segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Carta aberta à comunidade escolar do Alcides Cunha: balanço e perspectivas (2015-2018)

Esta carta é de responsabilidade de alguns membros do Conselho Escolar (gestão 2016-2018), não refletindo as opiniões da direção ou da maioria dos educadores da escola em questão. Surgiu, como se lerá abaixo, no contexto da luta contra uma direção autoritária e corrupta, tentando extrair todas as lições do processo. Faz uma síntese e uma série de propostas de como os Conselhos Escolares podem e devem atuar para, de fato, possibilitar a gestão democrática da educação pública. A Escola Estadual de Ensino Médio Professor Alcides Cunha localiza-se na zona leste de Porto Alegre. Esta carta aberta foi escrita originalmente em outubro de 2018 e publicada na página do facebook "A voz do Alcides" em novembro do mesmo ano.

A atual direção do Alcides Cunha se elegeu entre o final de 2015 e março de 2016, num processo conturbado, que polarizou a escola, envolveu o secretário de educação e deixou marcas positivas e negativas. Aquela vitória foi fruto de um esforço coletivo de inúmeros colegas e alunos que tinham visões e posições políticas distintas, mas que souberam trabalhar juntos. Esta união certamente teve um peso decisivo para a construção de “um Alcides melhor”. Abriu-se, então, um período de democracia dentro da nossa escola bastante diferente da esmagadora maioria das escolas públicas estaduais, onde impera o autoritarismo ditatorial de diretores, geralmente, em sintonia com a SEDUC.

            Porém, apesar destes inegáveis aspectos progressivos, houveram outros tantos problemas de ordem política e pedagógica que agora precisam ser enfrentados se queremos avançar.

 

1) Balanço 2015-2018:

            Analisando o Plano de Ação que foi apresentado pela chapa “Por um Alcides melhor” podemos ver todos os pontos positivos que foram alcançados, representando uma mudança profunda na escola, embora tenham outros tantos que não saíram do papel. O mais importante foi a derrota da camarilha de professores e “pais” que monopolizavam o CPM e a direção da escola, utilizando esta estrutura para fins pessoais. A corrupção de uma “dinastia” foi derrotada por um esforço decidido e coletivo de educadores e alunos, que começou no Conselho Escolar entre 2013 e 2015, ao qual se somaram novos colegas que compreenderam a gravidade da situação. Nem todos ficaram até a vitória final. Uns pediram pra sair, outros compreenderam equivocadamente o papel da nova direção (ao qual pensaram que seria um novo “grupo de amigos”). Virada esta página, se iniciou o trabalho de reconstrução.

            Sabemos pela experiência cotidiana que as políticas de governo criam as piores dificuldades para os educadores executarem seu trabalho, a começar pela questão salarial. A “gestão” da SEDUC e das CREs cria o caos, com informações atravessadas e confusas. Na verdade praticam cotidianamente um desserviço, gerando mais problemas do que soluções. Tudo isso é um empecilho para um bom desempenho, embora isso não deva nos paralisar. Aos problemas de governo há que se responder no campo da luta sindical e na unidade com toda a categoria e as demais escolas. Se é certo que a nossa escola foi vanguarda nesta luta, também é certo que existem problemas de concepções sindicais que mereceriam análise e debate, mas isto transcende os objetivos desta carta (deve ficar para um debate futuro). Houve, no geral, liberdade sindical na nossa escola que não foi bem aproveitado por nós, educadores, sobretudo no que diz respeito ao debate e à organização.

Há que se reconhecer que, apesar das políticas de governo, muitos problemas encontram-se no chão da escola, partindo dos próprios educadores e da sua relação com a comunidade escolar (desde as concepções pedagógicas e administrativas, até as concepções sindicais). Constatar isso nada tem a ver com o debate midiático de culpabilização dos educadores. O turbilhão de problemas que consomem a direção de uma escola se impôs e não se debateu seriamente uma política para superar isso. A “correria” do cotidiano foi uma desculpa, por parte da direção, para se evitar que um regime disciplinar mais sério e eficiente se estabelecesse na escola a partir dos organismos que tinha se proposto a construir no “Plano de Ação”. Se não se alinha o corpo docente através de uma disciplina livremente debatida e contratada, quem dá o ritmo do andamento da escola é o corpo discente através da “ditadura da preguiça”. A indisciplina e os problemas pedagógicos entram num círculo vicioso que é difícil conter. O trabalho educativo torna-se, então, mais pesado e dispendioso; e acumula-se, caindo sobre os ombros de poucos ou de ninguém.

            O Plano de Ação foi parcialmente cumprido. Não se criou uma tradição em que o Conselho Escolar passasse a gerir a escola em todas as suas questões essenciais conjuntamente com a direção. Houve meses em que ele não foi convocado; em outros, debateu apenas pautas aleatórias, não indo além de questões secundárias. Muitos problemas com alunos que deveriam ser resolvidos pela supervisão e orientação eram simplesmente jogados ao Conselho Escolar, que deveria debater apenas os casos extremos. Não se criou a tempo uma tradição de debate acerca do investimento financeiro, de ampliação da prestação de contas, bem como questões político-pedagógicas. O próprio PPP ainda é apenas uma esperança. Em inúmeros casos o método foi aquele em que se ignorava as decisões das reuniões (seja do Conselho Escolar, seja de professores), sendo que isso contrariava abertamente o que tinha sido exposto no Plano de Ação. Este método de funcionamento e a relação do Conselho Escolar e a direção precisa mudar se queremos avançar na democratização da escola; caso contrário, retrocederemos.

            A autoridade democrática, ora respeitada, ora não respeitada nos seus encaminhamentos, só não pôde se impor porque não encontrou respaldo geral no grupo de educadores (e estes não puderam e não quiseram construir essa autoridade conjuntamente aos alunos). Ou seja, preferiu-se o esconderijo atrás de individualidades, para que esta autoridade coletiva não pudesse funcionar plenamente. Sem esta autoridade da coletividade, que ainda precisa ser criada e consolidada, não será possível organizar um trabalho democrático a partir do Conselho Escolar, reunião de professores, sindical, etc. A tendência é “a correria do cotidiano” se impor e nos tragar totalmente. É preciso combater conscientemente esta tendência, que é sempre usada como desculpa. Mantêm-se apenas as reclamações sem ações concretas.

            No campo político pedagógico é importante superar certos problemas da relação aluno-professor a partir de um melhoramento nas questões relacionadas à supervisão e orientação educacional. Na gestão atual (2015-2018) a supervisão não trabalhou em sintonia com as reuniões dos professores. Grande parte disso se deveu a ausência de supervisão por quase 2 anos, mas houveram problemas de concepção tanto no campo da supervisão quanto da orientação. Até o presente momento tudo isso não foi debatido, portanto o resultado não poderia ser outro. Porém, agora que tomamos consciência desses problemas, se faz necessário que a futura direção mude a postura em relação a isso se quiser avanços.

            Por estes motivos, muitas das nossas reuniões pedagógicas e conselhos de classes foram improdutivos. Uma razão para isso é que os encaminhamentos que deveriam ser cobrados e acompanhados pela supervisão e orientação não aconteceram (muitos encaminhamentos eram conscientemente ignorados porque não havia responsáveis para isso ou, quando existia, não cobravam, “se esquecendo”). Cada setor acabou funcionamento de forma autônoma em relação ao outro, gerando uma verdadeira Torre de Babel. Supervisor educacional não é patrão. Não deve supervisionar trabalho como se fosse uma empresa privada, de onde as ordens partem sempre de algumas “cabeças iluminadas”. É, sobretudo, um trabalho de duas mãos. Observa os alunos e os problemas dos professores, organiza o debate coletivo e aplica as diretrizes que forem construídas democraticamente, em reuniões gerais e assembleias. Só aí pode ter autoridade para cobrar algo. A iniciativa da supervisão e orientação é sempre importante e bem vinda, desde que embasadas por debates democráticos.

            A orientação educacional de nossa escola deve construir, juntamente com os professores, uma nova relação com os alunos, verdadeiramente freiriana, visando a autonomia do indivíduo e não simplesmente impondo autoridade de cima pra baixo (ou os tratando agressivamente). Há que se debater e trabalhar também coletivamente, a partir de reuniões democráticas, que tenham seus encaminhamentos respeitados. A atual política-pedagógica executada, cuja diretriz principal é “aluno não sabe mais do que professor”, deve ser substituída por uma nova, em que cada caso é analisado nas suas especificidades e se crie uma possibilidade de crescimento coletivo para alunos e professores. Como a filosofia pedagógica da maioria do nosso corpo docente é avessa a isso, precisamos trabalhar no sentido de criar raiz na pedagogia freiriana, debatendo em formações pedagógicas e, mais do que isso, trabalhando permanentemente a nossa própria atividade prática a partir de uma profunda autocrítica. Só com esta conduta poderemos ter moral para cobrar alunos e pais.

            Todas estas críticas não excluem o fato de que muitos bons trabalhos foram feitos isoladamente por professores, mas isso não tira a responsabilidade de que precisamos melhorar a unicidade da escola e a nossa prática pedagógica. Sem esta mudança prática, não haverá avanço na democracia escolar, nem em relação às direções passadas. Ao invés de um “Alcides melhor”, teremos um “Alcides retrocendendo”. Basta lembrar que, com exceção das questões relacionadas à democracia e parte da prestação de contas, este funcionamento político-pedagógico era prática comum antes de 2015, que em quase nada foi modificado. Esta mudança não é fundamental apenas para a democratização da escola e da relação com os alunos e a comunidade escolar, mas para que haja um melhor andamento da escola e, portanto, o trabalho educativo seja menos pesado e tormentoso. Um trabalho bem feito e articulado, feito antecipadamente e se baseando numa democracia reconhecida, tende a aliviar o fardo coletivo. O oposto gera apenas o caos, o peso morto das intriguinhas e redobra o fardo.

            Outra questão que melhorou, mas que precisa melhorar ainda mais, diz respeito à prestação de contas, que ocorreu de forma parcial e a gestão financeira terminou restrita à direção. Apesar disso, vimos o dinheiro sonegado pela antiga direção aparecer e uma nova escola ressurgir com as “poucas verbas” que entram, desde a troca de vidros, pintura, portas, materiais e classes; até móveis e serviços de xerox. Tudo isso, é, sem dúvida, um ponto positivo. Porém, não se criou uma cultura de decisões coletivas e de prestações de contas permanentes, também como uma questão pedagógica e educativa para toda a comunidade – sobretudo em relação à verba da merenda. É claro que o problema não foi apenas do funcionamento da direção, mas esteve presente também na tendência ao “individualismo” do corpo docente para escapar às suas responsabilidades sociais. Isso se refletiu, inevitavelmente, nos alunos e pais, que não participaram como deveriam de todo este processo. Quem tem a responsabilidade de puxar estes fios condutores, como a experiência atesta, são, sem dúvida, os educadores e a direção da escola. Ficam estas lições para contribuir na superação destes problemas.

 

2) Perspectivas

            Como resumo de todo este balanço, há que se apontar algumas perspectivas para que o Alcides continue melhorando e não retroceda. São elas:

a) Respeitar e incentivar as decisões coletivas, com responsáveis que tenham autoridade para executá-las. Não dificultar tais execuções, mas debatê-las e construí-las com espírito coletivo. O Conselho Escolar é uma instância que precisa se abrir à toda a comunidade, portanto, deve ser respeitada e encarada enquanto tal (não ser apenas solucionadora de casos de alunos, mas que debata, com método, sobre todos os principais assuntos). Se isso for compreendido, a democracia será mantida na escola e ajudará a aliviar o fardo de alguns e da própria direção, socializando as decisões, mas também os problemas. Nesse sentido, é fundamental que o que for registrado nas atas seja cumprido (e não apenas letra morta, como acontece hoje e é reconhecido até mesmo pelos alunos). De que adiantam milhares de atas se elas terminam como letra morta? Disso tudo só pode resultar o caos e aquela sensação de que as reuniões não adiantam nada! Muitos conflitos profissionais e de outra ordem, desde que previamente avaliados, podem e devem ser levados ao Conselho Escolar para que se torne uma tradição democrática debatê-los e solucioná-los coletivamente. Porém, continuaremos perecendo se mantivermos a posição de falar uma coisa e fazer outra (sem respeitar o que é encaminhado). Muitos encaminhamentos de reuniões do conselho, de professores e de debates com o grêmio estudantil também não foram respeitados. A espinha dorsal dos nossos problemas de organização é a falta de compromisso com os encaminhamentos de debates COLETIVOS entre nós próprios e a direção da escola. Se isso não mudar, não teremos melhores condições entre nós, nem maior organização e, muito menos, uma democracia, pois se nos encontramos pra debater, mas os encaminhamentos não são levados a sério, então ela não é verdadeira, mas um clube estéril de discussão. Para isso, vencer o instinto de conservação pessoal e se propor a falar o que realmente pensa é indispensável. Sem isso não há democracia verdadeira. O espaço democrático que foi criado nestes 3 anos, ainda que tenha muitas debilidades e problemas, permite que isso ocorra.

b) É muito importante que a reunião da direção-supervisão esteja em consonância com o Conselho Escolar. A gestão que se encerra agora reuniu a direção apenas uma ou duas vezes. As diretrizes gerais devem ser dadas pelo debate com o conselho escolar e a reunião dos educadores gerais da escola. A reunião da direção deve ser a executora dessas medidas gerais, fazendo correções e alterações quando a realidade exigir e não houver alternativas. As reuniões de balanço devem acontecer seguidamente para que as lições possam ser tiradas. O grupo de professores também não foi consultado em muitos casos, embora não tenha assumido suas responsabilidades no sentido de garantir a democracia na escola e a divisão de tarefas. Se por um lado certamente houveram problemas em razão da falta de funcionários e de professores, por outro, muitas tarefas debatidas e encaminhadas não foram respeitadas por direção e corpo docente.

c) É preciso ainda organizar melhor os materiais, como chaves, utilização das salas (como o data show), equipamentos, etc.; muitas vezes há um bate cabeça em relação aos materiais ou chaves, que são pegos por um, entregues a outros e, muitas vezes, todos esses materiais e chaves são extraviados. Uma possível solução é estabelecer responsáveis por chaves, salas e materiais.

d) O calendário escolar precisa ser debatido democraticamente e toda a preparação prévia nos levar a falar uma única língua: semana de provas, entrega de boletins e atividades que envolvem muitas pessoas geralmente terminam sempre em muita confusão, fruto de toda esta desorganização. O método de indicar organizadores e respeitar suas orientações ajudaria muito.

e) Melhorar a relação humana entre nós, educadores, e com a comunidade. Maior preocupação e sensibilidade entre nós, entre corpo docente e discente, entre educadores e supervisão, entre alunos e orientação. É preciso trabalhar o reconhecimento às diferenças e procurar a solidariedade de classe, sempre! Segundo Nietzsche: “Nós somos, até a medula e desde o começo habituados a mentir”. Como falar de verdade o que sentimentos e pensamos, onde tudo é interpretação? Este é um dos desafios para a nossa relação profissional nos próximos 3 anos se queremos realmente “um Alcides melhor”.

f) Debater e aprovar um novo Plano Político Pedagógico (PPP) que esteja ancorado na comunidade e não na burocracia política e educacional. Debater e tentar inovações pedagógicas, como aulas diferentes, com horários flexíveis (algo como as oficinas que se tentaram durante as ocupações de escola), retomada de projetos comuns para além das divisões rígidas entre as áreas de conhecimento (que apenas criaram novas divisões e não chegaram nem perto de solucionar o problema da interdisciplinaridade).

g) Manter e aprofundar a liberdade sindical, respeitando suas deliberações e levando ao maior envolvimento dos educadores. Procurar criar as condições para que a decisão da maioria seja respeitada por todos (esta é a única e real democracia sindical). Criar as condições para que todos opinem e demonstrem seus descontentamentos, sempre de forma respeitosa.

h) Se a questão anterior a ser resolvida na eleição de 2015 era a democracia mínima e a prestação de contas, a de 2018 é o aprimoramento da nossa democracia, o respeito e o cumprimento das decisões e o melhoramento da relação aluno-professor-comunidade; isto é, o aperfeiçoamento da questão pedagógica.

***

            Muitos outros temas poderiam ser debatidos e acrescentados nessa carta. No entanto, penso que se estes pontos simples e, ao mesmo tempo, complexos, forem respeitados, teremos condições de avançar mais e evitar retrocessos, pois o que não avança certamente retrocede.


Assinam: Lucas Berton e Paulo Moacir - membros do Conselho Escolar (gestão 2016-2018)

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Dialética da natureza (ou como a natureza responde à intervenção econômica humana)

Resumindo: ...o animal apenas utiliza a Natureza, nela produzindo modificações somente por sua presença; o homem a submete, pondo-a a serviço de seus fins determinados, imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, isto é, domina a Natureza. E esta é a diferença essencial e decisiva entre o homem e os demais animais; e, por outro lado, é o trabalho que determina essa diferença.

Mas não nos regozijemos demasiadamente em face dessas vitórias humanas sobre a Natureza. A cada uma dessas vitórias, ela exerce a sua vingança. Cada uma delas, na verdade, produz, em primeiro lugar, certas conseqüências com que podemos contar; mas em segundo e terceiro lugares, produz outras muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulam essas primeiras conseqüências. Os homens que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e noutras partes destruíram os bosques, para obter terra arável, não podiam imaginar que, dessa forma, estavam dando origem à atual desolação dessas terras ao despojá-las de seus bosques, isto é, dos centros de captação e acumulação de umidade. Os italianos dos Alpes, quando devastaram, na sua vertente Sul, os bosques de pinheiros, tão cuidadosamente conservados na vertente Norte, nem sequer suspeitavam que, dessa maneira, estavam arrancando, em seu território, as raízes da economia das granjas leiteiras; e menos ainda suspeitavam que assim estavam eliminando a água das vertentes da montanha, durante a maior parte do ano e que, na época das chuvas, seriam derramadas furiosas torrentes sobre as planícies. Os propagadores da batata, na Europa, não sabiam que, por meio desse tubérculo, estavam difundindo a escrófula. E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.

Na realidade, a cada dia que passa aprendemos a compreender mais corretamente as suas leis e a conhecer os efeitos imediatos e remotos resultantes de nossas intervenções no processo que a mesma leva a cabo. Principalmente em virtude dos gigantescos progressos realizados pelas ciências naturais no século atual, cada vez mais nos encontramos em condições de conhecer as conseqüências mais remotas de nossas mais comuns atividades de produção; pelo menos em condições de aprender a dominá-las. Mas, quanto mais se verifica isso, tanto mais os homens se sentirão unificados com a Natureza e tanto mais terão a consciência disso, tornando-se cada vez mais impossível sustentar essa noção absurda e antinatural que estabelece a oposição entre espírito e matéria, entre o homem e a Natureza, entre alma e corpo, concepção que surgiu na Europa depois da decomposição da antigüidade clássica e que adquiriu sua mais acentuada forma na doutrina do Cristianismo.

 

(Escrito por Friedrich Engels;  trecho extraído do texto – inconcluso – “Humanização do Macaco pelo Trabalho”, escrito em fins de 1875 e início de 1876). 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Base de alguém

O que te faz parecer gado cabresteado sem nenhuma reflexão? 
Nega o teu protagonismo para ser controlado...
Até quando um dito "dirigente" vai controlar tua consciência
e ditar tua ação?
Até quando serás refém de egocêntricos narcisistas
que buscam poder e satisfação?
Os burocratas de plantão colonizam tua mente,
e você fica sem reação
Até quando você será "base" que não reflete
fazendo coro à burocratização?

Katiana

*Escrito originalmente em 8 de setembro de 2019, após a experiência no X Congresso do CPERS, realizado em Bento Gonçalves.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

“A crise do movimento comunista” ainda não superada - uma resenha crítica do livro de Fernando Claudín

.

A grande obra do ex-comunista espanhol Fernando Claudín, intitulada “A crise do movimento comunista”, de 727 páginas e publicada no Brasil pela Editora Expressão Popular, é um monumento teórico de crítica ao stalinismo e a todos os problemas do comunismo internacional construído e desencadeado pela União Soviética (URSS) ao longo do século XX. Tal crítica segue em vigência, porque boa parte dos problemas teóricos criticados no livro ainda não estão nem perto de serem superados e não são sequer conhecidos pela esquerda. Daí a enorme importância da republicação do livro pela Expressão Popular. Originalmente publicado em 1970, o livro de Claudín ainda não foi superado porque a esquerda, no geral, segue reproduzindo os graves problemas descritos por ele, tal como se o tempo tivesse se congelado na década de 1930.

Fernando Claudín nasceu em Zaragoza, Espanha, no ano de 1913. De formação política stalinista, tornou-se participante ativo da guerra civil espanhola (1936-1939) e dos expurgos internos do Partido Comunista Espanhol (PCE) contra as oposições à burocracia, chegando a ganhar grande influência partidária na sequência do XX Congresso do PCUS que “denunciou os crimes de Stalin”, em fevereiro de 1956. Conheceu as entranhas das manipulações políticas dos aparatos ligados à Moscou. Passando a ocupar cargos remunerados da maior importância, como o Comitê Central, a Comissão Executiva e o Secretariado do PCE, Claudín adquire um amplo conhecimento do movimento comunista nacional e internacional, que perpassa por toda a sua obra.

        Este conhecimento acaba se tornando fonte de desentendimentos com a outra ala da burocracia do PCE a partir do crescimento das divergências que irrompem no final de 1963. No ano seguinte, Claudín e outros dirigentes são expulsos do PCE, dando fim a uma longa etapa de sua vida e lhe colocando obrigações pela busca do sustento que lhe expandem os horizontes e derrubam uma série de viseiras que o stalinismo lhe tinha imposto, abrindo-lhe a mente e a garganta. É nesse contexto, e baseado na experiência política de mais de 30 anos no PCE e na Internacional Comunista (IC), que Claudín irá escrever sua grandiosa obra.

Na introdução da edição brasileira, José Paulo Netto afirma que a vida lhe impôs um desafio pessoal “na sequência da sua exclusão do PCE: tratava-se de compreender as suas três décadas de inserção no movimento comunista, sua honrada dedicação e seu enorme fracasso político”. E chama a atenção para a sóbria notação final com que Claudín conclui a introdução do seu livro: “é desnecessário dizer que este livro não é apenas uma crítica do movimento comunista – é também uma autocrítica do autor. Mas isso não tem a menor importância”[i].

Aqui devemos discordar de Claudín: com uma “esquerda” que jamais faz auto crítica sobre o que quer que seja e não busca seriamente a causa de nenhum fracasso, tentando mudar radicalmente o curso das coisas, a auto crítica é, sem dúvida, da maior importância! Tanto para José Paulo Netto quanto para nós, “não se pode temer o esclarecimento dos erros (e dos crimes); só ele pode impulsionar criticamente o pensamento e a prática do movimento comunista”[ii].

 

1.

A crise de consciência frente ao trotskismo

 

        Nesta autocrítica e nesta busca por esclarecimento, no entanto, existem ziguezagues e contradições. Como militante disciplinado nos seus primeiros anos no PCE, Claudín sempre foi um severo crítico e adversário do trotskismo, mas possivelmente isso nunca tenha sido muito bem aceito por ele, que reconhecia inconscientemente as contribuições do pensamento de Trotsky. Nos anos subsequentes à sua expulsão, acabou por devorar toda a literatura produzida pelo movimento trotskista e dar vasão à ela nas páginas do seu livro. Isso, como é bastante compreensível, não foi feito sem grandes contradições e dores. Abrir mão de posições políticas – ainda mais se tratando do stalinismo – é um difícil processo. Claudín assume muitas posições de Trotsky, sem o declarar, no seu livro, o que leva um dos seus partidários, Jorge Semprún, que escreve um dos prefácios, a nos advertir de determinados “perigos”. Reconhecer que se apoiou os monstruosos crimes de Stalin acriticamente pensando “construir o comunismo internacional” não pode ser tarefa simples, uma vez que mexe com o nosso espelho profundo e, até mesmo, com a nossa auto estima.

Fernando Claudín

        Para Claudín e Semprún, as posições de Trotsky apresentam “limitações intrínsecas” que derivaria daquilo que “devemos chamar de idealismo subjetivo e voluntarista”[iii]. Ou seja, Claudín, mas sobretudo Semprún, tentam igualar a teoria de Trotsky ao guevarismo; isto é, ao foquismo revolucionário, como se bastasse a “boa vontade” dos revolucionários para “fazer a revolução”. Isso se daria desta forma porque eles julgam que “Trotsky nunca submete à crítica os próprios fundamentos da estratégia [da Internacional stalinizada] denunciada por ele”. É assim que ambos autores interpretam a teoria trotskista da “crise de direção”, bem como as suas críticas ao movimento comunista hegemonizado pelo stalinismo; o que não impede Semprún de escrever que, todas as análises críticas de Trotsky sobre os erros da IC são “frequentemente certeiras” e, às vezes, “proféticas”. A despeito deste equívoco, a obra de Claudín faz jus em diversas passagens, ao pensamento e às análises do trotskismo, por vezes, repetindo quase textualmente suas críticas às posições, às vacilações e às traições do aparato stalinista, inclusive recorrendo às análises de Isaac Deutscher – reconhecido biógrafo de Trotsky.

        Mas a proximidade de Claudín com Trotsky não para por aí. Mesmo sendo um ex-stalinista, Claudín realiza análises mais profundas e esclarecedoras das traições do aparato da URSS do que os herdeiros da IV Internacional, que estavam muito mais preocupados em reproduzir dogmas e frases feitas, conforme atestaremos adiante.

 

2.

A dissolução da Internacional Comunista (IC) em 1943

 

        A espinha dorsal de toda a obra de Claudín parte do crime político cometido pela burocracia stalinista de dissolução da IC a mando dos EUA e Inglaterra, que exigiram algumas “garantias de boa vontade” da parte de Stalin para selar o pacto político-militar dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Garantia esta que foi dada de muito bom grado por Stalin, mas que não passou incólume por Claudín e muitos outros comunistas que ainda mantinha algum tipo de criticidade.

Nas palavras do autor: “A IC não é liquidada porque está em crise, mas pelo que, apesar da crise, ainda simboliza: a revolução proletária. Toda a política dos partidos comunistas – à exceção dos poucos que começam a se insubordinar contra o comando de Moscou – fica determinada pelo objetivo que Stalin se propõe (como está documentalmente provado) desde as suas primeiras negociações com os outros dois ‘grandes’: a divisão do mundo em áreas de influência. Isso implica que os partidos comunistas renunciem a priori a toda tentativa de transformar a guerra antifascista em revolução socialista”[iv].

        São fartos os documentos e os fatos citados por Claudín, demonstrando como a dissolução da IC serviu apenas aos interesses do imperialismo Ocidental, e nada de positivo trouxe ao movimento comunista. Claudín escreve: “Inadmissível para as potências capitalistas era uma Rússia soviética que fomentasse a revolução socialista para além das suas fronteiras, quer pela ajuda teórica, política e material ao movimento revolucionário no mundo capitalista, quer pela criação de um regime social que desse efetivos passos para a libertação econômica, política e cultural dos trabalhadores, constituindo assim um exemplo explosivo para o proletariado mundial. A incredulidade de Lenin e seus camaradas diante da possibilidade de uma coexistência duradoura com o mundo capitalista explica-se também por essa razão: para eles, a Rússia soviética era, antes de mais nada, essa força impulsionadora da revolução em escala mundial”[v].

Foi exatamente este papel que Stalin cumpriu não apenas dissolvendo a IC para renunciar a uma perspectiva revolucionária nos países capitalistas, mas por toda a sua ação teórica e prática visando consolidar uma estabilidade econômica e política para o “truste estatal soviético que entrava em cena”.

***

Claudín ainda traça dois momentos distintos da crise da IC: o período em que ela foi dirigida por Lenin e Trotsky; e o período em que o stalinismo se consolidou como sua direção hegemônica. Ainda que ele caracterize o período stalinista como traição aberta ao movimento operário internacional, demonstrando que a IC se tornou um reles instrumento dos interesses e da diplomacia do chauvinismo grão-russo, nada tendo em comum com os interesses pelo desenvolvimento da revolução e do socialismo – tal como teve nos seus primeiros anos –, o nosso autor não poupa críticas importantíssimas a Lenin e Trotsky que, a despeito de os reconhecerem como revolucionários sinceros, contribuíram com alguns equívocos teóricos e organizativos que pesaram nos seus problemas futuros.

        Podemos listar alguns deles: ultracentralismo (deixando para trás determinadas características importantes da organização política da 1ª Internacional, liderada por Marx e Engels), eurocentrismo e equívocos teóricos decorrentes dos primeiros (em particular, a visão um tanto catastrofista das crises do capitalismo, que eram vistas como o seu possível fim, ignorando sua capacidade de regeneração – ainda que Claudín traga muitas citações em contrário de Lenin de que “não existe situação sem saída para a burguesia”).

***

a) Ultracentralismo: No primeiro caso, também chamado de “russificação” da IC por Claudín, ele afirma que devemos partir do fato de que há divergências entre a concepção de partido de Marx e Lenin. Para o autor “não há em Marx uma teoria sistemática do partido proletário, mas os seus juízos sobre o tema, apreendidos em conexão com a sua atividade de militante, primeiro na Liga dos Comunistas e, mais tarde, na 1ª Internacional ou no Partido Socialista alemão, formam um conjunto coerente e significativo. A ideia que Marx faz do partido político proletário é um corolário da sua concepção da revolução comunista como autoemancipação da classe operária. Nenhuma instância exterior – chefe carismático, grupo de conjurados, partido político – pode, segundo ele, substituir a ‘maturidade’ revolucionária da classe operária. Ou a revolução comunista será obra sua ou não haverá revolução. (...) Defende a legitimidade das divergências teóricas e políticas no seio da Internacional e das suas seções, a plena liberdade de discussão na imprensa, nas assembleias e congressos. Ao mesmo tempo, não admite a imposição de nenhum critério de ‘partido’ quando se trata da investigação científica. (...) Cada vez que a forma concreta adquirida pelo partido – Liga dos Comunistas ou 1ª Internacional – lhes parece entrar em contradição com o movimento real da classe, Marx e Engels não vacilam em propor o seu desaparecimento”[vi]. Em suma, para Claudín a missão do partido revolucionário na perspectiva de Marx e Engels não seria “assumir a direção da classe, mas ajudá-la a ‘autodirigir-se’”[vii].

        Foi por isso que Claudín traz a brilhante passagem aprovada na sessão do Conselho Geral da 1ª Internacional, em 9 de março de 1868: “O programa [da I Internacional] se limita a traçar as linhas gerais do movimento operário e deixa a sua elaboração teórica a cargo das seções, que, para tanto, aproveitar-se-ão do impulso oferecido pelas necessidades da luta prática e pelo intercâmbio de ideias. Nos órgãos das seções e em seus congressos se admitem, indistintamente, todas as convicções socialistas”. E em cima desse trecho, Claudín observa que: “Pode-se fazer a ressalva de que as condições em que se constitui e atua a Terceira Internacional [IC] são outras. É verdade. Mas não no que toca às razões profundas que determinam os métodos preconizados por Marx. A diversidade de condições em que se encontravam as diferentes frações da classe operária, a necessidade de que a elaboração teórica partisse das exigências da luta prática e tivesse por leito o intercâmbio de ideias, seu livre confronto na imprensa e nos organismos das seções – eram imperativos tão absolutos (metodologicamente falando) na época da Terceira Internacional quanto na da Segunda ou da Primeira. De fato são as condições básicas da elaboração de uma teoria ou política revolucionária que não seja dogmática e responda às demandas do movimento real”[viii].

        Ainda que saibamos que grande parte da crítica caiba ao partido stalinista, pois Lenin nunca propôs ou foi conivente com o vazio culto à personalidade e a uma ortodoxia reacionária e engessada, existem certos exageros de Lenin e de Trotsky no desenvolvimento do “centralismo democrático”, o que acaba sendo reproduzido de uma forma mecânica piorada – ainda hoje! – pela militância brasileira e mundial. Foi nesse sentido que Rosa Luxemburgo criticou argutamente a visão partidária bolchevique, sustentando que “é ignorar a natureza íntima do oportunismo o atribuir-lhe, como quer Lenin, a preferência invariável por uma forma determinada de organização, concretamente pela descentralização. (...) Concedendo ao órgão dirigente poderes tão absolutos, de um caráter negativo, como faz Lenin, apenas se reforça num grau muito perigoso o conservadorismo inerente a esse órgão”[ix]. Ou seja, ainda que lhe seja um terreno bem fértil, Rosa alerta para o fato de que nem sempre o oportunismo se manifesta na descentralização, como foi o caso específico russo da polêmica com os mencheviques.

Neste sentido, a “crise do movimento comunista” não apenas se manteve, como se aprofundou[x]. Por outro lado, há que se tomar um enorme cuidado com o proselitismo espontaneísta, que pode resultar dessa visão dos trabalhadores se “autodirigirem” e se “auto emanciparem”, pois a luta política se dá também no seio do movimento da classe operária, que conta com grande influência política da burguesia. Frente a isso, como não abrir uma artilharia pesada de críticas e desencadear a luta política, podendo levar a uma “luta fratricida” (pra usar uma expressão muito comum das burocracias sindicais e reformistas, reproduzidas pela base de trabalhadores independentes).

***

b) Eurocentrismo: o outro problema apontado por Claudín foi o eurocentrismo presente na IC. Ainda que saibamos que a Europa foi por séculos – e de certa forma ainda é – o centro do mercado mundial e, portanto, do capitalismo, uma Internacional jamais poderia ignorá-la para virar os seus olhos para os movimentos da sua periferia. Esta é, precisamente, a amarga lição do período de vigência da IC. Foi na periferia do sistema – sobretudo Rússia e China – que se produziram as duas maiores revoluções do século passado. Preocupados em reproduzir a ortodoxia marxista de que a revolução deveria triunfar no centro do sistema – portanto, na Europa (e, em especial, na Alemanha) – os olhos da IC estiveram grudados no velho continente ao longo de toda a sua existência (1919-1943), mesmo que houvesse fortes tendências vindas dos países coloniais. É verdade que Lenin reconheceu – como bem demonstrou Claudín – o movimento colonial de libertação nacional, embora nunca tenha dado destaque nos informes e nos tempos de debate na IC, o que abriu várias lacunas posteriores.

        A crítica que Claudín faz à teoria marxista merece nossa atenção e reflexão no seguinte ponto: “a lógica interna da teoria marxiana da revolução socialista mundial trazia em si duas ideias de cariz eurocêntrico, que teriam uma enorme gravitação na IC. A primeira, de caráter principalmente estratégico: a libertação do mundo explorado pelo capitalismo seria o resultado da revolução socialista no Ocidente; e a segunda, de caráter cultural, no sentido mais amplo desse termo: a transformação socialista do mundo significava a sua europeização. Lenin parte dessa herança teórica”[xi]. Um pouco antes deste trecho, Claudín relembra uma análise esboçada por Marx por volta de 1853 sobre a “grande revolução dos Taiping” na China, afirmando um tanto profeticamente que ela “pode contribuir para provocar a revolução europeia mais do que qualquer outra causa política”[xii].

        Contudo, o ápice da demonstração das limitações que a europeização impunha à IC é retratada quando Claudín narra o “enérgico protesto” do delegado indiano M.N. Roy, quando ele, mais profeticamente que Marx, demonstrou uma “escassa confiança na perspectiva da revolução no Ocidente”, conforme todos os debates dos primeiros congressos apontavam – sobretudo as esperanças em relação à Alemanha. Claudín aponta que “Roy embasa esse ponto de vista no pressuposto de que o capitalismo europeu, valendo-se dos recursos que extrai das colônias, está em condições de levar ao extremo politicamente necessário as concessões econômicas ao proletariado ocidental”[xiii]. E mais adiante complementa trazendo uma resolução aprovada nos primeiros congressos da IC por iniciativa de Roy, que sustentava que: “o superlucro obtido pela exploração das colônias é o suporte principal do capitalismo contemporâneo, e enquanto este não for privado dessa fonte de superlucros, a classe operária europeia terá dificuldades para derrocar a ordem capitalista”[xiv].

Lenin tenta refutar este ponto de vista, que se demonstrou decisivo no desenvolvimento da história subsequente do movimento comunista na Europa, afirmando simplesmente que “o camarada Roy vai muito longe” porque sequer os comunistas indianos tinham conseguido “criar um partido comunista em seu país”, apesar de existirem 5 milhões de proletários na Índa. Segundo Lenin, erroneamente, esse fato bastaria “para demonstrar que seus pontos de vista estariam desprovidos de fundamento”[xv].

Por fim, Claudín aponta que: “a ética eurocêntrica continuará dominante na direção da IC e nos partidos comunistas das metrópoles europeias, tomando, às vezes, um matiz colonialista. No III Congresso, Roy faz a seguinte intervenção: ‘concederam-me 5 minutos para meu informe [sobre a Índia] e como esse tema não pode ser esgotado nem em uma hora, quero aproveitar o tempo para fazer um enérgico protesto. O modo como a questão do Oriente foi tratado nesse congresso é puramente oportunista, convindo melhor a um congresso da II Internacional. Não é possível chegar a conclusões concretas a partir de algumas frases que as delegações tiveram autorização para pronunciar’”[xvi].

Registrar momentos como esse – quase nunca lembrados pela esquerda atual – é um dos principais méritos da grande obra de Claudín.

***

c) Os problemas teóricos: capitalismo agonizante? O terceiro ponto dos problemas trazidos por Claudín no período anterior à stalinização da IC está relacionado com o exagero nas tintas para classificar a crise do capitalismo, o que teve certos efeitos nocivos para a elaboração de uma política para o movimento operário internacional.

        O livro de Claudín nos aponta que o IV Congresso da IC resume da seguinte maneira a questão (em cujo desenvolvimento e conclusões Lenin teve uma intervenção direta): “Depois de analisar a situação econômica mundial, o III Congresso pôde constatar, com a maior precisão, que o capitalismo, cumprida a sua missão de desenvolver as forças produtivas, caiu na mais irredutível contradição, não só com as necessidades da atual evolução histórica, mas, ainda, com as mais elementares condições da existência humana (...) O capitalismo sobrevive a si mesmo. (...) O que experimenta hoje é a agonia. O colapso do capitalismo é inevitável”[xvii].

        Depois, ele complemente afirmando que “os três primeiros congressos formularam o mesmo diagnóstico em termos de ‘agonia’. No primeiro se sustenta categoricamente a ‘incapacidade absoluta das classes dirigentes para reger de agora em diante o destino dos povos’, ‘a incapacidade do capitalismo financeiro para restaurar a economia destruída’, ‘a impossibilidade de reconstruir a produção sobre bases antigas’, ‘a crise mortal geral que afeta a circulação de produtos no regime capitalista’ e ‘a impossibilidade de regressar não só à livre concorrência, mas à dominação dos trustes, cartéis, etc’. (...) Ou seja, as contradições básicas, estruturais, do capitalismo tinham chegado – de acordo com a IC leniniana – a um ponto de incompatibilidade absoluta com o funcionamento do sistema. Este é o conteúdo concreto que, neste período, possui o conceito de ‘capitalismo agonizante’”[xviii].

Logo a seguir ele complementa: “É verdade que nos textos de Lenin se podem encontrar afirmações aparentemente contraditórias com esse conteúdo”, como, por exemplo: “enquanto o proletariado não estiver em condições de golpeá-lo decisivamente a burguesia sempre poderá viabilizar uma saída; a putrefação do capitalismo não significa que a produção não possa crescer em tal ou qual ramo, em tal ou qual país, enquanto nos outros ramos econômicos e países ocorrer o contrário”[xix]. Para Claudín, em Lenin, diferentemente de Stalin, o aspecto economicista-catastrofista era compensado “pelo caráter global da sua teoria da revolução, na qual o momento político, o partido e a luta de classes indiscutivelmente tinham a primazia; era replicado pela sua metodologia dialética no exame de qualquer problema, pela sua capacidade de retificação em função das necessidades da ação política, baseadas sempre na análise concreta da situação concreta (embora certas facetas importantes da concepção leniniana do partido implicassem uma tendência prejudicial a esse enfoque dialético). Na medida em que o leninismo era dogmatizado [pelo stalinismo] vai adquirindo uma existência autônoma, deixando de ser tratado como elemento de uma totalidade dialética”[xx].

Entre estas e outras análises que afirmavam, de uma forma ou outra, que “o capitalismo caminha para o seu crack definitivo” – sobretudo quando da decorrência da crise econômica mundial de 1929, quando a IC já estava sob comando direto do stalinismo –, uma sessão plenária do Comitê Executivo da IC foi obrigada a reconhecer a existência de uma “estabilização relativa” do capitalismo. Não acrescentou, contudo, que a “estabilização relativa” tem sido a regra.

Em resumo, Claudín quis nos dizer que “a maior crise econômica da história do capitalismo, em lugar de ser a ‘crise final’ e desembocar na revolução proletária, como se acreditava na IC, apresentou-se como o parto doloroso de uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo: o capitalismo monopolista de Estado. (...) Mais uma vez a ‘lógica’ monstruosa do mecanismo capitalista se revela mais forte que a consciência moral da humanidade e que a consciência de classe do proletariado – e revela-se mais astuta que os dispositivos estratégicos e táticos do ‘partido mundial’ da revolução”[xxi].

Apesar de muito preciso, este trecho não vai buscar as raízes desta fraqueza da “consciência moral da humanidade” e da “consciência de classe do proletariado” avançando sobre o difícil, inexplorado e desconhecido (para a esquerda!) terreno da psicologia de massas, conforme veremos mais adiante. Esta deficiência, que leva a análise de Claudín a um certo beco sem saída, talvez tenha causado a sua evolução para o eurocomunismo; isto é, para a direita. O fato, contudo, é que a tese vigente na IC durante aqueles anos, segundo a qual estávamos diante da “crise final” do sistema capitalista, derivava precisamente da negação da referida capacidade de recuperação do capitalismo e do quanto suas crises são “auto regenerativas” e “auto racionalizantes”, às custas, é claro, da criação de um regime de maior exploração da classe trabalhadora – sobretudo nos seus rincões mais periféricos.

No seu livro intitulado “Aonde vai a França?”, Trotsky escreveu que: “não há nenhuma crise que, por si mesma, possa ser ‘mortal’ para o capitalismo. As oscilações da conjuntura criam somente uma situação na qual será mais fácil ou mais difícil para o proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da sociedade burguesa para a sociedade socialista pressupõe a atividade de pessoas vivas, que fazem a sua própria história. Não a fazem por acaso nem segundo seu gosto, mas sob a influência de causas objetivas determinadas. Entretanto, suas próprias ações – sua iniciativa, sua audácia, sua devoção ou, pelo contrário, sua estupidez e covardia – entram como elos necessários na cadeia do desenvolvimento histórico. Ninguém contou as crises do capitalismo nem indicou de antemão qual será a última”[xxii].

Esta análise brilhante, mesmo que correta no geral, ignora as deliberações dos congressos da IC que exageravam nas tintas do “colapso definitivo” e da qual ele mesmo foi um dos redatores, deixando de levar em consideração que a IC stalinista, em 1929, afirmava categoricamente que a humanidade acompanhava a “última crise do sistema” baseando-se – dogmaticamente – nos debates da própria Internacional. Trotsky não revê ou relativiza as deliberações dos primeiros congressos da IC, deixando em aberto aqueles exageros teóricos. Ainda reforçou, equivocadamente, que “o capitalismo não pode dar aos trabalhadores novas reformas sociais, nem sequer as pequenas esmolas: vê-se obrigado a tomar as que deu antes”[xxiii]. Segundo Claudín fora exatamente “as pequenas esmolas” extraídas das colônias mundiais – sobretudo das asiáticas – que garantiram a preservação das bases do capitalismo e a ilusão dos operários no continente europeu.

De certa forma e até certo ponto, podemos ser condescendentes com Trotsky, pois ele acompanhava o auge da degeneração da IC e tentava inflamar inspiração nos seus últimos resquícios revolucionários, além de ser motivado pelos melhores princípios – diferentemente do stalinismo. Triste mesmo é constatar que a “esquerda comunista” atual repete quase como um estrofe religioso aquelas determinações de quase um século atrás sem tirar nenhuma conclusão.

 

3.

A brilhante denúncia dos crimes do stalinismo no cenário europeu

 

        Sabemos que a obra de Trotsky é uma valiosa herança teórica que, dentre outros temas fundamentais, retrata as criminosas traições do stalinismo mundo afora. Porém, com seu assassinato em 1940, perdeu-se também suas ricas análises, pois os “herdeiros” da IV Internacional imiscuíram-se em assuntos dogmáticos que apagaram o brilho fundamental das denúncias de sua principal liderança. Este papel coube, ironicamente, a um ex-stalinista, que é o autor da obra que estamos a analisar criticamente, Fernando Claudín.

        Ainda que com o atraso de algumas décadas, Claudín faz uma rica análise da política do stalinismo durante e após a Segunda Guerra Mundial, além, é claro, dos conflitos no seio do movimento comunista internacional que os “trotskistas” não tiveram capacidade de fazer com a mesma profundidade. Nos referimos aqui aos acordos entre a URSS e os aliados, bem como a política em relação à França, Itália, Iugoslávia e China.

        Revisitando a política do stalinismo para a França e a Itália – os dois maiores países da Europa continental que poderiam decidir os destinos do continente, uma vez que a Alemanha tinha retrocedido definitivamente – Claudín faz uma profunda crítica da política de aliança com as burguesias nacionais imposta pelo stalinismo aos partidos comunistas destes países. Tal política aliancista ficou conhecida como Frente Popular, e teve o papel de conter a revolução socialista na França e de selar o destino da Espanha na guerra civil contra a ascensão do fascismo neste país e no restante do continente.

        Assim ele descreve os dramáticos acontecimentos deste período: “Na França, antes que Blum forme o governo, as massas operárias se lançam à greve e ocupam fábricas no mês de junho. A proximidade destes dois movimentos ativa um processo que poderia mudar radicalmente o panorama europeu. É indubitável que, naquele momento, a profundidade revolucionária e a dinâmica combativa do movimento espanhol eram maiores do que o francês, mas este continha um potencial revolucionário que foi deliberadamente travado precisamente por aqueles que deveriam impulsioná-lo. A frustração das possibilidades contidas no junho francês deixou isolada a revolução espanhola e foi uma das causas essenciais da sua derrota militar. O caminho ficou livre para a agressão hitleriana e a Segunda Guerra Mundial. A responsabilidade da social-democracia internacional, sobretudo do Partido Socialista francês, no rumo tomado pelos acontecimentos não é menor do que a da social-democracia alemã na vitória de Hitler. Mas é muito improvável que o juízo da história absolva de toda a culpa a IC”[xxiv].

        Não bastasse o freio imposto pelo stalinismo à luta contra a ascensão do nazi-fascismo, tentando preservar o equilíbrio internacional entre Alemanha e URSS, a mudança de 180º durante e após a Segunda Guerra Mundial não será menos catastrófico. Somada à dissolução da IC em 1943 a pedido dos “aliados”, a política do pós-guerra imposta ao PCF e ao PCI foi um verdadeiro crime que sacrificou as possibilidades de uma revolução socialista nesses países, selando o destino da parte Ocidental do continente – a mais rica e importante – como base de sustentação do imperialismo estadunidense. Nenhum trotskista conseguiu realizar uma denúncia mais completa e contundente deste cenário político – tanto é assim que alguns deles citam a obra de Claudín como forma de ilustrar seus argumentos (vide a apresentação da edição brasileira da obra Aonde vai a França?, de Trotsky, dentre outros trabalhos).

***

        Uma vez terminada a Segunda Guerra Mundial e o nazi-fascismo derrotado, a influência atingida pelos comunistas nos movimentos nacionais antifascistas era tamanha que a burguesia francesa, italiana e do Leste europeu ficou completamente à mercê dos partidos comunistas, como atesta com inúmeros exemplos e documentos a obra de Claudín. Com a IC extinta, surgiu em seu lugar o malfadado Centro de Informação dos partidos comunistas (COMINFORM), totalmente hegemonizado pelos interesses da diplomacia da URSS – ou seja: o coroamento da vulgarização e da degeneração completa a que o stalinismo submeteu o internacionalismo proletário marxista.

        Como a linha política internacional ditada pelas potências capitalistas mundiais – EUA e Inglaterra –, secundadas pela URSS, era a divisão do mundo em áreas de influência, o COMINFORM trabalhou dia e noite para garantir a dócil centralização dos PCs europeus aos ditames do que queria a cúpula soviética. Por que o imperialismo internacional tolerou a divisão do mundo em “áreas de influência” com a Rússia soviética? Ora, justamente porque o prestígio dos partidos comunistas na luta anti-fascista mundial foi enorme ao ponto de os deixarem prontos para tomar o poder em diversos países – como a França, a Itália e a Grécia (onde foram revoltantemente traídos pelo stalinismo) – ou levando-os efetivamente ao poder, como na Iugoslávia e na China.

        Na maioria dos países da Europa Ocidental – bem como na China – a orientação política dada pelo stalinismo era para que os PCs formassem governos de coalização com a burguesia nacional, reproduzindo a catastrófica política anterior de “frentes populares”, chamadas agora, eufemisticamente, de “democracias populares” ou de “novas democracias”. Os representantes de Moscou entraram numa patética manobra contorcionista teórica para justificarem o injustificável, cuja única finalidade foi garantir os interesses da diplomacia da URSS no jogo de poder mundial, praticamente consentindo com a deflagração da “Guerra Fria” (termo um tanto questionável, conforme já apresentou-se posição a respeito neste blog[xxv]).

Vejamos agora como Claudín denuncia corretamente os novos crimes do stalinismo neste contexto histórico: “a Itália burguesa, saída do Risorgimento, não conhecera crise nacional tão grave como a aberta em 1943, e o mesmo se pode dizer da França desde a Comuna. A catástrofe nacional de 1940 revelou à luz do dia a debilidade do capitalismo francês. O Estado submergiu, substituído por uma caricatura estatal a serviço do ocupante. As calamidades da guerra se entrecruzaram com a humilhação da vergonhosa derrota e da ocupação alemã. E não havia dúvidas sobre as causas: estruturas socioeconômicas esclerosadas, parasitismo colonial e atraso técnico, parlamentarismo apodrecido e impotente. As classes dirigentes, todas as suas frações políticas, cobriram-se de descrédito. Sobre elas recaíam inteiramente as responsabilidades da catástrofe. E o mais grave, para a burguesia francesa, era nítido o deslocamento para a esquerda, que, no curso da luta contra o ocupante, se opera entre o proletariado e outras camadas sociais, reflexo de uma tomada de consciência das causas e das responsabilidades da crise. Apesar da sua desorientada política entre 1939-1941, as massas se direcionam rapidamente para o PCF, e este conquista posições hegemônicas na Resistência, porque as camadas sociais mais ativas e avançadas, expressando a tendência ainda confusa das massas, buscavam uma saída radical para a crise do regime burguês. O processo italiano era análogo. (...) Na história dos países, jamais o movimento real, de modo tão conclusivo, pusera objetivamente em questão o regime burguês; jamais as massas trabalhadoras, as camadas intelectuais, a sociedade em seu conjunto vivera uma experiência tão rica, demonstrativa da necessidade de uma nova economia, um novo Estado, uma nova classe social dirigente. Sem perder a razão de ser, podia o partido comunista deixar de propor a alternativa socialista?”[xxvi].

        A esta pergunta de Claudín os PCs francês e italiano responderam com um sonoro sim! Pois foi justamente o que fizeram: seguindo as orientações traiçoeiras do COMINFORM, os PCs da França e da Itália não propuseram a alternativa socialista às massas, buscando conformar governos de conciliação de classe com suas respectivas burguesias em nome de uma mentirosa “reconstrução nacional”. E esta reconstrução estaria baseada na teoria da burocracia stalinista que ficou conhecida como “democracia popular” (também repetida pelo reformismo petista no Brasil e pelo eurocomunismo). Claudín explica que “reduzida à essência, a teoria da ‘democracia popular’ fundava-se na seguinte hipótese: uma vez destruído, no curso da libertação, o poder político da oligarquia financeira e latifundiária, privada da sua base econômica mediante as expropriações e as nacionalizações subsequentes, seria possível a colaboração duradoura entre a classe operária, os pequenos camponeses proprietários e a média burguesia – industrial, comercial e agrária – numa perspectiva de evolução gradual para o socialismo”.

Estas camadas “progressistas” da burguesia, segundo os teóricos soviéticos e os chefes comunistas das “democracias populares” seriam parte da “frente nacional” e do governo “democrático-popular”. Esta foi, segundo Claudín, a “concepção vigente em 1945 e 1946, enquanto perdurou a esperança de um entendimento global entre a URSS e os EUA”. Segundo esta teoria oportunista – uma readaptação do menchevismo russo às condições da época – “o Estado deixaria de estar a serviço da oligarquia capitalista, transformando-se em Estado da democracia popular”[xxvii]. Esta foi a política oficial apresentada pelos PCs da França e da Itália, em nome de Moscou, à Europa Ocidental – e continua sendo defendida pela “esquerda” de tipo social-democrata, como o PT, PCdoB, PSOL, etc. E tudo isso em um contexto em que a situação italiana era a seguinte: “durante dez dias a classe operária e as massas populares do norte da Itália tiveram o poder em suas mãos, controlaram as principais empresas industriais do país, contaram com 300 mil combatentes organizados (que poderiam ser rapidamente multiplicados) e dispuseram de considerável armamento tomado dos alemães. Na fronteira leste, tinham o exército revolucionário da Iugoslávia, dono do poder. Na fronteira austríaca, o exército soviético. Mas havia o ‘protocolo de Roma’, a política de união nacional e... Ialta”[xxviii].

        Em total consonância com os acordos espúrios de Ialta-Potsdam, feitos pelas costas do proletariado internacional e que colocaram o imperialismo estadunidense no centro e na liderança do mercado mundial com a conivência acrítica da URSS, Stalin teve outra postura em relação ao Leste europeu – região geograficamente sensível à ele por ter uma longa fronteira com a URSS. O grande “regulador” da transformação do Leste europeu – que “implantou o socialismo” não por uma revolução nascida do seio do próprio povo dos países daquela região, mas imposto pela ocupação das tropas militares soviéticas – foi a política stalinista, orientada para articular todos os países dessa zona num “sistema político-militar protetor das fronteiras ocidentais da URSS, bem como para ampliar o espaço econômico do que em Moscou se entendia por construção do socialismo. Isso implicava a criação de regimes que oferecessem suficientes garantias políticas ao Kremlin”. Durante esta fase, “Stalin tratou de conciliar a construção de tais regimes com a tentativa de chegar a um acordo mundial, duradouro com os Estados Unidos”[xxix].

        Com efeito, no final da Segunda Guerra Mundial a “grande aliança” tornava-se desnecessária ao imperialismo Ocidental, que decidira-se resolutamente a instaurar a sua dominação mundial. Oferece à burguesia europeia, em troca de sua liderança, “o maná dos seus dólares”, na expressão de Claudín, garantindo ainda proteção militar contra o “perigo vermelho”. “Em troca do maná [de dólares] que se chamará Plano Marshall, a burguesia francesa abandona suas ‘reivindicações alemãs’ e se orienta decididamente para a integração no bloco americano. Mas para soltar os dólares, Washington exige que os PCs despareçam dos governos burgueses da Europa. E, realmente, a operação se leva a cabo com rapidez e sem dificuldades”[xxx].

        Claudín ainda aponta que “no verão de 1947, tanto a evolução na área de projeção soviética quanto na Europa ocidental e a orientação francamente antissoviética adotada por Washington, exigiam do Kremlin a drástica revisão da política até então implementada – quer a política externa soviética, quer a política dos PCs no Leste e no Oeste. Em todas as frentes se impunha um ‘aperto nos parafusos’. Essa necessidade ditou a criação do COMINFORM”[xxxi] frente à vergonhosa e submissa dissolução da IC em 1943. E o motivo disso tudo, conforme aponta Claudín ao longo de várias páginas de seu livro, foi a política oportunista da URSS sob o tacão de Stalin. Em síntese: querendo selar os acordos de Ialta-Potsdam com o imperialismo estadunidense, a burocracia soviética enforcou a revolução na Europa Ocidental, sendo traída posteriormente pelo próprio imperialismo que julgava tão confiável quanto Hitler em 1941 (e tudo isso em menos de uma década!).

 

4.

A “fratura iugoslava” e a “alternativa Oriental”

 

        Diferentemente da Europa Ocidental, o stalinismo tinha total interesse no controle geopolítico do leste europeu, justamente em razão da extensa fronteira com a URSS. Contudo, esperto e ardiloso, o imperialismo estadunidense e inglês, ao contrário da diplomacia soviética (que estava pronta a fazer “qualquer negócio”), não abriu mão tão facilmente de determinadas regiões, como a Iugoslávia, Grécia e Alemanha, corretamente consideradas como estratégicas. Assim, o serviço diplomático de Churchill exigiu que se construíssem governos de “união nacional” nestes países – no que foi prontamente atendido por Stalin – para solapar a influência conquistada pelos comunistas na luta de resistência anti-fascista, abrindo caminho para, posteriormente, exigir sua expulsão dos governos tal como fizera com grande êxito na França e na Itália.

        Os países fronteiriços à URSS – Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, etc. – foram rifados pelo imperialismo anglo-saxão porque possuíam pouco peso econômico, não importando muito para a costura daquela nova correlação de forças. Nesta região, Claudín nos afirma corretamente que “o exército soviético substituiu a vontade das massas”[xxxii]. Já nos países de maior peso, como a Alemanha, o imperialismo anglo-americano bateu pé. Assim, Stalin vergonhosamente dividiu a Alemanha, construindo o nefasto muro de Berlim; o que nos leva à conclusão de que além da teoria do “socialismo em um só país”, a cúpula da burocracia soviética defendia também o “socialismo em meio país”[xxxiii].

        Os casos mais escandalosos foram, sem dúvida, na Grécia (onde uma nova revolução foi traída pelo stalinismo), na Iugoslávia e na China (que triunfaram apesar da orientação política e da sabotagem do stalinismo).

***

        O coroamento das traições stalinistas aos processos revolucionários se deu na Iugoslávia e na Grécia. Ali, qualquer militante que tiver o menor indício de honestidade perceberá a desfaçatez, o caráter burguês e anti-socialista do stalinismo. Senão vejamos o que nos diz Claudín: “Churchill e Stalin, cada qual por um lado, intensificaram a pressão política e diplomática para que os comunistas e o governo [burguês-monarquista] exilado chegassem a um compromisso. (...) Diante dessa pressão anglo-soviética, a direção comunista iugoslava manobrou: em agosto de 1944, Tito concluiu um acordo com Subachitch, pelo qual se estabelecia uma colaboração entre o governo exilado e o governo do interior do país, com a perspectiva de chegar a um ‘governo misto’. Ele diria mais tarde: ‘aceitamos esse acordo porque conhecíamos a nossa força, sabíamos que a grande maioria do povo estava conosco (...) Ademais, tínhamos um forte exército, cuja importância era desconhecida por nossos rivais!’. Em fins de setembro, Stalin se encontra com Tito e o pressiona novamente para que aceite a restauração da monarquia do rei Pedro e faça concessões à burguesia sérvia – mas não consegue alterar a disposição do chefe iugoslavo. ‘E o que vocês farão no caso de um desembarque inglês na Iugoslávia? – indaga Stalin. Tito responde: ‘resistiremos por todos os meios’. Stalin ouve a réplica num silêncio glacial. Dias depois tem lugar a famosa entrevista Churchill-Stalin, na qual se realiza a cínica divisão das    ‘influências’ nos Balcãs. Sem ter dito uma só palavra a Tito, Stalin acerta com o primeiro-ministro de Sua Majestade a divisão ao meio da ‘influência’ sobre a Iugoslávia. Em Ialta essa ‘divisão’ foi revalidada e concretizada”[xxxiv]. A insubordinação de Tito aos ditames tirânicos do burocrata mor de Moscou levou ao triunfo da revolução iugoslava.

        Mas já era muito tarde para que o imperialismo anglo-esdadunidense pudesse “aplicar o remédio grego” à Iugoslávia. O que era esse “remédio grego”? Claudín nos responde afirmando que a resistência ao nazi-fascismo na Grécia “teve o mesmo caráter revolucionário da iugoslava e adquiriu um vigor comparável ao desta. Em finais de 1944, era praticamente a senhora do país. A direção do PC grego, porém, não soube ter a mesma firmeza, diante das pressões de Moscou, dos iugoslavos. Fez graves concessões à política de ‘união nacional’ e aceitou compromissos com os aliados que facilitaram o êxito da intervenção armada inglesa contra a revolução grega. O acordo Churchill-Stalin, de outubro de 1944, encarregou-se do resto. (...) Em 22 de dezembro, Churchill, protegido pelos tanques ingleses, pôde entrar em Atenas e, numa entrevista com os chefes da resistência, a fim de levá-los à capitulação, declarou que ‘os britânicos chegaram à Grécia com a aprovação do presidente Roosevelt e do marechal Stalin’. O chefe da missão militar soviética (que, enquanto o povo de Atenas se batia com as tropas inglesas, permaneceu no quartel-general britânico, cercado pelos guerrilheiros) assistia a entrevista e confirmou a declaração de Churchill. Dois dias depois, suspensas as negociações entre a resistência e o governo monárquico, enquanto os aviões ingleses metralhavam a população ateniense, o governo soviético nomeava um embaixador junto ao governo monárquico grego. E, na conferência de Ialta, mal terminado o combate entre os intervencionistas e os resistentes, Stalin declarava: ‘confio na política do governo britânico na Grécia”[xxxv].

        Onde estavam os trotskistas que não desencadearam uma grande campanha internacional de denúncia dos crimes do stalinismo na Grécia, na Iugoslávia e em toda a Europa? Ao contrário disso, muitas vezes perderam-se na escolástica de um debate fechado em si mesmo sobre se eram ou não Estados Operários (degenerados ou não degenerados). Na Grécia os acordos espúrios entre o stalinismo e o imperialismo anglo-estadunidense levaram ao estrangulamento da revolução; na Iugoslávia, a política de Tito foi bem sucedida graças à ruptura com a política oficial imposta por Moscou – ainda que ele não tenha tirado todas as conclusões dessa ruptura e tenha mantido uma atitude teórica passiva diante do stalinismo (o que não impediu que este o chamasse de “trotskista”, como já era praxe).

        Pior do que o estrangulamento – ou a tentativa de estrangulamento – dessas revoluções, Claudín nos alerta que “por volta de 1949, as democracias populares, seguindo o exemplo soviético, praticamente haviam suspendido todo o comércio com a Iugoslávia. À Revolução Iugoslava só restou um caminho, igual ao trilhado pela Revolução de Outubro quando se encontrou isolada e cercada pelo mundo capitalista: comerciar com este, buscar empréstimos e ajuda técnica”[xxxvi]. Aqui, novamente os “trotskistas” se calaram e não amplificaram a denúncia de mais esta vergonhosa sabotagem do stalinismo contra a emancipação de um povo. Percebe-se que o método autoritário do embargo econômico não foi utilizado apenas pelos EUA contra Cuba, mas pela própria URSS contra os Estados insubordinados do Leste europeu. Esta foi a forma da burocracia stalinista “construir o socialismo no mundo”.

***

        Já a “alternativa Oriental” foi representada pela “ruptura pragmática do comunismo chinês” com a linha oficial da IC e de Moscou. Esta ruptura possibilitou a tomada do poder pelos comunistas em 1949, contra as intenções de Stalin, que costurou com o imperialismo estadunidense um acordo para tentar impor um governo de conciliação de classes e de “união nacional” entre o Kuomitang e o PCC[xxxvii]. Aqui, contudo, ele sofreu uma nova derrota por uma direção mais ou menos independente – tal como a iugoslava –, que rechaçou a “linha oficial” de Moscou, mas não tirou nenhuma conclusão teórica dessa ruptura prática.

        Claudín ainda aponta que a “habilidade tática de Mao foi favorecida, sem dúvida, porque, durante a guerra antijaponesa e a Segunda Guerra Mundial, as contradições entre a política maoísta e a staliniana não afetavam de modo grave os interesses soviéticos. Tais contradições poderiam tomar dimensões de antagonismo, no período seguinte à capitulação do Japão, se o espírito de Ialta perdurasse entre Washington e Moscou – mas a rápida deterioração das relações entre as duas superpotências diminui a relevância das divergências entre Mao e Stalin”[xxxviii]. Podemos acrescentar, ainda, a distância geográfica, o tamanho do país asiático e o eurocentrismo da política da burocracia soviética como motivadores da trégua com a China pós 1949 – diferentemente do ataque quase permanente contra Tito na Iugoslávia. Não havia força para dois embates desse tipo. Centrou-se, assim, na área de interesse direto de Stalin. A ruptura, contudo, não tardaria, efetuando-se entre Kruschev e Mao, em 1960, quando Stalin já estava morto.

 

5.

Os erros burocráticos cometidos pelos comunistas – ainda hoje!

 

        Uma das grandes preocupações de Claudín ao longo de seu livro é demonstrar como o movimento comunista sofreu com a burocratização, o dogmatismo e o burocratismo (isto é, um reconhecimento tardio de muitas das contribuições teóricas e dos alertas de Trotsky). Claudín passa a limpo os principais erros organizativos que reproduzem uma burocracia autoritária e asfixiante. Ele conclui que a história se repete: “recém-nascida, a Terceira Internacional [IC] reincide, depois da morte de Lenin, no mesmo pecado que a Segunda Internacional, depois da morte de Marx e Engels – a canonização do seu pensamento”[xxxix].

        Dentro desse contexto, Claudín cita o filósofo espanhol Manuel Sacristán: “Os clássicos do movimento operário definiram, mais que algumas motivações intelectuais básicas, os fundamentos da prática daquele movimento, seus objetivos gerais. Os clássicos do marxismo o são de uma concepção do mundo, não de uma teoria científico-positivista especial. Isso tem como consequência uma relação de adesão militante entre o movimento operário e seus clássicos. Dada essa relação necessária, é bastante natural que a preguiçosa tendência a não ser crítico, a não se preocupar mais que com a própria segurança moral, prática, frequentemente se imponha na leitura dos clássicos, consagrando injustamente qualquer estado histórico da sua teoria com a mesma intangibilidade que possuem, para um movimento político-social, os objetivos programáticos que o definem”.

Em cima deste raciocínio de Sacristán, Claudín conclui: “Depois da morte de Lenin, a IC não só não combateu a ‘preguiçosa tendência’, mas a estimulou, justificando-a com todo o gênero de razões práticas e políticas, quando não ‘teóricas’”[xl]. “Esse processo de dogmatização e estreitamento cada vez mais acentuado dos fundamentos teóricos da IC se reflete nitidamente nos partidos comunistas. Aqueles que, ao se constituírem, careciam de qualquer herança teórica nacional (como, por exemplo, o PCE), vegetam no praticismo mais rotineiro”[xli].

        É dentro desse contexto reducionista e idiotizante que surgem as máximas reproduzidas até hoje por determinados tipos de “comunistas”, como: “o partido sempre está certo”; ou ainda: “melhor errar com o partido do que contra ele”. Nada é mais distinto do pensamento de Lenin (para quem realmente o conhece) do que máximas como essa. Nos momentos decisivos da Revolução Russa de 1917 Lenin não apenas defendeu romper com a disciplina partidária, como a rompeu efetivamente alegando se colocar contra o “acentuado conservadorismo de alguns bolcheviques”.

        Frente a isso, Claudín traz uma particular citação de Trotsky, que afirma o seguinte: “Essa unidade é apresentada como um sinal particular de força do partido. Onde e quando, na história do movimento operário, houve um ‘monolitismo’ absurdo semelhante? (...) Toda a história do bolchevismo é a história de lutas internas intensas, nas quais o partido adquire suas opiniões e forja seus métodos. As crônicas de 1917, o ano mais importante na história do partido, estão cheias de lutas intestinas imensas, tanto quanto as dos cinco anos posteriores à tomada do poder. E isso sem divisão, sem uma só exclusão importante por motivos políticos”[xlii].

        Ainda que Trotsky reconheça, corretamente, a história da luta interna do partido bolchevique, repetiu alguns dos erros de ultracentralismo que foram criticados por ele mesmo na condução da IV Internacional. Em especial no caso da polêmica com o trotskista brasileiro, Mario Pedrosa[xliii]. Este exigia uma certa atenção à forma como a polêmica contra a sessão norte-americana estava sendo conduzida por Trotsky. Ainda que houvesse problema no conteúdo apresentado por Pedrosa, ele demonstrou uma preocupação absolutamente correta e necessária, que foi desdenhada pelo velho revolucionário. Diz Pedrosa: “os camaradas cresceram politicamente com o hábito de olhar sempre para o lado à procura de inspiração e de uma palavra orientadora. O medo de errar paralisou a ação de nossos melhores camaradas internacionais; para muitos, isso era uma verdadeira inibição. Hoje, os acontecimentos internacionais lhes impõem outras responsabilidades. É preciso conceder a esses camaradas a possibilidade de assumir essas responsabilidades”.

        Ao que, Trotsky respondeu, chamando Pedrosa de “um tipo curioso”: “essa gente crê que hoje, na época da agonia do capitalismo, nas condições de guerra e clandestinidade que se aproxima, seria preciso abandonar o centralismo bolchevique em benefício de uma democracia ilimitada”; sendo que Pedrosa não propôs exatamente, como vimos, uma “democracia ilimitada”.

***

Claudín também aponta que “em radical contradição com a concepção que Marx e Engels tinham do que devia ser o partido revolucionário, tanto em escala nacional quanto internacional, a IC entroniza cada vez mais – seguindo a inspiração de Stalin – uma concepção burocrática do funcionamento e da unidade do partido, quer de sua unidade política e organizacional, quer da sua unidade teórica. A unidade é identificada com a unanimidade, com o monolitismo. (...) Para que essas soluções possam se impor, há que converter a ‘unidade do partido’ em mito. O mito, nesse caso, é a transformação da ‘unidade do partido’ no bem supremo, que deve ser tratado como ‘a menina dos olhos’. A justificação ideológica é simples e de grande efeito, porque apela ao senso comum: com o partido envolvido numa luta difícil, contra um inimigo poderoso, é possível vencer se não se está ‘ferreamente’ unido? (...) Não basta que a minoria acate a lei da maioria – é preciso que não haja minoria (...) é necessário que pensem como maioria. Assim se alcança a perfeição monolítica. Toda divergência aparece não só como ato, mas como pensamento”[xliv].

        Esta busca pela “unanimidade” como sinônimo de “unidade” está presente não apenas no partido stalinista, mas nos partidos de “esquerda” atuais e nos sindicatos dirigidos por estes (basta olhar o CPERS, por exemplo), mesmo que se digam críticos das experiências stalinistas e se vendam como “democráticos”. Tais formas de encarar as divergências reproduzem quase exatamente os dogmas religiosos medievais como “lei divina”. Essa crítica, contudo, não deve nos levar a ignorar a importância das experiências históricas das organizações partidárias dos trabalhadores – sobretudo a rica experiência da IC e do partido bolchevique –, nem a subestimar o poder destrutivo do espontaneísmo – que é geralmente o erro oposto em que caem os críticos à organização política dos trabalhadores e ao seu excessivo centralismo.

        Por outro lado, há inúmeros “revolucionários” hoje que julgam que basta proclamar o centralismo leninista para se criar “partidos bolcheviques quimicamente puros da noite para o dia”. Nesse caso, cometem um triste erro oposto, inclusive não compreendendo o próprio método marxista que entendem ser os portadores. Na verdade, eles são aqueles a quem Marx definiu como “os alquimistas da revolução, compartilhando com os antigos alquimistas a confusão de representações e a nebulosidade das ideias obsessivas”[xlv]. Claudín ironiza, de forma mordaz, que grande parte do movimento comunista ficou marcado por “um espírito sectário e dogmatizante, embalado num verbalismo revolucionário que dissimulava a perda de noção da realidade. Acreditava-se aplicar o modelo bolchevique, mas, na realidade, falseava-se totalmente a sua inspiração”. Pois “o partido bolchevique se constituíra no curso de um longo e complexo processo, por meio de uma luta política e ideológica com mencheviques e social-revolucionários conduzida em conexão íntima com os problemas vivos da vida social e política russa”[xlvi]. Para atuar sobre “problemas vivos” é necessário, como exigiu Pedrosa a Trotsky, “superar a inibição, o medo de errar e a imperiosa obrigação de assumir responsabilidades”. Sem isso jamais teremos renovação do movimento comunista e, tampouco, revolução socialista! Apenas veremos ininterruptas destruições burocráticas das boas e poucas iniciativas das massas.

        Ao contrário disso, o movimento comunista hegemonizado pelo stalinismo, criou hábitos políticos assentados em uma mentalidade de rigidez sectária a partir de décadas de expurgos de quem pensa diferente e de um agravamento contínuo do centralismo burocrático[xlvii]. Os amplos poderes concedidos aos organismos de cúpula eram executados despoticamente de cima para baixo, numa estrutura política em que “cada comitê é onipotente diante dos comitês inferiores e impotente diante dos superiores”; e onde “suas diretivas têm ‘força de lei’ imediata para todas as seções nacionais”[xlviii].

        É dentro deste contexto em que o stalinismo, já hegemonizando a URSS e a IC, formulava novas táticas e estratégias “sem realizar um verdadeiro exame crítico das experiências anteriores” e, geralmente, eximindo Stalin das suas responsabilidades, bem como dos órgãos dirigentes superiores, as repassando para os órgãos inferiores. Assim se formou, dentre outras aberrações teóricas, a ideia de que o “socialismo” significa a fusão do partido com o Estado e a existência e funcionamento de um partido único. Esta é, precisamente, a teoria stalinista de “socialismo”, “marxismo” e de “partido leninista”. Grande parte da “esquerda” ainda reproduz tais concepções, mesmo que algumas organizações se digam anti-stalinista, o que é um verdadeiro presente para a burguesia e a sua grande mídia comercial, que usam tais práticas como a confirmação de suas afirmações ideológicas.

 

6.

O triste fim político de Claudín

 

        A obra de Fernando Claudín elucida grande parte do fenômeno da crise do movimento comunista, a qual já havia sido abordada por Trotsky entre 1925 e 1940. Tais contribuições ajudam a desmascarar a ideologia disseminada na grande mídia burguesa, bem como pelos seus mercenários (jornalistas, colunistas, escritores, professores, intelectuais...), de que “o socialismo não deu certo”, “o leninismo é a mesma coisa que o stalinismo”, dentre outras distorções grosseiras e sutis. Sua leitura é indispensável para qualquer militante honesto ou para qualquer indivíduo que gostaria de ter uma opinião sobre “socialismo”, “comunismo” ou a URSS. Lê-lo faz parte do contraponto de quem só vê o lado da grande mídia burguesa e das universidades atuais. A finalidade de encontrar a raiz da crise do movimento comunista é lançar as bases de uma nova luta pelo socialismo (e aí reside a principal força da obra analisada). Para Claudín “o que fracassou historicamente não foi o marxismo, mas uma determinada dogmatização e perversão do pensamento marxiano”[xlix].

        Contudo, apesar da riqueza de detalhes e da indispensável contribuição à explicação das causas da crise do movimento comunista, Claudín deixa a desejar em distintos momentos, quando não apresenta e nem se preocupa com uma análise embasada na psicologia de massas; isto é, quando não olha esta crise pelo prisma da psicanálise e das suas distintas vertentes – em especial pela ótica da “economia sexual” de Wilhelm Reich. É como se todo um campo ficasse em aberto, deixando um flanco perigoso desprotegido. Tal flanco pode constituir-se num princípio de superação da crise do movimento comunista, embora Claudín o tenha ignorado. É claro que, provavelmente, outros campos também fiquem em aberto e a psicologia de massas e a economia sexual não consigam suprir todas as demandas indispensáveis para a regeneração do movimento comunista internacional. Esboçamos aqui apenas alguns dos primeiros passos nesse sentido.

        Em diversas passagens de sua obra – bem como na de Trotsky – há uma lacuna que se faz sentir; qual seja: a necessidade psicológica humana de estar e sentir-se dentro de um rebanho, de reproduzir dogmas, como se fossem forças mágicas que nos garantiriam a imunidade contra erros, degenerações, etc. Os comunistas passaram a reproduzir dogmas tal como fazem os católicos e religiosos de toda a espécie. E uma atmosfera como esta tende a produzir e reproduzir dependências de vários tipos: paterna, materna, emocional; fuga das responsabilidades; a “tendência perigosa de não ser crítico” e a “preguiça intelectual”; a espera por um líder ou pela “lei” vinda de cima; em síntese: ocorre a reprodução de um espírito de rebanho que tende a criar mentes tacanhas, dogmáticas e sectárias contra tudo aquilo que não se enquadre no que o rebanho entende como “certo”. Com tal disposição de espírito não apenas é impossível construir o socialismo e o comunismo (o fim das classes sociais e do Estado); como se tende à reproduzir o que Wilhelm Reich chamou de “fascismo vermelho” (usamos o termo com bastante cuidado, diferenciando suas consequências ideológicas no campo psicológico, social e político do campo econômico).

        Esta lacuna também foi um limitador da análise teórica de Claudín, o que não deixou de impactar suas conclusões e a sua futura opção política pelo eurocomunismo. No final de sua vida, reproduzindo a lógica do PC chinês contra o PC soviético em 1960, Claudín rompe totalmente com a URSS e passa a negar qualquer conteúdo progressista (e, menos ainda, socialista) ao “socialismo real”, que qualifica de “poder totalitário” e uma ameaça à paz mundial. Afirma ainda que “diante do imperialismo capitalista, com centro em Washington, nasceu um novo tipo de imperialismo, com sede em Moscou”[l]. Tal visão, severíssima e problemática, nas palavras de José Paulo Netto, é idêntica a expressa por Mao Tsé-tung.

        A partir daí, passa a considerar o eurocomunismo um saudável esforço de ruptura com o stalinismo, mesmo que isso contradiga frontalmente as valiosas conclusões do seu livro, que afirmam ser a “tendência ao neorreformismo comunista” uma redução das distâncias que inicialmente separavam o comunismo revolucionário do “reformismo tradicional” de tipo social-democrata, o que representaria a “tendência a uma das expressões globais mais significativas da crise do movimento comunista”[li]. É precisamente quando os PCs da Europa rompem com Moscou e abraçam o reformismo eleitoral que nasce o movimento conhecido como eurocomunismo. Assim, ao invés de superarem a crise do movimento comunista, apenas regridem acriticamente à etapa reformista da social-democracia e da 2ª Internacional. Os PCs, além de não representarem mais nenhum perigo à ordem burguesa estabelecida, foram assimilados por ela através das eleições e do legalismo institucional (fenômeno semelhante ao que ocorreu com o PT no Brasil).

Então, somando-se à visão reformista do eurocomunismo, Claudín solidariza-se com as teses gramscianas do PC italiano segundo a qual “a via democrática ao socialismo é a única possível nos países de capitalismo desenvolvido”, mas adverte, contra si mesmo, que “o eurocomunismo contém a possibilidade e a esperança de uma superação – no capitalismo maduro – da crise geral do movimento comunista. Mas pode ser, também, o seu canto de cisne”[lii].

A adesão dos PCs ao eurocomunismo significou a busca pelo caminho mais fácil, adaptando-se suavemente à nova etapa de desenvolvimento do capitalismo europeu no final do século XX. Representou, de fato, o canto de cisne do movimento comunista hegemonizado pelo stalinismo – sobretudo após a restauração do capitalismo realizada através da Perestroika[liii] – e do próprio Claudín, que ingressa formalmente, em 1988, no PSOE (Partido Operário Socialista Espanhol) – partido de tipo social-democrata, liderado por Felipe González[liv] –, que futuramente governará a Espanha sem nenhuma ruptura essencial com a ordem burguesa. Desde sua adesão ao reformismo, Claudín não produziria mais nenhuma análise política e filosófica tão profunda quanto a expressa em “A crise do movimento comunista”.

 

 

REFERÊNCIAS


[i] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 15 e 31).

[ii] Idem (página 17).

[iii] Idem (página 21).

[iv] Idem (página 705).

[v] Idem (página 702).

[vi] Idem (páginas 709, 711 e 712).

[vii] Idem (página 712).

[viii] Idem (página 140).

[ix] Idem (página 136 e 137 – nota de rodapé).

[xi] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 283).

[xii] Idem (página 282).

[xiii] Idem (página 285).

[xiv] Idem. (página 286).

[xv] Idem (página 285).

[xvi] Idem (página 286).

[xvii] Idem (página 692).

[xviii] Idem (página 693).

[xix] Idem.

[xx] Idem (página 694).

[xxi] Idem (página 194).

[xxii] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França? Editora desafio, São Paulo, 1994 (páginas 64 e 65).

[xxiii] Idem (páginas 32 e 33).

[xxiv] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 195).

[xxvi] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 516 e 517).

[xxvii] Idem (páginas 538 e 539).

[xxviii] Idem (página 434).

[xxix] Idem (páginas 535 e 536).

[xxx] Idem (página 414).

[xxxi] Idem (página 542).

[xxxii] Idem (página 532).

[xxxiv] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 452). Este blog já fez uma análise detalhada da revolução iugoslava em: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/08/tito-um-grande-estadista-proletario.html

[xxxv] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 455).

[xxxvi] Idem (página 589).

[xxxviii] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 653 – nota 37).

[xxxix] Idem (página 116)

[xl] Idem (nota de rodapé).

[xli] Idem (página 117).

[xlii] Idem (página 140).

[xliii] Ver: Na contra-corrente da história: documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940; Fulvio Abramo e Dainis Karepovs (orgs.) da Editora Fundação José Luis e Rosa Sundermann (páginas 471 a 474).

[xliv] CLAUDÍN, Fernando. A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 141).

[xlv] Idem (página 712).

[xlvi] Idem (página 128).

[xlvii] Idem (página 200).

[xlviii] Idem (página 126).

[xlix] Idem (página 30).

[l] Idem (página 14).

[li] Idem (página 709).

[lii] Idem (página 13). Sobre as teses de Gramsci e do PC italiano, ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/02/a-imagem-do-marxismo-e-do-brasil-na.html