sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O espírito de rebanho: um problema candente a ser enfrentado pelo movimento socialista

“Diga-me qual é a sua tribo e eu direi qual é sua clausura!
Só há liberdade se sua vida for produzida por você mesmo”.

Baruch Spinoza (1632-1677)


“Se tenho um livro que substitui meu entendimento, um diretor espiritual que tem consciência por mim, 
um médico que decide sobre a minha dieta e assim por diante, não preciso me esforçar. Que a passagem à maioridade seja tida como muito difícil e perigosa pela maior parte da humanidade deve-se a que os guardiães de bom grado se encarregam da sua tutela. Inicialmente os guardiões domesticam o seu gado, e certificam-se de que essas criaturas plácidas não ousarão dar um único passo sem seus cabrestos: em seguida os guardiões lhes mostram o perigo que as ameaça caso elas tentem marchar sozinhas. É muito difícil para um indivíduo isolado libertar-se da sua menoridade quando ela tornou-se quase a sua natureza”.
Immanuel Kant (1724-1804).


“Se um homem deseja obedecer e seguir a um outro, ninguém pode impedi-lo;
porém é o superlativo da falta de inteligência e leva a grande infelicidade e frustração”.

Jiddu Krishnamurti (1895-1986)
.

 

         Estranha espécie esta, a humana, que se julga o topo da pirâmide da natureza e a imagem e semelhança do “criador”. Os filósofos antigos classificaram o ser-humano como “animal racional”, mesmo ignorando que frequentemente ele insista em erros notoriamente irracionais.

         Como parte do reino animal, os seres-humanos possuem semelhanças biológicas, mesmo que o rótulo de “racional” esteja pregado em nossa testa por nós mesmos – e em causa própria! Os impulsos animais geralmente revelam-se inconscientemente, mas sempre estão ali, a tensionar de distintas formas.

Biologicamente falando, o espírito de rebanho é parte integrante daquilo que se pode chamar de instinto de sobrevivência, presente em todos os seres vivos, mas destacando-se com algumas destas características especialmente nos mamíferos. Tal fenômeno, portanto, faz parte do nosso código genético animal, embora em nós se manifeste de forma muito diferente do que em um coletivo de bois ou de ovelhas.

Neste estudo, vale recorrer às contribuições de Erich Fromm, para quem “não há necessidade de buscar as raízes dessa submissão no fenômeno de dominância-submissão entre os animais. Na verdade, em muitos animais ela não é tão extrema ou generalizada como no ser-humano e as próprias condições de existência humana exigiriam submissão ainda que ignorássemos completamente o nosso passado animal. Contudo, existe uma diferença decisiva. O ser-humano não está fadado a ser carneiro”[1].

A grande questão para o movimento socialista é descobrir por que mesmo “não estando fadado a ser carneiro”, o ser-humano esforça-se por permanecer como parte de um rebanho? E mais do que isso: que entraves o espírito de rebanho representa para o socialismo?

 

O espírito de rebanho e suas consequências para a construção do socialismo

         Um dos primeiros pensadores a trazer para a discussão o espírito de rebanho com grande ênfase foi Nietzsche, que, apesar de estar no campo da aristocracia e das classes dominantes, obriga o movimento socialista a refletir.

         Ele escreveu: “desde que há homens tem havido também rebanhos humanos (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas) sempre muito obedientes relativamente ao reduzido número dos mandatários – entendo, portanto, que a obediência foi até agora mais bem e longamente praticada e cultivada entre os homens; é natural admitir-se que, de modo geral, cada um possui presentemente inata a necessidade de obedecer, como uma consciência formal que ordena: ‘tu deves absolutamente fazer tal coisa, deves absolutamente deixar de fazer tal outra coisa’, enfim, ‘tu deves’. (...) Nesse sentido, de acordo com sua intensidade, impaciência e tensão, aceitará tudo o que lhe gritam aos ouvidos qualquer dos que comandam, sejam eles pais, professores, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas. A curiosa limitação da evolução humana, o que há nela de hesitante, lento, por vezes retrógrado e tortuoso, baseia-se em que o instinto gregário da obediência é o que se transmite mais facilmente por hereditariedade, e isso à custa da arte de mandar”[2].

         Como representante do pensamento aristocrático, Nietzsche compreende o espírito de rebanho como um problema sem solução, cujo enfrentamento cabe apenas aos “super-homens” que praticam a sua filosofia. É por isso que olha com desdém para socialistas, comunistas, anarquistas ou qualquer tipo de movimento social que pretenda dar voz aos “fracos” e “submissos” de baixo.

         Rosa Luxemburgo também se preocupou com a dialética dos “líderes e da massa” – tratada como uma questão vital para o socialismo –, expresso no seu brilhante artigo “Novamente a massa e o líder”; porém, por um viés totalmente distinto do de Nietzsche.

Ela escreveu que “a libertação da classe trabalhadora apenas pode ser obra da própria classe trabalhadora, diz o Manifesto Comunista – que por ‘classe trabalhadora’ não entende uma direção partidária de sete ou doze cabeças, mas a massa esclarecida do proletariado em pessoa. Cada passo à frente na luta de emancipação da classe trabalhadora precisa, ao mesmo tempo, significar uma autonomia intelectual crescente de sua massa, sua crescente autoatividade, autodeterminação e iniciativa. Mas como a capacidade de ação e a prontidão política da grande massa popular hão de desenvolver-se se a vanguarda dessa massa, aqueles círculos melhores e mais esclarecidos reunidos nas organizações partidárias socialistas, por sua vez, não desenvolvem iniciativa e autonomia como massa, mas sempre aguardam em posição de sentido até que venha um comando de cima? A disciplina e a coesão da ação constituem uma questão vital para movimentos de massa como o nosso. Mas a disciplina no sentido socialista distingue-se fundamentalmente da disciplina de um exército burguês. Aqui, ela reside na submissão irrefletida e sem vontade da massa de soldados ao comando de uma autoridade que expressa dada vontade alheia. A disciplina socialista, portanto, jamais pode significar que os 800 mil membros partidários organizados devem submeter-se à vontade às determinações de uma autoridade central, de uma direção partidária, mas, ao contrário, que todos os órgãos centrais do partido devem executar a vontade dos 800 mil socialistas organizados. O fator principal de um desenvolvimento normal da vida política no partido, a questão vital do socialismo, reside, assim, em que o pensamento político e a vontade da massa do partido permaneçam sempre despertos e ativos, que o habilitem em medida crescente para a atividade”[3].

No entanto, apesar de Rosa trazer esta discussão fundamental, praticamente ignorada pela militância socialista da atualidade, ela não procura explicar por que a massa tende a “aguardar em posição de sentido até que venha um comando de cima”. Isto é: o problema não é apenas – ou prioritariamente – das mentes maquiavélicas que estão nas direções dos partidos e dos Estados que tendem a dominar a grande massa, mas da própria massa que se submete de bom grado a estas direções, tal como uma espécie de “servidão voluntária” – para usar a célebre expressão de Éttiene de La Boétie.

As respostas prontas – que geralmente não ultrapassam as compreensões economicistas – afirmam que o aumento do custo de vida, a fome e a miséria lançam automaticamente a classe trabalhadora na ação, estimulando iniciativas que promovam a luta de classes e, a partir dessa, revoluções que criem poderes populares. Contudo, mesmo em experiências revolucionárias ocorridas ao longo do século XX, não vimos a superação do espírito de rebanho, que, pela inércia histórica, tende a se impor novamente[4].

         Há uma contradição flagrante no movimento socialista, que endeusa dirigentes e pratica diversos tipos de culto à personalidade – e aqui não nos restringimos apenas ao stalinismo. Isso não significa deixar de reconhecer contribuições fundamentais dadas por cada dirigente à causa socialista, mas que não deveriam ser vistos como uma espécie de guru religioso, que é o que vemos seguidamente entre a militância de “esquerda” (sem falar nos casos bizarros de endeusamento de ícones eleitorais, que nada ou quase nada contribuíram para o desenvolvimento do pensamento e da prática socialista).

         Compreender a importância de uma contribuição deve ser diferente de um culto à personalidade, que só pode reforçar o espírito de rebanho e, com ele, a submissão humana aos chefes. Assim, toda a perspectiva socialista e comunista fica comprometida no que tem de fundamental: autogestão, controle operário da produção e abertura das decisões políticas, extinção do Estado e das classes sociais, etc. Como realizar todas estas medidas socialistas e comunistas por excelência se a massa humana fica imersa numa passividade de plateia atônita, tendendo a voltar-se para os chefes, como que buscando sucedâneos dos pais, esperando por orientações e soluções?

         Conhecer a teoria socialista e seus pensadores, apreciá-los, levá-los em consideração, deve ser completamente diferente do seu culto como rebanho! A extinção deste espírito é uma necessidade para o socialismo. E ela não acontece automaticamente apenas com as mudanças das condições materiais e econômicas propiciadas por uma revolução, conforme demonstrou, por exemplo, a experiência russa e chinesa do século passado. Deverá ser desenvolvido pelos movimentos socialistas e suas respectivas organizações revolucionárias pedagogias e práticas que reconheçam e enfrentem seriamente este problema. O primeiro passo é trabalhar para extinguir a diplomacia secreta, o culto cego aos chefes, aos dirigentes; combater de frente o caudilhismo e apenas tolerar tais condutas na medida em que sejam estritamente inevitáveis, dado o baixo nível cultural e político. Quem não colocar esta tarefa como vital para o desenvolvimento do socialismo estará, quer queira ou não, condenando o próprio comunismo.


A natureza do espírito de rebanho

         Alguns pensadores, como Erich Fromm, avançaram na investigação acerca da natureza do espírito de rebanho. Ele apontou a necessidade subjetiva humana de um sistema de busca de orientação e devoção.

         Por que os seres humanos procuram tal tipo de sistema?

“A única resposta dominante que o ser-humano descobriu até agora – escreveu Fromm – é uma que também pode ser observada entre os animais – submeter-se a um líder forte que admite reconhecer o que é melhor para o grupo, que planeja e dá ordens e que promete a todos que, se o seguirem, ele agirá no melhor interesse de todos. A fim de pôr em vigor a fidelidade ao líder ou, em outras palavras, de dar ao indivíduo fé suficiente para crer no líder, admite-se que ele seja onipotente, onisciente e sagrado; que ele próprio seja um deus, ou vice-rei ou sumo sacerdote de um deus, conhecedor de todos os segredos do cosmo e que desempenha os rituais necessários para a sua continuidade. Não há dúvida de que os líderes normalmente têm usado promessas e ameaças para manobrar a submissão. Mas isso não é, de maneira alguma, tudo. Enquanto não atingiu uma forma superior da sua própria evolução, o ser-humano necessitou do líder e estava mais que ansioso por acreditar nas histórias fantásticas que provavam a legitimidade do rei, deus, pai, monarca, sacerdote, etc. Essa necessidade de ter um líder ainda existe na maioria das sociedades esclarecidas de nossa época. Mesmo em países como os EUA ou a URSS, as decisões que afetam a vida ou a morte de todos são deixadas a cargo de um pequeno grupo de líderes ou de um ser-humano que age sob a autoridade de um mandato formal da Constituição, seja ela chamada de ‘democrática’ ou ‘socialista’. Em seu desejo de segurança, os seres-humanos apreciam sua própria dependência, especialmente se esta lhe é facilitada pelo conforto relativo da vida material e por ideologias que dão o nome de ‘educação’ à lavagem cerebral e de ‘liberdade’ à submissão”[5].

         Este desejo de segurança, consciente ou inconsciente, explica em parte a natureza do espírito de rebanho; mas não explica tudo. É preocupante e assustador que a militância da esquerda revolucionária não se preocupe nada, ou quase nada, com relação a este tema vital. Pior do que isso: tende a ignorá-lo e a mistificá-lo, esperando que uma rebelião espontânea (ou semi-espontânea) venha “redimir a humanidade dos seus pecados”. Teria ela, portanto, interesse em manter tal espírito? Talvez toda a sua visão programática e prática de organização e de “partido revolucionário” seja confundido exatamente com este espírito.

Na contramão disso tudo o neofascismo e os seus engenheiros políticos, como Steve Bannon, Olavo de Carvalho, dentre outros, compreenderam muito bem a dimensão e profundidade do espírito de rebanho, comprometendo por décadas (ou talvez séculos?) a possibilidade de uma revolução triunfante, já que conseguem perceber e intervir cirurgicamente nos movimentos sociais – antes mesmo mobilizando mais pessoas que a própria “esquerda”.

         Durante as rebeliões operárias do século XIX o capitalismo não negociava e, portanto, não deixava espaço para a espera passiva. Era fazer greve, se enfrentar com a máquina do sistema buscando os companheiros de classe, ou padecer pela fome e pelo embrutecimento cotidiano. Na medida em que foi se desenvolvendo, a burguesia acabou se especializando em “negociar”, em conceder migalhas para que não tivesse que ceder nada de essencial do seu poder econômico e político. Em cima disso, desenvolveu novas técnicas políticas, incorporando conhecimentos e formas de lidar com o movimento de massas.

         Na sua investigação sobre o medo da liberdade, Erich Fromm avança na compreensão do espírito de rebanho apontando a existência de um forte vínculo materno em cada ser-humano, que remonta ao período pré-histórico de quase simbiose com o seu habitat natural, tal como os demais animais, que vivem em total comunhão com a natureza, sem – supostamente – ter consciência de si mesmo.

         Ele escreve que “uma criança nasce quando não está mais unida à mãe e torna-se uma entidade biológica separada dela. No entanto, se bem que esta separação biológica seja o início da existência humana individual, a criança permanece funcionalmente unida à mãe durante um período considerável. Conforme o grau com que o indivíduo, falando figuradamente, não cortou completamente o cordão umbilical que o prende ao mundo exterior, ele não é totalmente livre – esses vínculos, porém, dão-lhe segurança e a sensação de pertencer a algum lugar e neste estar radicado. Darei a esses vínculos, que existem antes do processo de individuação ter dado lugar à emergência total de um indivíduo, o nome de ‘vínculos primários’. Eles são orgânicos no sentido de fazerem parte do desenvolvimento humano normal; implicam uma ausência de individualidade, mas também dão segurança e orientação ao indivíduo. São eles os laços que ligam a criança à mãe, o membro de uma comunidade primitiva ao clã e à Natureza, ou o homem medieval à Igreja e sua casta social. Uma vez alcançado o estágio de individuação completa, ficando o indivíduo liberto destes vínculos primários, ele se defronta com uma tarefa nova: orientar-se e radicar-se no mundo e encontrar segurança por outros meios que não os característicos de sua existência pré-individual”[6].

         E conclui afirmando que “esta crescente individuação significa crescente isolamento, insegurança e, portanto, dúvida acerca do papel da própria pessoa no universo, do significado de sua própria vida, e com tudo isso um sentimento cada vez maior de sua própria impotência e insignificância como indivíduo. (...) O resultado desta desproporção entre a emancipação de qualquer vínculo e a falta de possibilidades para a realização positiva da liberdade e da individualidade conduziu, na Europa, a uma fuga apavorada da liberdade para o jugo de novos grilhões ou, no mínimo, para um indiferentismo total. (...) Surgem tendências poderosas para escapar deste tipo de liberdade para a submissão ou para alguma espécie de relacionamento com os seres-humanos e com o mundo que prometa aliviar a incerteza, ainda que despoje o indivíduo de sua liberdade”[7].

         Daí a busca desesperada de grande parte da massa humana de se sentir como parte de “algo maior”, seja uma Igreja, um partido político, uma grande corrente sindical, uma “família ampliada”, etc. Isso vale para os guetos também: melhor ser parte de uma seita religiosa, política, de “esquerda” ou o que for, do que me ver sozinho, inseguro e impotente. Na maioria das vezes o raciocínio é inconsciente, porém certeiro e arrebatador. A partir daí vale tudo: auto enganação, professar acriticamente reputações de chefes, gurus e líderes “geniais” para convencer os outros, mas, sobretudo, a si mesmo. Infelizmente ainda não se desenvolveu um caminho do meio entre essas duas tendências extremas.


O problema da individualidade numa sociedade socialista: paralelos com o liberalismo

Para a superação do capitalismo e, consequentemente, do liberalismo, é necessário incorporar seus aspectos positivos. As “liberdades individuais” foram uma conquista da evolução burguesa da sociedade humana, ainda que elas sejam um privilégio para poucos, conforme este blog já analisou[8].

Os setores reacionários da sociedade burguesa sempre enchem a boca para acusar que o socialismo liquida com a independência do indivíduo e o submete à uniformidade da massa. A experiência soviética e chinesa demonstrariam esse suposto aniquilamento individual e a preponderância do “Estado”, representando o “peso aniquilador” da coletividade. Seria o mesmo que transformar a sociedade humana num formigueiro, numa colmeia de abelhas ou num rebanho de ovelhas.

Contudo, é a própria sociedade capitalista que trabalha para uniformizar e padronizar as classes subalternas – em particular, a classe trabalhadora. A possibilidade de se desenvolver plenamente enquanto indivíduo ou de poder vivenciar seu processo de individuação – tal como preconizam certas escolas de psicologia, como a junguiana – existe para poucos. À grande maioria resta apenas os currais para os rebanhos humanos, seja de que cultura ou continente for.

O período de desenvolvimento capitalista da humanidade corresponde à preponderância da propriedade privada, que facilitou o desenvolvimento da individualidade. A propriedade privada criou unidades econômicas autônomas que fortaleceram as organizações da sociedade civil desde o século XVII. Isto tem implicações no campo econômico, social e sexual. No campo econômico levou ao surgimento de determinados tipos de empreendedorismo (que nunca chegaram a existir plenamente no Brasil em razão do seu atraso histórico e da sua localização periférica no mercado mundial); no campo social “separou” o indivíduo das massas (embora tenha lhe jogado, com exceções, na tirania da família patriarcal) e criou as condições para uma vida sexual. Ainda que a individualidade tenha se tornado uma arma reacionária nas mãos da burguesia, incentivando o hedonismo, o utilitarismo, a ganância e o egotismo, ela foi progressiva até certo ponto, pois ninguém pode viver o tempo todo em sociedade sem perder algo de si. Necessita, então, buscar um tempo para si próprio se quiser desenvolver pensamento independente. Nesse sentido, a propriedade de uma casa, de um quarto, de um espaço próprio (elementos que surgiram a partir das noções burguesas de propriedade) é importante.

         Este tipo de espaço (uma casa, um quarto; em suma, um espaço íntimo) foi resultado do desenvolvimento da propriedade privada burguesa, mas não é a mesma coisa que ela. Cabe destacar que o socialismo visa abolir a propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terras, minas, bancos, transportes, grandes empresas); e não a propriedade privada individual de uma casa, de um quarto, de um carro, etc. Estas conquistas para o desenvolvimento de uma individualidade sadia e comprometida com o social só podem ser mantidas e aprofundadas pelo socialismo, uma vez que no capitalismo não é possível acabar com o desemprego, a miséria, os sem teto, os sem terra (sem falar nas milhares de casas proletárias de apenas um cômodo) e as ideologias individualistas.

         Para o socialismo ter futuro há que se desenvolver um método de independência individual dentro da massa trabalhadora, sem o quê, qualquer defesa de autodeterminação popular é apenas letra morta. Na dialética “indivíduo-massa” precisamos desenvolver uma forma de levar em consideração a individualidade saudável (não o individualismo-burguês, egoísta) dentro da multidão. Nesse sentido, a crítica e a incorporação dialética dos pontos positivos do liberalismo clássico são imprescindíveis. Isso significa saber divergir individualmente, sem deixar de levar em consideração os interesses sociais.

         Do contrário, apenas criaremos uma sociedade – supostamente “socialista” – em que o indivíduo apenas diz “amém” para a “coletividade”, o que significa, na verdade, dizer “amém” aos chefes ou às direções partidárias de “sete ou doze cabeças” – ou de apenas uma!

         É por isso que a preocupação com o espírito de rebanho dentro da dialética “indivíduo-massa” é fundamental desde já – e não apenas “depois da revolução”, quando a “base econômica será modificada”. É necessário uma nova pedagogia política da “esquerda revolucionária” que questione o personalismo, o “seguidismo”, a ausência de iniciativas e aceitação passiva de tudo (ou quase tudo) ou, então, a completa omissão política. A atual pedagogia da “esquerda socialista” tem reforçado o espírito de rebanho – e, consequentemente, o conformismo!


Não haverá socialismo sem a superação do espírito de rebanho

Com o espírito de rebanho reinante até hoje, nem mesmo uma organização política e social, como um sindicato, um soviete ou uma sociedade baseada na autogestão da classe trabalhadora funcionaria, dado que tende a emperrar, facilitando o retrocesso e abrindo caminho para a burocratização. A coletividade se transformaria em “proforma” uma vez que o espírito de rebanho cederia gradativamente à influência dos “líderes”. A autêntica emancipação da classe trabalhadora só poderá acontecer em uma massa que prescinda de lideranças. Dito de outra forma: só teremos socialismo e comunismo quando conseguirmos criar seres-humanos confiantes em si mesmos, que não temam à liberdade, nem procurem se submeter a chefes e gurus. Tarefa muito difícil, de longuíssimo prazo, mas imprescindível, sem o quê, o socialismo e o comunismo se descaracterizariam completamente.

         Isso não significa dizer que todos serão autônomos de todos, mas que, pelo contrário, um indivíduo cumprirá papel protagonista em algum momento, mesmo que esteja mais passivo e contemplativo anteriormente. Deverá ser, portanto, estimulado a dar um passo à frente para que não fique eternamente na condição de plateia (isso significa, sobretudo, estimular-lhe a personalidade espontânea). A sociedade capitalista atual leva os seres-humanos à passividade. Não foi à toa que Lima Barreto afirmou que “o Brasil não tem povo, tem público”[9] (isto é, plateia). Toda a estrutura econômica, social e cultural gera esta condição: indústria cultural (cinema, novelas, esportes), educação (básica e superior), política e sindicatos (espera eleitoral); consumo, publicidade apassivadora, etc.

         Certamente que a inércia social, somada à ameaça permanente de repressão militar e policial às massas, reforça e molda o espírito de rebanho. Contudo, o que aqui se quer destacar é a conduta individual de não-enfrentamento à realidade, facilmente visível nas categorias de base, nos locais de trabalho, estudo e moradia – isto é, a preferência por morder iscas já conhecidas por medo da liberdade e pela “comodidade” de fazer parte do rebanho.

         Esta é a diferenciação cuidadosa que uma “nova esquerda” precisa fazer para poder entrar em contato com a mentalidade e a prática cotidiana do povo – sem o quê, impera apenas demagogia, imediatismo e utilitarismo. Quando percebemos que a política revolucionária de exigência e denúncia não faz efeito, visto a tendência a se subordinar à direções reformistas e conciliadoras que prometem mundos e fundos, percebemos que se trata de uma influência direta do espírito de rebanho, já que os indivíduos não querem fugir das ilusões e preferem se adaptar melhor a elas, para se enquadrarem melhor no rebanho. Por isso, uma nova forma de militância e de trabalho de base deve levar em consideração, forçosamente, muitas das conclusões psicanalíticas para separar o joio do trigo e saber intervir em seu interior, sem semear ilusões ou ficar satisfeito quando uma organização política cresce às custas do espírito de rebanho.

         O socialismo, para existir, necessita elevar o nível cultural do debate social, tanto individual quanto coletivamente. Mas isso não acontece automaticamente, apenas como reflexo de mudanças da “base econômica”; precisa começar, como exemplo prático, desde as organizações revolucionárias e a militância cotidiana, renovando métodos decisórios e dividindo o poder com a base que supostamente representa.

Como desenvolver autogestão e controle operário da produção econômica sem superar o espírito de rebanho? Eis aí um problema gritante que nenhuma organização revolucionária colocou para a discussão e reflexão até o momento.

 


Espírito de rebanho e neofascismo: apenas os bolsonaristas podem ser chamados de “gado”?

         Na atual conjuntura brasileira é bastante comum vermos os apoiadores do bolsonarismo serem chamados de “gado” por sua postura acrítica e submissa a tudo o que fala o chefe. De fato, o espírito de rebanho está presente no bolsonarismo, que é a expressão brasileira do neofascismo – corrente internacional liderada por Donald Trump e Steve Bannon. Contudo, é preciso fazer uma diferenciação e ter certa capacidade autocrítica.

         Vermos pessoas como parte de um rebanho no campo bolsonarista pode ser válido quando se trata de estratos sociais mais baixos que apoiam Bolsonaro como se, de fato, ele representasse alguma melhora para o país. Porém, há um recorte de classe importantíssimo: a alta burguesia que dá sustentação política ao bolsonarismo – como, por exemplo, o dono da Havan, empresários dos mais distintos níveis que vão desde bancos até o agronegócio – o faz por consciência de classe e por isso mesmo não vê nenhum problema nas barbaridades pronunciadas pelo seu líder neofascista, bem como confia interesseiramente nas suas medidas de governo. Sente-se, portanto, bem representada, uma vez que ele soluciona uma série de problemas que o regime democrático-burguês convencional não seria capaz de resolver. O mesmo pode ser dito sobre a classe média, que se estende dos profissionais liberais até redes de pequenos comerciantes, embora seus ganhos sejam consideravelmente inferiores e os problemas sociais criados a longo prazo pelo bolsonarismo lhes gerem grandes prejuízos imperceptíveis agora.

         Afora estes setores, a grande massa da “classe trabalhadora” que apoia o bolsonarismo é manipulada através de métodos refinados da psicologia de massas, onde o espírito de rebanho tem papel decisivo. O discurso sobre deus, pátria e família entra como pivô nesta farsa e obtém notório êxito desde as décadas de 1920-1930. O ódio sádico é a base desta manipulação e combatê-lo requer, em primeiro lugar, conhecer o fenômeno e, em segundo, mudar a postura política, o trabalho de base, renovando e humanizando os métodos[10].

         A militância petista e de “esquerda”, por outro lado, se julga livre da condição de “gado”. Se ela não reproduz o ódio fascista, com suas bandeiras características, não deixa de reproduzir o espírito de rebanho, a submissão aos chefes e líderes, xingando e despejando ódios mal resolvidos contra quem pensa diferente, seja nos sindicatos ou movimentos sociais, seja na campanha eleitoral. A sua condição de “filho”, isto é, de dependente do rebanho, não pode ser questionada. Assim, acaba por reproduzir métodos que critica.

         O espírito de rebanho tende a fanatizar quando é questionado – seja em que vertente ideológica e política for. Quem enfrenta as reações da manada é atacado mortalmente e passa a ser objeto de desprezo e ódio. Basta ver, no passado, o singelo caso de Giordano Bruno: a massa teve um prazer sádico em assassinar um pensador independente, ainda que não ganhasse absolutamente nada com isso, a não ser um tranquilizante para a sua consciência frente a uma voz incômoda. Wilhelm Reich analisou este fenômeno detalhadamente na sua obra “O assassinato de Cristo” e muitas das suas conclusões seguem atualíssimas.

         O capitalismo se utiliza do espírito de rebanho – consciente ou inconscientemente –, uma vez que o adapta às estruturas sociais, fazendo com que o ser-humano reduza e identifique a sua humanidade e a sua “ética” em termos da sociedade com a qual se vê como parte. Então, uma vez que criticamos a sociedade ou mesmo a estrutura social com a qual o rebanho está identificado, o seu membro tende a receber a crítica como um ataque pessoal e ver o crítico como um inimigo.

         A partir daí não há mais diálogo, porque os ouvidos estarão fechados e com filtros. Para que exista possibilidade de diálogo entre grupos humanos é essencial que cada membro do grupo não só tente ser menos defensivo e mais acessível, mas também que compreenda o que a outra pessoa quer dizer em vez da formulação que ele dá ao seu próprio pensamento (e que, sobretudo, veja a sua prática cotidiana). Em todo diálogo sincero, cada participante deve ajudar o outro a esclarecer seu pensamento em vez de obrigá-lo a defender formulações sobre as quais ele pode ter dúvidas próprias.

         Os chefes dos rebanhos transformam ideologias em uma espécie de religião que servem, contraditoriamente, para “racionalizar” o status quo político e social; isto é, usam a religião, por exemplo, para fazer o seu rebanho aceitar a sociedade de classes ou a realidade tal como ela é. Os argumentos mais bem embasados e refletidos que tentam desenredar os nós acabam se chocando com esta prática da psicologia de massas do rebanho e, por isso, tornam-se alvo dos ataques mais raivosos e odiosos. Isso, como sabemos, pode se dar tanto no campo bolsonarista, quanto no campo petista[11] – e também com correntes e partidos menores, bem como igrejas, grupos acadêmicos, culturais, etc.


Algumas ideias para tentar superar o espírito de rebanho

Para superar qualquer problema político é necessário estudá-lo, conhecê-lo, para compreender todas as suas principais manifestações na vida cotidiana. Não é uma tarefa simples para ser executada por apenas um militante ou uma única organização revolucionária. Deve ser o resultado, como sempre, de um grande esforço coletivo, no qual a polêmica construtiva tem sempre papel relevante.

O espírito de rebanho é um fenômeno milenar, presente desde os primórdios da humanidade. Assim como o Estado ou a sociedade de classes, ele não pode ser superado por um passe de mágicas. Um longo trabalho político e cultural será imprescindível. Mas ele precisa ser real e sincero. Ou seja: uma organização revolucionária, para ser digna desse nome honroso, deve abordar o problema com um novo espírito, novas ideias e uma nova disposição; só pode, portanto, responder a altura tendo profunda capacidade autocrítica que eduque seus membros para o novo tipo de sociedade já no processo de luta por ela. No entanto, vemos exatamente o contrário: a maioria esmagadora das organizações e partidos de “esquerda” não apresenta a menor preocupação em relação a isso, reproduzindo e aprofundando o espírito de rebanho.

Muitos dirão, simplesmente, que é uma tarefa inglória e impossível porque sempre haverá a necessidade de algum tipo de liderança, já que os seres-humanos se contam na casa dos bilhões. Concluem, com isso, que não é possível liquidar com mecanismos de liderança. Isso equivale a uma resignação: se, de fato, não podemos superar o espírito de rebanho, então temos que viver e conciliar com ele.

Não!

Sabemos que é uma tarefa longa e dificílima, mas absolutamente necessária, que não poderá ser concretizada sem uma luta cada vez mais consciente. Se não enfrentarmos o espírito de rebanho, os mecanismos de combate ao aparelhamento e à burocratização, como a rotatividade de dirigentes nos sindicatos, nos parlamentos, nos demais mandatos públicos e na limitação das reeleições, seja em que esfera for, tornam-se inúteis, uma vez que a espera passiva de rebanho tende a legitimar a reeleição dos mesmos de sempre, transformando a condição de líderes em uma profissão. O espírito de rebanho tem pavor ao vácuo de lideranças. Por isso mesmo entre correntes e partidos alguns rebanhos se submetem a outros, que tem suas lideranças, de certa forma, reciprocamente reforçadas, sobressaindo-se a mais forte.

A tendência atual é vermos a reeleição permanente das mesmas figuras públicas ao parlamento ou nos sindicatos e centrais sindicais, somada à incapacidade de criar e empolgar uma militância nova. Pela experiência histórica com os movimentos sociais e sindicais, a “esquerda” tem a disposição de querer “massas” apenas para melhor lhe dar sustentação política. Isto é, por toda a sua prática não quer superar e sequer reconhecer o espírito de rebanho.

Muito se fala em “soberania democrática” do povo e em “liberdade de expressão”, achando que todos nós somos “livres” e subordinados “apenas a nós mesmos”, mas o direito de manifestar nossos pensamentos só tem significado se somos capazes de ter pensamentos próprios; a emancipação da autoridade externa só é uma aquisição duradoura se as condições psicológicas são tais que sejamos capazes de estabelecer nossa própria individualidade[12].

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Krishnamurti, pautado por uma visão oriental, contribui com ideias importantes para a superação do espírito de rebanho: “Seguir alguém, ainda que grandioso, impede a descoberta dos caminhos do eu; correr atrás da promessa de uma utopia pronta a usar, torna a mente totalmente inconsciente da ação confinante de seu próprio desejo de conforto, de autoridade, de ajuda de alguém. O sacerdote, o político, o advogado, o soldado, estão todos aí para ‘nos ajudar’; mas tal ajuda destrói a inteligência e a liberdade. A ajuda que precisamos não reside fora de nós. Não precisamos pedir ajuda; ela chega sem que a procuremos quando somos humildes em nosso trabalho dedicado, quando estamos abertos à compreensão das nossas provações e acontecimentos inesperados cotidianos”.

“Temos que evitar a ânsia consciente ou inconsciente de apoio e encorajamento, porque essa ânsia cria sua própria resposta, que é sempre gratificante. É confortante ter alguém para nos encorajar, para nos dar uma pista, para nos pacificar; mas esse hábito de recorrer a outro como guia, como autoridade logo se torna um veneno no nosso sistema. No momento em que dependemos de outro para nossa orientação, esquecemos a intenção original que era despertar a liberdade e a inteligência individuais”[13].

***

Um passo decisivo para tentarmos superar o espírito de rebanho é resgatar e melhorar as boas experiências históricas, como o sistema de delegação de poder desenvolvido pela Comuna de Paris, de 1871. Ou seja, assim como o Estado e a sociedade de classes não podem ser superados numa canetada, o espírito de rebanho também necessita desenvolver uma base material, educacional e, também, “espiritual”, que crie as condições para a sua extinção, já que deve ser parte do mesmo processo que lute pelo fim do Estado e das classes. Além de vontade política, as organizações revolucionárias têm que aprender honestamente com as experiências do passado, mas sem dogmatismos.

         Criar organismos de base, ligados a cada local de trabalho, estudo e moradia continua sendo importante, ainda que apenas isso, sem o enfrentamento a questão do espírito de rebanho, seja insuficiente. Não se deve naturalizar a idolatria de dirigentes, nem a repetição dos seus mandatos. Cada dirigente tem que trabalhar para ser superado e a coletividade ser preparada e preparar-se para alternância real, mesmo que inicialmente haja timidez e resistências de todos os tipos, para que cada uma de suas partes seja depositária de uma parcela da responsabilidade social e, nessa condição, ser estimulado a contribuir conscientemente para a solução dos problemas que cabem à coletividade (e, portanto, a si próprio, sem esperar pela resolução pronta e supostamente fácil). Além disso, deve-se obrigar dirigentes a prestarem legalmente, permanentemente e, sempre que solicitados, prestação de contas à base que o elegeu, sem que esta base e este dirigente estejam necessariamente vinculados a um partido ou a uma organização – mas sim prestar contas ao organismo de base que o elegeu; isto é, um local de trabalho, estudo ou moradia.

         O primeiro passo é desenvolver, aperfeiçoar e fazer com que este método crie raízes nas próprias organizações revolucionárias, que se autoproclamam como representação da classe trabalhadora e do povo pobre. Em síntese, os egos individuais precisam ser questionados e controlados – sempre através de métodos que levem em consideração a sensibilidade humanista, e não a simples inquisição burocrática. Quando forem incontroláveis, devem ser expostos, constrangidos e, se não manifestarem nenhuma mudança propositiva, destituídos. Vemos hoje exatamente o oposto: o egocentrismo dos dirigentes é diretamente proporcional ao tamanho do espírito de rebanho – e é isso que tem sido valorizado!

         Há ainda a necessidade de estimular o “Eros” da massa, no sentido de ouvir seus desejos e demandas. É um primeiro passo para se pensar em como superar o “uniformismo”, que tende a nivelar tudo por baixo.

         Pensando com otimismo, daqui a muitos séculos, quando visitarmos os museus que terão em seu acervo – tal como propunha Engels – a roda, o machadinho de sílex, “o Estado” e os símbolos e lendas da “sociedade de classe”, esperamos, também, poder olhar para uma sessão reservada ao espírito de rebanho, tal como olhamos hoje para um fóssil pré-histórico.

 

Epílogo e advertência importante:

         De tudo o que foi escrito acima não se deve concluir que é correto tratar uma pessoa ou mesmo um grupo de pessoas com desdém e menosprezo por fazerem parte de um rebanho. Isto é, devemos evitar a arrogância de nos sentirmos melhor do que alguém que, por diversos motivos, não vê perspectiva imediata de romper com o rebanho ou sequer com a moral de rebanho. É imprescindível tratar todo mundo da maneira mais humana e equitativa possível, sabendo compreender e dialogar com suas limitações e compreensões. Este é um ponto importante de partida não só para dialogar, como também para superar o próprio espírito de rebanho.

Advertência importante: este texto foi escrito por uma pessoa que sofre profundamente com o vazio existencial e que, por este e outros motivos, desenvolve dependência pessoal e emocional. Estes fatores podem e certamente influenciam seu raciocínio. Portanto, o texto também pode sofrer a influência do espírito de rebanho em muitos níveis, motivado por essas limitações pessoais. Vale a reflexão e a advertência.


 

Referências


[1] FROMM, Erich. A revolução da esperança. Círculo do livro, São Paulo (página 81).

[2] NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Martin Claret, São Paulo, 2008 (página 112).

[3] LUXEMBURGO, Rosa. Novamente a massa e o líder in Rosa Luxemburgo – textos escolhidos (1899-1914). Editora Unesp, São Paulo, 2011 (página 419 – grifos nossos).

[4] Seria a “inércia histórica” uma força da natureza? Quase uma lei da física?

[5] FROMM, Erich. A revolução da esperança. Círculo do livro, São Paulo (páginas 80 e 81).

[6] FROMM, Erich. Medo à liberdade. Zahar editores, Rio de Janeiro, 1965 (página 31).

[7] Idem (páginas 39 e 40).

[8] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/07/john-locke-e-os-liberais-da-atualidade.html

[9] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/05/a-elite-do-atraso-e-o-povo-publico.html

[10] Para aprofundar o assunto, ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html

[11] Ver os seguintes ensaios: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/05/bolsonaro-x-lula.html ; https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/12/sobre-como-o-petismo-tende-repetir-os.html

[12] FROMM, Erich. Medo à liberdade. Zahar editores, Rio de Janeiro, 1965 (página 201).

[13] KRISHNAMURTI, Jiddu. Education and the Significance of Life, p 109

domingo, 4 de dezembro de 2022

Fazer e pensar

O blog Consciência Proletária resgata e publica algumas das colunas O caos escritas pelo comunista, militante independente, cronista e cineasta italiano, Paolo Pasolini, ao jornal semanal O tempo, publicadas entre os anos de 1968 e 1970.


Leio em um número de algumas semanas atrás de Potere Operaio (Poder Operário), de Roma, num artigo não assinado, como todos os outros, o seguinte conceito: "Só quem dispõe praticamente a 'organizar' a luta, subordinado todos os demais momentos ao momento organizativo, encontra-se realmente no caminho revolucionário".

Essa afirmação me chocou profundamente: por razões morais e privadas, mas também por razões políticas e gerais.

Quanto às primeiras, vou resumi-las em poucas palavras: sou um daqueles intelectuais que, como a enorme maioria dos intelectuais, jamais organizou "nada": apenas contribuiu para a "organização" ou com palavras ou com modestas contribuições financeiras, ou, finalmente, com sua pura e simples presença. Portanto, se acreditarmos nos rapazes de Potere Operaio, eu jamais estive no caminho real revolucionário. Nunca uma distinção foi mais claramente discriminadora.

Quanto às segundas razões, as políticas e gerais, ei-las: uma afirmação como a que está em discussão não mais pertence à ordem das coisas práticas e organizativas a que desejaria verbalmente pertencer no ato de ser expressa. Ela as transcende, torna-se imediatamente um ato de fé. Não casualmente, tão logo li aquela frase, pensei: "Eis uma frase que poderia ter sido pronunciada por São Paulo".

Compreendi, subitamente, o que é o movimento estudantil. É um movimento político cujo ascetismo consiste em fazer. É algo mais do que e diverso do pragmatismo por vezes ameaçador, sob cujo signo o movimento estudantil começou: pragmatismo que ainda não transcendia a si mesmo numa espécie de religião de si mesmo: mas era um simples dado, não destituído — nos piores casos (o fanatismo por Che Guevara) — da velha retórica pequeno-burguesa. Ora, pela primeira vez na história, ao que eu saiba, o Crer nasce do Fazer: ao contrário, desde os tempos da Bíblia, através de São Paulo e até nossos dias, o Fazer não era mais nada do que a outra face do Crer.

Deve-se supor que um Crer (oculto, removido, não enfrentado, desprezado) preside toda essa operação: e que se trata apenas de um retorno a esse Crer, através da descoberta do Fazer (do Organizar).

Enquanto escravo, está se processando — na Universidade de Roma, na Faculdade de Física — uma reunião dos estudantes de Poder Operário com grupos de operários vindos de Turim, de Porto Marghera, etc., à qual irei logo mais. Naturalmente, é uma reunião prática, organizativa. E, todavia, sinto pesar sobre ela uma atmosfera rigidamente mística. Não o digo como um fato negativo, ao contrário!

Se eu chegasse a descobrir finalmente a conexão entre misticismo e organização, tornar-me-ia um organizador apaixonado. Mas seria preciso que os rapazes de Poder Operário tomassem consciência da qualidade ascética de sua afirmação sobre a organização. O problema é que, se chegassem a tanto, teriam de trair sua religião, cuja prática e cujo o rito consistem apenas, precisamente, em organizar, e "não" em pensar e teorizar sobre a organização.

Estamos no habitual "impasse" de que continuamente vivemos nos acusando. Eu, por exemplo, dizendo todas essas coisas, estou caindo no "verbalismo", ou seja, não "faço", não "organizo", razão por que estou fora do processo revolucionário. Mas falar — e, portanto, de algum modo, estar fora do processo revolucionário — poderia ser definido como a tarefa do intelectual: que paga a função do seu alheamento vivendo-o também como traição.

Nº49, ano XXXI, 6 de dezembro de 1969.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

O que é o "senso comum"?

O blog Consciência Proletária resgata e publica algumas das colunas O caos escritas pelo comunista, militante independente, cronista e cineasta italiano, Paolo Pasolini, ao jornal semanal O tempo, publicadas entre os anos de 1968 e 1970.


Prezado Latorraca, 

(Pasolini responde aqui a uma carta de um leitor chamado Sergio Latorraca).


Uma pequena precisão terminológica: o "senso comum" é uma coisa, o "bom senso" é outra. O "senso comum" é um dado objetivo, que pode ser deduzido a partir de estatísticas bem feitas. É uma média das ideias sobre a realidade, uma "visão do mundo" que vigora num dado momento, numa dada sociedade, e que só quando usada abstratamente, fora da racionalidade das estatísticas, é que pode se tornar um dado errado e perigoso (conforme o "senso comum do pudor", por exemplo, que aparece no Código Penal fascista). O "bom senso", ao contrário, é apenas uma abstração, absolutamente incapaz de ser apreendido pelas estatísticas e pela razão: portanto, é sempre perigoso e terrorista. É, numa palavra, o "conformismo promovido a visão do mundo", apoiando-se na simplicidade do homem. É uma das operações mais abomináveis das "sociedades repressivas". Para ir ao fundo da questão, basta reler a terrível e apocalíptica acusação de Kant contra o "bom senso" (creio que no prefácio aos Prolegômenos).

Tu confundes as duas noções, "senso comum" e "bom senso". Se pões o acento na primeira, então é claro que as pessoas dotadas de "senso comum" — ou seja, a maioria — não são necessariamente de mentalidade fascista. Um inglês que possui "senso comum" não é fascista: é trabalhista ou conservador, ou poderia mesmo pertencer a new left. Ao contrário, se colocas o acento no significado de "bom senso", então devo dizer que as pessoas dotadas de "bom senso" (sobretudo se isso as deixa contentes e envaidecidas) são potencialmente fascistas. São potencialmente fascistas porque são conformistas, elegendo como ideal humano o homem médio, que é uma abstração ameaçadora e terrorista.

Deixemos claro: o homem médio, numa acepção "racional" do termo, é o Homem. Ou seja: o local da instituição social enquanto fraternidade, ainda que coercitiva. Mas o homem médio, na acepção irracional com o que o termo é geralmente usado, é praticamente um criminoso. Poder-se-ia dizer que é no turvo (ou, se quiseres, esquálido) ambiente dos homens médios que amadurecem as guerras, os delitos contra a humanidade, e todas as grandes e pequenas repressões.

Nº48, ano XXXI, 29 de novembro de 1969

sábado, 15 de outubro de 2022

Eleições 2022: o neofascismo cresce! Quais serão seus possíveis próximos passos?

         O primeiro turno das eleições de 2022 terminou elegendo um Congresso Nacional de maioria neofascista – isto é, bolsonarista! Notórias figuras públicas ligadas a Bolsonaro, como os generais Eduardo Pazuello e Hamilton Mourão; Damares Alves, Sérgio Moro e Deltan Dallagnol se elegeram em estados chaves do país e, em caso de vitória de Bolsonaro (PL) no segundo turno, vão servir de base para aplainar o caminho da agenda política neofascista; ou sabotar, atrapalhar e trancar pautas no Congresso, no caso da eleição de Lula (PT).

         Além de uma maioria de parlamentares, o bolsonarismo também elegeu ou conseguiu fazer chegar ao segundo turno uma série de governadores que servirão de base para a disseminação do neofascismo. Em caso de eleição de Lula não se pode descartar a possibilidade de uma ruptura institucional, uma vez que o seu desgaste político será acelerado e colocado à prova sistematicamente. Qualquer tentativa de disciplinar os governadores e parlamentares bolsonaristas será vista como “cerceamento da liberdade de expressão” e “ditadura do STF” – ao que, o petismo, a grande mídia e o próprio judiciário nada farão, a não ser bater cabeças.

         Partidos burgueses tradicionais, como o PSDB, se enfraqueceram e ameaçam se desintegrar. Já os bolsonaristas assumem seus assentos e seus papéis, ganhando mais peso político. O discurso de ódio e a barbárie, vendido como ético e “correto”, se institucionaliza, ainda que Bolsonaro procure apresentar uma imagem menos desprezível, com algumas propostas políticas genéricas – tipo a criação do PIX – e a tentativa de se aproximar do eleitorado feminino; além de esconder o desastre da sua política econômica privatista e entreguista atrás do véu da pandemia, como se esta tivesse sido a responsável pelo brutal aumento do custo de vida e não a sua própria política econômica recessiva e voltada ao exterior. Sem falar no escândalo do orçamento secreto, que pode esconder os mais diversos tipos de irregularidades e crimes, como a compra de votos, gabinete do ódio, benesses aos pastores, etc.

         Considerando as pesquisas eleitorais, que sempre servem para manipular e legitimar o “voto útil”, a distância entre Lula e Bolsonaro foi bem menor do que se esperava. A espinha dorsal e base de sustentação do governo neofascista e do seu preocupante crescimento eleitoral foi, como sempre, o agronegócio, que garantiu grande votação no norte e centro-oeste para Bolsonaro.

         Enquanto o “combate” do STF, da Rede Globo e da esquerda ao neofascismo é limitado e tímido, restrito às regras do jogo, o neofascismo cresce sabotando subterraneamente o regime democrático-burguês, espalhando fake news à vontade, factoides e picuinhas no velho estilo olavista para impedir qualquer tipo de debate real. O seu objetivo verdadeiro é passar toda a “boiada reacionária” e o programa econômico neoliberal, que não pode mais ser defendido sem que se recorra a uma distorção e falsificação grotesca da realidade através do terra-planismo e de posições escatológicas perversamente sexualizadas. O golpe militar não é mais dado com tanques e soldados na rua: mas conquistando “maiorias democraticamente”.

 

Os possíveis próximos passos do neofascismo: uma análise da entrevista de Steve Bannon à BBC Brasil

         O principal ideólogo internacional do neofascismo, Steve Banon, recentemente concedeu uma entrevista à BBC News Brasil em que falou sobre as eleições brasileiras e apontou perspectivas.

         Muita gente pensa que com a eleição de Lula o neofascismo será derrotado e superado, mas a experiência dos EUA demonstra que não[i] – e a entrevista de Bannon confirma. Na condição de oposição aos governos o neofascismo continuará cumprindo um papel nefasto de agitação, propaganda e sabotagem, que tende a intensificar a confusão, reforçando sua influência sobre o movimento de massas. O velho tipo de militância praticado pela esquerda não consegue fazer frente ao neofascismo, que precisa ser estudado e compreendido nos seus detalhes.

         Já no início da entrevista, a BBC destaca a fala de Bannon de que a disputa entre Bolsonaro e Lula é um “enfrentamento de estatura global”[ii]. Ora, o termo “global” aqui diz respeito única e exclusivamente ao fato de que o resultado das eleições brasileiras interessa diretamente ao imperialismo estadunidense na sua “guerra fria particular” contra a China pela hegemonia mundial. Bolsonaro e Lula estão disputando a presidência de um Estado neocolonial, cuja manutenção desta condição política e econômica será uma realidade, ganhe quem ganhar – seja ficando embaixo das asas da águia estadunidense ou enredado nas barbas do dragão chinês –, ainda que devamos reconhecer que o entreguismo de Bolsonaro é mil vezes maior e mais nefasto do que o de Lula; e o projeto imperialista norte-americano representa submissão total, enquanto que o chinês aponta para algum tipo de pequeno ganho.

         Portanto, a preocupação do neofascismo – esta corrente internacional liderada pelo próprio Bannon e por Donald Trump – não é com o protagonismo global que o Brasil pode exercer. Ao contrário: diz respeito aos interesses estratégicos do imperialismo norte-americano, em decadência e ameaçado diretamente pela ascensão mundial da China.

         Caso Lula vença o segundo turno, a artilharia política se voltará para a “denúncia de sua relação escusa de subordinação à China”. Este é o principal interesse de Bannon acerca das eleições brasileiras, cujos elogios são cínicos e direcionados. Estas afirmações podem ser confirmadas neste trecho da entrevista: “a associação de Lula com o Partido Comunista Chinês, principalmente no que se refere a commodities e recursos naturais, fazem desta, eu acho, uma das eleições mais importantes, não apenas deste ciclo (eleitoral), mas nos últimos tempos”[iii].

         E pelo visto não haverá tréguas neste campo, pois disto depende a sorte do imperialismo estadunidense na América Latina. Quando o jornalista da BBC News questionou Bannon sobre o fato de Lula não admitir “essa proximidade e inclusive tem criticado publicamente a falta de divergências no Partido Comunista Chinês…”, foi interrompido pelo entrevistado, que afirmou que Lula “entende a associação ao PCC como algo tão negativo, que ele precisa fazer algum tipo de separação, mesmo que ela não seja real”. Afirma também que Lula “é um político muito experiente, muito sofisticado quando se trata de mídia e, particularmente, mídia global. (...) Se você vai ser um político pragmático e tentar ser eleito em um país ocidental, você tem que sentar lá e dizer: ‘Oh, o Partido Comunista Chinês é ruim’. Vemos a mesma coisa nos Estados Unidos. Mas a influência do Partido Comunista Chinês na América é bastante profunda. Então, acho que Lula apenas entendeu como é radioativa qualquer associação com o Partido Comunista Chinês e resolveu ser vocal sobre isso”[iv].

         Em síntese: o neofascismo centrará fogo na dissolução dos BRICs, transformando pequenos fatos desta aproximação entre Brasil e China em teorias conspiratórias, degeneradas e midiático-terroristas para apavorar a classe média e parte da classe trabalhadora, como é característico do movimento que dirige, denunciando qualquer tipo de “associação” – leia-se, relação bilateral de comércio, turismo, diplomacia – com a China, como uma “ameaça do comunismo chinês”, vinculando, enfim, a imagem do Partido Comunista Chinês à de Lula e do PT. Antes os fantasmas eram Cuba e Venezuela; agora será a vez do PCC e da China. Como o trecho da entrevista dá a entender, esta associação será parte fundamental da estratégia neofascista para o mundo, mas, em particular, para o Brasil.

         Vejamos o exemplo concreto disso: o jornalista da BBC News pergunta a Bannon o seguinte: “o senhor está dizendo que o Lula tem uma relação especial com a China, mas no ano passado, sob Bolsonaro, o Brasil foi o país no qual a China mais investiu no mundo. Como isso cabe no seu argumento?”.

         Bannon responde: “Obviamente, o Brasil é um país de recursos naturais com um grande negócio de exportação. O Partido Comunista Chinês precisa desses recursos. Mas eles foram comprados no mercado livre. Isso é bem diferente da relação de Lula com a China. Lula foi várias vezes a Pequim. Lula tem uma visão de mundo comum à do Partido Comunista Chinês. E o sucesso econômico (do governo Lula) está diretamente ligado aos negócios de exportação e commodities do Partido Comunista Chinês, que essencialmente olha para o Brasil como quase uma espécie de colônia para eles, principalmente em recursos naturais. Lula vai trazer tudo isso de volta. E os chineses veem o Brasil mais do que nunca como um necessário parceiro de commodities. Então, a relação entre Bolsonaro e o Partido Comunista Chinês é mais comercial. Com Lula é muito diferente. Ele dará uma grande base para o Partido Comunista Chinês na América Latina e isso se tornará uma importante questão de segurança nacional para os Estados Unidos. Então, eu estudo Lula há muito tempo. Acho-o um personagem fascinante. Acho-o um personagem trágico porque acredito que ele realmente acreditava no que dizia. E acho que ele é uma figura trágica por isso. Eu acho que ele é parte da rede (política) que o Partido Comunista Chinês corrompeu em todo o mundo. É um exemplo perfeito disso”[v].

         Bannon visa, na realidade, a sabotagem e a destruição dos BRICs como alternativa à ordem mundial hegemonizada pelo capitalismo estadunidense. É exatamente isso que está em jogo com as eleições brasileiras e, em particular, com o seu segundo turno. Como sempre, a estratégia neofascista é deixar estes objetivos ocultos atrás de acusações, debates secundários e escatológicos. O cerne da questão é que o neofascismo sabe da estratégia dos BRICs defendida pelos governos petistas e trabalha dia e noite para destruí-la, pois disso depende a sua própria sorte. Esta é, portanto, a forma como Bannon entende a “estatura global” das eleições brasileiras.


Bannon já sabia do futuro “bom desempenho” eleitoral das candidaturas neofascistas

         Este blog anunciou muitas vezes que o neofascismo é um movimento novo, que adapta o fascismo às condições do século XXI de disputa entre os EUA, em decadência histórica, e China e Rússia, como rivais que desafiam a hegemonia mundial norte-americana[vi]. Enquanto parte da intelectualidade de esquerda espera uma ditadura militar tradicional, afirmávamos que o neofascismo convive com as instituições democrático-burguesas, as ameaçando permanentemente, ainda que grande parte seja apenas discurso de ódio, sem uma ação efetiva. O impacto psicológico é criado justamente a partir deste método, gerando cortinas de fumaça, confundindo e empesteando o ambiente político e social. O grande chamariz de agora para gerar medo e confusão será a repetição do que ocorreu nos EUA de uma crise de transição entre governos e a aceitação do resultado por parte do Bolsonaro, que assim como Donald Trump, sempre faz jogo duplo e declarações dúbias.

         Além disso, o neofascismo não é contra eleições. Ao contrário: tem se especializado em métodos refinados de manipulação social para emplacar suas candidaturas em diversos países do mundo (vejam a vitória de Giorgia Meloni na Itália, por exemplo). Bannon diria, sarcasticamente: “dê um rosto razoável para o populismo de direita e você se elege”[vii].

         E vai ainda mais além, renegando a pecha de autoritário: “Nós amamos a democracia e aqui está a razão: nós temos os votos. Então, quando Biden vem e demoniza as pessoas é simplesmente porque ele não pode falar sobre seus feitos. Seu governo é um colapso financeiro e econômico do nosso país: inflação fora de controle, recorde na queda do patrimônio líquido (das famílias) do nosso país foi anunciada na semana passada: são US$ 6 trilhões (a menos) para o povo americano”[viii].

         O caos geral de inflação, queda de patrimônio e crise econômica é um resultado inevitável dos ciclos do capitalismo, não de um único governo. O neofascismo, então, posa de “democrático”, vencendo as eleições a partir da manipulação da psicologia de massas ou então fica na “oposição” para canalizar o inevitável desgaste dos governos “progressistas”. A mesma coisa ocorrerá com um possível futuro governo Lula: o bolsonarismo, que tem maioria parlamentar e talvez tenha maioria também nos governos estaduais, irá infernizar a vida governista, por dentro e por fora das instituições, através da mídia e da base eleitoral que criou no Brasil a partir dos métodos neofascistas.

         Vejamos a seguir a profecia de Bannon, que tem fontes de informação muito mais refinadas do que toda a mídia, as “empresas de pesquisas eleitorais” e o povo brasileiro em seu conjunto: “Espero e rezo para que tudo aconteça bem (nas eleições brasileiras). E é por isso que estou pedindo um escrutínio e transparência, porque acredito muito que, independentemente do que as pesquisas digam, basta ver o que está acontecendo: acho que Bolsonaro vai subir a ponto de ir com Lula para o segundo turno e, depois, vencê-lo”[ix].

         E isso foi dito friamente em 18 de setembro de 2022 – quase uma previsão do que ocorreu no primeiro turno – quando todo mundo estava tranquilizado com a embriaguez das pesquisas eleitorais que davam uma boa margem para Lula.


O “herói” brasileiro do neofascismo e a sua influência silenciosa sobre a classe trabalhadora

         Para Steve Bannon, Bolsonaro é um “grande herói para todos nós” (leia-se: para a elite dos EUA). Ele estaria no nível de Viktor Orbán (na Hungria) como alguém que “defendeu a soberania nacional e realmente construiu uma base. Ele tem evangélicos, ele tem pessoas da classe trabalhadora”[x].

         O “heroísmo” e a “soberania nacional” de Bolsonaro está, justamente, em frear a influência chinesa sobre o Brasil para mantê-lo na área de influência dos EUA, sem qualquer tipo de soberania. Ainda que haja uma enorme contradição na engenharia política bolsonarista, que se apoia no agronegócio – totalmente dependente do comércio com a China –, mantém o restante do país bem afastado da política global chinesa, sobretudo no campo da ciência e da tecnologia.

         A estratégia do neofascismo no Brasil usa o discurso patriótico e seus símbolos como forma de dissimular a entrega de bandeja do país para os EUA. A sua exaltação cínica e exagerada da pátria visa confundir o bolsonarismo e seus símbolos com o próprio Brasil. Logo, a oposição ao bolsonarismo significa oposição ao Brasil.

         Apesar de chamar Bolsonaro de “herói”, Bannon não escondeu o fascínio que tem por Lula: “eu sou fascinado por Lula”, disse ele, afirmando que estudou o petista por “muitos e muitos anos”[xi]. Para ter nas mãos o governo neocolonial de Brasília, precisa “encantar” e dominar a sua classe trabalhadora, bem como seus “símbolos”.

         Ele afirmou, cinicamente, mas de forma certeira, que acredita “muito nos trabalhadores. E parte do nosso trabalho tem sido atrair democratas e sindicalistas para a nossa causa. Então, tem coisas que Lula defende em que nós acreditamos”, diz Bannon, que reconhece “o tremendo sucesso financeiro da gestão do petista no Brasil no começo dos anos 2000”[xii].

         E conclui afirmando que acredita piamente que o movimento dele e de Bolsonaro representam “um movimento de base”, pois possuem “estratégia de política local: assumir o governo local, assumir o conselho escolar local, assumir os postos de funcionários eleitos locais”[xiii]. De fato, assim tem se dado na prática, tanto nos EUA, quanto no Brasil.

         Bannon é o principal estrategista do neofascismo. É um hábil ilusionista com as palavras e as declarações políticas. Questionado sobre os “problemas da urna eletrônica” e o “clima de medo e violência política reinante no Brasil”, atribuído ao bolsonarismo, desconversou para relativizar a violência simbólica e real do seu próprio movimento. Ao fim, o jornalista faz uma pergunta tão ingênua, quanto útil: “esse movimento populista de direita radical respeita a democracia?”.

         Bannon responde cinicamente que trata-se de“um movimento democrático”; e “dizer que não se trata de um movimento ‘democrático’ é uma acusação da mídia”. Isto é, usa a mesma tática barata de Bolsonaro pra não responder nenhuma questão seriamente: ataca os jornalistas e as instituições da democracia burguesa para desviar a atenção e embaçar o juízo. Logo a seguir, adverte: “vamos ganhar nas urnas. Temos dois terços (do eleitorado) agora nos Estados Unidos. (agregado de pesquisas eleitorais do site FiveThirtyEight mostra que 44.9% dos americanos querem vitória democrata no Congresso, contra 43.4% que preferem republicanos). Vamos tomar a Câmara dos Deputados por, não sei, 30, 40 ou 50 cadeiras. Nós vamos manter nossas posições no Senado e ainda levar duas ou três”[xiv].

         O neofascismo tem se mostrado bastante seguro e preciso nos seus passos estratégicos – e a realidade infelizmente tem confirmado seus prognósticos, a despeito de inúmeras ilusões, à esquerda e à direita. Por que Bannon sente-se tão seguro em afirmar que “vão ganhar nas urnas”? Ora, porque sabe que os seus métodos de manipulação da psicologia de massas tem surtido grande efeito – e, também, porque sabe que a esquerda no geral, seja a reformista ou a radical, compra discursos, formalidades e hipocrisias diárias; além de ignorar novos debates como a questão da psicologia de massas, para reafirmar velhas receitas prontas ou cair no eleitoralismo mais desavergonhado.

         Dito de outra forma: Bannon sabe que os eleitores menos esclarecidos inclinam-se para soluções irracionais e fanáticas uma vez desencadeado o seu medo, ódio e sadomasoquismo reprimido. Ele também estudou o petismo e outros movimentos brasileiros e mundiais, além de dominar as técnicas de marketing para o consumismo; sem falar na coleta de informações privadas ilegais nas redes sociais feita pela Cambridge Analytica, que foi repassada ao seu movimento, também ilegalmente[xv]. A influência do neofascismo repete a da TV e sua publicidade: incide sobre a razão a partir do seu apelo à emotividade (como foi dito: ódio, medo, hedonismo, sadomasoquismo, egotismo, etc.).

         Qualquer estímulo que não é percebido de maneira consciente, seja porque foi mascarado ou camuflado pelo emissor, seja porque foi captado desde uma atitude de grande excitação emotiva por parte do receptor, é parte de um projeto de manipulação política inconsciente, típica dos movimentos fascistas. Estes métodos de “debate” servem perfeitamente para manipular emoções infantis de “pessoas comuns” e ocultar os níveis de privilégios e exploração do capitalismo imperialista estadunidense, que se encontra em avançado estado de degeneração. As contradições são muito grandes para não serem percebidas, por isso esta direita neofascista se especializou em métodos refinados de distorção da realidade, que misturam “auto-verdade”, pós-modernismo e egotismo.

         A crise da democracia burguesa vem junto com a crise civilizatória do capitalismo. Bannon enche a boca para dizer que “ama a democracia” e que “tem os votos”, mas o seu movimento anda sempre no limiar da ruptura institucional e o que alguns intelectuais chamam de “morte das democracias” são, justamente, o resultado da opção por ficarmos na superficialidade do debate e não adentramos o sombrio campo da manipulação política da psicologia de massas do neofascismo; nem de realizar um trabalho de base correspondente, que humanize e critique a conduta da esquerda e da própria massa.

         Portanto, a demagogia de Bannon sobre a democracia e as eleições escondem que a liberdade política é uma condição de liberdade humana, apenas porque favorece o desenvolvimento do que é especificamente humano. A liberdade política numa sociedade alienada, que contribui para a desumanização do ser-humano, transforma-se em não-liberdade. É isso que faz o neofascismo, que entranhou-se na sociedade e perverteu as tímidas vitórias históricas da democracia capitalista. A sua vitória não pode ter nada a ver com uma vitória da “democracia”, mas a transformação da democracia burguesa em não-liberdade, em auto-engano, em manipulação descarada em prol dos interesses de uma minoria imperialista estadunidense e da sua sócia menor tupiniquim.

 

As limitações das esquerdas e o perigo de uma visão que subestima o neofascismo

         Como podemos ver, Bannon enche a boca para dizer que é a direita neofascista que tem colocado as massas nas ruas; ao contrário da “esquerda”, que fala muito em “mobilizar as massas”, mas tem conseguido fazer isso cada vez menos. Parte disso tem a ver com os novos métodos de manipulação desenvolvidos pelo imperialismo anglo-americano: as “revoluções coloridas”, a utilização das redes sociais, a utilização da psicologia de massas.

         A esquerda tipo PT, ainda consegue colocar algum tipo de massas na rua, graças ao aparato e as ilusões, mas tem perdido de longe para o neofascismo, que aposta cada vez mais nesse tipo de método de campanha política. Por que a “esquerda” tem perdido tão fragorosamente para a direita neofascista?

         Uma possível resposta é que ela não entra no debate profundo para desmascarar a manipulação sutil do neofascismo, que vai desde Steve Bannon até Olavo de Carvalho. É muito importante debater o método da manipulação neofascista. Outra possível resposta é que grande parte do apoio popular organizado do petismo nos dias de hoje não está mais na classe trabalhadora, mas no funcionalismo público. Dado os anos de neoliberalismo, de desarticulação de vínculos trabalhistas, de representação fragmentária de sindicatos e centrais, mesmo o bolsonarismo hoje possui peso no seio da classe trabalhadora – talvez tanto quanto o petismo ou ainda mais!

         O funcionalismo público, que é quase hegemonicamente petista, quer uma vida tranquila e sossegada, fechada em si mesma, desejando geralmente apenas a eleição dos governos petistas (ainda que apenas os seus setores concursados tenham essa possibilidade de ficarem tranquilos). Enquanto que a direita mais raivosa tende a se enfrentar aberta e diretamente contra o funcionalismo, pregando quase que como uma religião o Estado mínimo e a privatização de tudo – vendendo-o como privilégio, para esconder o gigantesco privilégio dos bancos, do grande empresariado e do agronegócio.

         O seu sindicalismo é burocrático, desumanizado, autoritário, fechado em si mesmo, pois não há escuta real das diferenças na sua base. Seja no campo sindical, social ou eleitoral, o petismo não se enfrenta e sequer se preocupa com a hipocrisia do cotidiano, nem em desenvolver uma política que enfrente o atraso reacionário da grande massa (às vezes só a xinga como “pobres de direita”). Enquanto está totalmente subordinado ao jogo das instituições democrático-burguesas, que geraram o desgaste dos políticos, dos partidos, das instituições e das próprias eleições; o bolsonarismo se vende como anti-sistema, pois quebra a monotonia do discurso e, aparentando vender “mudanças”, passa toda a sua política neofascista e neoliberal. O próprio petismo muitas vezes recorre ao ódio – em menor escala, é verdade, mas ainda assim, ódio! – contra posições contrárias as suas, o que facilita o trabalho bolsonarista, já que a dicotomização é o seu campo por excelência. Não são poucos os militantes petistas e independentes que ajudam a disseminar vídeos e textos escatológicos, que, baseados na mentalidade olavista, só podem facilitar o caminho bolsonarista, já que este é o seu campo de atuação preferencial.

         A própria estrutura da justiça, da cobertura midiática, dos debates e das pesquisas eleitorais reduzem o debate ao que é aceitável para o sistema e tudo aquilo que foge à sua lógica é condenado, combatido ou mesmo censurado. O petismo, por sua vez, preserva toda a estrutura política que opta por não atacar, já que não vai além dela; enquanto que o bolsonarismo ataca falsamente toda a estrutura que, ao fim e ao cabo, quer preservar. Eis a dialética do eterno retorno a manutenção do país ao que sempre foi: uma semi-colônia na periferia do capitalismo que se pretende uma “democracia”.

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         Por outro lado, a esquerda “revolucionária” de diversas vertentes continua chamando voto nulo, ignorando a realidade e o visível aumento do neofascismo, que se reproduz nas entranhas do Estado e das instituições da democracia burguesa cada vez mais. O sempre possível golpe militar não será dado com tanques nas ruas, mas pelo nascimento de uma nova ordem política de dentro da atual, via eleições.

         Se isso não nos autoriza um desespero eleitoral do tipo petista, que acha que com jingles, “cervejinha e picanha” para a “esperança vencer o medo” pode derrotar o monstro neofascista, também não autoriza o niilismo do voto nulo pela pureza revolucionária. Não existe outra “frente única” no momento que não o voto crítico em Lula, pois não há movimento de massas organizado e mobilizado (sequer há movimentos espontâneos). Ao contrário: como vimos, quem está dirigindo parte “das massas” atualmente é o próprio bolsonarismo, que a coloca em ofensiva contra a sua parcela “democrático-burguesa”.

         O voto nulo neste segundo turno, portanto, é um erro! Ao invés de tentar politizar como for possível o voto em Lula e o debate eleitoral, alertando para as insuficiências e graves problemas da chapa petista, bem como para os perigos cada vez maiores do neofascismo, prefere fechar-se em guetos para ficar de bem com a sua própria consciência. Não causam danos eleitorais, como acusa o desespero eleitoral da militância petista, porque na atual conjuntura são muito pequenos e isolam-se de forma voluntária, não criando nenhuma conexão organizada da “massa de votos nulos” que supostamente “vencem eleições” (o que é quase uma expressão eleitoreira às avessas). Até porque não se preocupam com isso, achando que a simples agitação do “voto nulo”, por si mesma e sem nenhum impacto concreto, pode “fazer avançar a consciência revolucionária” e não desviar atenção e foco da única “luta” que existe no momento, que é a eleitoral. Não diferencia que existem hoje diversos tipos de “votos nulos”, inclusive da direita do tipo Partido Novo ou do PSDB. O seu realismo tem sido míope. Votar criticamente em Lula não significa abdicar de combater todas as ilusões do seu futuro governo[xvi] – e, atualmente, é onde está a “massa progressiva” da classe trabalhadora e da classe média. As pontes devem ser estendidas por aí; as críticas devem ser feitas por aí – e não pelo voto nulo, que hoje apenas faz os ouvidos se fecharem!

         Há um longo trabalho de reconstrução pela frente. A conjuntura é extremamente complexa e difícil. O caminho para o neofascismo está pavimentado. As massas estão desmobilizadas. Quem as tem dirigido, no geral, é a própria direita neofascista. Os métodos, os discursos e os programas revolucionários não podem ser uma mera reprodução do passado. A análise da realidade está sendo substituída por um desespero eleitoral – por parte do petismo – e por uma repetição de fórmulas decoradas – por parte da esquerda “revolucionária”. O movimento real das massas, seja no campo petista, seja no campo bolsonarista, é ignorado; e sequer apresentam-se análises empenhadas em compreender o novo contexto, visando solucionar os problemas atuais.

         O primeiro e decisivo passo para qualquer mudança futura e, sobretudo, para termos condições de vencer o neofascismo é não menosprezar o inimigo, manter a lucidez da análise, o juízo desperto e, sobretudo, a responsabilidade de manter os olhos bem abertos em um contexto em que a maioria das pessoas parecem estar cegas.



Referências


[i] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/12/o-neofascismo-nao-foi-derrotado.html
[ii] Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62944023
[iii] Idem.
[iv] Idem.
[v] Idem.
[vi] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/o-que-e-o-bolsonarismo.html
[vii] Idem.
[viii] Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62944023
[ix] Idem.
[x] Idem.
[xi] Idem.
[xii] Idem.
[xiii] Idem.
[xiv] Idem.
[xv] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/01/quem-esta-por-tras-de-olavo-de-carvalho.html
[xvi] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2022/07/por-um-voto-critico-em-lula.html