sábado, 1 de agosto de 2015

Breve história da elite brasileira

Sempre foi considerada muito obscura a origem da posse do latifúndio do coronel Fernão de Orleans e Bragança Batista Marinho, que se situava na região oeste do Estado de São Paulo. Dizia a lenda que a posse daquelas terras era herança do seu tataravô, produtor de açúcar, que comprou o latifúndio paulista após ter vendido o seu engenho em Pernambuco, recebido inicialmente como sesmaria da coroa portuguesa. A outra parte anexada, que quadruplicou as suas posses, foi resultado de uma carnificina indígena, chamada de “negociação” pelo próprio Fernão e pela imprensa local. Ali ele estabeleceu uma respeitosa família, freqüentadora da Igreja municipal e respeitadora da moral e dos bons costumes. Junto com a sua família consangüínea estabeleceu moradia para o seu séquito de capatazes, capitães do mato e escravos, bem como inúmeros clientes, parentes e “amigos”. Sua produção de café ia de vento em popa, com grandes encomendas da Europa e dos EUA.
        
Ah, a Europa e os EUA! Olhava para lá com aquele olhar admirado, espantado pelo progresso, pelos feitos daqueles povos tão cheios de virtudes; não para superá-los em sua própria nação, mas para segui-los docilmente e fundamentar sua submissão. “Temos que seguir os passos deles”, dizia Fernão para a Associação Rural Municipal de sua cidadezinha, observado por outros coronéis, seus filhos legítimos e ilegítimos, capatazes e escravos. Os mercenários da imprensa, que atendem pelo nome de jornalistas, também estavam presentes nestas audiências e publicavam as máximas de Fernão como manchetes de primeira página. No fundo, o que ele desejava ardentemente eram as polpudas encomendas européias e norte-americanas do seu café.
        
Nas manhãs de domingo de verão, cavalgava com os filhos pelos seus campos, ensinando-lhes a arte do “ofício de comandar”; nas manhãs de domingo de inverno, estuprava uma de suas escravas negras diante dos olhos dos demais escravos, incluso seus filhos; mas bem longe da sua família oficial, que ficava no conforto do lar, tomando café e fazendo os serviços religiosos. Certa feita, um escravo moço, não suportando ver tamanha violência, avançou sobre o seu senhor com os olhos vermelhos de ódio e lágrimas de sangue. Ia estrangulá-lo até a morte. “Selvagem!”, gritou Fernão para o escravo, após ser salvo por um dos capatazes da fazenda. Imediatamente o chicoteou pessoalmente com o relho de ponta de ferro, até o deixar esfolado vivo. Depois, ordenou que os seus capitães do mato o chicoteassem até a morte perante os olhos de todos os outros escravos. “Negro tem que ser tratado assim; bando de selvagens! A gente dá roupa, comida, em troca de trabalho; e o que ganha? Só deslealdade! Por isso temos que ensiná-los com o chicote”, dizia Fernão aos filhos.
        
Logo após, comparecia à missa dominical para receber a benção do padre e ouvir o sermão. Quanto mais depositava na caixinha, maior era a benção. “Que as tuas gerações se perpetuem neste bom trabalho cristão, em nome de Deus, da pátria e da família”, dizia o padre, muito a contento, olhando Fernão do alto do púlpito. Fernão, na maioria das vezes, adormecia, mas era acordado com um leve cutuco da esposa. Corria à boca pequena que o bispado brasileiro almejava canonizar Fernão após a morte em razão dos seus “inestimáveis serviços ao povo brasileiro”.
        
Quando chegava em casa, mandava um negro lhe descalçar as botas, enquanto folheava a sua leitura instrutiva: a Revista Veja. “Aí sim as coisas são ditas como tem que ser! Isso é que é coragem de falar!”; e balançava o seu exemplar, orgulhoso, pra cima e pra baixo. “Escutem só esta notícia:”, dizia Fernão à mulher e aos filhos, “Este lunático, bandido, conhecido como Zumbi dos Palmares, é uma ameaça à paz e à ordem de nossa nação. Desde o Quilombo dos Palmares, o seu movimento tem ouriçado os negros que trabalham zelosamente, bem como a paz dos engenhos e das plantações de café. A única saída para tal ameaça é o investimento maciço no exército português e colonial para arrasar esta praga que nos envergonha”. E cada vez que lia uma destas linhas, Fernão se chacoalhava, como que excitado por ver a tradução textual dos seus pensamentos mais íntimos. Os seus filhos se enchiam de ódio e desciam na senzala para espancar alguns negros, como que para punir a ousadia do bastardo Zumbi dos Palmares. Seguidamente um dos filhos de Fernão sonhava com a aparição de Zumbi na fazenda e acordava encharcado de suor e urina.
        
Alguns séculos mais tarde, quando os filhos de Fernão já eram homens feitos, tanto de estatura quanto de falta de caráter, se depararam com a seguinte notícia da Revista Veja, que teve ampla repercussão: “Esses demagogos, utópicos e baderneiros abolicionistas intensificam sua campanha contra a escravidão. Imaginem só, que utopia, o Brasil sem escravidão? Somente o liberalismo econômico e político, casado com a escravidão, é capaz de garantir o progresso e a modernização de nosso país e os ganhos reais de nosso setor produtivo. Se ela acabar, quem vai pagar a conta? Como se tudo isso não bastasse, agora estes arautos do atraso se aliaram com os republicanos e querem derrubar vossa majestade, Dom Pedro II. É sabido que o modo de governo republicano não deu certo na França e em nenhum outro país que aboliu a monarquia, o que esta gente quer fazer com o nosso Brasil?”. Eles atiravam o exemplar num canto da mesa e ficavam a praguejar contra os inimigos abolicionistas e republicanos na frente dos criados e “amigos”, que eram a sua platéia real.

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Fernão e sua família trocaram de amos algumas vezes: de Portugal para a Espanha; da Espanha para Portugal novamente; de Portugal para a Inglaterra; da Inglaterra para os EUA. “São perfeitos, maravilhosos! Queremos ser como eles”, dizia Fernão com os olhos lacrimejantes, mas sem os estudar realmente, sem entendê-los historicamente, sem ter um grama de vontade de superá-los do ponto de vista da técnica, da ciência, do comércio, enfim, por qualquer meio. A elite nacional os idolatra para naturalizar o fato de se tornarem sempre seus sócios menores, as rêmoras que nadam em volta dos tubarões. Assim eles podiam garantir a preguiça intelectual, laboral e, ao mesmo tempo, os produtos de alta tecnologia, vendendo-se para o exterior e para os mais ingênuos da sua própria nação: “vejam como somos modernos, como ‘nossa’ indústria cresceu, como somos inimigos do anacronismo e estamos na moda”. Do seu ponto de vista, os únicos adversários reais eram os representantes da elite argentina, que podiam receber os dividendos financeiros no lugar do Brasil. “Esta castelhanada maldita!”, praguejava Fernão com a mão em riste.

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Alguns anos mais tarde, a família de Fernão aprendeu a sistematizar em teoria a sua prática: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Assim se deu em 1822, 1888, 1889, 1930, 1964, nas massivas greves operárias de 1984. Foi de grande valia olhar para o movimento operário dos outros países: aprendeu bem seduzir, subornar e corromper o movimento operário com ditos religiosos, votos piedosos e, sobretudo, com as gordas divisas do Estado e da legalidade política.
        
“Também”, dizia Eduardo de Orleans e Bragança Batista Marinho Cunha, tatatatataraneto de Fernão, “com uma esquerda tão oportunista como esta, que se vende por um prato de lentilhas, a nossa tarefa fica muito fácil”. A elite burguesa brasileira deixa uma imagem de liderança de massas se estabelecer, cultivar e sustentar inúmeras ilusões, para, quando chegar o momento de grande aflição, saber utilizá-la contra o próprio povo. “Lula salvou o capitalismo no Brasil”, disse Delphin Neto, economista preferido da elite nacional. “E, depois de usá-lo, ainda conseguimos lhe lançar a pecha de ‘comunista’, de querer implantar o ‘socialismo’ no Brasil”, dizia Eduardo Cunha aos seus filhos e netos. “É um verdadeiro golpe de mestre, papai!”, falava o filho orgulhoso. Como as classes dominantes dos demais países, a ingratidão é a marca registrada da elite nacional. Lula e o PT lhes prestaram os melhores serviços, mas, "agora que já acalmamos os ânimos, não precisamos mais deles".
        
Para evitar a ditadura comunista instaurou-se uma ditadura militar através dos santificados nomes de “deus, da pátria e da família”. “Imaginem que horror”, prosseguia Eduardo, “os comunistas matam aos borbotões, comem criancinhas! Seqüestrar, torturar e matar aqui no Brasil não é contra os direitos humanos; é para preservar a nossa democracia. Somos um país democrático, moderno e em vias de desenvolvimento! Somos o país do futuro! Fazemos tudo isso para superar as ‘crises’ econômicas”.
        
O capital acumulado com a escravidão americana, que se transformou na revolução industrial inglesa, desenvolvendo as suas fábricas e nos vendendo suas mercadorias a preço de ouro, nos construiu ferrovias, nos deu inúmeros bancos, nos “trouxe o progresso”; mas, também, nos deu a dívida e(x)terna e interna – a escravidão moderna – e a grande mídia – os capitães do mato modernos. “Fazer o que?”, dizia Eduardo, “são os cavacos do ofício”. Foram muitas decisões "extremamente difíceis", cujos representantes da família Orleans e Bragança Batista Marinho Cunha sempre as tomaram pensando nos interesses nacionais: assimilação da dívida de Portugal com a Inglaterra, em 1822; empréstimos da proclamação da República, em 1889; convênio de Taubaté, em 1906; grandes transações do governo militar, em 1964; privatizações e novas solicitações de empréstimos, em 1994. Sobretudo a elite brasileira é responsável; muito responsável! Paga as suas contas em dia: “onde já se viu não honrar uma dívida?”, dizia Eduardo.
        
A elite burguesa cria uma classe social menor, à sua imagem e semelhança, que não atinge 1/3 de seus rendimentos, mas que pensa poder chegar a ser como a sua sócia maior, quem sabe um dia? Toda a sua política visa manter uma classe média satisfeita na sua mediocridade, com o televisor e o celular de “última tecnologia” (na verdade, de segunda mão; mas isso ela não sabe e nem procura saber). O país chafurda na miséria, na fome, na ignorância, na prostituição, mas se os seus rendimentos estão bem, o resto que se dane! É claro que isso nunca é dito abertamente. Para a elite e os seus cães de guarda da “classe média”, as aparências valem muito: ó purê de batatas morais!
        
O cocô do cachorro não recolhido é mais importante do que a sangria da dívida externa; o desperdício de água de uma pia é sempre muito maior do que o de uma multinacional ou de uma mega empresa; não adianta contra argumentar! Querem solucionar o problema da corrupção substituindo o PT pelo PSDB. “Deus me livre outra saída diferente dessa!”. Assim como ninguém lhes tira da cabeça que o PT é comunista, mesmo tendo um ministro da fazendo banqueiro, da escola de Chicago, que decide as principais questões macroeconômicas, bem como uma latifundiária no ministério da agricultura. Seria falta de óculos para miopia política ou apenas de honestidade? Ou os dois? O fato é que a verdadeira elite, a que está acima, a que olha para baixo, fica muito contente com todas estas “confusões”, uma vez que ajuda a desviar o foco de onde realmente interessa. É interessante notar como os ideólogos desta elite burguesa e de sua “classe média” gostam de ignorar os argumentos mais claros quando não servem às suas tendências econômicas e políticas; enfim, quando lhes desmascaram perante os olhos mais atentos. “Não se esqueçam: não há nada que um pouco de dinheiro, uma boa dose de rotina, de estabilidade e dissimulação não resolva!”, conclui Eduardo, sorrindo.

Vendo o caos inevitável gerado pelo capitalismo periférico, o sistema econômico que sustenta esta elite, mas sem levar em consideração a causa e o efeito econômico, algumas vozes da "classe média" gritam: “tenho vergonha do Brasil!”; “tenho vergonha da corrupção deste país” (salvo a do PSDB, que é tolerável: uma verdadeira corrupção de gentlemen); “o Brasil não vale a pena”! Para esta elite burguesa e a sua classe média, o caos social e o capitalismo nada têm a ver: o problema são apenas as pessoas in abstractum, a “má administração”, a roubalheira de algumas quadrilhas. A tudo isto, os trabalhadores conscientes devem responder: “temos vergonha da elite burguesa brasileira e do país que ela construiu à sua imagem e semelhança”; “temos vergonha da corrupção da elite burguesa, dos seus bancos, das suas instituições políticas, do capitalismo”; “o Brasil nunca valerá a pena enquanto estiver dirigido por este câncer terminal e por este sistema”. Somente quando os trabalhadores se organizarem politicamente, não em “Partido dos Trabalhadores”, eleitoreiro, reformista, adaptado ao sistema e conciliador com a elite que supostamente critica, mas em Partido Revolucionário Trotskista, e liquidarem este câncer, é que a verdadeira história do Brasil vai começar para o povo.