quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Para uma caracterização do PSOL: debate com Valério Arcary e PCO

Texto escrito pelo camarada Santiago Marimbondo e publicado originalmente no blog Quilombo Spartacus. Dado a importância da polêmica e, também, por trazer a visão dos trabalhadores de São Paulo sobre as possíveis candidaturas da "esquerda" na cidade mais populosa do país, publicamos ela na íntegra abaixo.

A pobreza dos debates estratégicos, programáticos, teóricos, dentro da esquerda hoje no Brasil é particularmente impressionante com o nível do acúmulo das contradições políticas que tem se expressado no país nos últimos anos e o grau de desenvolvimento de sua dinamicidade. Essa falta de debates dentro da esquerda mostra como os grupos que se reivindicam revolucionários não só se veem confortáveis em sua marginalidade e sua capacidade que tende a zero de influenciar a conjuntura política nacional, como buscam reforçar essa posição. Suas “direções” adaptadas aos confortáveis espaços de seitas que constroem de forma burocrática e os pequenos privilégios que vem dessa posição reforçam e reproduzem essa sua condição de marginalidade.

Pois não parece haver outra explicação para essa pobreza de debates dentro da esquerda que se pretende e se reivindica revolucionária; os debates teóricos, estratégicos, programáticos não são adornos supérfluos em relação a atuação “prática” de uma organização que se reivindica classista e combativa, mas parte central de sua atuação e construção, parte de sua tentativa de influenciar outros grupos e militantes independentes para sua estratégia e programa.

Mesmo quando os debates entre os grupos acontecem podemos perceber, nós trabalhadores que apesar de tudo buscamos ainda nos colocar numa perspectiva militante, como eles são corriqueiros e rotineiros, e não apaixonados e intensos, como pede a realidade dinâmica e caótica que vivemos no país atualmente; para nos prepararmos para o próximo período da luta de classes, que tende a ser ainda mais profundo e agudo no pós-pandemia, precisamos de armas teóricas, estratégicas, organizativas, capazes de refletir nossas necessidades de luta; e isso é tudo que essa esquerda “revolucionária” não busca construir.

Podemos perceber isso no recente debate que se desenvolveu entre o PCO e Valério Arcary, dirigente do grupo ‘resistência’. Poderíamos, talvez, saldar os debatedores por pelo menos promoverem um debate, frente ao marasmo que é a esquerda brasileira atualmente, mas o debate é tão morno, superficial, moralista, que seria um erro fazê-lo. Duas das organizações mais tradicionais da esquerda que se reivindica classista, organizações que existem a décadas já no país (pois apesar de o ‘resistência’ de Arcary ser um grupo novo carrega parte da tradição da ‘convergência socialista’) promoverem um debate tão mesquinho mostra, pra nós trabalhadores, como partimos praticamente de uma “terra arrasada” no país para nossas necessidades organizativas de luta para o próximo período e como essa organização vai ter que começar praticamente do zero (buscando resgatar, é evidente, fios de continuidade com a tradição de luta dos trabalhadores no país e no mundo através dos necessários debates teóricos e estratégicos).

O debate entre os grupos se desenvolve em torno de uma questão que deveria ser essencial e que deveria gerar polêmicas agudas na esquerda atualmente: qual a caracterização política e social do Psol? É esse partido hoje um instrumento de luta dos trabalhadores e dos setores subalternos da sociedade ou parte das ferramentas instituídas pela burguesia, dentro de sua estratégia de construção de hegemonia social, para desviar e absorver para dentro dos organismos “democráticos” de seu estado integral as lutas e a revolta dos oprimidos?

Debate que deveria se dar com base em argumentos teóricos e estratégicos, ele se desenvolve, entre ambos os contendores, num nível de defesas e ataques moralistas em relação ao Psol e suas principais figuras que demonstra uma vacuidade de idéias que até assusta. Tentemos esclarecer as questões.
 

Como se desenrola o debate por parte do PCO e de Arcary 

O debate teve início com a publicação, no final do mês passado, de artigo na página digital do PCO intitulado: ‘O que a direita quer com Boulos?’¹. Ali, o causa operária critica a candidatura de Boulos à prefeitura de São Paulo com o argumento de que ela não incomoda a direita e não é um instrumento de organização da luta; até aí poderia ser um debate que apontasse para uma perspectiva correta, mas na continuação de seu artigo o PCO mostra o papel de corrente satélite do PT que tem assumido a já algum tempo, tentando defender que a candidatura de Boulos faz parte de uma estratégia burguesa de enfraquecer o “partido dos trabalhadores”, deixando implícito que esse partido, que já mais que mostrou, muitas vezes, seu papel traidor e de freio para as lutas, seria ainda uma alternativa organizativa para os trabalhadores e demais setores subalternos da sociedade.

A resposta de Arcary ao artigo do PCO em nada coloca o debate num nível mais elevado de discussões estratégicas e programáticas; a crítica do dirigente do grupo ‘resistência’ (corrente interna do Psol) se reduz a fazer uma defesa moralista dos personagens Boulos e Erundina, argumentando que seria absurdo falar que militantes “dignos e abnegados” como eles são instrumentos da burguesia, que isso é parte das formas “caluniosas e mentirosas” através das quais o PCO faz os debates, e etc, et(2). Que pessoas com militâncias tradicionais, de décadas já, produzam debate tão rasteiro mostra a que nível chegou nossa esquerda “revolucionária”.

 
Caracterizar o Psol como um instrumento da burguesia, contudo, nada tem a ver com um debate moral, mas com um debate estratégico e teórico

A defesa moralista, o debate moralizante, que faz Arcary do caráter legítimo do Psol como suposto instrumento de luta das classes e setores subalternos no Brasil, fala bastante mal do dirigente do grupo ‘resistência’. É por demais evidente, para qualquer um que tenha mesmo uma superficial experiência com as tradições de disputas estratégicas e teóricas dentro da esquerda que se reivindica revolucionária, que as caracterizações, mesmo duras, nada tem de morais, mas são debates políticos (legítimos, por mais que possam estar errados).

Caracterizar o Psol como um instrumento da burguesia para absorver e desviar as lutas e mobilizações autônomas das classes e setores subalternos para dentro das instituições da “democracia” dos ricos nada tem a ver com um ataque moral, à sinceridade e abnegação, de sua direção, por exemplo. Mesmo que se admitisse, como hipótese, que a direção do Psol é sincera na luta pelo socialismo (algo que de forma alguma afirmamos aqui, tratando apenas como hipótese argumentativa) ainda sim seria possível afirmar que na prática, apesar de sua suposta sinceridade, ela se constrói como instrumento da dominação burguesa, na medida que a estratégia e programa do Psol, baseados num ecletismo teórico, não visam uma ruptura radical com o sistema hegemônico de institucionalização da dominação burguesa no Brasil, mas buscam a ocupação, parcial, de espaços dentro dessa institucionalidade.

Arcary mostra os limites de sua argumentação teórica ao não compreender que as formas como se constrói a ditadura de classe da burguesia dentro de sua configuração “democrática”, no ‘estado integral’ capitalista (conceito formulado pelo revolucionário italiano Antônio Gramsci) não se efetivam através de um embate permanente e constante com os organismos que surgem de forma independente dentro da sociedade civil (como partidos, sindicatos, etc), mas ao contrário, na busca de absorver esses organismos, que surgem de forma autônoma em relação aos organismos institucionais capitalistas, para dentro de suas formas hegemônicas de dominação.

As formas mais sofisticadas de construção da dominação burguesa dentro de suas formas “democráticas” se dão exatamente porque os capitalistas conseguem absorver para dentro de suas instituições organismos que surjam de forma independente e autônoma no interior da sociedade civil, desde que esses organismos não proponham rupturas radicais com essas formas institucionais hegemônicas, buscando apenas reformas e transformações parciais, ainda dentro de sua mesma lógica de reprodução.

O Psol se torna instrumento chave da dominação burguesa no país para o próximo período não porque moralmente sua direção não seja sincera e abnegada (questão que de forma alguma estamos discutindo aqui) mas porque ao partido não buscar construir dentro dos setores da juventude pequeno burguesa que influencia uma perspectiva de cisão e ruptura com as instituições “democráticas” que representam os interesses burgueses no Brasil, ao construir conscientemente a ilusão de que por meio do voto, da institucionalidade “democrática”, e não da luta, é possível “combater o fascismo”, desvia e absorve toda a energia explosiva acumulada nesse setor social para dentro das instituições e organismos hegemônicos da dominação capitalista, sendo parte integrante, assim, dessa hegemonia.

Se soma a isso o fato de que o Psol, nos seus quase 20 anos de existência, nunca buscou efetivamente se estruturar dentro da classe operária brasileira, se adaptando a ser um partido que é referência abstrata e imagética para uma juventude pequeno-burguesa progressista. Com o acúmulo de traições do PT ao proletariado brasileiro e a descrença crescente dos trabalhadores nesse partido, ao Psol se negar sequer a tentativa de organizar a classe trabalhadora no Brasil e utilizar suas posições, parciais, de influência entre a juventude para buscar ligar esse setor ao proletariado, o partido do “socialismo e liberdade” ajuda a reproduzir a efetiva ”orfandade organizativa” em que se encontram os trabalhadores hoje no país e que foi um “prato cheio” para o avanço da direita no cenário político (na medida em que na política não existe vácuo).

 
A disputa eleitoral nas prefeituras e a estratégia do Psol   

Uma demonstração dessa estratégia de conciliação da direção do Psol com as instituições da “democracia” burguesa no Brasil se mostra na forma como o partido utiliza o espaço eleitoral. Para demonstrarmos essa atuação adaptada do Psol no processo eleitoral não precisamos especular sobre como será a campanha de Boulos para a prefeitura de SP, por exemplo; basta que relembremos a sua atuação na campanha presidencial de 2018 que teremos um panorama claro e uma projeção segura de como será sua atuação agora.

Na campanha presidencial de 2018, que se deu no contexto da luta contra a reforma da previdência, a campanha de Boulos em nada serviu como um instrumento para o impulsionar essa luta cuja vitória – totalmente possível, dada as grandes demonstrações de força, com fortes paralisações nacionais, protagonizadas pela classe operária no período anterior – seria um fator fundamental para a moralização da classe trabalhadora como sujeito social capaz de apresentar uma alternativa à crise política que atravessa o país. A campanha, que deveria servir para mostrar que não era por meio do processo eleitoral, mas por meio da organização e da luta, que os trabalhadores poderiam barrar esse ataque, praticamente não tratou da necessidade de organização e luta dos trabalhadores.

Ao invés disso Boulos preferiu defender que os bancos deveriam ter “taxas de juros civilizadas”³, que ao invés da luta o combate aos privilégios no judiciário de dariam por meio de canetadas [4], que o socialismo, ao invés de uma ruptura radical com o capitalismo, representava a igualdade de oportunidades, ainda dentro do sistema[5].

Esse histórico – e sua aliança estrutural com uma política que se tornou quadro da burguesia na cidade de SP como Luiza Erundina, que já disputou eleição municipal inclusive tendo Michel Temer como vice – nos permite ter uma projeção segura do que será a presente campanha eleitoral do candidato do Psol. Uma diluída e adaptada propaganda de uma “revolução solidária” (visando a perspectiva utópica da humanização do capitalismo), um suposto combate eleitoral ao “fascismo” (que na verdade desarma os trabalhadores e demais setores subalternos na luta contra o avanço da extrema-direita bolsonarista, pois constrói a ilusão de que é possível por meio das instituições que projetaram e reforçaram o fenômeno bolsonarista lutar contra ele) ao invés de buscar radicalizar e canalizar a desconfiança cada vez maior e mais massiva com essas instituições para uma perspectiva de ruptura com o sistema.

Em suma, na prática, e não por uma questão moral, o Psol cada vez mais e de forma mais profunda se torna um instrumento de legitimação do sistema e conciliação da rebeldia dos subalternos com as instituições da “democracia” dos ricos . Termos claro isso, nós trabalhadores, é fundamental para que possamos construir uma perspectiva de cisão e ruptura radical com o capitalismo.


NOTAS
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1- https://www.causaoperaria.org.br/o-que-a-direita-quer-com-boulos/
2- esquerdaonline.com.br/2020/07/27/causa-perdida/
3- https://twitter.com/guilhermeboulos/status/993674350065790982
4- https://blogs.ne10.uol.com.br/jamildo/2018/08/22/boulos-diz-que-vetaria-aumento-do-stf-seria-a-canetada-mais-gostosa/
5- https://www.youtube.com/watch?v=BQEl69xsmfY

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