Bonfim, 17h48min.
“Me dá imagens desse vagabundo!”, gritou a voz metálica do apresentador na TV num volume
ensurdecedor. Se via um homem negro, com a cabeça escondida sob o casaco,
tentando se esquivar desesperadamente das câmeras. “Eu quero imagens desses delinqüentes”, insistia o apresentador do
Rio Grande Alerta, enquanto aparecia na tela dividida, mais atrás do primeiro,
outros indivíduos que se portavam da mesma maneira. De olhos assustados, Elvira
Filomena Coutinho observava o seu programa imperdível. Ela não sabia bem ao
certo o que sentia, se medo ou raiva; ou um misto dos dois, que acabava gerando
um sentimento bem típico nesta camada social porto alegrense, explodindo sempre
nos mesmos comentários: “Manda esses vadios pra cadeia!”, o marido a apoiava
entusiasmado; isso, é claro, quando prestava atenção nela.
“Focaliza no ladrão!”, pedia o apresentador ensandecidamente, “Focaliza no ladrão, pô! Brincadeira! Esse
cara não tá me escutando? Focaliza no ladrão!” O câmera man focalizou nos
homens se contorcendo pra se esconder atrás dos casacos, bonés e camisas. O
repórter, então, de frente para os detidos, começou a reproduzir o que o
apresentador lhe ditava pelo ponto de escuta: “vocês são a escória da sociedade. Ouviram bem? São a escória! Assustam
e agridem os cidadãos de bem”. Dona Elvira sentia uma espécie de sensação
de alívio e justiça pelo que dizia o apresentador. “Pelo menos alguém está
falando alguma coisa pra estes marginais terríveis, já que as autoridades não
fazem nada; não lhes aplicam os corretivos necessários”, concluía ela em
pensamentos enquanto finalizava uma carreira de tricô, sentada no sofá da sala
de seu confortável apartamento da Rua Felipe Camarão, no Bonfim.
“Com a segurança pública desse jeito, onde vamos parar?”, insistia o apresentador, “Bandido tem que ir para a cadeia!”, e
Dona Elvira finalizava mais uma carreira de tricô; “Polícia com arma na mão!”, e Dona Elvira dava uma piscadinha
rápida; “Esse é um país muito violento!”,
e Dona Elvira finalizava mais uma carreira de tricô; “Bandido precisa aprender a ter medo da polícia e da lei”. Os
olhinhos de Dona Elvira piscavam e observavam atentos; enquanto suas mãos iam
costurando e tecendo uma colcha de retalhos como se fosse uma máquina.
Cruzeiro do Sul, 8h35min
“Corre filho, corre”, gritava a mãe
desesperadamente para o filho pequeno, que corria puxando as calças que lhe
escorriam pelas mãos. O tiro ia comendo ao fundo. Dobraram a esquina e se
esconderam atrás do muro de uma casa. Começava mais um dia na vila Cruzeiro do
Sul. A mãe se agachou, tomou o filho nos braços e começou a chorar baixinho.
Pela rua passaram cantando pneus
dois carros. Num deles estava Leandro Conceição, vulgo Leléko da Bonja. “Missão
cumprida”, disse ele com expressão aliviada para um dos passageiros do carro
enquanto limpava o sangue nas mãos com um pano molhado de álcool.
Partenon, 19h26min
Jorge largou a caixa de frutas no
chão e enxugou com a manga o suor da testa. “O que manda patrão?”, perguntou
com voz trêmula ao chefe, dono da banca de hortifrutigranjeiro da feira da rua
do INSS. Já sabia a resposta, mas mesmo assim tentou pensar em coisas amenas
para aliviar a tensão.
“Na semana que vem não precisa vir
mais”, disse o patrão para ele. Um calafrio subiu a espinha de Jorge atingindo
como uma bomba sua cabeça. A terrível sensação lhe tirou qualquer capacidade de
raciocínio. O chão lhe faltou sob os pés. Tudo começou a girar. “O que vou
fazer? O que vou fazer?”.
Sorriu amarelado para o chefe. “Ei,
patrão, patrãozinho, será que a gente não podia conversar?”, a voz foi ficando
sumida. O patrão fingiu não ouvir enquanto se virava de lado para atender um
cliente. “Eu tenho mulher e filhos, sabe cumé? Eu pensei que o contrato era pra
valer”. “Contrato? Mas que contrato?”, disse de repente o patrão, que voltou a
prestar atenção. “Pensei que éramos amigos, um contrato baseado na amizade. Foi
o que você me disse no início”. “Amigos, amigos, negócios à parte”, respondeu o
patrão rispidamente.
Uma chuva fininha começou a cair.
Bom Jesus, 21h54min
Foi na sala de “espera” da melhor
casa da vila que Leléko teve seu feito reconhecido e festejado. Orgulhoso,
entrou no gabinete do Alemão Louco, o chefe da boca.
“Tudo como o planejado”, disse
Leléko, “Os P5 vão pensar duas vezes antes de se meter com a gente. Você
precisava ver a cara do gurizinho, Alemão. Se borrou todo! O Piolho deu três
tiro no segurança da porta. Se esborrachou no chão. Depois entrou e matou mais
dois. Aí vim por trás e peguei o merdinha desprevenido. Ficou de joelhos. Implorou
desculpas pra ti. Mas ordem é ordem! Dei 10 tiros pra vingar o Shumaker.
Depois, pichei na parede do quarto o que tu mandou, tá ligado?”.
“Muito bem”, disse o Alemão Louco, “agora
tu já subiu uma nova gradação. Por isso tu vai assumir o posto de sócio! Te dou
este 38 que foi do Shumaker como medalha de guerra”. Leléko pegou a arma,
emocionado, olhou o tambor, apontou para a parede e apertou o gatilho.
“Está descarregada”, disse Alemão.
“Ah, o Leléko não falou”, disse
Nega, que estava junto ouvindo a conversa, “Tinha um neguinho que tava junto na
hora e fugiu desesperado pela janela. O Piolho deu uns tiros por trás, mas acho
que não conseguiu acertar”.
“Este não vai longe. Já conheço o
desgraçado. Tá na cabeça dos P5. Já vi ele umas três vezes ali na Goethe”,
disse Leléko.
“Nem pensar”, disse rispidamente
Alemão Louco, “Tu já sabe do acordo!”.
Alemão se referia ao acordo informal
fechado entre a facção deles, os “Faca nas costas”, e a Brigada Militar:
tiroteio e morte só contra outras facções e apenas nas vilas. Leléko tinha
participado pessoalmente do acordo, sabia do que se tratava, mas às vezes se
“fazia de louco”, em parte buscando mais aventura, em parte para sutilmente
tencionar e questionar o chefão.
“Nenhum tiro sequer em bairro de
playboy, entenderam?”, disse o comandante do grupo de elite da Brigada Militar
que entrou no QG dos Faca nas costas naquele dia para dar o recado à facção. A
partir dali, começaram uma longa trégua com o crime organizado, convivendo
pacificamente e deixando que as rivalidades e a criminalidade das vilas fosse
assunto deles próprios. Enquanto preservavam os bairros da pequena burguesia,
as periferias viviam o inferno de uma guerra permanente, baseado na lei do mais
forte e completamente desassistida pelo Estado e pelos governos. Os moradores
da Bom Jesus que não se envolviam com os Faca nas costas eram marcados e
obrigados a andar na linha. A qualquer momento podiam sofrer inquirições dos
capangas do Alemão Louco ou da Brigada; seus bens podiam ser revistados ou
tomados; se por acaso se envolvessem com os P5 era a morte certa. Muitos
chegavam a perder suas casas e obrigados a morar com parentes ou mesmo nas
ruas.
Caldre Fião, 4h36min
Exalando um cheiro de cachaça, Jorge
entrou pé ante pé em casa, extremamente cansado. Sua mulher estava dormindo na
velha poltrona. Abriu um olho. “Isso são horas Jorge?”, disse ela virando
bicho, “tu me vira a noite e chega em casa só agora; e fendendo a cachaça?”.
“Calma, nega”, disse ele se
esquivando.
“Calma o quê?”, ela já começava a
lhe cravar as unhas, enquanto o olhar de medusa o petrificava, “E os teus
filhos? O que tu pretende? Não te envergonha, não?”.
“Eu não estou bem!”, disse ele.
“Não está bem? E eu? Que tenho que
tomar conta dos teus filhos sozinha, sem dinheiro, sem tua ajuda, sem tua
presença”.
“Eu estava trabalhando”, tergiversou
Jorge.
“Trabalhando? Até agora? Tu pensa
que eu sou trouxa, é?”.
“É que eu fui mandado embora”, disse
ele quase se escorrendo pelo chão.
“Mandado embora? De novo? Tu só pode
tá de brincadeira comigo”.
Jorge trancou-se no banheiro e só
saiu de lá depois que a mulher, exausta de tanto chorar e gritar, caiu sobre os
filhos, que dormiram sobre o seu colo, no chão.
Voluntários da Pátria, 5h44min
Como era repugnante olhar para
aquele ser, ali, atirado no meio da cama, roncando e babando pelo canto da
boca. Da janela do quarto do “pensionato”, envolta por uma nuvem da fumaça do
seu cigarro, Anita olhava para o seu cliente. Lambuzou-se a noite inteira com
ela; lhe agrediu, insultou, pisou. Agora estava ali, dormindo como uma criança.
Em alguns momentos Anita tinha lampejos de lucidez, então conseguia se desfazer
da horrorosa mentalidade que foi obrigada a desenvolver para conseguir
sobreviver.
Que vontade louca de sair correndo
por aquela porta e deixar tudo para trás. Mas ali estava ela, fumando sentada,
com os cotovelos sobre as coxas, olhando fixamente para rua. “Onde estaria
Helena?”. Ao fundo, o ronco molhado e repugnante, que vez ou outra se
engasgava, e logo recomeçava.
Nascida e criada na Restinga, Ana
Flávia Souza, vulgo Anita, nunca conheceu o pai. Cresceu filha de mãe solteira,
ajudando a criar o irmão caçula. Sem perspectivas de vida, Ana Flávia começou a
trabalhar cedo, ajudando a mãe a fazer faxina. Se aborrecia com freqüência,
pois queria estudar e “ser alguém na vida”, como seguidamente a mãe e as tias
lhe exigiam. Mas como estudar e trabalhar daquela forma, naquele emprego?
O irmão caçula cresceu e se envolveu
com o tráfico de drogas. Logo a seguir, tornou-se dependente químico. A mãe
entrou em desespero, largou tudo para o alto; emagreceu, os cabelos ficaram
brancos. Passaram fome juntas e as piores necessidades.
Os tempos se acalmaram. Anita
arranjou emprego: empregada doméstica. Trabalhava duro, das 8h até às 19h num
luxuoso apartamento da Bela Vista. Fazia tudo sem reclamar. Chegava em casa
esgotada e ainda tinha que ouvir os lamentos da mãe sobre o irmão mais moço.
Acabaram-se os tempos de convivência
familiar: Ana Flávia foi escalada para morar no apartamento dos patrões para
cuidar dos filhos pequenos. Interessado na pele morena da empregada, o patrão
logo tratou de aparecer na área de serviço logo depois que a esposa adormecia.
Ana não sabia dizer não, que dirá se impor? O patrão deleitava-se sobre seu
trabalho, sobre o seu braço, suas pernas, sobre todo o seu corpo, afinal,
estava pagando por ela! A esposa começou a implicar com a empregada. Arranjou
todos os pretextos possíveis para demiti-la. No auge do seu desespero, Ana
Flávia chegou a desejar ser demitida, para acabar com tudo aquilo, mas não teve
forças para se demitir. Tinha o irmão e a mãe para ajudar.
O cliente despertou. Os pensamentos
de Anita se dissolveram junto com a fumaça do seu cigarro. Já passavam das
6h20min. “Tenho que ir embora”, disse ele assustado. Se aproximou de Anita, enlaçou-lhe
o braço gordo em torno do pescoço. Anita teve vontade de vomitar, mas se
conteve. O cliente começou a apalpar-lhe as nádegas. O asco de Anita chegou ao
auge. Começou a forçar-lhe a fazer sexo oral. Anita tapou o nariz.
Bonfim, 8h08min, Parque da Redenção
“Estes são os vestígios das mulheres
de vida fácil, he, he, he”, disse João Coutinho, apontando para uma camisinha
usada, jogada no chão, perto do recanto europeu, enquanto caminhava com os
ex-colegas militares. Aposentado, João adquirira o hábito de dar caminhadas
matinais com eles. Este hábito tornou-se quase uma religião: todas as quintas
pela manhã, se encontravam no monumento ao expedicionário, vulgo “arcos da
Redenção”. “Mas estas putas me vem dar na Redenção! Aonde as coisas vão parar?”,
disse Agnaldo em resposta a João.
Chegaram próximo ao chafariz
central. Pararam. “Hoje vai fazer calor”, disse Honório, um pouco sem assunto.
João foi sentando num banco próximo e se espreguiçou. Os outros sentaram
juntos. Do outro lado do chafariz, vinha se aproximando um indigente,
arrastando um cobertor velho e o um saco preto. Se aproximou do grupo dos
senhores. Perguntou: “tem uma moeda pra ajudar?”
“Não tenho. E mesmo que tivesse não
te daria”, disse João ao mendigo. “O que você está fazendo da vida, rapaz?”,
disse Agnaldo. “Vai procurar um emprego”, completou Honório. “Onde?”, perguntou
o mendigo. “Ora essa! Era só o que me faltava!”, indignou-se João. “Ta cheio de
emprego por aí”, disse Agnaldo. “Vai cortar uma grama, tá cheio de quintal
nessa cidade”, complementou Honório.
“Tô com fome agora”, sussurrou o
mendigo, com voz rouca. “Não temos nada a ver com isso”, disse Agnaldo. “Vá
trabalhar, rapaz!”, ordenou João. O mendigo saiu indignado, grunhindo
impropérios. “Ora essa, sustentar vagabundo! Era realmente só o que me
faltava”, completou.
Tristeza, 18h45min
Sofia abre a porta de entrada do
salão de festas. Todos os olhares se voltam para ela. Estava esbelta, na flor
da idade e despontando todos os seus atributos femininos. Logo atrás dela
estava Alex, um pouco tímido por estar sendo analisado da cabeça aos pés.
“Finalmente vamos conhecer o rapaz”,
disparou a tia de Sofia, toda uriçada. “Muito prazer”, diziam uns; beijos e
abraços, davam outros. Sentaram-se para saborear um suculento churrasco, que já
cheirava em todo o salão. Logo vieram os copos com cerveja e os brindes.
Sentados num canto, Alex e Sofia
conversavam com a prima e o namorado. “Onde vocês se conheceram?”, perguntou a
prima à Sofia. “Ah, foi na faculdade”, tergiversou ela. Alex levantou sutil e
involuntariamente a sobrancelha esquerda.
Alex fez curso técnico de mecânica e
trabalhava numa metalúrgica em
Canoas. Sofia estava no 5º semestre de Letras. Na verdade,
Alex e Sofia haviam se conhecido nas jornadas de luta de junho de 2013, no
centro histórico de Porto Alegre, durante a marcha dos 30 mil. Naquele dia
chovia muito. Dividiram o mesmo guarda chuva e um pouco de calor. Alex passou
um panfleto de sua organização política para Sofia. Ela guardou na mochila.
Conversaram um pouco. Da política para trivialidades; das trivialidades para a
política. Logo a seguir, trocaram telefones. Desde lá vieram se falando e
trocando impressões, ideias, beijos e carícias. Declararam namoro oficial no
facebook três meses depois. Sofia começou a ter ideias mais à esquerda, o que
foi suficiente para começar a se incomodar com o avô.
Lá no canto do salão estavam os avôs
e os tios, dando pequenas gargalhadas, bebendo, comendo e rindo. Sofia achou
melhor omitir para não se incomodar. O embate, no entanto, era inevitável.
Voluntários da Pátria, 20h12min.
“Onde está Helena? Onde está
Helena?”. Este era o pensamento que martelava na cabeça de Anita, sentada no
chão quase no centro do quarto. O último cliente acabara de sair fazia uns 30
minutos e a agonia voltara com força total. “Eu vou enlouquecer!”, ela pensou
involuntariamente. “Preciso de maconha! Não! Preciso cheirar!”, disse ela em
voz alta para si mesma. A mão esquerda tremeu.
O seu estado de nervos a levou de
volta para aquela fria e sombria manhã de julho: “Teu irmão tá morto”, disse a
mãe, chorando e soluçando assim que viu a filha entrar em casa. “Eu não
acredito!”, Ela gritou. Começou a chorar ensandecidamente e se jogou sobre o
colo da mãe. “Por que ele?”, gritou Anita, “Por quê?”. “Foi a polícia”, disse a
mãe, soluçando, “confundiram com traficante”.
Leve toque na porta. Anita se
levanta e vai abrir a porta. Era Suelen. Veio lhe trazer as últimas novidades
do “pensionato”. Percebeu as lágrimas e os olhos inchados. Deu um longo e terno
abraço na amiga.
Campo da Tuca, 23h36min
“Gamei naquela nega, ‘pai’!”, disse
Leléko para Piolho. “Daonde ela é?”, perguntou Piolho. “Não faço ideia, mas já
já vou descobrir”, imendou Leléko. Ao fundo tocava um funk do MC Bin Laden. O
baile explodiu. Garrafas de cerveja começaram a voar sobre as cabeças. Depois
de muito olhar de longe, Leléko se aproxima.
“E aí, qual vai ser?”, disse ele pra
morena. “Já é!”, disse ela. Se beijaram com fúria.
Caldre Fião, 7h28min.
Nem Jorge, nem a mulher entendiam o
verdadeiro motivo de ele ser tantas vezes “mandado embora”. Jorge já havia sido
caixa de supermercado, mecânico, assistente de técnico de ar condicionado e
feirante. De todos estes ofícios, apenas o primeiro teve carteira assinada.
Chegou na parada do ônibus Caldre
Fião. Ia tentar um novo subemprego com outro dono de banca de feira. Estava
otimista. Já tinha traçado a estratégia. Ia ser tiro e queda. Conseguiria outro
emprego e chegaria em casa para comunicar orgulhosamente à mulher.
Depois de esperar um longo tempo na
parada, o ônibus chegou. Ajeitou a gola da camiseta remendada, juntou do chão
suas sacolas e embarcou.
Bom Jesus, 12h11min.
“Porra, Leléko! Tu foi me arranjar
uma nega lá da Cruzeiro”, berrou Alemão Louco dando um soco na mesa. “Como é
que tu tá sabendo?”, indagou Leléko. “O Piolho me contou tudo. Disse que tu ta
caidinho por ela. Tu já sabe a minha opinião sobre isso. Mulher não pode
atrapalhar os negócios”, respondeu Alemão Louco. “Eu sei o que faço! E a vida é
minha, ta certo?”, disse convictamente Leléko. Ficaram se encarando alguns
segundos. “Tu sabe que na Cruzeiro tu é jurado de morte, ‘pai’, ou já
esqueceu?”. Leléko fez um sinal de desdém com as mãos. “Vô te mandar um papo
reto”, disse Alemão olhando fixamente nos olhos de Leléko, “se tu nos meter em
enrascada por causa de mina já sabe! Tu tá fora”.
Voluntários da Pátria, 14h58min
Bateu na porta suavemente três
vezes. Anita abriu. Era Honório, olhando sorridente. “Oi minha neguinha”, disse
ele, dando um selinho nela. Foi logo deitando ela na cama e começando o seu
ritual. Anita estava acostumada. Enquanto ele se lambuzava de uma maneira
estranha, embora um tanto lento e descompassado em função da idade, Anita
pensava na vida.
Lembrou do velório simbólico do
irmão, feito a duras penas. Alguns amigos e tias distantes apareceram. A mãe
soluçando num canto. Parecia que ia morrer ao final do dia de tanta amargura.
Ficou abraçada nela até o pastor dar as últimas bênçãos. O velório foi
simbólico porque não havia corpo, apenas algumas fotos penduradas na parede do
casebre.
Ana procurou trabalho
enlouquecidamente. Conseguiu como empacotadora em um super-mercado, mas a
rigidez das cobranças e dos horários não era compatível com os cuidados que a
mãe requeria. Faltava seguidamente. “Vê só”, dizia o gerente para a sua turma
de funcionários em treinamento, “a gente tenta ajudar o pessoal carente, mas
eles não têm disciplina, não querem nada com nada”. Meses depois ela foi pra
rua por um pretexto de “justa causa” (havia esquecido o crachá no seu armário e
pedira o de um colega para entrar e buscar o seu; todos a conheciam, mas usaram
isso como pretexto para a “justa causa”). Sem salário a penúria absoluta
retornou.
Mesmo cansada e abatida, Ana tentava
manter uma integridade física e psicológica. O seu corpo era bonito e rijo,
apesar das cicatrizes da vida. Uma amiga a apresentou para o cafetão de um
bordel da Cidade Baixa. Hesitou por algumas semanas. A fome bateu na sua porta
e lhe cobrou alguma ação. Ana pensou; repensou; aceitou. Nas primeiras semanas
o dinheiro não era muito, mas deu para abastecer um pouco uma geladeira tão
cheia de carências. A mãe de Ana perdeu a visão e a lucidez. Caiu numa penumbra
completa. Alguns vizinhos ajudavam nos cuidados dela. Ninguém sabia a
procedência do dinheiro de Ana. Muitos anos se passaram. Ana tinha arrepios e
sentia profundo nojo do que fazia. Como o dinheiro fluía, Ana não pôde se
desfazer dele. Sentia um misto de nojo e de repulsa por si mesma, mas algo
dentro dela a obrigava a não largar mão daquilo. Para conseguir suportar os
mais de 10 clientes diários, Ana começou a usar drogas. Do álcool passou para a
maconha; da maconha para a cocaína; da cocaína para o crack. Encarnou uma nova
personagem. Conseguia suportar o fardo horroroso e ainda conseguiu criar uma
lista de clientes fixos. Ana Flávia tornou-se Anita.
Honório chegou ao seu clímax. Deu um
urro e caiu para o lado, exausto. Começou a roncar. Anita limpou-se chorando.
Entrou no seu pequeno banheiro e tomou um banho demorado. Depois, acendeu um
cigarro e sentou-se na cadeira de frente para a janela. “Onde estaria Helena?”,
ela pensou enquanto largava uma baforada de fumaça.
Caldre Fião, 16h07min.
Quando chegou em casa cambaleando
novamente, Jorge encontrou a mulher de pé, junto com os filhos, a sogra, que
estava dormindo na casa deles desde a última vez que ele saiu sem dar notícias,
e dois vizinhos homens, amigos da sogra. “Bêbado de novo!”, disse a mulher com
voz firme e decidida. “Quer dizer que não tem dinheiro pra cuidar dos filhos,
mas tem pra beber?”, falou a sogra, com os olhos faiscando. Jogando-se no chão,
aos pés da mulher, Jorge começou a chorar, como que implorando perdão. Exalava
cheiro de álcool por todos os poros. “Ainda é um frouxo”, disse a sogra
decididamente para a filha. “Te põe daqui para fora, traste inútil”, gritou a
mulher em prantos, como se estivesse fincando um canivete na própria barriga.
Os vizinhos olhavam tudo estarrecidos. As crianças começaram a chorar
convulsivamente. A filha pequena gritava “papai, volta papaizinho!”. A sogra a
segurou no colo e fechou a porta de entrada.
Bonfim, 17h26min.
“Pai que não pode sustentar a
família tem que se matar mesmo; os japoneses estão corretos! Que país
disciplinado, meu Deus! Por que nós não somos assim?”, disse João Coutinho para
Agnaldo, enquanto jogavam cartas e bebericavam conhaque na mesa da cozinha e
escutavam da sala o caso de um pai processado pela mãe por falta de pagamento
da pensão que estava sendo veiculado no programa de TV preferido da esposa,
Elvira Filomena.
Com o seu tricô, Elvira via TV e
conversava um pouco com a neta, Sofia, que mexia no seu celular. “Como você
pode ver um programa desses, vó?”, indagou a neta, indignada, “é uma forma
absurda de criminalizar a pobreza”. Elvira ficou sem saber o que dizer, fazendo
o tricô mais rápido, com gestinhos curtos e calculados. O avô se enfureceu e
foi pra sala. “Agora essa guria me deu pra defender bandido?”, falou ele
gritando. “Eu não defendo bandido nenhum”, disse ela nitidamente indo pra
defensiva, “só acho que a violência urbana, os assaltos e assassinatos são
consequências de problemas sociais muito mais profundos, e não as causas.
Reprimir e criminalizar as periferias não vai resolver nada, só aprofundar a
violência”.
O avô indignou-se, esqueceu do
amigo, das cartas, do conhaque. Como assim uma fedelha como ela ia cantar de
galo no terreno dele? “Bandido bom é bandido morto. Eu defendo a pena de morte
pra todos esses vadios, trastes inúteis; esta escória da sociedade”. A neta se
sentiu oprimida e fragilizada não pelos argumentos, que eram um amontoado vazio
de ódio disparado por uma metralhadora giratória, mas pela agressividade e
imposição da voz do avô. Elvira estava extremamente assustada por dentro. Não
falou nada; só ia fazendo o seu tricô mais rápida e certeiramente. “A violência
social é uma causa das desigualdades sociais, da miséria, do desemprego”,
complementou Sofia, tentando racionalizar a discussão. “Era só o que me
faltava. Minha neta, sangue do meu sangue, virou comunista!”, disse o avô com
um sorrisinho sarcástico. “Na ditadura tudo funcionava. Você tem que aprender
isso. Lamento lhe dizer, mas se vivêssemos na época da ditadura militar você já
estaria morta, entendeu? Morta!”, complementou com os olhos vidrados em fogo.
Cristal, 21h16min
O shopping estava cheio de gente,
formigando para lá e para cá. Saindo de uma loja de roupas cheio de sacolas,
Leléko e Kelly se deram um beijo longo e demorado. “Obrigada, meu amor, te
amo!”, disse ela no ouvido dele. Depois do baile funk de Viamão, Leléko e Kelly
se falaram longamente por telefone, whatsapp, facebook. Começaram a namorar
mesmo sem ter dito nada sobre qual era o status do seu relacionamento. Fizeram
planos de ter filhos e morar junto. Juraram amor eterno. Se seria realmente, a
vida é muito imprevisível para saber, mas se qualquer pessoa visse os dois
juntos diria certamente que sim. Era um amor vulcânico, incandescente,
voluptuoso. Leléko ganhara Kelly no paparico, dando a cada dia um presente
novo, a levando para longos passeios no shopping. Ia buscá-la na Cruzeiro do Sul
com o carro que comprara no nome de um laranja com os seus novos rendimentos na
hierarquia dos “Faca nas costas”. Não era luxuoso, mas servia bem para
impressionar. Mentiu para a mãe de Kelly que trabalhava no comércio. Todos
acreditaram. Na frente dos outros agia como bom moço e convencia.
Kelly o chamava de Lê. A mãe o
chamava de Leandro. Mas fora dos olhos delas era o Leléko da Bonja, o outro
lado do “Lê” e do “Leandro” que elas não faziam muita ideia, embora poderiam
facilmente desconfiar. Matava, torturava, roubava e dava ordens como um tirano
qualquer. Sua posição o obrigava a especializar-se cada vez mais nesta “arte”.
Já almejava dar passos maiores, tomar outras bocas, dominar outros bairros.
Olhava Alemão Louco como César olhou Pompeu e Crasso.
Era neste relacionamento caloroso,
mentiroso e consumista que residia toda a humanidade de Leléko. Seu amor “pelo
outro”, pela vida, pelo futuro, se concentrava em Kelly. A amava com toda a
sua humanidade; ou melhor: com o que havia sobrado dela em algum lugar perdido
dentro dele.
Voluntários da Pátria, 2h33min.
O cliente de Anita se arrumava para
ir embora. Este era um tanto agressivo. Espancava Anita enquanto se deleitava
em seu corpo. Anita nada podia fazer, a não ser se resignar. Uma vez tentou
reclamar e acabou com um olho roxo. Ela percebeu que quanto mais tocasse nos
pontos íntimos dele, mais agressivo ele se tornava.
Anita fumava na janela, esperando
ansiosamente por se ver livre desta presença incômoda. Ele se aproximou,
arrumado. Puxou-a pelos cabelos. Lambeu o seu ouvido e disse: “semana que vem
estou de volta”. Anita quase vomitou, mas se manteve firme. Assim que ele saiu,
desabou num choro tortuoso, soluçando devagarinho.
De repente viu-se na cama do
hospital, urrando de dor, enquanto o médico e as enfermeiras puxavam Helena de seu
ventre. O choro de neném ecoou pelo quarto do hospital e um grande alívio
acalantou seu corpo. Quando chegou ao ápice da dependência das drogas, Anita
era a grande atração do bordel. Atraía vários clientes; transava com 5 ao mesmo
tempo. Foi uma época de vacas gordas para os donos do “pensionato”. Não tardou
a chegar os apagões mentais e os desmaios. Em razão de uma overdose, Anita
dormiu uma semana inteira. Acordou sequelada e por três dias não pôde fazer
absolutamente nada. Logo voltou a fissura e os conflitos econômicos com o
cafetão. Era a atração da casa. Merecia um aumento. Acabou expulsa do
“pensionato”. Entrou em uma depressão profunda. Morou por dois meses com uma
amiga, mas era ameaçada de despejo quando entrava em crise de abstinência. Como
era prestativa e tinha pavor a possibilidade de morar na rua, Anita se adaptava
e procurava agradar a amiga.
Conheceu Wesley. Tudo se abrandou.
Finalmente viveria o seu grande amor? Ele a ajudou a superar muitos problemas
com as drogas. Cultivaram o hábito de fumar maconha; e este vício, abrandou os
demais. Fez planos de casamento. Anita queria voltar a ser Ana. Ia largar a
vida que levava; começar do zero; honrar a memória da sua mãe e do seu irmão.
Engravidou. No terceiro mês de gestação Wesley sumiu sem deixar vestígios. Teve
recaídas pelas drogas mais pesadas, mas resistiu fumando cigarro e maconha. As
amigas lhe aconselhavam a parar com tudo, mas Anita não conseguia. Helena
nasceu um pouco prematura, embora saudável. O nome foi escolhido em razão de
uma personagem da novela das 8h. Anita esperava que Helena encontra-se o seu
par romântico e vivesse feliz para sempre, tal como na novela.
Helena cresceu feliz até o seu
primeiro ano na casa da amiga de Anita. Porém, a amiga arranjou um novo
namorado que implicava com a presença de Anita e de Helena. Inventava pretextos
para expulsá-la. A amiga resistiu. Porém, logo o namorado resolveu expandir
seus domínios. Tentou estuprar Anita, mas não conseguiu. A amiga sentiu-se
ressabiada e a partir daquele momento viu em Anita uma rival. Certa vez, num
momento de descuido, Anita encontrou o namorado da amiga abusando de Helena.
Anita virou bixo. Avançou sobre o namorado com as unhas, com um telefone e um
abajur. O namorado revidou e Anita apanhou como nunca. Arrumou suas trouxas e
foi embora com Helena.
Recebendo inúmeras negativas de
amigos e parentes, Anita acabou morando na rua por dois meses com Helena. Por dias
ficou pedindo fraldas, leite ou qualquer mantimento para os clientes do Zaffari
do Bonfim. Conseguiu alguns mantimentos por generosidade de uns transeuntes.
Sem outras perspectivas, voltou para o “pensionato” com Helena. O cafetão voltou
a cobrar produtividade: “pra ficar aqui tem que trabalhar”. O que fazer com
Helena? “Pode ser um bônus extra”, ele lhe respondeu com um sorriso sarcástico.
Anita não teve outra opção senão implorar para que uma tia da Restinga
assumisse a criação da filha. Foram semanas de negociação, até que fecharam em
um valor que seria enviado mensalmente por Anita à tia. Helena já tinha um
lampejo de consciência. Nunca mais perdoou a mãe.
Uma leve batida na porta. Anita
voltou a si. Olhou as horas, 2h35min. A porta abriu vagarosamente. Era Suelen.
Trazia um cigarro de maconha e boas notícias. Tinha conseguido marcar um
encontro com Helena em seu nome. Fumaram. Riram. Foram felizes por 30 minutos.
De repente uma lágrima escorreu no canto do olho de Anita. Há quanto tempo não
era feliz assim?
Cruzeiro do Sul, 6h50min.
Ao sair de casa para o trabalho,
Kelly reparou um balde de tinta caído ao lado do portão. Um pouco mais adiante
uma lata de spray. Saiu para rua e olhou para o muro pelo lado de fora. O pavor
quase a levou ao chão. Estava escrito em grandes letras “Leléko da Bonja a tua hora vai chegar. P5”. Kelly sabia que os P5
era a facção que dominava a Cruzeiro do Sul e mais 4 periferias. Ela e sua mãe
preferiam ver o capeta em pessoa do que arranjar problemas com qualquer
integrante dos P5. Mas que diabo era “Leléko”? Da “bonja”? Peraí! O Leandro
mora na Bom Jesus. Já tinha ouvido alguns amigos lhe chamarem por este apelido.
Ligou chorando para o namorado.
Maria Degolada, 12h01min.
Sem perspectiva de vida e de
trabalho, Jorge vagava pelas ruas da vila Maria Degolada. Estava tentando a sua
última cartada. Adentrou o beco das drogas. Caminhou decidido até o último
casebre. Bateu seco duas vezes na porta. “Que tu quer?”, disse uma voz abafada
lá de dentro. A porta abriu rangendo. Apareceu um homem encapuzado com um fuzil
na mão. “Vim ver o ‘Coroa’”, disse Jorge ao sentinela. “Só um pouco”. A porta
fechou-se novamente. Jorge sentiu um arrepio.
A porta reabriu: “pode passar”,
disse rispidamente. Jorge foi caminhando por três cômodos repletos de armas,
pacotes fechados, TVs e alguns outros eletro eletrônicos. Em alguns sofás
dormiam homens e mulheres. Chegou a porta do quarto do chefe do tráfico da
Maria Degolada, ligada aos P5.
“Voltou pra me pagar os 30 pila que
tu me deve, Jorge?”, disse o Coroa. “Er, não”, sussurrou Jorge, meio
constrangido, “quer dizer... posso lhe pagar em serviço. Estou
desempregado”. “Hmmm”, Coroa coçou a testa olhando Jorge da cabeça aos pés. Rapidamente
Jorge foi listando seus atributos, o seu “currículo” e todos os trabalhos que
já tinha feito na vida. “Pão com ovo”, gritou Coroa em direção à porta. Entrou
um sentinela com um fuzil nas costas: “o que manda, Coroa?”. “Dá um trabalho
pro Jorge”, ordenou o chefe.
Bonfim, 13h49min.
O domingo estava ensolarado. O azul
do céu cintilante. As árvores da Redenção pujantes. O brique fervilhava de
gente, pra lá e pra cá. As eleições se aproximavam. Diversos partidos e
candidatos montaram banquinha ao longo da Avenida José Bonifácio. Sofia e Alex
estavam panfleteando um material analisando as eleições brasileiras e
conclamando a população a votar nulo. “Vote nulo com consciência de classe”,
diziam aos que pegavam o panfleto.
Se aproximou João Coutinho com uma
camiseta escrita “Bolsomito é 20!”. Sussurrou para a esposa: “era só o que me
faltava minha neta metida com os comunistas”. Se aproximaram e sorriam. Dona
Elvira tentando ser amável com a neta e o namorado. Alex retribui um sorriso e
ofereceu um panfleto. “Muito obrigado”, disse João negando e virando o rosto.
Dona Elvira pegou por educação. João Coutinho começou a tremelicar e a ficar um
pouco vermelho.
Sofia e Alex continuaram entregando
os panfletos, um pouco constrangidos com a presença dos avós dela ao lado,
ambos quietos a olhar. Alex prosseguia: “vote nulo com consciência de classe”.
“Ora essa”, disse João, “você é anarquista, rapaz?”. “Não, sou socialista”,
respondeu Alex. “Pffff”, desdenhou o velho, “onde você já viu esse negócio dar
certo?”. Sofia olhou Alex com o olhar gélido, como a lhe implorar que não
respondesse. Alex sentiu-se desafiado, por isso respondeu: “As experiências
‘socialistas’ que tivemos no século 20 degeneraram em regimes de nova opressão,
chamados mais corretamente de stalinismo. Isto não atesta a ineficiência do
socialismo. É, antes de tudo, fruto do isolamento internacional, das guerras
mundiais, da derrota da revolução nos demais países europeus, do atraso da
herança cultural e econômica dos países onde ocorreram; em suma, da conjuntura
histórica de que cada país...”.
“Não me venha com conversa fiada
comunista, rapaz. Eu tenho o triplo da sua idade”, exaltou-se João, “eu não
defendo marginais”. “Marginais?”, surpreendeu-se Alex. “Sim, essa bandalheira
que anda por aí nas ruas matando, roubando...”. “Que maneira honrosa de se
referir aos trabalhadores e ao povo em geral”, retrucou Alex. Dona Elvira
estava completamente constrangida diante da neta. Tinha medo que os dois
entrassem em confronto físico. “Pra mim pobre tem que ter trabalho no lombo”,
disse rispidamente João, “se não encontra que vá buscar: vai cortar uma grama,
pintar um muro, consertar uma porta!”. “Não acho que seja tão simples assim”,
retrucou o rapaz. “São tudo vagabundo. Não querem trabalhar”, reafirmou João.
“A diferença que temos é que pra
você marginal é uma parte da
sociedade para se xingar, humilhar, que reúne a encarnação do mal; pra mim
designa aqueles que estão à margem da sociedade oficial; que são precisamente o
resultado do capitalismo, sistema ao qual você propaga e sustenta”, disse Alex.
João Coutinho engoliu seco e declarou o namorado da neta o inimigo da
família.
Praia de Belas, 14h23min
Caminhando apressadamente pelo
shopping, Suelen subiu a escada rolante estralando os dedos. Desembarcou na
praça de alimentação. Viu Helena sentada em uma mesa, digitando no celular. “Já
é uma moça”, pensou espontaneamente. Aproximou-se.
“Oi”, disse Suelen à Helena. “Oi”,
ela respondeu secamente. “Como te falei, Helena, venho a pedido da sua mãe”,
Suelen sentou-se, “ela está muito chateada com toda essa situação e gostaria de
restabelecer o contato contigo”. Helena começou a chorar. “Eu não quero”, disse
escondendo o rosto atrás das mãos. “Mas por que não?”, insistiu Suelen. “Ela me
abandonou com dois anos de idade. Me largou na casa da minha tia. Nunca me
procurou”, disse Helena com voz chorosa. “Eu sei. Sua mãe está profundamente
arrependida. Ela quer lhe recompensar por tudo. Vocês podem ser muito felizes
como mãe e filha. Eu mesma não vivi o suficiente com a minha mãe porque ela
acabou...”. “Não”, interrompeu Helena chorando, “eu não quero ser como ela.
Quando eu consegui melhorar, caminhar com as minhas próprias pernas, vem ela
pra acabar com tudo”. “Sua mãe é uma boa pessoa, Helena, tente lhe dar uma nova
chance”. “Não!”, disse Helena se levantando, “Eu não quero ver ela nunca mais.
Para mim minha mãe está morta”.
Bom Jesus, 17h56min
Foi com o olhar sombrio que Alemão
Louco recebeu Leléko. “Que merda foi essa Leléko?”, questionou Alemão Louco,
“tu tá jurado de morte na Cruzeiro do Sul e vai me envolver com uma nega de lá?
Quer botar a perder todo o nosso negócio?”. “Alemão”, gritou Leléko, “da minha
vida cuido eu”. “Não cuida não, porra”, gritou Alemão se levantando da cadeira,
“tu entrou no comando dos Faca nas costas não foi por acaso. Já pensou se
acontece alguma coisa contigo? Nós ficamos totalmente desacreditados. Tu vai
acabar agora com essa mina, entendeu?”. “Mas não vou mesmo!” berrou Leléko
quase indo pro confronto físico. Piolho que estava atrás dele o agarrou. Os
capangas de Alemão entraram na sala armados. “Tu não é mais do comando geral”,
decretou Alemão. Leléko teve ímpetos de avançar sobre o traficante, mesmo com
todas as armas da sala na sua mira. “E te põe daqui pra rua antes que eu te
expulse da vila, entendeu?”, gritou por último Alemão.
Piolho agarrou Leléko e os dois saíram
do barraco do Alemão Louco. “Que filho da puta”, esbravejou Leléko mais de três
vezes para Piolho, “vou acabar com a raça dele, Piolho! Vou tomar toda a boca
desse filho da puta”, indignou-se Leléko, “tu vem comigo, Piolho?”. Piolho não
disse nem sim nem não; ficou olhando assustado para a loucura do amigo. “Tu não
vai dar de cagão, né?”, falou Leléko mostrando a arma na cintura, “vou pegar
ele na calada da noite”. “Vai com calma Leléko”, disse Piolho com voz trêmula,
“o Alemão coordena mais de 7 bairros”. “O Alemão é um desgraçado”, disse
Leléko, “todo mundo sabe por que ele tá fazendo isso comigo!”. Pilho engoliu
seco. As coisas estavam indo longe demais. Leléko se referia ao fato que era
conhecido por quase todas as periferias de Porto Alegre: após passar 5 anos no
presídio central, Alemão Louco foi solto e estava necessitado de mulher.
Arranjou uma namorada. Passado 2 anos, ela o deixou para ficar com outra
mulher. Alemão Louco não podia aceitar tamanha desmoralização. Foi com dois
capangas atrás delas na sua nova casa em Alvorada. Deu o
recado prévio para todo o bairro: “não saiam de casa. O assunto não é com
vocês”. Executou as duas na rua, para toda a comunidade ver. A vila aprende bem
cedo a não desrespeitar traficante. A fama se espalhou para todas as outras
periferias. Os P5 não deixaram de tirar partido da situação, o que aumentou o
ódio de Alemão Louco, que dali por diante passou a ser um solteiro convicto e a
se envolver apenas com prostitutas.
“Já está na hora de tocar nessas
feridas”, disse Leléko bolando um plano. Piolho caminhava atrás tentando
dissuadi-lo destas ambições. O triunvirato estava desfeito. César cruzou o
rubicão.
Menino Deus, 19h27min.
O carro
preto dobrou a esquina da Avenida Getúlio Vargas. “É nessa avenida”, alertou o
chefe do bando da Maria Degolada que pretendia assaltar uma farmácia. Entre
eles estava Jorge, encapuzado, com um 38 na mão. Tremia mais que vara verde. Um
dos assaltantes, percebendo que Jorge estava tremendo de medo, cutucou o chefe.
“Te controla, cara!”, ordenou ele. O colega do lado de Jorge tentou acalmá-lo:
“A Brigada está com os salários parcelados e o nosso equipamento é melhor que o
deles. Eles pensam duas vezes antes de vir contra...”. Jorge não pareceu se
convencer, apesar de dizer: “Eu tô bem; eu tô bem!”; as suas pernas continuavam
a tremer como bambu na ventania.
Chegaram. O
carro parou um pouco antes da Farmácia. Os assaltantes desceram de arma em
riste. “Vamo logo, vamo logo, vamo logo”, ordenou o chefe. “Isso aqui é um
assalto, porra!”, gritou o chefe. O segurança da farmácia tentou virar-se, mas
foi alvejado por três tiros. Caiu duro no chão. Jorge foi tomado de pavor. Saiu
correndo para o outro lado. Enquanto um rendia os atendentes do balcão, o chefe
da gangue esvaziava o caixa. Jorge atirou sua arma na lata do lixo e dobrou a
esquina correndo. Os dois assaltantes saíram pra rua e se aproximaram do carro.
“Cadê o
Jota, porra?”, gritou o chefe, cheio de adrenalina. “Fugiu”, informou o
motorista. “Mas que filho da puta”, disse o chefe sentando no banco do
passageiro. “Taca-lhe pau. Vamo embora. Depois o Coroa se acerta com ele”. O
carro saiu dando um cavalo de pau que ecoou por todo o Menino Deus.
Voluntários da Pátria, 23h46min
“Estou morta?”, disse
automaticamente Anita para Suelen. Seus olhos se encheram d’água e ficaram
fixos na amiga, como que hipnotizada. Virou toda a garrafa de vodca que a amiga
tinha lhe trazido, já pressentindo que a conversa não seria boa. Era o terceiro
esforço de Anita para se aproximar da filha.
“Calma, amiga”, dizia Suelen, “ela
vai reconhecer o erro e voltar atrás”. Anita desabou aos prantos no colo da
amiga. “Minha vida não tem mais sentido”, ela repetia, “não tem!”. Um cliente
bateu na porta. “Hoje não tem”, gritou Anita. “Como não tem?”, disse uma voz
abafada por trás da porta. Suelen abriu-a lentamente. “Claro que tem sim”, disse
o cliente, indignado, “eu até já paguei. Ou vai pelas boas ou vai pelas ruins”.
“Pode deixar”, disse Anita limpando as lágrimas e tirando o roupão. Suelen saiu
e bateu a porta devagarinho.
Cruzeiro do Sul, 0h14min.
A mãe da Kelly foi ver quem batia na
porta àquela hora. “Quem é?”, perguntou ela. “Abre a porta, velha”, ordenou a
voz da rua, “é dos P5”. A mãe sentiu um frio subir pela espinha dorsal que lhe
paralisou as pernas. “Abre logo ou a gente arromba a porta”, ordenou novamente.
A porta abriu-se vagarosamente. De um só golpe a velha caiu sentada no chão.
Entraram 15 indivíduos. Colocaram-na sentada no sofá sob a mira de uma arma.
Kelly percebeu que havia uma
movimentação estranha na sua casa. Passos avançavam sob o assoalho de madeira
do casebre. A sua porta se abriu subitamente antes que ela pudesse se levantar.
“O que que é isso?”, perguntou ela, assustada. Cinco vieram pelo lado da cama e
a renderam. “Quem vai ser o primeiro?”, perguntaram. Kelly começou a se debater
e a chorar desesperadamente. Taparam a boca com uma mordaça para abafar os
gritos. O primeiro que se prontificou foi tirando as calças. Dizendo “não” com
a cabeça, com os olhos, por todos os poros do corpo, Kelly recebeu o primeiro
agressor; depois o segundo; depois o terceiro. Ao total foram 15. No quinto,
Kelly havia perdido a consciência.
Centro Histórico, 4h15min.
Embaixo da marquise de um banco, na
Salgado Filho, Jorge se virava de um lado para o outro, mas não conseguia
dormir naquele papelão que não segurava nada da friagem que passava do chão
direto para as suas costas. Jurado de morte, ele passou a dormir na rua. Não
podia mais voltar para a sua casa porque sua mulher o havia expulsado. Se
pisasse na Maria Degolada poderia ser morto a qualquer momento. Jorge conhecia
bem o refrão do samba: “vacilão não sobe mais o morro do Juramento”. Passou a
dormir nas ruas. Pensava ser algo passageiro; “logo, logo as coisas iam entrar
nos eixos novamente”. Começou a rezar baixinho um “Pai nosso”. Se embolou no
meio. Não lembrava mais da oração. Isso tudo só podia ser um castigo divino.
Sua mulher (ou ex-mulher?) tinha razão. “Eu sou um infiel”, ele concluiu
baixinho. De repente sentiu um jato frio de água. Tomou um cagaço! Se levantou
de chofre, se enxugando e tentando segurar o resto dos seus pertences. Era uma
equipe de limpeza urbana. “Vamo lá cambada”, ordenou um deles, “tá na hora de
levantar”. Ainda era noite. Como poderia ser hora de levantar? Ainda grogue de
sono, Jorge tomou um ponta pé na bunda e se pôs a caminhar como um zumbi.
Já de manhãzinha, com os primeiros
movimentos do centro, Jorge começou a sentir a barriga roncar. Que fome! Não
tinha um tostão furado no bolso. Começou a pedir dinheiro. Foi ignorado.
Implorava por 1 real. Os olhos assustados lhe diziam “sai pra lá!” e
continuavam a ignorá-lo. “Por favor, me dá um troco! Por favor, por favor, por
favor...”.
Voluntários da Pátria, 10h26min.
O cliente
psicopata de Anita agarrava seus cabelos com força. Parecia que ia arrancá-los.
Anita sentia uma dor insuportável. Gemia de dor, não de prazer. A perversão do
cliente incendiava-se. O psicopata a agredia com mais força. Mordeu o ombro de
Anita e arrancou sangue. Anita começou a chorar. “Não tá aguentando, vadia?”,
ele gritou no ouvido dela, “Aguenta, pra que que eu te pago, hein? Sua puta de
merda!”. Anita resignou-se. Não tinha mais idade para aquilo. Queria ir embora,
sumir, morrer. Imaginou-se voando, sobre as nuvens. Como seria bom! Uma dor
queimando do lado esquerdo da bochecha, do nariz. Novo tapa na cara.
“Helena, me
perdoa! Não foi minha culpa”, as unhas do psicopata cravaram nas costas dela. Nova
dor insuportável! O ódio perpassa do agressor para o agredido. Anita aperta as
nádegas do psicopata. Ele começa a forçar o sexo. Aperta o pescoço de Anita,
que sente os olhos inchar – vão explodir! Não para de apertar as nádegas do
psicopata. “Vem”, ela diz, “acaba comigo”. O psicopata chega ao orgasmo. Grita
como um imbecil. Dá um novo tapa na cara de Anita. Cai no chão e começa a
chorar. Um confronto inexplicável se travava dentro daquele ser bizarro. Ele
precisava urgentemente de ajuda. Mas de quem?
Anita
atira-se para o lado. Coloca a mão no nariz e sente um filete de sangue. O
psicopata se recompõe. Levanta-se. Veste-se depressa. Dá um beijo em Anita,
como se estivesse tudo normal e vai em direção a porta. A porta bate. Anita
começa a soluçar debruçada sobre os travesseiros.
Bonfim, 17h45min.
O Rio Grande Alerta dava a notícia
do estupro coletivo na Cruzeiro do Sul. As imagens e os vídeos haviam sido
postados nas redes sociais pelos próprios agressores. Sofia e a avó assistiam,
estarrecidas. O apresentador gesticulava, indignado; lançava impropérios para
todos os lados; gritava de ódio; exigia punição (mas exigir para quem cumprir?,
pensava Sofia consigo mesma). Como pode isso acontecer num país dito
civilizado? O apresentador tinha razão em quase tudo. No entanto, sua emissora
ajudava a manter os pilares graníticos do sistema econômico que sustenta e cria
novas situações absurdas como esta. Sofia tinha um pouco de clareza sobre isso;
a avó não.
“Que absurdo”, disse a neta. “É
mesmo!”, concordou a avó. “O machismo ainda vai vitimar mais meninas como
essa. O estupro está legalizado na nossa sociedade”, complementou a neta. O avô
ouvia tudo da cozinha. Não se aguentou: “Mas era só o que me faltava, uma neta
comunista. Essa história de igualdade entre homem e mulher não existe, guria.
Como pode ser possível igualdade entre coisas desiguais?”. “Por favor João”,
disse a avó tentando preservar a neta. “Por favor não Elvira, essa guria tem
que aprender o que é certo”. Sofia indignou-se, mas sentiu-se em minoria. Não sabia
bem ao certo como e o quê responder. No entanto, percebia que se tratava de uma
injustiça cruel. Também percebeu que o avô não podia ser convencido, uma vez
que era notório que ele estava plenamente empenhado em manter aquelas posições
políticas a qualquer custo. Mesmo assim, arriscou.
“Não acho que seja normal uma
situação como essa”, disse Sofia, timidamente. “É claro que é normal. Essas
guriazinhas não tem estrutura e disciplina em casa. Cadê a família?
Saem por aí de shortinhos apertados. A maioria é tudo vagabunda. Depois
acontece isso, aí ficam reclamando. Ainda mais lá na vila, onde não tem
polícia, não tem segurança”. “Isso deveria ser proibido em qualquer lugar”,
disse Sofia, desafiando o avô. “Depois que arranjou esse namoradinho comunista
ficou rebelde, viste só Elvira?”, João olhava para a esposa como que esperando
uma resposta de aprovação. “Deixa a menina em paz”, pedia a esposa. “Os tempos
são outros. As coisas estão mudando. A gente tem o direito e o dever de falar”,
insistiu a menina. “Sofia, não provoca tu também”, pediu Elvira. “O dia em que
as mulheres tiverem os mesmos direitos que os homens será o fim. O dia que vivermos
no comunismo, será o apocalipse!”, gritou João abrindo a porta. “Aonde você
vai?”, perguntou a avó. “Vou me encontrar com o Honório e o Agnaldo; tchau!”. A
porta se bateu com força. Elvira continuou fazendo seu tricô. Olhou para a neta
e ficou um pouco constrangida.
Na TV o apresentador continuava o
seu trabalho.
Bom Jesus, 19h04min.
Desesperado
pelas negativas de Kelly em atendê-lo, Leléko toma a firme decisão de executar
um por um dos seus agressores. A situação estava um pouco mais difícil. Tinha
perdido o suporte material que a corte de Alemão Louco lhe garantia como
segundo homem do tráfico. Era Leléko que estava louco agora. Tinha sangue nos
olhos. Só pensava em
vingança. Se tivesse que dar tiro em bairro de playboy daria.
Se tivesse que explodir bomba explodiria. Mas de onde tirar todos estes
recursos?
Sabia que
um dos agressores de Kelly tinha um primo na Bom Jesus. Foi até a casa dele
para dar um recado. Pediu apoio de Piolho, que ficou em dúvida, mas não se
comprometeu. Decidiu ir sozinho.
Chegou na rua do primo dando tiro
pra cima: “Não é nada contra vocês. Estamos acertando contas. Toque de
recolher. Todo mundo entra pra casa que eu não quero machucar ninguém”. Foi um
corre-corre pra todos os lados. Em 5 minutos já não havia nem cachorro na
calçada. Chegou chutando a porta. Teve que dar de ombros três vezes pra
conseguir que ela cedesse. “Onde está o Mandolate?”, perguntou Leléko para a
senhora que estava na sala tremendo de medo. “Por favor, não mata ele não!”,
implorou a mulher, em prantos. “Não vou matar. Vou só mandar um papo reto pra
ele e pro primo dele”. Atravessou a cozinha e chegou no pátio de trás.
Mandolate estava escondido atrás de um monte de entulhos. “Olha aqui seu filho
da puta, avisa pro teu primo que eu vou pegar ele e acabar com a raça dele”,
gritou Leléko com sangue nos olhos. Deu dois tiros na perna de Mandolate, que
caiu urrando de dor. “Por favor não me mata!”, ele implorava. Leléko saiu da
casa e foi embora caminhando pela rua. Estava no auge da sua adrenalina. Era
como espoleta sem pólvora; papel-moeda sem lastro-ouro. Alemão Louco já não
endossava suas ações.
Enquanto Leléko caminhava em direção
a Av. Protásio Alves pra se encontrar com Piolho, ele entrava na sala do Alemão
Louco para ter uma “conferência”.
Av. João Pessoa, 21h04min.
Na fila do
albergue Jorge olhava fixamente para a ponte da Ipiranga, o fluxo incessante de
carros e o número de sem tetos que aumentava a cada minuto. “Será que vai ter
lugar hoje?”, ouviu dois homens atrás dele conversando. “Que vida de cão”,
pensou Jorge consigo mesmo. Estava cansado. Muito cansado. Não tinha com quem
desabafar. Se sentia fraco para puxar assunto com a mulher que estava sentada
ao seu lado. Seu semblante era carrancudo. Preferiu encostar a cabeça na parede
e fechar os olhos para descansar.
A grade que
dá acesso ao albergue foi aberta. “Desculpem a demora”, uma voz disse lá de
dentro.
Centro histórico, 21h15min.
No meio de uma grande passeata
contra o governo, Sofia e Alex distribuíam um panfleto para as pessoas que
ainda estavam na parada de ônibus, denunciando o estupro coletivo e o machismo.
A marcha se aproxima do viaduto da Borges. Duas mulheres estavam paradas na
escadaria, fumando. Sofia se aproxima e entrega um material: “Abaixo o
machismo; contra a cultura do estupro”. Anita estendeu a mão e pegou um
material. Os olhos de Sofia e Anita se encontraram. Foi lançado um pedido mudo
de socorro. A marcha seguiu. Alex e Sofia se afastaram das duas. Anita e Suelen
olharam para os dois se indo e subiram o viaduto da Borges em direção à Duque
de Caxias. O panfleto não interessou muito à Anita, apenas o olhar de Sofia,
que parecia valer a pena.
Chegaram no cume. Anita ficou
olhando para baixo. Tão fácil; tão simples. Lembrou-se da mulher que viu
espatifada no chão num certo dia. Colocou a mão no parapeito. Sentiu uma força
lhe puxar para baixo. Suelen cutucou Anita, “vamos, amiga”. Anita virou-se e
seguiu a colega pela Duque de Caxias.
Av. João Pessoa, 6h13min.
Foi no meio
de um sonho bom, aconchegante, que Jorge foi cutucado bruscamente pelos
administradores do albergue. “São seis horas da manhã”, disse um deles, “está
na hora de vocês saírem”. Jorge junta seus trapos e sai, dormindo em pé, em
direção à porta da rua. Toma a Avenida João Pessoa e vai caminhando em direção
ao Centro Histórico. Passa pela Redenção. Senta por uns 20 minutos no banco. Se
deita. Tenta dormir. Alguns carros começam a buzinar em razão do
engarrafamento. Vozes passam conversando pela rua. Se levanta. Segue seu
caminho para o centro.
Chega na Salgado
Filho e encontra um vão livre entre uma loja e uma entrada de edifício. Se
senta. Se sente derrotado. Logo vem o dono da loja e pede para Jorge sair.
Ameaça chamar a polícia. Jorge se levanta e segue caminhando até a Borges.
Percebe vários sem tetos dormindo embaixo do viaduto. Se atira num canto e fica
ali, sentado, olhando para um ponto fixo na rua. De repente percebe a presença
de uma mulher e duas crianças: era sua ex-mulher e os seus filhos. Sujo, com a
barba grande, esfarrapado e escondido entre sacos, Jorge não é percebido por
eles. A filha olha para o pai e para aqueles seres humanos sem a menor
perspectiva com um olhar curioso e piedoso. Jorge esconde o rosto e sente sua
face se afoguear. A mãe puxa a filha. Apertam o passo e se distanciam. Jorge
começa a chorar baixinho.
Voluntários da Pátria, 10h15min.
O cliente
psicopata de Anita estava sobre ela. Alucinado e raivoso, suava e puxava o
queixo de Anita. Ela sentia os pingos do suor em suas costas. Mudaram de
posição. Anita estava hipnotizada, embora não soubesse bem pelo quê. Como
sempre, de forma violenta o psicopata intensificou seus movimentos. Anita
colocou suas mãos nas nádegas dele. Imediatamente ele levou as mãos ao pescoço
de Anita. Ela afundou a mão. Ele apertou mais forte. Ela encostou todos os
dedos. Ele apertou mais forte; e mais forte; e mais forte. Um estalo. O pescoço
quebrou. Os olhos de Anita vidraram.
Cruzeiro do Sul, 14h39min.
O carro freia um pouco antes da casa
do Caveirinha, um dos agressores de Kelly. Junto com Leléko descem dois
atiradores mercenários. Eles foram recrutados com as economias pessoais de
Leléko, que lhes deu inúmeras garantias de que iriam abrir negócio próprio.
Começariam tomando a boca da bonja. Em plena luz do dia os três se propuseram
cumprir uma missão extremamente arriscada. Um dos dois mercenários de Leléko
tinha cheirado uma carreira de cocaína. Leléko e o outro atirador estavam
excitados pela adrenalina. Viram que o movimento da rua estava calmo. Iam
chegar pé ante pé na varanda da casa, depois iam entrar atirando. A rua estava
realmente calma demais.
Chegaram próximo ao portãozinho de
ferro. Leléko fez sinal de silêncio para os dois capangas. Antes que pudesse
entrar no quintal uma chuva de bala alvejou os três vindo de 5 casas
diferentes. Leléko caiu morto, de fronte ao portão da sua vítima não consumada.
O outro atirador caiu no meio fio e ficou ali, estatelado. O terceiro elemento
saiu manquejando, com vida. Mas foi morto na outra esquina.
Voluntários da Pátria, 16h49min.
A porta do quarto de Anita recebe
três leves batidinhas. Suelen empurra a maçaneta. Olha para o corpo estendido
na cama. Pensa que a amiga está dormindo. “Amiga”, ela sussurra baixinho. De
repente percebe que Anita está de olhos abertos, vidrados num canto do teto.
“Anita”, ela grita de repente, “socorro, alguém acode aqui, ela está passando
mal!”. Suelen chacoalhava o corpo para ver se havia alguma reação. Duas outras
mulheres entram no quarto. Chorando, Suelen balbucia: “A Anita está morta”.
Bonfim, 7h26min.
O friozinho
da manhã deixava o ar um pouco mais leve. João, Honório e Aguinaldo davam a
segunda volta em torno do chafariz central da Redenção. Decidem sentar um pouco
para conversar. No banco ao lado estava dormindo Jorge, envolto em trapos de
cobertor, papelão e sacolas. Ele tinha passado uma daquelas noites difíceis no
Centro Histórico. “Olha só”, disse subitamente João, “dormindo até agora. É por
isso que tá aí. Um bando de vagabundo, tchê, só querem dormir”. “É verdade”,
concordou Agnaldo. Honório se resignou a dar uma risadinha de concordância.
Cruzeiro do Sul, 8h31min.
Um carro para em frente a casa de
Kelly. Dois homens descem e deixam uma cesta em frente ao portão de entrada.
Dentro da cesta estava a cabeça cortada de Leléko.
Cidade Baixa, 14h20min.
Enrolado em
papelões e trapos sujos, Jorge dormia numa nesga de sol que se estendia até a
frente do Speed Lanches. Subitamente ele lembra do olhar das filhas. “Não me
reconheceram! Quem sou eu?”. Nesta nova jornada da sua vida, a qual foi
obrigado a se resignar por mil imposições, Jorge adotou dois cachorros de rua,
que passaram a lhe fazer companhia. Os três estavam tirando uma soneca para
compensar a noite mal dormida. Vários pedestres anônimos passavam pela frente
deles, indiferentes.
Tristeza, 15h32min.
O novo
encontro familiar foi precedido por uma preparação de guerra da parte de João
Coutinho. Ele só não imaginava que Alex não “usava calças novas”; e também
estava preparado. João espalhara por toda a família que o namorado da neta era
um “maconheirinho comunista”, que só ia fazer mal para ela. Os tios tentavam
desconversar um pouco. Da mesma forma a avó, que preocupada com o namoro da
neta, julgava que o marido estava exagerando.
O jovem casal
chegou em um ambiente hostil, apesar da tentativa das personalidades neutras
tentaram amenizar o clima. Sentaram-se e começaram a conversar. Logo chegou os
petiscos do churrasco. João não se aguentou: “Ah, que bonito! Um comunista
comendo churrasco”. Alex se conteve a muito custo. Valeria a pena responder?
Apenas por Sofia e por algumas poucas pessoas. A maioria não se importava.
Estava satisfeita com o faz de conta.
Alex não se
conteve: “Por acaso não podemos mais comer também?”. “Mas era só o que me
faltava, veio me afrontar no meio da minha família”. O pessoal sentiu o clima
ficar mais pesado e tentou abrandar. A conversa voltou para as trivialidades
mundanas por um tempo. João Coutinho, insatisfeito por dentro e carente de
realizações, recomeça: “Olhe aqui, rapaz, se você pensa que vai poder entrar na
minha família assim pra defender marginal, você tá muito enganado”. Falava com
o dedo em riste para Alex, que começou a cair na provocação: “Pra você é
marginal qualquer pessoa que não seja da sua classe, qualquer trabalhador,
qualquer pessoa do povo”. “Marginal é essa bandalheira, é tudo isso aí que está
na rua e não presta”, gritou João Coutinho. “Eu também condeno o tráfico de
drogas, o domínio dos traficantes sobre as periferias, só acho que isso é um
efeito colateral do...”, tentou responder Alex, mas foi interrompido por João:
“Não me venha com esse discurso padrão pra defender a vagabundagem. A polícia
tem que entrar com os blindados na vila sim; tem que mandar matar sem-terra,
sem-teto...”. A neta olhava tudo aquilo estupefata. Alex era orgulhoso.
Levantou-se e pegou seu casaco. Antes de ir, sob o olhar atônito dos convivas,
virou-se para João Coutinho e perguntou: “Quanto vale a vida pra você?”. “Ora
seu, vem cá filho da mãe..”, berrou João avançando sobre Alex. A luta só não se
consolidou por que alguns tios e cunhados agarraram João. Elvira Filomena pediu
para a neta que saísse com Alex.
No meio do
amor havia uma moral de classe. Sofia olhava Alex com o olhar aflito
shakespeariano. O que fazer se a família não aceita? Se resignar? Alex estava
confiante de que Sofia conseguiria se desvencilhar de tudo aquilo. Era
guerreira e decidida. Por debaixo do olhar de menina estava uma mulher de
fibra. Porém, a luta é árdua. A borboleta só nasce quando luta e vence a
crisálida. “Me desculpe”, ela balbuciou. “Não...”, disse ele colocando os dedos
em seus lábios. “Você vai voltar?”, ela perguntou, tristonha. “Isso só depende
de você”. Se deram um longo beijo e se despediram.
Voluntários da Pátria, 16h11min.
Como tradicionalmente fazia, Honório
dizia para a mulher que ia caminhar na Redenção com João e Agnaldo, mas saía da
rota e se dirigia para o “pensionato” da Voluntários. Chegando na recepção
cumprimentou o cafetão, que estava sentado no sofá, com um semblante perplexo.
Mostrou a nota marginal no Diário Gaúcho. Honório se conteve a muito custo.
Quis saber o porquê. Como uma criança, ficou andando, desolado, de um lado para
o outro.
Na última página, um comentarista
esportivo – fugindo totalmente da sua alçada, como já era costume –, fazia apologia
de uma das “profissões mais antigas da humanidade”. Honório não entendia nada.
Inconformado ele só perguntava: “Por quê? Por quê? Por quê?”. A atendente do
“pensionato”, percebendo o transtorno de Honório, lhe oferece um copo d’água. Ele
recusa. A muito custo se recompõe, pega o seu chapéu e sai porta afora.
Bonfim, 8h37min.
Os três
velhos caminham em torno do chafariz central. Fazia sol e o céu estava um pouco
nublado. João caminhava de cara fechada, olhando para os lados. Volta e meia
lançava uma piada escrota. Agnaldo ria e cutucava o amigo ao lado. Honório
estava aéreo.
Passaram
pelo canteiro atrás do monumento ao expedicionário. “Quando eu morrer quero ser
enterrado aqui”, disse João, orgulhoso de si mesmo, apontando para o mármore
que dizia: Andante que por aqui passar
vai dizer a todos que morremos pela pátria, pela família, pela religião e pela
liberdade. Nunca tinha lido uma única palavra de qualquer placa que fosse,
mas se orgulhava de todas aquelas honrarias militares.
Não mais
que de repente, um pouco refletida e outro pouco irrefletidamente, Honório
comenta sobre o assassinato “de uma prostituta na Voluntários da Pátria” que
ele tinha lido no Diário Gaúcho. “Desse jeito onde é que vamos parar?”, complementa
ele, como que querendo advogar em defesa da assassinada. “Essas putas pedem pra
morrer, Honório. O que tu esperava?”, disse João rispidamente. Honório engoliu
o choro. Os três velhos seguiram caminhando indiferentes até o final daquela
manhã.
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