Os pontos positivos da filosofia de Nietzsche
1.
Constitui
ponto positivo da filosofia de Nietzsche a luta contra toda a forma de moral e
a busca pela livre interpretação e vivência da realidade. Isto, evidentemente,
se volta contra todo o dogmatismo e a escravização intelectual humana.
2.
Outro
aspecto importante é o seu ateísmo intransigente. A denúncia de que Deus nada
mais é do que a mais alta forma de escravização moral da humanidade; a prisão
do ser humano no abstrato, num mundo vindouro e o esquecimento de viver a “vida
real” livre de imposições morais e renúncias. Por isso, a luta contra a figura
divina serve fundamentalmente para libertar moralmente os seres humanos. Este
aspecto positivo da filosofia nietzschiana é uma herança direta do pensamento
filosófico de Ludwig Feuerbach, que influenciou inúmeros pensadores alemães no
início do século XIX.
3.
Há
na filosofia de Nietzsche a valorização e a demonstração de que “forças
ocultas” do nosso inconsciente influem no pensamento consciente e na nossa
conduta. Segundo Nietzsche, elas seriam fundamentalmente boas, sendo, portanto,
nocivo reprimi-las e recalcá-las para atender alguma exigência moral. Esta
contribuição filosófica influenciou o desenvolvimento da psicanálise. É certo
que já é hora da humanidade aprender a lidar com estes impulsos inconscientes e
levar muito a sério suas advertências.
4.
O
pensamento nietzschiano anuncia que chegamos numa nova etapa do desenvolvimento
da filosofia e, consequentemente, do pensamento humano. Esta nova etapa
finaliza uma era – que se iniciou na antiguidade e teve o seu apogeu na Idade
Média com o pensamento e a filosofia cristã. Sugere-se, implicitamente, que é
hora de superá-la, ultrapassá-la, denunciá-la, jogá-la fora. Agora a filosofia
e a humanidade estariam prontas para se livrarem desta antiga camisa de força
(a moral e o moralismo, sejam de que espécie for).
As contradições do pensamento filosófico de Nietzsche
1.
Nietzsche
afirma que a sua crítica não pretende “melhorar a humanidade”, nem propor nada
para o lugar do que está criticando (no caso, propor uma “moral reformadora”
nova). Isto, além de impossível, é uma forma muito comum de sair pela tangente,
ludibriando os incautos. Não há como criticar algo tão radicalmente e não
propor nada para o seu lugar. A crítica em si já é, implicitamente, uma forma
de substituição do que se critica, mesmo que se jure de pés juntos o oposto;
nem que seja uma proposta pela negativa.
2.
Para
a moral criticada, Nietzsche propõe a “amoral”; a ausência de moral, viver a
vida sem nenhum tipo de restrição ou castração aos impulsos “irracionais” que
provém das profundezas do nosso ser. Ao criticar toda a forma de moral –
incluso a socialista –, Nietzsche deixa claro sua preferência pela ausência de
moral, porém não propõe nem sequer isto. Contudo, não existe o vácuo na questão
moral ou política; isto é, não existe a opção de “não se propor nada”,
supostamente para não incorrer no mesmo erro daqueles que tentaram “melhorar a
sociedade”. Nietzsche está, no concreto e na prática, a favor da manutenção da
velha moral que critica, pois não propõe o combate à base que sustenta e
propaga esta moral social; isto é, não combate a sociedade de classe e as suas
instituições políticas e ideológicas. Pelo contrário: toda a filosofia de
Nietzsche leva ao fortalecimento e a justificação da sociedade de classes.
3.
Ao mesmo tempo
em que critica toda forma de moral e finge não propor nada para o seu lugar,
Nietzsche leva até as últimas consequências os impulsos individuais (isto é, os
impulsos egocêntricos), ao qual dá o nome de “vontade de vida” (ou de poder).
Todos os homens fortes são dotados e guiados por este impulso; os que não os
tem são considerados por ele como “fracos”, decadentes, merecedores da exclusão
social. Deveriam ser combatidos e rechaçados, pois são invejosos e
representariam uma “classe” que quer fazer a sociedade regredir, uma vez que
lutam contra os fortes e vigorosos. Segundo passagens do pensamento
nietzschiano, o egoísmo também seria um impulso salutar, esmagado pela moral
cristã, socialista, dentre outras; isto é, aquela moral degenerada dos “fracos”
ou dos niilistas (segundo sua concepção). Toda utilização da repressão por
parte daqueles que possuem o “impulso de vida” contra os fracos estaria
justificada e, inclusive, deveria ser incentivada. Está proposto implicitamente
que aceitar e propagar estes impulsos individuais e egocêntricos seria uma
alternativa para o lugar da moral e, consequentemente, da sociedade que
critica.
Desta forma,
Nietzsche cai numa espécie de anarquismo, ainda que também o critique
impiedosamente. Lenin definiu um anarquista como um liberal burguês com 40
graus de febre; Nietzsche é um anarquista com 40 graus de febre.
4.
Escondendo-se
atrás de abstrações, Nietzsche sustenta uma filosofia aristocrática. Qual seja:
os melhores devem ter preponderância sobre os piores; ou, dito de outra forma,
sobre os fracos, os “sem vontade”. A democracia seria uma “degeneração
política”, pois iguala os desiguais por natureza. Critica a democracia em
qualquer sociedade. Segundo Nietzsche, “os povos que valeram alguma coisa, que
chegaram a valer alguma coisa, nunca chegaram a isso sob instituições liberais.
[...] Aquelas grandes estufas para a espécie forte de homem, para a espécie mais
forte que exigiu até agora, as comunidades aristocráticas nos moldes de Roma e
Veneza, entenderam a liberdade exatamente no mesmo sentido que entendo esta
palavra: como uma coisa que se tem e não se tem, que se quer, que se
conquista...”.
A
sociedade proposta, mas não admitida explicitamente, seria uma sociedade
dirigida pelos “super-homens”, pelos melhores e mais fortes; em suma: uma
sociedade que respeitasse as castas e as classes. Isto fica claro na exaltação
apaixonada que Nietzsche faz da sociedade de castas indianas em contraposição a
sociedade cristã. O código de Manu – elaborado por volta do século II a.C. visando
regulamentar todos os aspectos da vida social indiana – estabelecia e
justificava a divisão da sociedade em castas. Nietzsche
o saúda como muito instrutivo. Segundo ele, neste código teríamos “por um lado,
a humanidade ariana, inteiramente pura, inteiramente original”; pelo outro,
teríamos os chandalas – a casta
excluída e mais pauperizada, se constituindo de verdadeiros párias sociais –
que “perpetuaria o ódio de chandala a esta ‘humanidade’”, isto é, a
“humanidade” da casta dominante – única e “verdadeira” humanidade que reconhece.
5.
Nietzsche
critica o cristianismo dentro desta perspectiva. “O cristianismo – escreve ele
–, cuja raiz é judaica e só é compreensível como planta desse solo, representa
o movimento contrário a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio – ele é a
religião antiariana por excelência: o cristianismo é a transvaloração de todos
os valores arianos, a vitória dos valores chandalas, o evangelho pregado aos
pobres, ao populacho, a revolta conjunta de todos os pisoteados, miseráveis,
malogrados e prejudicados contra a ‘raça’”.
Não
casualmente, Nietzsche tenta amalgamar os cristãos e os socialistas. Não é
verdade que o cristianismo seja um chamado a “revolta do populacho”. Por certo,
há semelhanças com propostas comunistas na pregação de Cristo, muito embora
haja um abismo em relação à prática de cada uma destas ideologias. O
cristianismo pode ser considerado, muito remotamente, como uma espécie de
“socialismo utópico”, ainda que também sirva como moral de escravo, uma vez que
afirma: “dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”, além de
oferecer o outro lado da face para cada agressão de um iníquo. Nietzsche
critica a escravidão moral ao qual o cristianismo subordinou a humanidade, mas
também critica e rechaça com todo o seu vigor aristocrático os poucos aspectos
positivos do cristianismo como coisa idêntica. De contrabando iguala tudo à
teoria socialista.
6.
A
questão não colocada claramente pela filosofia nietzschiana é a seguinte: qual
vontade deve prevalecer? Como conciliar as vontades e os egoísmos opostos que
inevitavelmente se chocam? Mesmo entre os “super-homens”, haveria unanimidade
de vontades ou um “super-homem” deveria reinar sobre os “super-homens” mais
fracos? Cabe perguntar ainda: um ser humano que defenda ardorosamente com toda
a sua “vontade de vida” o ideal socialista seria um indivíduo com “vontade de
poder” ou um niilista?
7.
Para
sustentar estas abstrações, Nietzsche lança mão de um materialismo metafísico.
Faz isso conscientemente, pois ridiculariza e rechaça a dialética como “coisa
inútil”, de “palhaços”. É um verdadeiro malabarismo filosófico que resulta em
fazê-lo abraçar a metafísica. Para o nosso grande filósofo anti-dialético, o
ser humano está novamente dissociado de uma sociedade histórica concreta (isto
é, comete o mesmo erro filosófico do materialismo de Feuerbach). Vive isolado
em uma ilha, onde sua vontade é soberana. É por isso que Nietzsche elogia o
ermitão, o asceta que se refugia no alto da montanha e despreza o populacho.
Este último serviria unicamente para infectar e macular a “raça superiora” de
homens.
8.
Uma vez que
esta “vontade” aristocrática seja trazida para o mundo real, para uma sociedade
concreta historicamente, a filosofia nietzschiana cai em uma contradição
insolucionável. Sua tradução concreta significa o apoio e o embasamento teórico
do imperialismo em geral, e do imperialismo nazi-fascista, em particular,
consciente ou inconscientemente: a vontade insuperável do Führer deve triunfar
sobre os povos fracos, os não-arianos, os judeus, os negros, os “sem vontade”.
9.
Pensadores
como György Lukács sustentam que Nietzsche representa uma manifestação ideológica
e superestrutural da época do surgimento e desenvolvimento do imperialismo
capitalista (final do século XIX). O pensamento nietzschiano está impregnado da
filosofia geral do imperialismo, o pragmatismo, ao mesmo tempo que lhe dá novo
embasamento. A afirmação de Lukács tem fundamento e se sustenta quando olhamos
para o conjunto do pensamento filosófico nietzschiano e o sentido que ele
caminha.
10.
A
filosofia de Nietzsche cai como uma luva à ideologia nazi-fascista, mesmo que
todos os seus defensores exaltem os elementos independentes de seu pensamento,
jurem de pés juntos o contrário ou aleguem a influência “falsificadora” da irmã
sobre a sua obra (fato que pode ser verdadeiro, mas que não invalida o sentido geral
da sua obra). O “triunfo da vontade” de Hitler é um atestado de confirmação.
Ponderações importantes a serem feitas sobre a crítica de Nietzsche aos
socialistas
1.
A “revolução
socialista” e a “sociedade comunista” podem sim se tornar um sucedâneo do “paraíso
cristão”, muito embora não o sejam por si só, tal como Nietzsche dá a entender.
A idealização deste mundo vindouro e a espera por ele pode, portanto, eclipsar
a vida concreta, deformá-la e desviá-la do caminho razoável. A moral comunista, tratada
desta maneira, se tornaria tão abstrata e dogmática que esmagaria o ser humano tal
como qualquer outra moral; a experiência stalinista nos provou isso. Muitos militantes
socialistas do Brasil, em pleno século XXI, também confirmam este pensamento,
pois a sua compreensão da “revolução”, do “comunismo” e do “marxismo”, não
apenas os desviam do caminho real e concreto da revolução e do socialismo, como
os transformam em fanáticos incapazes de olhar a realidade sob o seu nariz.
O socialismo,
sob a versão de Marx e Engels, é bastante claro quando afirma que a teoria deve
ser um guia para ação, e não um dogma; que não buscamos construir ou esperar
uma sociedade perfeita, sem contradições. Marx escreveu certa que vez que “não
é nossa tarefa construir o futuro antecipadamente e resolver todos os problemas
para sempre, mas é certamente nossa tarefa criticar duramente o mundo
existente. Digo duramente no sentido de que não devemos ter medo de nossas
próprias conclusões, nem medo de entrar em conflito com os poderes
estabelecidos”. A nova sociedade só poderá nascer de uma dura crítica política,
teórica e prática, da atual sociedade capitalista. E ela não será perfeita e
livre de contradições. Queremos apenas dar-lhe outra perspectiva econômica,
política e social, radicalmente diferente da atual sociedade capitalista. Os socialistas
não são infalíveis; nem são donos da verdade. Sua crítica implacável contra a
sociedade de classes apenas demonstra um caminho diferente do pensamento
aristocrático e conformista. Quer criar não apenas um punhado de super-homens, mas
elevar todo o populacho à condição de super-homem. Nossa tarefa não é se
conformar com a diferença entre intelectuais e o povo; mas criar as condições
materiais para que o povo possa se elevar ao nível dos intelectuais.
Nietzsche e os
intelectuais burgueses dizem que isso é impossível. Os socialistas afirmam que
isso é uma questão de se criar as condições materiais: acabar com a propriedade
privada dos meios de produção de riqueza social, investir na elevação cultural
e política de todo o povo. Realizar isto seria utopia? Na opinião dos
aristocratas e da burguesia, sim; na dos socialistas, não. A existência
histórica do pensamento socialista, suas contribuições teóricas e a sua atuação
política têm provado que é possível, ainda que saibamos pela experiência mais
dolorosa que concretizar este programa e construir esta nova sociedade é algo
complexo e repleto de contradições. A nova sociedade só poderá surgir de um
parto doloroso.
2.
Nenhum
marxista coerente pode dizer que a futura sociedade socialista será perfeita e
livre de contradições. Quem assim pensa não entendeu nada do pensamento
marxista, fazendo uma caricatura grotesca dele, ou age de má fé. Para uma
teoria baseada no materialismo dialético, que reconhece a contradição como a
fonte do movimento, e do movimento como existência da matéria, é bastante
estranho pensar que a sociedade socialista será o paraíso cristão. O pensamento
marxista apenas afirma que ao resolver na base da economia as contradições que
lançam seres humanos contra seres humanos numa luta voraz pela sobrevivência e
que legaliza a exploração de uns sobre os outros, se criarão as condições para
um novo tipo de sociedade, mais equitativa e solidária, e mais humana. A
vaidade, o egoísmo, a ambição, a maldade continuarão a existir, mas não serão
celebradas, e sim combatidas; não serão estampadas como virtudes, mas como
defeitos. Esta é a base da moral socialista combatida por Nietzsche.
A
filosofia de Nietzsche nos diz que isso é se curvar a uma forma de moral que
mata a “vontade” individual, uma vez que o egoísmo e a ambição, por exemplo,
não são mal em si, mas forças que impulsionam o individuo adiante. Tem razão em parte. Não podemos
tratar estes sentimentos como mal em si mesmo, abstratamente falando; mas
também não podemos levantá-los como bandeiras da virtude, tal como faz
Nietzsche. É preciso ter a cabeça no lugar e uma grande sagacidade para saber
olhar cada caso na sua realidade concreta, historicamente determinada.
Dialeticamente, a sociedade socialista precisa incentivar as iniciativas
individuais que trabalhem para o avanço da humanidade, para o bem social; saber
resolver a contradição do egoísmo pessoal, sem abafar o indivíduo, mas sem
deixar que este se transforme em um monstro devorador de outros seres humanos.
Precisa reduzir os conflitos mesquinhos ao mínimo.
Einstein
dizia que o capitalismo incentiva os impulsos individuais, enquanto desagrega
os impulsos coletivos dos seres humanos, que são sempre mais fracos que os
primeiros. Por isso defendeu no seu texto “Por que socialismo?” a sociedade
socialista, por entender que esta trabalharia no sentido de fortalecer os
impulsos coletivos contra os individuais, sendo, portanto, uma formação social não
apenas necessária, mas superior. Segundo ele, o ser humano encontra sentido para
a sua existência trabalhando para a coletividade, para a sociedade, tudo o que
o pensamento de Nietzsche condena.
3.
Como conciliar
a vontade individual com a vontade coletiva. Isto é realmente possível? Não
apenas é possível, como é impossível existir sociedade sem esta conciliação. É
evidente que esta conciliação deixa seqüelas inevitáveis; algumas insanáveis.
Esta é a base da crítica de Freud no seu livro “O mal estar na civilização”. Nele,
Freud demonstra que os seres humanos precisam conter os seus impulsos
individuais para conseguirem viver em sociedade, o que causa uma série de
frustrações, neuroses, privações; em suma, um mal estar. Porém, é impensável
uma sociedade sem o controle dos impulsos individuais. É a refutação e a
superação do pensamento de Nietzsche, apesar da semelhança de conceitos entre
ambos.
Estes
impulsos, segundo Freud, nunca poderão ser extintos, o que causará contradições
insanáveis para a sociedade. Nietzsche pretende resolver esta contradição
elevando à potência mil os impulsos, os livrando de todo o tipo de controle
moral. Que espécie de sociedade se criaria? A anarquista ou a nazista? Provavelmente
a sociedade nazista. Os socialistas compreendem que, dialeticamente, se deve
construir uma sociedade que respeite e resolva, dentro da medida do exeqüível,
os impulsos individuais, que não deverão ser iguais a si mesmo no tempo e no
espaço. As necessidades e os impulsos de um homem pré-histórico e de um homem
que vive na sociedade capitalista são idênticos? Apesar de possuírem semelhanças,
não são idênticos. O homem atual vive sob outra perspectiva porque foi educado
socialmente. Grande parte desta “educação social” está equivocada, conforme
atesta a obra de Nietzsche, baseada em uma moralidade caduca e decadente, em
sua maioria repressora e adestradora; mas isso não significa que se possa
abdicar de toda e qualquer moral social, bem como que não se possa educar o ser
humano dentro de uma perspectiva social “correta”, isto é, mais de acordo com
os seus impulsos individuais, ao mesmo tempo que estes convivam mais
razoavelmente com a sociedade.
4.
A democracia segundo
Nietzsche seria um regime político degenerado, pois é impossível igualar seres
humanos desiguais por natureza. Por trás desta abstração anti-histórica se
esconde a tentativa de Nietzsche de esconder que a maioria dos regimes
“democráticos” que existiram foram de fachada, aristocráticos, meramente
decorativos. A democracia grega era escravista, portanto, já excluía os escravos,
os “sem vontade”, o populacho, os chandalas. Por que Nietzsche despreza a
democracia então? Haveria desigualdades entre a “vontade de poder” dos
aristocratas que tornaria impossível a democracia entre a elite?
A democracia
burguesa também é outra enrolação. O voto durante muito tempo foi restrito à renda;
excluía mulheres, trabalhadores, analfabetos. Atualmente, o poder do voto é
outra ficção, pois quem realmente decide são os grandes monopólios industriais,
os bancos, as mídias; em suma, o poder do dinheiro. Enquanto houver sociedade
de classes, a democracia será sempre uma mentira, uma enganação, uma forma da
aristocracia dominante ludibriar os explorados. Na verdade, Nietzsche é um
adorador e propagandista da tirania. A exalta em todas as oportunidades. O seu
imbróglio sobre a “democracia” é para justificar o injustificável. A partir daí
qualquer forma de dominação é autorizada. Aos de baixo, aos “sem vontade”,
resta se submeter acriticamente.
No entanto,
uma reflexão sobre o que é trazido por Nietzsche é válida: seria possível uma
equidade social absoluta? Evidentemente que não. Mesmo entre as famílias
proletárias existem diferenças de número, de idade, de interesses. Uma
sociedade socialista não pode trabalhar com uma equidade exata, como por
exemplo: salários exatamente iguais, como muitas pessoas acham que se resume o
socialismo. No princípio da construção do socialismo os salários deverão
corresponder a estas diferenças pontuais, correspondendo ao tempo trabalhado e
as diferentes funções. Contudo, a diferença abismal entre trabalho intelectual
e manual; bem como entre políticos, burocratas estatais, magnatas, banqueiros e
trabalhadores assalariados deve cair drasticamente, além de extinguir certos
cargos sociais aristocráticos e benesses materiais que serão enxergados como
absurdos; como, por exemplo, o auxílio moradia para juízes, a pensão vitalícia
para ex-governadores, etc.
Não pode
existir democracia sem igualdade econômica; e não pode haver igualdade
econômica sem socialismo. O seu princípio fundamental é a propriedade coletiva
dos meios de produção de riqueza social, para surgir a verdadeira igualdade de
oportunidade e, sobretudo, de dignidade; eis aí ao quê se resume a sua ideia de
igualdade.
5.
Nietzsche
afirma: “Aos iguais o que é igual, aos desiguais o que é desigual – esse seria
o verdadeiro discurso da justiça. E como conseqüência disso, jamais igualar o
que é desigual”. Perfeitamente!
No
campo da produção, no campo das necessidades pessoais, no campo dos impulsos
individuais, nas questões salariais, estamos de acordo. Porém, tudo muda de
figura se vamos para as questões da macroeconomia, se tratamos da estrutura
social: jamais cair nesta armadilha; nunca dar cheques em branco; evitar
defender tamanha filosofia escolástica apavorante nas questões da propriedade
privada dos meios de produção, do poder estatal, na carta branca à condução de
um exército imperialista, na possibilidade de consentir com a invasão militar
de um país atrasado ou com a sua asfixia econômica.
Não
se pode tolerar sob nenhum pretexto pseudo-progressivo dar esta possibilidade
de naturalizar as desigualdades; sobretudo àqueles indivíduos dotados da
“vontade de poder”.
6.
Sobre ser “senhor de si”: é muito
importante criarmos as condições para que cada indivíduo possa ser senhor de si
mesmo, sobretudo em uma sociedade socialista. Desenvolvendo-se juntamente com
os impulsos coletivos, esta é uma condição importantíssima para que o
socialismo possa triunfar e evoluir. Contudo, ser senhor de si mesmo jamais
pode significar ser senhor dos outros ou sobre os outros.
7.
A sociedade
socialista deverá ter como um dos seus principais objetivos a felicidade e a
realização individual em harmonia com a coletividade. Os impulsos individuais
não podem ser asfixiados totalmente em detrimento de um suposto interesse
social ou moral. Ou estes interesses serão parte de uma livre associação entre
os indivíduos, ou serão parte de uma imposição arbitrária de um poder exterior.
Os socialistas precisam se colocar como perspectiva a melhor forma de envolver
os indivíduos na aceitação consciente e livre dos princípios de uma sociedade
superior baseada numa construção coletiva. Sabemos que a condição fundamental
para que esta sociedade exista é a criação das condições materiais, o fim da
propriedade individual sobre os meios de produção, mas isto por si só não
basta. A orientação política e cultural deve estar embasada em um humanismo
socialista, que leve todo este debate em honesta consideração.
8.
A
felicidade pode se transformar em uma nova abstração nefasta, que serviria
unicamente para esconder a realidade e a vida concreta. Em seu nome muita
atrocidade poderia ser cometida. Que espécie de felicidade deveria ser objeto
da sociedade socialista?
Certamente
aquela que nos torna mais humanos, mais próximos uns dos outros, mais
tolerantes com as diferenças, mais tolerantes com os nossos impulsos interiores
e com os dos outros. A superação de objetivos mesquinhos, meramente
consumistas, que cria uma moral artificial e rebaixada correspondente. A
psicanálise apenas começa a dar os seus primeiros passos e a desvendar o lado
oculto da nossa mente. Que obra grandiosa poderá realizar os avanços da
psicanálise em parceria com os avanços sociais e econômicos de uma sociedade
socialista, livre de morais opressoras, medievais; numa palavra: anti-humanas?
Que impactos
teremos com o livre amor entre seres humanos, o combate sem tréguas ao bullying, o acolhimento das diferenças,
o uso da mídia para incentivar a verdadeira cultura, a leitura, a arte, a
ciência? A compreensão de que não podemos viver isoladamente sem prejuízo para
toda a cultura humana e que a nossa felicidade deve residir no bem comum, no
trabalho bem feito em prol de toda a sociedade, sendo ele compreendido e
assumido de forma livre e espontânea; que haja o livre desenvolvimento de todas
as potencialidades de todos e de cada um (sejamos operários de manhã, músicos à
tarde, cozinheiros no jantar e críticos literário à noite); e que cada qual dê à
sociedade segundo as suas possibilidades e receba de acordo com as suas
necessidades.
Sentindo o gosto metálico da filosofia do martelo;
ou: como o feitiço
vira contra o feiticeiro
1.
A
filosofia de Nietzsche nada mais é do que uma variante da filosofia burguesa.
Sua recusa em aceitar toda moral e denunciar tudo não esconde o fato de que ele
não se propõem a combater a fonte geradora de todas as morais que supostamente
combate e condena – as instituições ideológicas das classes dominantes: a
igreja, a família patriarcal, a mídia, o Estado burguês. Ao não combatê-las
politicamente – apesar da crítica áspera do seu “impiedoso martelo filosófico”
–, as deixa livre, leves e soltas, para continuarem gerando novas e piores
ideologias reacionárias e retrógradas.
2.
O
seu pensamento aristocrático, “superior”, que rechaça todas as morais
retrógradas e castradoras, não é capaz de apontar a matriz delas. Desfeita toda
a névoa confucionista da sua gritaria histriônica, resta o velado apoio à
sociedade de classes e, em particular, ao capitalismo: o sistema perfeito! A
filosofia nietzschiana é um sustentáculo da ordem social capitalista, apesar
das pequenas críticas pontuais e distracionistas em contrário. Daí o
seu ódio ao pensamento igualitário em geral; e ao socialista em particular.
3.
Nietzsche não
olha Marx de frente. Fala contra os “socialistas” genericamente, mas nunca cita
Marx e Engels explicitamente. Em sua época, havia muitas escolas socialistas na
Alemanha, na França, na Inglaterra. Nietzsche coloca tudo num saco de gato, o
que destoa de todos os outros nomes que cita abundantemente. Teria ele medo de
receber uma resposta tal como Eugen Duhring recebeu de Engels?
***
Justiça seja
feita: ele age da mesma forma em relação aos anarquistas (apesar do seu
pensamento ser muito próximo do anarquismo).
4.
Não é possível
acabar com toda a moral sem acabar com os fundamentos que lhe dão sustentação:
as igrejas, a família patriarcal, a escola e a universidade burguesa, a grande
mídia. Muito provavelmente não seja possível extinguir todo e qualquer tipo de
moral social. Deveremos trabalhar no sentido de torná-la o mais inofensiva
possível, servindo apenas para fazer a humanidade progredir e nunca estancá-la
ou puxá-la para trás – o que tem sido a regra até hoje.
O pior e mais
pernicioso inimigo da libertação da humanidade é aquele que esconde suas
intenções sob frases “neutras”, de combate a tudo e a todos, mas que, no fundo,
não passa de uma tentativa de reafirmar velhos ídolos aristocráticos escondidos
por trás de uma máscara de superação em direção ao futuro.
5.
Wilhelm
Reich avançou muito mais decididamente na luta contra a moral opressora e
caduca que castra os impulsos da vida do que toda a verborragia aristocrática
de Nietzsche. Reich procurou um salutar diálogo entre o marxismo e a
psicanálise. Não se escondeu atrás das desculpas de não querer ser mais um “melhorador
da sociedade”. Ele compreendeu que para destruir toda a moral castradora e
opressora era preciso destruir as instituições caducas e reacionárias; antes de
tudo era preciso revolucionar a sociedade. Soube diferenciar as experiências
socialistas. Contribuiu muito mais decisivamente para emancipar a humanidade
dos dogmas morais e libertar os impulsos de vida do que todo o engodo
aristocrático nietzschiano.
6.
“Olhar
a realidade com os olhos de Maquiavel”, esta é a orientação dada por Nietzsche
às futuras gerações. Esta é a filosofia e a moral que coloca no lugar da moral
que critica.
7.
Rebelado
contra todo o moralismo que castra os impulsos vitais – em especial o sexual –,
Nietzsche louva Dionísio (o deus do vinho) e a sua festa, o bacanal, como o ponto
mais elevado da virtude grega e, por intermédio desta, de toda a humanidade.
Contrasta o rito de Dionísio com os rituais cristãos, castradores da sexualidade
por natureza. Em relação ao contraste com o cristianismo não há o que objetar.
Há, contudo, que relembrar os apontamentos de Freud sobre a contradição
intrínseca na nossa psique entre o princípio do prazer e o princípio da
realidade.
O
princípio do prazer traduz a tendência de buscar o prazer e evitar a dor, dando
vazão para os impulsos de vida ou a “vontade de poder”; já o princípio da
realidade nos faz compreender que nem tudo o que se deseja é possível, que se
for possível nem sempre é imediato e que na maioria das vezes não pode ser
conservado. Está em frontal contradição com o princípio do prazer e é o seu
limitador.
No seu culto
desenfreado dos instintos, da vontade de vida e de poder, Nietzsche quer apenas
o princípio do prazer, negando e combatendo o princípio da realidade; como se
isso fosse possível...
8.
Dos filósofos
criticados por Nietzsche o mais odiado é, sem dúvida, Platão. Por que o odeia
com tanta força? Por acaso seria uma forma de esconder o seu parentesco com o
pensamento platônico na questão social?
Nietzsche
vomita ódio contra a moral idealista pregada por Platão, o acusando de mil
adjetivos, mas não o superou numa questão fundamental. Mais do que isso: não
pode superá-lo, pois as posições políticas são idênticas! Nietzsche
simplesmente rechaçou o idealismo platônico e a moral e a ética que daí
decorriam; porém, manteve toda a sua filosofia social que prega a
preponderância e a dominação dos “homens de ouro” sobre os de “prata e bronze”;
dos aristocratas gregos sobre os seus escravos; isto é, dos homens com “vontade
de poder” sobre os “fracos sem vontade”.
Na questão social
da mulher Nietzsche reproduz a mesma lógica: reforça a preponderância dos
homens sobre as mulheres e, portanto o machismo. Quer lutar contra a moral
castradora, mas reforça o casamento patriarcal.
9.
O
único ser que escapa do impiedoso martelo filosófico de Nietzsche é Goethe.
Contra isso, não há nada o que objetar. Goethe é uma figura universal e a sua
obra é um exemplo engrandecedor e eloqüente do que a humanidade pode produzir.
Nietzsche
compara as aspirações da obra de Goethe à evolução intelectual aspirada pela
humanidade durante o século XIX; qual seja: universalidade na compreensão,
receptividade para tudo, realismo audaz, respeito a tudo o que é fatual. Porém,
apesar de todas estas aspirações da sociedade, Nietzsche nos diz que o
resultado não foi o surgimento de “um Goethe”, mas o caos, um suspiro niilista,
um não-saber-por-onde-começar, o romantismo sentimental, o altruísmo, o
feminismo no gesto e o socialismo na política.
O
desapontamento de Nietzsche por não ver o surgimento do que entende que deveria
ter surgido no campo da moral, da política e da sociedade no século XIX
transforma-se em um protesto flagrante. O que deu errado?
Nietzsche
está na contra mão da evolução humana. Olha o futuro com o saudosismo
aristocrático do passado. Fala em “nova fase da filosofia”, mas requenta os
destroços ideológicos das formações econômicas escravistas. Ao invés do
materialismo dialético, do socialismo, da luta pela libertação moral da
humanidade contra as instituições reacionárias; somente a sua luta para fazer
renascer a visão social aristocrática de Platão disfarçada com uma folha de
parreira materialista.
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