfrentada quando o “eu interior” já não faz
nenhum esforço para mudar a si mesmo, mas ele próprio faz parte daquilo que
tenta mudar. Se você está consciente de toda a sua atividade interna, seus
pensamentos, seus sentimentos e suas reações, você descobrirá por si mesmo o
quão condicionado é, o quão limitado é! Isso é parte fundamental no caminho da
autolibertação, tão importante para estimular, de fato, uma revolução social. Um
movimento socialista e comunista que desdenha da “mudança interior”, que só
reconhece o externo, o econômico, o material, será incapaz de mudar a
sociedade, gerando apenas reedições pobres e mesquinhas das sociedades de
classe que já existiram e, portanto, ajuda a perpetuar o próprio samsara.
***
Post-Scriptum:
Anexo I:
Este texto não foi o único a tentar
encontrar paralelos entre o budismo e o socialismo. Um ilustre comunista alemão
já havia tentado erguer algumas pontes antes:
Parábola
de Buda sobre a casa incendiada
Gautama, o Buda, ensinou A doutrina da roda da cobiça, à qual estamos atados, e aconselhou Livrar-se de toda a cobiça e assim Sem ambição penetrar no Nada, que ele denominou Nirvana. Perguntaram-lhe, então, um dia seus alunos: Como é esse Nada, mestre? Todos nós queremos Livrar-nos de toda cobiça, como nos aconselhas, dize-nos porém Se esse Nada, no qual então penetraremos É talvez como o ser-um com tudo criado Ao deitar-se alguém na água, corpo leve, ao meio-dia Sem pensamentos quase, com preguiça deitado na água, caindo no sono Mal sabendo então que puxa a coberta Afundando rapidamente. Se esse nada, portanto, É assim contente, um bom Nada, ou se esse teu Nada é simplesmente um Nada, frio, vazio, sem sentido.
Longamente silenciou Buda, e disse, então, displicente: Nenhuma resposta para vossa pergunta. Mas à noite, quando haviam partido Sentado ainda sob o pé de fruta-pão, contou o Buda aos outros Aos que não haviam perguntado, a seguinte parábola: Há pouco tempo vi uma casa. Queimava. A chama lambia o telhado. Aproximei-me e notei que havia pessoas dentro. Cheguei à porta e gritei-lhes que o telhado estava em fogo, incitando-as a sair rapidamente. Mas as pessoas pareciam não ter pressa. Uma delas me perguntou, enquanto o calor lhe chamuscava a sobrancelha. Se não soprava o vento, se não estava confundindo com outra casa e coisa assim. Sem responder, afastei-me novamente. Estes, pensei, têm que queimar, até pararem de fazer perguntas. Em verdade, amigos, Àquele que ainda não sente o chão quente o bastante para trocá-lo por qualquer outro, em vez de lá ficar, a este, nada tenho a dizer.
Assim fez Gautama, o Buda. Mas também nós, não mais ocupados com a arte de suportar Antes ocupados com a arte de não suportar, e apresentando sugestões varias de natureza terrena, e aos homens ensinando a desvencilhar-se dos tormentadores humanos, achamos que àqueles que À vista dos iminentes esquadrões de bombardeiros do Capital gastam tempo a perguntar Como pensamos em fazer isto, como imaginamos aquilo E o que será de suas economias e de seus trajes de domingo após uma reviravolta Nada temos a dizer.