sábado, 11 de março de 2023

O autoritarismo petista nos sindicatos

“O PT preparou-se para atuar no plano legal e não se resguardou,
até hoje, dos riscos que corre num país no qual a democracia não vai além de um biombo
que oculta o monopólio do poder das classes dominantes”.
(Florestan Fernandes).

Lula, Alckmin e as "lideranças" das centrais sindicais

         O petismo usa e abusa do discurso relacionado à “democracia”. Sente-se e vende-se como o “guardião democrático” do Brasil. Podemos dizer, repetindo Florestan Fernandes, que o PT teve papel importante no desenvolvimento e consolidação da democracia burguesa brasileira, mas não podemos deixar de apontar as insuficiências e contradições dessa mesma democracia, defendida tão exageradamente por ele como a única possível.

         O efeito mais negativo desse discurso petista se dá, certamente, no movimento sindical, que controla desde o final da ditadura militar e do advento da “nova” República iniciada em 1985-1988. Desde então, o sindicalismo petista-cutista tornou-se um nítido entrave que piora a confiança dos trabalhadores nas suas forças independentes e na consciência de classe, uma vez que se desenvolve no sentido do controle com mãos de ferro, que distorce e persegue oposições minoritárias, tendo na sua total institucionalização um dos principais sintomas do seu esgotamento.

O sindicalismo petista desenvolveu um respeito quase religioso à legalidade, às eleições e às instituições da democracia burguesa, que, quando se sentem ameaçadas, tramam golpes e retirada de direitos dos trabalhadores em plena luz do dia. Certamente que se deve observar certas práticas da legalidade para que os sindicatos não sejam cassados burocraticamente e possam existir, mas isso nada tem a ver com cultuar a legalidade, embelezá-la, chamar a classe trabalhadora a confiar nela cegamente em todas as circunstâncias, tal como faz o petismo. O resultado é a destruição completa da independência de classe e a submissão total da classe trabalhadora ao Estado burguês – portanto, significa o fim de qualquer movimento sindical que interesse ao proletariado.

         Na prática de administrar os sindicatos dentro dessa estreita legalidade, PT e CUT tratam como inimigos irreconciliáveis todos aqueles que, de alguma forma, questionam essa legalidade e que reconhecem nela um entrave. Não é necessário ser um gênio em sociologia e em história para perceber o interesse da classe dominante neste legalismo, que é o meio mais eficaz para controlar movimentos de base. Qualquer tipo de criatividade que sobrevenha de baixo no calor de uma luta é morto antes mesmo de nascer, dado que não encontrará nenhum tipo de receptividade por parte das direções sindicais, preocupadas unicamente com os protocolos e rituais burocráticos aceitos pela letra fria da legislação vigente.

         Nesta perspectiva, as oposições classistas são muito mal vistas, tendo seu direito de fala e de expressão restringidos ou mesmo suprimidos. As desculpas para isso são as mais “nobres”: falta de representatividade; ou então, a simples repressão ou negação do direito a fala, tal como faria qualquer tipo de ditadura militar. Esta conduta sindical desenvolve o costume da não-escuta! Os argumentos não são rebatidos dentro do campo das ideias e no sentido construtivo de se educar toda uma categoria (ou mesmo a classe trabalhadora como um todo), mas tratados com ataques baixos, como simples “loucura” que não é digna sequer de ser considerada. Isto é, vemos, na prática, uma censura autoritária disfarçada.

         Sabemos que existem oposições irrealistas ou mesmo “irresponsáveis” (para se usar um jargão muito utilizado pela burocracia cutista), mas nem todas as oposições ou posições da base podem ser classificadas desse jeito tão edificante, nem devem ser respondidas com métodos autoritários de censura e exclusão. Como os sindicatos são órgãos coletivos por excelência, todos os seus eventos devem ser utilizados para uma formação teórica coletiva – mesmo os mais insólitos e aparentemente desrespeitosos.

         O debate precisa ser qualificado, e não simplificado a partir de generalizações rasas que apenas rotulam para a manutenção do que aí está. Este tipo de “formação sindical” – que é a que impera no sindicalismo cutista/petista – apenas pode alimentar o espírito de rebanho, pois não educa a classe no sentido da reflexão crítica e do questionamento, tensionando setores a se localizar embaixo da asa de um ou de outro caudilho sindical.

 

Alimentando o espírito de rebanho

No CPERS, que serve de exemplo por ser um dos maiores sindicatos do Brasil e da América Latina, dirigido por PT-CUT e PCdoB-CTB, qualquer crítica é tratada como “um ataque” e vista sempre como automática auxiliadora da direita. É comum ouvir comentários tristes e singelos como esse: “votaram na direita e depois querem que o sindicato resolva”. Como se tudo se resumisse às eleições burguesas – sendo que ninguém sabe ao certo em quem cada um votou. Como construir alguma luta séria com um debate tão raso e mesquinho, incapaz, no geral, de fazer surgir pensamento crítico?

         Com este tipo de “discussão” não é de se admirar que se formem apenas rebanhos humanos e currais eleitorais, de bases mais ou menos perdidas, que oscilam de um lado para outro, em busca de uma liderança que diga o que se tem que fazer. Um sindicalismo alternativo necessitaria trabalhar em uma nova perspectiva sindical, não apenas com formação teórica e política, mas com escuta sincera e diálogo permanente (aquilo que propõe Paulo Freire, que é sempre muito cultuado, mas quase nunca praticado). Ou seja, este sindicalismo necessitaria evitar criar novas cunhas e divisões dentro de cada aparato sindical, mas priorizar a resolução honesta das divergências que inevitavelmente surgem.

         Os congressos, plenárias e instâncias sindicais são viciados e meramente reprodutivos de práticas típicas de currais eleitorais que lembram muito o voto a cabresto da República Velha. A militância petista funciona, portanto, como uma reprodutora da estrutura oficial do Estado, de uma forma ou de outra, reforçando, assim, o espírito ordeiro de rebanho. Desta forma, não podemos ver surgir um sindicalismo crítico, ativo, revolucionário, que enfrente as estruturas; apenas um questionamento pontual ao que é tolerado pelo próprio sistema.

 

O petismo nos sindicatos segue a mesma prática do stalinismo

         O PT e Lula falam seguidamente em “democracia” e muitas vezes condenaram o “socialismo autoritário” (no caso, deveriam chamar pelo nome correto: stalinismo), contra o que não há nada a se objetar, porque é muito importante questionar as experiências socialistas autoritárias e burocráticas; porém, incorre nos mesmíssimos métodos do stalinismo quando está na direção dos sindicatos: calúnia, trapaças e uso de diplomacia secreta. Abafa críticas e as ridiculariza, tirando do contexto sempre que preciso – seja uma crítica que venha de pessoas organizadas em partidos e correntes sindicais ou não. O petismo não precisa recorrer à repressão física e ao assassinato de opositores como fez o stalinismo porque existem métodos mais sofisticados, feitos “democraticamente”; por exemplo: ignorando aqueles que estão “fora da legalidade sindical” e os “degolando burocraticamente”.

Isso não quer dizer que o PT não possa sofrer com oposições também desonestas e que exagerem ou mintam, mas o fato é que não está aberto a ouvir críticas e respondê-las com sabedoria, sobriedade, mas, sobretudo, com honestidade em reconhecê-las. Parte do combate das oposições histriônicas e exageradas está em não usar da desonestidade e omissão, mas enfrentá-las com argumentos e paciência, aprendendo a demonstrar suas contradições ou mentiras. Contudo, não é assim que age o PT nos sindicatos, mas as abafa com a mão burocrática do aparato e geralmente coloca todas as oposições no mesmo “saco de gato”, prestando um desserviço ao pensamento crítico e à própria construção teórica e formativa da base sindical.

No CPERS, por exemplo, PT e PCdoB exercem uma tirania burocrática contra todos aqueles que pretendem militar de forma independente e com consciência de classe, controlando o aparato através do legalismo, manobrando, sufocando ou condenando debates que questionem seu projeto de poder e o seu programa. Não deixa nenhum movimento independente se desenvolver pelo livre debate de ideias, pois as teme (por mais que jure de pés juntos o oposto).

Essa contenção do movimento pela força burocrática beneficia a quem? Ora, beneficia a própria direita e as forças conservadoras, a tradição e a zona de conforto em torno daquilo que existe – se considerarmos que o bolsonarismo é uma expressão organizada dessas forças, logo, o petismo o beneficia indiretamente, mesmo dizendo o oposto. O neofascismo só pode ser melhor combatido pela diversidade organizada e consciente de si mesma, não pelo cinismo institucional, que submete tudo à sociedade oficial. Este cinismo, no geral, tende a facilitar o trabalho do neofascismo, que sabe se utilizar e dialogar muito bem com ele.

 

Que postura ter frente ao futuro governo Lula com um sindicalismo deste tipo?

O novo mandato de Lula à frente do governo federal contará com medidas de contenção da crise econômica e social, a exemplo da Argentina, que vive o aprofundamento de graves problemas econômicos, a inflação descontrolada, cujo presidente, Alberto Fernandez, não conseguiu enfrentar com os tradicionais métodos da democracia parlamentar burguesa. O mesmo problema pelo qual passou Gabriel Boric no Chile, com uma tremenda desvalorização dos salários, bem no auge do debate sobre a “nova Constituição”.

Os sindicatos e centrais petistas certamente cumprirão um papel de aprofundar o controle e a contenção do movimento de massas – ainda que grande parte delas se coloque embaixo de suas asas de bom grado. Qualquer crítica ao governo Lula, mesmo aquelas honestas, refletidas e bem fundamentadas, serão tratadas com rechaço por parte da sua base mais fanática, que dirá se tratar de um automático apoio à direita. Este tipo de “resposta” não pode contribuir para a formação de um pensamento sindical e militante crítico e ativo, mas apenas erigir uma blindagem em torno do governo que serve como cortina de fumaça para deixar o caminho livre para novos e piores golpes de direita.

Onde não há criticidade viva, honesta e ativa, impera a despolitização e a reprodução de rebanho.

O fato é que existe uma notável correlação entre a educação e a opinião pública política dos eleitores (sejam nas eleições sindicais ou nas eleições gerais). Os eleitores menos esclarecidos inclinam-se para soluções irracionais e fanáticas. A própria estrutura da justiça eleitoral, da cobertura midiática, dos debates e das pesquisas eleitorais reduzem o debate ao que é aceitável para o sistema e tudo o que foge à sua lógica é condenado, combatido ou censurado. O mesmo método é utilizado pelo petismo dentro dos sindicatos, reduzindo a luta sindical centralmente ao calendário eleitoral.

         A liberdade política é uma condição de liberdade humana só porque favorece o desenvolvimento do que é especificamente humano. A liberdade política numa sociedade alienada, que contribui para a desumanização do ser-humano, transforma-se em não-liberdade. Um debate sindical restrito forçosamente às eleições burguesas é um não-debate.

 

A preferência pela calmaria e estabilidade do funcionalismo público

O sindicalismo petista também prefere se enraizar no funcionalismo público, pois reforça a sua prática legalista. Como é centralmente restrito a este setor (prática seguida por outros partidos como Psol PSTU, etc.), ignora a organização e as necessidades dos trabalhadores das empresas privadas, bem como dos terceirizados e precarizados de todos os setores – vistos, em última análise, como responsáveis pela sua própria situação.

         Ao ter este tipo de estratégia sindical, acaba por se desconectar das demandas reais da totalidade da classe, que não está no funcionalismo público. Muitas vezes não sabe criar uma unidade harmônica entre os diversos segmentos de classe e seus setores, criando benefícios e privilégios de uns em detrimento de outros. Muitas oposições país afora – às vezes com métodos corretos, às vezes com métodos incorretos – alertam as direções petistas desta contradição, mas são ignoradas ou abafadas (às vezes expulsas dos sindicatos).

         A mentalidade média do trabalhador do funcionalismo público procura uma vida tranquila e sossegada, fechada em si mesma, que geralmente apenas os governos petistas lhe proporcionam. Por isso, parte bastante sólida do eleitorado militante petista se encontra aí. Enquanto que a direita mais raivosa tende a se enfrentar aberta e diretamente contra o funcionalismo, pregando quase que como uma religião o Estado mínimo e a privatização de tudo.

         Dado os anos de neoliberalismo, de desarticulação de vínculos trabalhistas, de representação fragmentária de sindicatos e centrais, o apoio popular e sindical organizado do petismo nos dias de hoje não está mais na classe trabalhadora, mas no funcionalismo público. Mesmo o bolsonarismo hoje possui um grande peso no seio da classe trabalhadora – talvez tanto quanto o petismo! Ele os atinge por outros meios que não a intervenção sindical direta, como por exemplo, os métodos refinados do neofascismo de manipulação da psicologia de massas através da utilização das redes sociais.

         Ao não avançar para uma organização coesa de todos os setores e segmentos da classe trabalhadora – até onde isso é possível –, acaba por reforçar as pautas e demandas do funcionalismo público, como se essas refletissem a realidade de toda ela. A culminância disso tudo é a CUT, que dá preferência às categorias do funcionalismo público e trata secundariamente as categorias do setor privado.

 

A confusão em relação à estratégia socialista

         Os sindicatos surgiram como uma força independente na sociedade europeia do século XIX. Só puderam se desenvolver e conquistar direitos porque se mantiveram nesta condição. Posteriormente, ao longo do século XX, foram sendo cooptados pelo Estado burguês e sua institucionalidade. O fascismo italiano abriu um longo caminho que subordinou totalmente o sindicalismo ao seu Estado, no que foi copiado por Vargas no Brasil. Todos os governos brasileiros subsequentes mantiveram a mesma legislação restritiva e subordinadora. O petismo cumpre hoje o mesmo papel regulador dos sindicatos exercido pelo varguismo no passado, embora com métodos muito mais refinados.

         A força criadora, organizadora e propulsora do sindicalismo está nesta sua independência do Estado, da sua legalidade sufocadora, da sua institucionalidade. Sem esta independência, o sindicalismo se torna, em maior ou menor medida, um simples reprodutor da ordem vigente.

O petismo é confuso e dúbio em relação ao socialismo, tanto na esfera política quanto na esfera sindical. Ao abandonar a estratégia socialista, termina por se afundar na única legalidade que existe: a burguesa!

         Isso não é precisamente uma novidade. Florestan Fernandes já havia analisado isso em detalhes nos congressos do PT na década de 1990. O petismo não resolveu este problema porque optou por seguir um caminho de conciliação com o grande capital.

Observemos algumas citações de Florestan Fernandes tiradas de um livro que reúne suas principais contribuições aos congressos petistas (Reflexões sobre a construção de um instrumento político, Editora Expressão Popular, 2019):

“As lições tiradas da ‘crise do socialismo real’ são equivocadas e perfilham tendências social-democratas, ou de um ambíguo ‘socialismo democrático’, que condenam as classes trabalhadoras e os movimentos populares radicais e revolucionários à castração social-democrática. Nas bases, as manifestações se dispersam, naturalmente, pela influência quase hegemônica dessas lideranças, todas reformistas, e como efeito do tipo de organização vertical-horizontal, que eleva demais os militantes e os quadros por suas categorias e por suas tendências. O ‘petismo como modo de ser’, ou ‘como estado de espírito’, sofre um esfarelamento, resultante do modelo organizatório e administrativo mais adequado à transferência do micropoder para as instâncias dirigentes, dos diversos níveis, que à articulação ideológica e politicamente unificada das massas” (página 96).

“No PT prevalece uma predisposição muito forte por realizações e ganhos relativos na competição pelo micropoder, o poder pequeno que nasce na estrutura hierárquica do partido e das probabilidades de mando que ela confere. Há também uma ambição clara de chegar ao poder institucionalizado, intrínseco à ordem social vigente, o que envolve a instrumentalização do partido para a satisfação de objetivos pessoais e de grupos congeniais” (página 95).

“O partido não tenta aproveitar politicamente as potencialidades do comportamento coletivo e permite que ele se dissipe nos fins institucionalizados e regulados pela ordem, no plano da representação e das eleições ritualizadas. Tampouco lhe infunde uma duração permanente e conteúdos ideológicos contra a ordem, restringindo-se a colher os frutos das mobilizações mais imediatistas” (página 97).

“A educação para o socialismo continua a ser uma esfera pobre e secundária” (página 85).

“Trata-se não só de adquirir uma consciência social operária e socialista, mas de eliminar a alienação social das estruturas mentais e da imaginação política dos assalariados, moldadas pelo capital. Por fim, é preciso inseri-los na luta política, salientando suas duas faces: a corporativa e ‘economicista’, e aquela que, a médio e longo prazos, enfatiza a perspectiva do poder e do que fazer com o Estado. É atribuição do partido produzir e difundir entre os militantes da causa operária uma visão teórica e prática desse processo multiforme, fator  sem o qual a luta pelo poder se dissolve nas fricções e entrechoques do dia a dia” (página 74).

Florestan Fernandes, assim como muitos ex-militantes petistas, alertou para os problemas decorrentes do curso que o petismo estava tomando. Até hoje as advertências inconvenientes são ignoradas. O resultado não pode ser diferente. Talvez veremos daqui por diante apenas uma trégua com a direita neofascista, que conhecendo e surfando em todas essas contradições petistas, recuperará a força e criará as condições para alijar o petismo do poder novamente, já que ele não pode ser derrotado pela prática política do PT.

***

         Em síntese, para o petismo a luta sindical é tolerada enquanto não se choque com as estruturas institucionais da sociedade “democrática”. Isto é: enquanto a luta não sai do grito ordeiro, de cima da calçada, preferencialmente, pode ser tolerada e até “admirada”, mas no momento que questiona algum tipo de institucionalidade a luta passa a ser atacada pela burocracia sindical muitas vezes tão ou mais virulentamente do que a própria direita.