sábado, 13 de agosto de 2016

O crepúsculo de Nietzsche

Os pontos positivos da filosofia de Nietzsche

1.
Constitui ponto positivo da filosofia de Nietzsche a luta contra toda a forma de moral e a busca pela livre interpretação e vivência da realidade. Isto, evidentemente, se volta contra todo o dogmatismo e a escravização intelectual humana.

2.
            Outro aspecto importante é o seu ateísmo intransigente. A denúncia de que Deus nada mais é do que a mais alta forma de escravização moral da humanidade; a prisão do ser humano no abstrato, num mundo vindouro e o esquecimento de viver a “vida real” livre de imposições morais e renúncias. Por isso, a luta contra a figura divina serve fundamentalmente para libertar moralmente os seres humanos. Este aspecto positivo da filosofia nietzschiana é uma herança direta do pensamento filosófico de Ludwig Feuerbach, que influenciou inúmeros pensadores alemães no início do século XIX.

3.
            Há na filosofia de Nietzsche a valorização e a demonstração de que “forças ocultas” do nosso inconsciente influem no pensamento consciente e na nossa conduta. Segundo Nietzsche, elas seriam fundamentalmente boas, sendo, portanto, nocivo reprimi-las e recalcá-las para atender alguma exigência moral. Esta contribuição filosófica influenciou o desenvolvimento da psicanálise. É certo que já é hora da humanidade aprender a lidar com estes impulsos inconscientes e levar muito a sério suas advertências.

4.
            O pensamento nietzschiano anuncia que chegamos numa nova etapa do desenvolvimento da filosofia e, consequentemente, do pensamento humano. Esta nova etapa finaliza uma era – que se iniciou na antiguidade e teve o seu apogeu na Idade Média com o pensamento e a filosofia cristã. Sugere-se, implicitamente, que é hora de superá-la, ultrapassá-la, denunciá-la, jogá-la fora. Agora a filosofia e a humanidade estariam prontas para se livrarem desta antiga camisa de força (a moral e o moralismo, sejam de que espécie for).

As contradições do pensamento filosófico de Nietzsche

1.
            Nietzsche afirma que a sua crítica não pretende “melhorar a humanidade”, nem propor nada para o lugar do que está criticando (no caso, propor uma “moral reformadora” nova). Isto, além de impossível, é uma forma muito comum de sair pela tangente, ludibriando os incautos. Não há como criticar algo tão radicalmente e não propor nada para o seu lugar. A crítica em si já é, implicitamente, uma forma de substituição do que se critica, mesmo que se jure de pés juntos o oposto; nem que seja uma proposta pela negativa.

2.
            Para a moral criticada, Nietzsche propõe a “amoral”; a ausência de moral, viver a vida sem nenhum tipo de restrição ou castração aos impulsos “irracionais” que provém das profundezas do nosso ser. Ao criticar toda a forma de moral – incluso a socialista –, Nietzsche deixa claro sua preferência pela ausência de moral, porém não propõe nem sequer isto. Contudo, não existe o vácuo na questão moral ou política; isto é, não existe a opção de “não se propor nada”, supostamente para não incorrer no mesmo erro daqueles que tentaram “melhorar a sociedade”. Nietzsche está, no concreto e na prática, a favor da manutenção da velha moral que critica, pois não propõe o combate à base que sustenta e propaga esta moral social; isto é, não combate a sociedade de classe e as suas instituições políticas e ideológicas. Pelo contrário: toda a filosofia de Nietzsche leva ao fortalecimento e a justificação da sociedade de classes.

3.
Ao mesmo tempo em que critica toda forma de moral e finge não propor nada para o seu lugar, Nietzsche leva até as últimas consequências os impulsos individuais (isto é, os impulsos egocêntricos), ao qual dá o nome de “vontade de vida” (ou de poder). Todos os homens fortes são dotados e guiados por este impulso; os que não os tem são considerados por ele como “fracos”, decadentes, merecedores da exclusão social. Deveriam ser combatidos e rechaçados, pois são invejosos e representariam uma “classe” que quer fazer a sociedade regredir, uma vez que lutam contra os fortes e vigorosos. Segundo passagens do pensamento nietzschiano, o egoísmo também seria um impulso salutar, esmagado pela moral cristã, socialista, dentre outras; isto é, aquela moral degenerada dos “fracos” ou dos niilistas (segundo sua concepção). Toda utilização da repressão por parte daqueles que possuem o “impulso de vida” contra os fracos estaria justificada e, inclusive, deveria ser incentivada. Está proposto implicitamente que aceitar e propagar estes impulsos individuais e egocêntricos seria uma alternativa para o lugar da moral e, consequentemente, da sociedade que critica.
Desta forma, Nietzsche cai numa espécie de anarquismo, ainda que também o critique impiedosamente. Lenin definiu um anarquista como um liberal burguês com 40 graus de febre; Nietzsche é um anarquista com 40 graus de febre.

4.
            Escondendo-se atrás de abstrações, Nietzsche sustenta uma filosofia aristocrática. Qual seja: os melhores devem ter preponderância sobre os piores; ou, dito de outra forma, sobre os fracos, os “sem vontade”. A democracia seria uma “degeneração política”, pois iguala os desiguais por natureza. Critica a democracia em qualquer sociedade. Segundo Nietzsche, “os povos que valeram alguma coisa, que chegaram a valer alguma coisa, nunca chegaram a isso sob instituições liberais. [...] Aquelas grandes estufas para a espécie forte de homem, para a espécie mais forte que exigiu até agora, as comunidades aristocráticas nos moldes de Roma e Veneza, entenderam a liberdade exatamente no mesmo sentido que entendo esta palavra: como uma coisa que se tem e não se tem, que se quer, que se conquista...”.
            A sociedade proposta, mas não admitida explicitamente, seria uma sociedade dirigida pelos “super-homens”, pelos melhores e mais fortes; em suma: uma sociedade que respeitasse as castas e as classes. Isto fica claro na exaltação apaixonada que Nietzsche faz da sociedade de castas indianas em contraposição a sociedade cristã. O código de Manu – elaborado por volta do século II a.C. visando regulamentar todos os aspectos da vida social indiana – estabelecia e justificava a divisão da sociedade em castas. Nietzsche o saúda como muito instrutivo. Segundo ele, neste código teríamos “por um lado, a humanidade ariana, inteiramente pura, inteiramente original”; pelo outro, teríamos os chandalas – a casta excluída e mais pauperizada, se constituindo de verdadeiros párias sociais – que “perpetuaria o ódio de chandala a esta ‘humanidade’”, isto é, a “humanidade” da casta dominante – única e “verdadeira” humanidade que reconhece.

5.
Nietzsche critica o cristianismo dentro desta perspectiva. “O cristianismo – escreve ele –, cuja raiz é judaica e só é compreensível como planta desse solo, representa o movimento contrário a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio – ele é a religião antiariana por excelência: o cristianismo é a transvaloração de todos os valores arianos, a vitória dos valores chandalas, o evangelho pregado aos pobres, ao populacho, a revolta conjunta de todos os pisoteados, miseráveis, malogrados e prejudicados contra a ‘raça’”.
Não casualmente, Nietzsche tenta amalgamar os cristãos e os socialistas. Não é verdade que o cristianismo seja um chamado a “revolta do populacho”. Por certo, há semelhanças com propostas comunistas na pregação de Cristo, muito embora haja um abismo em relação à prática de cada uma destas ideologias. O cristianismo pode ser considerado, muito remotamente, como uma espécie de “socialismo utópico”, ainda que também sirva como moral de escravo, uma vez que afirma: “dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”, além de oferecer o outro lado da face para cada agressão de um iníquo. Nietzsche critica a escravidão moral ao qual o cristianismo subordinou a humanidade, mas também critica e rechaça com todo o seu vigor aristocrático os poucos aspectos positivos do cristianismo como coisa idêntica. De contrabando iguala tudo à teoria socialista.

6.
            A questão não colocada claramente pela filosofia nietzschiana é a seguinte: qual vontade deve prevalecer? Como conciliar as vontades e os egoísmos opostos que inevitavelmente se chocam? Mesmo entre os “super-homens”, haveria unanimidade de vontades ou um “super-homem” deveria reinar sobre os “super-homens” mais fracos? Cabe perguntar ainda: um ser humano que defenda ardorosamente com toda a sua “vontade de vida” o ideal socialista seria um indivíduo com “vontade de poder” ou um niilista?

7.
            Para sustentar estas abstrações, Nietzsche lança mão de um materialismo metafísico. Faz isso conscientemente, pois ridiculariza e rechaça a dialética como “coisa inútil”, de “palhaços”. É um verdadeiro malabarismo filosófico que resulta em fazê-lo abraçar a metafísica. Para o nosso grande filósofo anti-dialético, o ser humano está novamente dissociado de uma sociedade histórica concreta (isto é, comete o mesmo erro filosófico do materialismo de Feuerbach). Vive isolado em uma ilha, onde sua vontade é soberana. É por isso que Nietzsche elogia o ermitão, o asceta que se refugia no alto da montanha e despreza o populacho. Este último serviria unicamente para infectar e macular a “raça superiora” de homens.

8.
Uma vez que esta “vontade” aristocrática seja trazida para o mundo real, para uma sociedade concreta historicamente, a filosofia nietzschiana cai em uma contradição insolucionável. Sua tradução concreta significa o apoio e o embasamento teórico do imperialismo em geral, e do imperialismo nazi-fascista, em particular, consciente ou inconscientemente: a vontade insuperável do Führer deve triunfar sobre os povos fracos, os não-arianos, os judeus, os negros, os “sem vontade”.

9.
            Pensadores como György Lukács sustentam que Nietzsche representa uma manifestação ideológica e superestrutural da época do surgimento e desenvolvimento do imperialismo capitalista (final do século XIX). O pensamento nietzschiano está impregnado da filosofia geral do imperialismo, o pragmatismo, ao mesmo tempo que lhe dá novo embasamento. A afirmação de Lukács tem fundamento e se sustenta quando olhamos para o conjunto do pensamento filosófico nietzschiano e o sentido que ele caminha.

10.
            A filosofia de Nietzsche cai como uma luva à ideologia nazi-fascista, mesmo que todos os seus defensores exaltem os elementos independentes de seu pensamento, jurem de pés juntos o contrário ou aleguem a influência “falsificadora” da irmã sobre a sua obra (fato que pode ser verdadeiro, mas que não invalida o sentido geral da sua obra). O “triunfo da vontade” de Hitler é um atestado de confirmação.

Ponderações importantes a serem feitas sobre a crítica de Nietzsche aos socialistas

1.
A “revolução socialista” e a “sociedade comunista” podem sim se tornar um sucedâneo do “paraíso cristão”, muito embora não o sejam por si só, tal como Nietzsche dá a entender. A idealização deste mundo vindouro e a espera por ele pode, portanto, eclipsar a vida concreta, deformá-la e desviá-la do caminho razoável. A moral comunista, tratada desta maneira, se tornaria tão abstrata e dogmática que esmagaria o ser humano tal como qualquer outra moral; a experiência stalinista nos provou isso. Muitos militantes socialistas do Brasil, em pleno século XXI, também confirmam este pensamento, pois a sua compreensão da “revolução”, do “comunismo” e do “marxismo”, não apenas os desviam do caminho real e concreto da revolução e do socialismo, como os transformam em fanáticos incapazes de olhar a realidade sob o seu nariz.
O socialismo, sob a versão de Marx e Engels, é bastante claro quando afirma que a teoria deve ser um guia para ação, e não um dogma; que não buscamos construir ou esperar uma sociedade perfeita, sem contradições. Marx escreveu certa que vez que “não é nossa tarefa construir o futuro antecipadamente e resolver todos os problemas para sempre, mas é certamente nossa tarefa criticar duramente o mundo existente. Digo duramente no sentido de que não devemos ter medo de nossas próprias conclusões, nem medo de entrar em conflito com os poderes estabelecidos”. A nova sociedade só poderá nascer de uma dura crítica política, teórica e prática, da atual sociedade capitalista. E ela não será perfeita e livre de contradições. Queremos apenas dar-lhe outra perspectiva econômica, política e social, radicalmente diferente da atual sociedade capitalista. Os socialistas não são infalíveis; nem são donos da verdade. Sua crítica implacável contra a sociedade de classes apenas demonstra um caminho diferente do pensamento aristocrático e conformista. Quer criar não apenas um punhado de super-homens, mas elevar todo o populacho à condição de super-homem. Nossa tarefa não é se conformar com a diferença entre intelectuais e o povo; mas criar as condições materiais para que o povo possa se elevar ao nível dos intelectuais.
Nietzsche e os intelectuais burgueses dizem que isso é impossível. Os socialistas afirmam que isso é uma questão de se criar as condições materiais: acabar com a propriedade privada dos meios de produção de riqueza social, investir na elevação cultural e política de todo o povo. Realizar isto seria utopia? Na opinião dos aristocratas e da burguesia, sim; na dos socialistas, não. A existência histórica do pensamento socialista, suas contribuições teóricas e a sua atuação política têm provado que é possível, ainda que saibamos pela experiência mais dolorosa que concretizar este programa e construir esta nova sociedade é algo complexo e repleto de contradições. A nova sociedade só poderá surgir de um parto doloroso.

2.
            Nenhum marxista coerente pode dizer que a futura sociedade socialista será perfeita e livre de contradições. Quem assim pensa não entendeu nada do pensamento marxista, fazendo uma caricatura grotesca dele, ou age de má fé. Para uma teoria baseada no materialismo dialético, que reconhece a contradição como a fonte do movimento, e do movimento como existência da matéria, é bastante estranho pensar que a sociedade socialista será o paraíso cristão. O pensamento marxista apenas afirma que ao resolver na base da economia as contradições que lançam seres humanos contra seres humanos numa luta voraz pela sobrevivência e que legaliza a exploração de uns sobre os outros, se criarão as condições para um novo tipo de sociedade, mais equitativa e solidária, e mais humana. A vaidade, o egoísmo, a ambição, a maldade continuarão a existir, mas não serão celebradas, e sim combatidas; não serão estampadas como virtudes, mas como defeitos. Esta é a base da moral socialista combatida por Nietzsche.
            A filosofia de Nietzsche nos diz que isso é se curvar a uma forma de moral que mata a “vontade” individual, uma vez que o egoísmo e a ambição, por exemplo, não são mal em si, mas forças que impulsionam o individuo adiante. Tem razão em parte. Não podemos tratar estes sentimentos como mal em si mesmo, abstratamente falando; mas também não podemos levantá-los como bandeiras da virtude, tal como faz Nietzsche. É preciso ter a cabeça no lugar e uma grande sagacidade para saber olhar cada caso na sua realidade concreta, historicamente determinada. Dialeticamente, a sociedade socialista precisa incentivar as iniciativas individuais que trabalhem para o avanço da humanidade, para o bem social; saber resolver a contradição do egoísmo pessoal, sem abafar o indivíduo, mas sem deixar que este se transforme em um monstro devorador de outros seres humanos. Precisa reduzir os conflitos mesquinhos ao mínimo.
            Einstein dizia que o capitalismo incentiva os impulsos individuais, enquanto desagrega os impulsos coletivos dos seres humanos, que são sempre mais fracos que os primeiros. Por isso defendeu no seu texto “Por que socialismo?” a sociedade socialista, por entender que esta trabalharia no sentido de fortalecer os impulsos coletivos contra os individuais, sendo, portanto, uma formação social não apenas necessária, mas superior. Segundo ele, o ser humano encontra sentido para a sua existência trabalhando para a coletividade, para a sociedade, tudo o que o pensamento de Nietzsche condena.

3.
Como conciliar a vontade individual com a vontade coletiva. Isto é realmente possível? Não apenas é possível, como é impossível existir sociedade sem esta conciliação. É evidente que esta conciliação deixa seqüelas inevitáveis; algumas insanáveis. Esta é a base da crítica de Freud no seu livro “O mal estar na civilização”. Nele, Freud demonstra que os seres humanos precisam conter os seus impulsos individuais para conseguirem viver em sociedade, o que causa uma série de frustrações, neuroses, privações; em suma, um mal estar. Porém, é impensável uma sociedade sem o controle dos impulsos individuais. É a refutação e a superação do pensamento de Nietzsche, apesar da semelhança de conceitos entre ambos.
Estes impulsos, segundo Freud, nunca poderão ser extintos, o que causará contradições insanáveis para a sociedade. Nietzsche pretende resolver esta contradição elevando à potência mil os impulsos, os livrando de todo o tipo de controle moral. Que espécie de sociedade se criaria? A anarquista ou a nazista? Provavelmente a sociedade nazista. Os socialistas compreendem que, dialeticamente, se deve construir uma sociedade que respeite e resolva, dentro da medida do exeqüível, os impulsos individuais, que não deverão ser iguais a si mesmo no tempo e no espaço. As necessidades e os impulsos de um homem pré-histórico e de um homem que vive na sociedade capitalista são idênticos? Apesar de possuírem semelhanças, não são idênticos. O homem atual vive sob outra perspectiva porque foi educado socialmente. Grande parte desta “educação social” está equivocada, conforme atesta a obra de Nietzsche, baseada em uma moralidade caduca e decadente, em sua maioria repressora e adestradora; mas isso não significa que se possa abdicar de toda e qualquer moral social, bem como que não se possa educar o ser humano dentro de uma perspectiva social “correta”, isto é, mais de acordo com os seus impulsos individuais, ao mesmo tempo que estes convivam mais razoavelmente com a sociedade.

4.
A democracia segundo Nietzsche seria um regime político degenerado, pois é impossível igualar seres humanos desiguais por natureza. Por trás desta abstração anti-histórica se esconde a tentativa de Nietzsche de esconder que a maioria dos regimes “democráticos” que existiram foram de fachada, aristocráticos, meramente decorativos. A democracia grega era escravista, portanto, já excluía os escravos, os “sem vontade”, o populacho, os chandalas. Por que Nietzsche despreza a democracia então? Haveria desigualdades entre a “vontade de poder” dos aristocratas que tornaria impossível a democracia entre a elite?
A democracia burguesa também é outra enrolação. O voto durante muito tempo foi restrito à renda; excluía mulheres, trabalhadores, analfabetos. Atualmente, o poder do voto é outra ficção, pois quem realmente decide são os grandes monopólios industriais, os bancos, as mídias; em suma, o poder do dinheiro. Enquanto houver sociedade de classes, a democracia será sempre uma mentira, uma enganação, uma forma da aristocracia dominante ludibriar os explorados. Na verdade, Nietzsche é um adorador e propagandista da tirania. A exalta em todas as oportunidades. O seu imbróglio sobre a “democracia” é para justificar o injustificável. A partir daí qualquer forma de dominação é autorizada. Aos de baixo, aos “sem vontade”, resta se submeter acriticamente.
No entanto, uma reflexão sobre o que é trazido por Nietzsche é válida: seria possível uma equidade social absoluta? Evidentemente que não. Mesmo entre as famílias proletárias existem diferenças de número, de idade, de interesses. Uma sociedade socialista não pode trabalhar com uma equidade exata, como por exemplo: salários exatamente iguais, como muitas pessoas acham que se resume o socialismo. No princípio da construção do socialismo os salários deverão corresponder a estas diferenças pontuais, correspondendo ao tempo trabalhado e as diferentes funções. Contudo, a diferença abismal entre trabalho intelectual e manual; bem como entre políticos, burocratas estatais, magnatas, banqueiros e trabalhadores assalariados deve cair drasticamente, além de extinguir certos cargos sociais aristocráticos e benesses materiais que serão enxergados como absurdos; como, por exemplo, o auxílio moradia para juízes, a pensão vitalícia para ex-governadores, etc.
Não pode existir democracia sem igualdade econômica; e não pode haver igualdade econômica sem socialismo. O seu princípio fundamental é a propriedade coletiva dos meios de produção de riqueza social, para surgir a verdadeira igualdade de oportunidade e, sobretudo, de dignidade; eis aí ao quê se resume a sua ideia de igualdade.

5.
            Nietzsche afirma: “Aos iguais o que é igual, aos desiguais o que é desigual – esse seria o verdadeiro discurso da justiça. E como conseqüência disso, jamais igualar o que é desigual”. Perfeitamente!
            No campo da produção, no campo das necessidades pessoais, no campo dos impulsos individuais, nas questões salariais, estamos de acordo. Porém, tudo muda de figura se vamos para as questões da macroeconomia, se tratamos da estrutura social: jamais cair nesta armadilha; nunca dar cheques em branco; evitar defender tamanha filosofia escolástica apavorante nas questões da propriedade privada dos meios de produção, do poder estatal, na carta branca à condução de um exército imperialista, na possibilidade de consentir com a invasão militar de um país atrasado ou com a sua asfixia econômica.
            Não se pode tolerar sob nenhum pretexto pseudo-progressivo dar esta possibilidade de naturalizar as desigualdades; sobretudo àqueles indivíduos dotados da “vontade de poder”.

6.
            Sobre ser “senhor de si”: é muito importante criarmos as condições para que cada indivíduo possa ser senhor de si mesmo, sobretudo em uma sociedade socialista. Desenvolvendo-se juntamente com os impulsos coletivos, esta é uma condição importantíssima para que o socialismo possa triunfar e evoluir. Contudo, ser senhor de si mesmo jamais pode significar ser senhor dos outros ou sobre os outros.

7.
A sociedade socialista deverá ter como um dos seus principais objetivos a felicidade e a realização individual em harmonia com a coletividade. Os impulsos individuais não podem ser asfixiados totalmente em detrimento de um suposto interesse social ou moral. Ou estes interesses serão parte de uma livre associação entre os indivíduos, ou serão parte de uma imposição arbitrária de um poder exterior. Os socialistas precisam se colocar como perspectiva a melhor forma de envolver os indivíduos na aceitação consciente e livre dos princípios de uma sociedade superior baseada numa construção coletiva. Sabemos que a condição fundamental para que esta sociedade exista é a criação das condições materiais, o fim da propriedade individual sobre os meios de produção, mas isto por si só não basta. A orientação política e cultural deve estar embasada em um humanismo socialista, que leve todo este debate em honesta consideração.

8.
            A felicidade pode se transformar em uma nova abstração nefasta, que serviria unicamente para esconder a realidade e a vida concreta. Em seu nome muita atrocidade poderia ser cometida. Que espécie de felicidade deveria ser objeto da sociedade socialista?
            Certamente aquela que nos torna mais humanos, mais próximos uns dos outros, mais tolerantes com as diferenças, mais tolerantes com os nossos impulsos interiores e com os dos outros. A superação de objetivos mesquinhos, meramente consumistas, que cria uma moral artificial e rebaixada correspondente. A psicanálise apenas começa a dar os seus primeiros passos e a desvendar o lado oculto da nossa mente. Que obra grandiosa poderá realizar os avanços da psicanálise em parceria com os avanços sociais e econômicos de uma sociedade socialista, livre de morais opressoras, medievais; numa palavra: anti-humanas?
Que impactos teremos com o livre amor entre seres humanos, o combate sem tréguas ao bullying, o acolhimento das diferenças, o uso da mídia para incentivar a verdadeira cultura, a leitura, a arte, a ciência? A compreensão de que não podemos viver isoladamente sem prejuízo para toda a cultura humana e que a nossa felicidade deve residir no bem comum, no trabalho bem feito em prol de toda a sociedade, sendo ele compreendido e assumido de forma livre e espontânea; que haja o livre desenvolvimento de todas as potencialidades de todos e de cada um (sejamos operários de manhã, músicos à tarde, cozinheiros no jantar e críticos literário à noite); e que cada qual dê à sociedade segundo as suas possibilidades e receba de acordo com as suas necessidades.

Sentindo o gosto metálico da filosofia do martelo; 
ou: como o feitiço vira contra o feiticeiro

1.
            A filosofia de Nietzsche nada mais é do que uma variante da filosofia burguesa. Sua recusa em aceitar toda moral e denunciar tudo não esconde o fato de que ele não se propõem a combater a fonte geradora de todas as morais que supostamente combate e condena – as instituições ideológicas das classes dominantes: a igreja, a família patriarcal, a mídia, o Estado burguês. Ao não combatê-las politicamente – apesar da crítica áspera do seu “impiedoso martelo filosófico” –, as deixa livre, leves e soltas, para continuarem gerando novas e piores ideologias reacionárias e retrógradas.

2.
            O seu pensamento aristocrático, “superior”, que rechaça todas as morais retrógradas e castradoras, não é capaz de apontar a matriz delas. Desfeita toda a névoa confucionista da sua gritaria histriônica, resta o velado apoio à sociedade de classes e, em particular, ao capitalismo: o sistema perfeito! A filosofia nietzschiana é um sustentáculo da ordem social capitalista, apesar das pequenas críticas pontuais e distracionistas em contrário. Daí o seu ódio ao pensamento igualitário em geral; e ao socialista em particular.

3.
Nietzsche não olha Marx de frente. Fala contra os “socialistas” genericamente, mas nunca cita Marx e Engels explicitamente. Em sua época, havia muitas escolas socialistas na Alemanha, na França, na Inglaterra. Nietzsche coloca tudo num saco de gato, o que destoa de todos os outros nomes que cita abundantemente. Teria ele medo de receber uma resposta tal como Eugen Duhring recebeu de Engels?
***
Justiça seja feita: ele age da mesma forma em relação aos anarquistas (apesar do seu pensamento ser muito próximo do anarquismo).

4.
Não é possível acabar com toda a moral sem acabar com os fundamentos que lhe dão sustentação: as igrejas, a família patriarcal, a escola e a universidade burguesa, a grande mídia. Muito provavelmente não seja possível extinguir todo e qualquer tipo de moral social. Deveremos trabalhar no sentido de torná-la o mais inofensiva possível, servindo apenas para fazer a humanidade progredir e nunca estancá-la ou puxá-la para trás – o que tem sido a regra até hoje.
O pior e mais pernicioso inimigo da libertação da humanidade é aquele que esconde suas intenções sob frases “neutras”, de combate a tudo e a todos, mas que, no fundo, não passa de uma tentativa de reafirmar velhos ídolos aristocráticos escondidos por trás de uma máscara de superação em direção ao futuro.

5.
            Wilhelm Reich avançou muito mais decididamente na luta contra a moral opressora e caduca que castra os impulsos da vida do que toda a verborragia aristocrática de Nietzsche. Reich procurou um salutar diálogo entre o marxismo e a psicanálise. Não se escondeu atrás das desculpas de não querer ser mais um “melhorador da sociedade”. Ele compreendeu que para destruir toda a moral castradora e opressora era preciso destruir as instituições caducas e reacionárias; antes de tudo era preciso revolucionar a sociedade. Soube diferenciar as experiências socialistas. Contribuiu muito mais decisivamente para emancipar a humanidade dos dogmas morais e libertar os impulsos de vida do que todo o engodo aristocrático nietzschiano.

6.
            “Olhar a realidade com os olhos de Maquiavel”, esta é a orientação dada por Nietzsche às futuras gerações. Esta é a filosofia e a moral que coloca no lugar da moral que critica.

7.
            Rebelado contra todo o moralismo que castra os impulsos vitais – em especial o sexual –, Nietzsche louva Dionísio (o deus do vinho) e a sua festa, o bacanal, como o ponto mais elevado da virtude grega e, por intermédio desta, de toda a humanidade. Contrasta o rito de Dionísio com os rituais cristãos, castradores da sexualidade por natureza. Em relação ao contraste com o cristianismo não há o que objetar. Há, contudo, que relembrar os apontamentos de Freud sobre a contradição intrínseca na nossa psique entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.
            O princípio do prazer traduz a tendência de buscar o prazer e evitar a dor, dando vazão para os impulsos de vida ou a “vontade de poder”; já o princípio da realidade nos faz compreender que nem tudo o que se deseja é possível, que se for possível nem sempre é imediato e que na maioria das vezes não pode ser conservado. Está em frontal contradição com o princípio do prazer e é o seu limitador.
No seu culto desenfreado dos instintos, da vontade de vida e de poder, Nietzsche quer apenas o princípio do prazer, negando e combatendo o princípio da realidade; como se isso fosse possível...
           
8.
Dos filósofos criticados por Nietzsche o mais odiado é, sem dúvida, Platão. Por que o odeia com tanta força? Por acaso seria uma forma de esconder o seu parentesco com o pensamento platônico na questão social?
Nietzsche vomita ódio contra a moral idealista pregada por Platão, o acusando de mil adjetivos, mas não o superou numa questão fundamental. Mais do que isso: não pode superá-lo, pois as posições políticas são idênticas! Nietzsche simplesmente rechaçou o idealismo platônico e a moral e a ética que daí decorriam; porém, manteve toda a sua filosofia social que prega a preponderância e a dominação dos “homens de ouro” sobre os de “prata e bronze”; dos aristocratas gregos sobre os seus escravos; isto é, dos homens com “vontade de poder” sobre os “fracos sem vontade”.
Na questão social da mulher Nietzsche reproduz a mesma lógica: reforça a preponderância dos homens sobre as mulheres e, portanto o machismo. Quer lutar contra a moral castradora, mas reforça o casamento patriarcal.

9.
            O único ser que escapa do impiedoso martelo filosófico de Nietzsche é Goethe. Contra isso, não há nada o que objetar. Goethe é uma figura universal e a sua obra é um exemplo engrandecedor e eloqüente do que a humanidade pode produzir.
            Nietzsche compara as aspirações da obra de Goethe à evolução intelectual aspirada pela humanidade durante o século XIX; qual seja: universalidade na compreensão, receptividade para tudo, realismo audaz, respeito a tudo o que é fatual. Porém, apesar de todas estas aspirações da sociedade, Nietzsche nos diz que o resultado não foi o surgimento de “um Goethe”, mas o caos, um suspiro niilista, um não-saber-por-onde-começar, o romantismo sentimental, o altruísmo, o feminismo no gesto e o socialismo na política.
            O desapontamento de Nietzsche por não ver o surgimento do que entende que deveria ter surgido no campo da moral, da política e da sociedade no século XIX transforma-se em um protesto flagrante. O que deu errado?
            Nietzsche está na contra mão da evolução humana. Olha o futuro com o saudosismo aristocrático do passado. Fala em “nova fase da filosofia”, mas requenta os destroços ideológicos das formações econômicas escravistas. Ao invés do materialismo dialético, do socialismo, da luta pela libertação moral da humanidade contra as instituições reacionárias; somente a sua luta para fazer renascer a visão social aristocrática de Platão disfarçada com uma folha de parreira materialista.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Sobre a liberdade de imprensa e de expressão

Dizem repetidamente os meios de comunicação e a sociedade oficial burguesa que vivemos o ápice da liberdade de imprensa e de expressão. Não haveria sociedade mais democrática e livre do que esta. Os blogs, a internet, as redes sociais; tudo isso seria uma expressão desta "verdade". Porém, os grandes meios de comunicação (as televisões, os programas do horário nobre, os rádios, os portais de internet, os jornais de grande circulação e as grandes editoras) realizam uma censura silenciosa e imperceptível ao senso comum. A ditadura do mercado segue realizando a sua obra nefasta escondendo-se atrás da hipocrisia oficial e extra-oficial. Para a grande circulação destinam os livros "mais vendidos" de auto-ajuda, de pensamentos idealistas e pós-modernos, editados e reeditados com grande subsídios; para a marginalidade dos blogs, das redes sociais e para a crítica roedora dos ratos, destinam os livros críticos, as produções intelectuais independentes.

Eis abaixo um singelo exemplo (dentre vários):

"Nosso grupo de leitores avaliou o original de sua obra —Deuses e gigantes— e decidiu não publicá-lo pela Companhia das Letras.

Gostaríamos de lembrar que, conforme o procedimento da editora, os originais serão destruídos por uma empresa especializada, para segurança do autor. Quanto aos livros submetidos à reedição, esses serão doados a bibliotecas.

Agradecemos, de todo modo, a sua consulta.

Atenciosamente,
Departamento Editorial"

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Juntos com quem?



Luciana Genro e os militantes do MES-PSOL em uma atividade do Juntos

A corrente estudantil conhecida como “Juntos” é um movimento ligado e dirigido pelo MES (Movimento de Esquerda Socialista), uma corrente interna do PSOL da qual fazem parte Luciana Genro e Roberto Robaina. Parece progressivo que uma corrente estudantil se proponha a debater política com a juventude, ajudando na sua organização. Em um país atrasado econômica, política e culturalmente, sedento de todo tipo de organização de base e de debate político, de fato o é.
Contudo, o projeto desta corrente não visa emancipar os estudantes para que tomem consciência do seu lugar no mundo e na luta de classes, mas fazem o contrário: aproveitam-se desta disposição da juventude e não a desenvolvem no sentido que realmente interessaria aos trabalhadores – isto é, desenvolver consciência revolucionária de classe –; utilizam-na, então, como um movimento a serviço dos interesses eleitorais do PSOL (que não são os mesmos dos trabalhadores, a despeito dos discursos em contrário), ainda que eventualmente ajude a mobilizar estudantes com pautas progressivas. Como o PSOL não pode assumir sua intenção abertamente, pois certamente seria desprezado em razão do grande sentimento anti-partido que impera na população, em geral, e na juventude, em particular, aproxima-se dos estudantes como um “movimento” que não estaria subordinado a nenhum partido. Ao invés de combater a errônea consciência anti-partido, que visa apenas deixar os trabalhadores e a juventude sem organização política, ajuda a reforçá-la.
E o PSOL? Que espécie de partido é? O PSOL é um partido reformista, do tipo social-democrata, que segue exatamente os mesmos passos do PT, apesar de reivindicar o marxismo e, até mesmo, o trotskismo, em palavras. Por isso, não fazer esta crítica é deixar os estudantes que seguem o Juntos à mercê de uma burocracia política e sindical que emperra as lutas desviando-as totalmente para o terreno da burguesia, as eleições, utilizando-se para isso de um discurso “de esquerda”.
Inspirado em movimentos como o “podemos” e os “indignados” da Espanha (que também são caracterizados por esta repulsa aos partidos em geral), o Juntos explora o sentimento anti-partido a favor do PSOL, pois esta tática do MES serve para influenciar mais ativistas que não conseguiria atingir se se assumisse publicamente enquanto partido. Este é um ponto visivelmente negativo, pois capitula para este sentimento equivocado e reacionário da população que precisa ser combatido e melhor orientado. O problema não está nos partidos em geral, mas nos partidos burgueses (ou seja, aqueles que possuem um programa e uma prática burguesa: PSDB, Democratas, PMDB, PT, PSB, PCdoB, PDT, PTB, PPS, PSD, Solidariedade, PSC, PMN, Rede, PV, dentre outros); e nos partidos reformistas, dentre os quais está o próprio PSOL, além de PSTU, PCB e PCO. A consciência anti-partido impede que os trabalhadores tomem consciência da necessidade de ter um partido revolucionário, isto é, uma organização política que lute pela independência de classe do proletariado em relação à burguesia. É no programa dos partidos burgueses e reformistas que está o “DNA” dos seus crimes e traições políticas. A corrupção é uma conseqüência inevitável dele.
A tática política expressa pelo Juntos não é nenhuma novidade. O mesmo papel coube a União da Juventude Socialista (UJS), que é a corrente estudantil do PCdoB. A UJS caracteriza-se por ser extremamente oportunista, dirigindo com mãos de ferro a UNE e a colocando a serviço dos governos do PT, partido ao qual está subordinada. Não há formação teórica e política da juventude, mas o rebaixamento das discussões, a disseminação de uma alienação perniciosa, marcada por festas e confraternizações sem um contraponto real na elevação da consciência política de classe. Ainda que promova atos políticos e passeatas, a UJS e as correntes afins se caracterizam por sustentar acriticamente os governos petistas. O Juntos disputa com a UJS e suas correntes satélites a UNE, não para livrar esta entidade do reformismo e do peleguismo que a enferruja, mas para dar a sua orientação reformista. Na verdade, procura ganhar influência rapidamente através dos cargos e aparatos destas entidades. Não casualmente, um dos principais focos de atuação do Juntos é a intervenção nestas entidades burocratizadas do movimento estudantil (tais como UNE, UBES e UMESPA) sem denunciar o papel que cumprem de braços dos governos no movimento estudantil. Ao invés de cultivar um novo movimento estudantil, independente, livre das velhas práticas caducas, o Juntos procura ganhar influência política nas escolas e universidades (de uma forma muito semelhante à UJS, diga-se de passagem) para levá-las ao leito morto destas entidades governistas burocratizadas e ganhar influência dentro delas.

O "racha" do PSTU (Arrancar Alegria ao Futuro) mal saiu do partido e já está de mãos dadas com o Juntos
O programa político do Juntos
            Se tratando apenas de uma corrente para mobilização da juventude, então teríamos apenas um problema parcial de método e concepção que poderiam ser trabalhados a partir da crítica e da discussão. Porém, se trata de uma corrente estudantil dirigida pela PSOL, que procura dar-lhe uma suposta orientação “marxista”, conforme se pode ver nas declarações políticas do seu site. A concepção “marxista” do PSOL é extremamente deturpada, rebaixando o seu programa e a sua prática, e renegando, inclusive, as principais contribuições teóricas do trotskismo (em particular, a teoria da Revolução Permanente). Eis aí a questão central.
Por que, então, o PSOL-MES e o Juntos reivindicam o marxismo, o leninismo e o trotskismo, mesmo tendo que revisar os seus princípios? Porque é a teoria que demonstrou aos trabalhadores do mundo como lutar contra a burguesia coerentemente e como tomar o poder. Apesar das inúmeras tentativas de enlamear o seu nome por parte do stalinismo e dos reformistas de todos os matizes, seus méritos teóricos e políticos são profundos e reconhecidos até mesmo pelos seus inimigos. Então o que o PSOL e o Juntos querem, na verdade, são os méritos do marxismo, sem os sacrifícios; os direitos, sem os deveres; a imagem, sem o conteúdo, para poderem se vender como combativos e coerentes para o movimento e, assim, crescerem mais rapidamente.
Para além de todos os problemas de método e de princípio envolvendo o Juntos, cabe analisar o seu programa, apresentado nos seus meios de comunicação. Um programa sintetiza o conjunto da compreensão da realidade que conduz a uma visão de como superar a sociedade capitalista, somada a diversas tarefas imediatas, transitórias e históricas que precisam ser cumpridas para transformá-la em uma sociedade socialista. Os dois principais programas são: o “capitalista” e o “socialista” (dentro deste último existem diversas subdivisões, como o programa reformista e o revolucionário).
A quem serve o programa político do Juntos? Certamente não é ao socialismo. O seu programa é o que podemos caracterizar como “socialista reformista”, com traços nitidamente pequeno burgueses, apesar do seu discurso “libertário” e anti-capitalista. Para confirmar esta caracterização basta analisar suas publicações, como a revista J! (número 19, de outubro de 2015) que preparou a intervenção da corrente no 41º conubes (Congresso da UBES), bem como a atuação e programa do MES-PSOL (corrente política responsável pela orientação geral do movimento).
A revista do Juntos usa e abusa da denúncia de que o “capitalismo mata”, o que é aparentemente progressivo. No entanto, lendo mais atentamente os artigos, se percebe que não há clareza em relação ao que colocar no lugar do capitalismo. Em nenhum momento se fala sobre o “socialismo”; muito menos sobre como superarmos o capitalismo. Ao contrário, percebe-se que o programa do Juntos é o mesmo do MES-PSOL. Os teóricos do movimento aconselham a juventude à radicalizar a democracia, pois esta deve ser “a nossa saída” da crise capitalista. Mas qual “democracia”? Ora, só pode ser a democracia burguesa. E o PSOL, como um partido reformista, tem todo o interesse de incutir este engodo na juventude para ganhá-la para o seu projeto. Além disso, o Juntos propõe uma Assembleia Constituinte (que na atual conjuntura política só poderia ter uma larga maioria burguesa) e a refundação das instituições democrático-burguesas. Ao invés do socialismo, a juventude é educada na reforma e na refundação do capitalismo.
Os resultados práticos desta orientação oportunista e aparatista não poderiam dar em outra coisa. Nas ocupações de escolas públicas no Rio Grande do Sul, desencadeadas em consonância com a greve do magistério estadual em maio-junho de 2016, o Juntos teve um papel ativo nas maiores escolas. Todo este movimento culminou na ocupação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, dirigida pelo Juntos e pela UJS através da UBES, UGES e UMESPA. Durante a ocupação da ALERGS, o governo Sartori (PMDB e aliados) apresentou uma proposta rebaixada, que consistia apenas em adiar a votação do PL 44 – projeto de lei que privatiza os serviços públicos – para seis meses (o que daria mais ou menos em janeiro ou fevereiro de 2017), sem retirá-lo de tramitação; e a liberação de apenas R$40 milhões para reformas nas escolas ocupadas. Dividido entre elas, isso daria apenas 16 mil reais para cada uma, o que significaria apenas a soma de alguns meses do repasse da verba que deveria entrar normalmente em cada mês. Além disso, o adiamento do PL 44 visa apenas acalmar o descontentamento e jogar a votação para as férias escolares (isto é: ganhar tempo!). Estas entidades – com o total consentimento do Juntos – vergonhosamente aceitaram o acordo proposto pelo governo!

Por tudo o que foi relatado, conclui-se que o Juntos é um movimento estudantil subordinado à lógica burocrática e aparatista, muito semelhante ao movimento governista. Por ser mais recente e estar fora do governo federal, se dá maiores liberdades no discurso, porém, mantendo uma mesma prática política no movimento e na formação dos seus militantes. Não é um movimento classista, que visa a unificação de trabalhadores e estudantes. É mais um estorvo no caminho da emancipação dos trabalhadores e da juventude proletária na luta pelo socialismo.