quarta-feira, 5 de abril de 2017

Como combater a meritocracia e as privatizações?

A grande mídia – em particular a RBS – e os governos neoliberais financiaram por décadas a propaganda ideológica de que os serviços públicos são inviáveis. A solução que apresentam para “resolver seus problemas” é sempre a mesma: privatizá-los; isto é, transferi-los, um a um, para a iniciativa privada. Se isso acontecesse, significaria que os atuais funcionários públicos seriam regidos por um regime de trabalho de empresa privada, passíveis de demissões, descontos e remoções arbitrárias, bem como trabalhar segundo os índices de produtividade estabelecidos pelos patrões.
Ininterruptamente veiculado na grande mídia, o discurso neoliberal acabou por se impor; e, por isso, a solução aceita como natural pelo senso comum e pela tacanhice da classe média é a de que só existiria o caminho da privatização dos serviços públicos. Todos os governos governaram tendo como objetivo único o pagamento da dívida e o suposto enfrentamento ao déficit orçamentário, o que levou a uma drástica diminuição dos recursos investidos em áreas sociais, como saúde e educação. Os governos que privatizaram todos os serviços públicos passaram por grandes crises sociais: EUA, Inglaterra, Chile e Argentina são alguns destes exemplos. Nos EUA e na Inglaterra há uma grave crise na saúde pública, muito bem retratada no documentário S.O.S. Health, de Michael Moore; o Chile vive uma profunda crise na educação, que tornou-se privilégio; a Argentina vive um aumento exponencial da pobreza nas periferias de Buenos Aires, tal como no Brasil.
O resultado é que com a política neoliberal aplicada nas últimas décadas, os serviços públicos se degeneraram, com péssimas condições de trabalho e os salários arrochados, rebaixando a qualidade dos serviços prestados. Isto serviu por anos como exemplo de que o “público não funciona” e o “privado é a solução”. Porém, as raízes perversas desta lógica nunca foram desenterradas amplamente e combatidas abertamente. Os servidores públicos acabaram reféns dela. Isto é, os sindicatos e os partidos de “esquerda” não foram capazes de enfrentar estes ataques ideológicos e deixaram os trabalhadores a mercê deles. A visão meritocrática paira sobre as nossas cabeças triunfalmente por falta de um contraponto ideológico e de um plano para combatê-la. Mesmo alguns servidores abraçam acriticamente a defesa das privatizações ou da meritocracia contra si próprios, ou são coniventes com estes ataques por não quererem mudar, repensar, renovar; mas apenas reclamar!
Grande contingente de servidores públicos se adaptou oportunistamente ao discurso do menor esforço e a aceitação deste estado de coisas: “não ganho bem, então não trabalho mesmo”; ou “não podem me demitir, que se danem!”. Isso significa que muitos servidores públicos não procuram ou não querem entender as raízes destes problemas e viram as costas para a sua responsabilidade social, sobretudo em razão da estabilidade – não casualmente, um dos focos dos ataques da mídia e dos partidos neoliberais. Assim, decai ainda mais a qualidade dos serviços públicos prestados; e agora por outros motivos.
Mas não necessariamente deveria ser assim. O alegado caminho da privatização é uma enganação, servindo apenas para cortar gastos em nome dos grandes banqueiros e empresários, deixando a população desassistida. É preciso pensar a prática de todo o funcionalismo público a partir de uma perspectiva socialista, de valorização do Estado e do público. O sectarismo reinante no trato destas questões e a fuga deste debate por parte de sindicatos, partidos de “esquerda” e dos próprios servidores, apenas podem beneficiar a grande mídia e os partidos da direita neoliberal, que tiram vantagem desta omissão. É preciso um corajoso plano de desconstrução da ideologia neoliberal e a demonstração de que o principal problema dos serviços públicos é o baixo investimento e as péssimas condições de trabalho. Porém, é preciso combater também a acomodação e a apatia daqueles servidores que estagnam atrás da estabilidade (e nos contratos "emergenciais" também), deixando um importante flanco aberto para a mídia e os partidos da direita neoliberal. Todo aquele que deixa de meditar sobre sua prática profissional e se adapta negativamente a qualquer situação, está prestando um desserviço para a própria luta em defesa dos serviços públicos. Não há problemas em desenvolvermos uma escala de mérito no trabalho, para qualificá-lo cada vez mais. O problema é o mérito visando à demissão, ao fim do direito ao trabalho.
Cabe ressaltar que nunca poderemos resolver plenamente os problemas do serviço público mantendo o capitalismo, pois retirar direitos e privatizar é a sua lógica econômica intrínseca, o seu DNA. Enquanto ele existir, ameaçará permanentemente a existência dos serviços públicos ao povo. Dentro deste contexto, contudo, seria possível pensar e apresentar um outro caminho enquanto ainda não se pode superá-lo, para contrapormos àquela cantilena neoliberal de que os “serviços públicos não funcionam”. Se as privatizações resolvessem alguma coisa, ao privatizar Vale do Rio Doce, Telebrás, Eletrobrás, Petrobrás e Embraer, teríamos gerado mais riqueza e desenvolvimento para o país, e não uma nova e pior “crise financeira” para os cofres públicos. Além disso, a privatização total do setor de telefonias gerou altos índices de reclamação pelo péssimo atendimento e serviços prestados. Por acaso não existem inúmeros problemas de qualidade nas empresas privadas também?

A demissão resolve alguma coisa?
A possibilidade de demitir servidores é a única “solução” apresentada pelos neoliberais, defensores da privatização e do fim dos serviços públicos. É, também, o principal objetivo deles. Quem traça as diretrizes do pensamento neoliberal não são as demandas profissionais do serviço público, mas a agenda econômica.
Enquanto os trabalhadores não têm condições políticas e econômicas para superar o capitalismo, é muito importante apresentar um contraponto para servir como trincheira de defesa do que é público. Seria importante debatermos uma reutilização dos servidores com baixo desempenho em outras funções ou mesmo em outras unidades de trabalho, tenham eles estabilidade ou não. A estabilidade deve ser uma garantia contra a arbitrariedade e tirania das demissões, bem como garantia do direito ao trabalho, mas nunca uma imunidade à críticas e aos balanços. E estas críticas não podem ser o álibi para se cortar custos e destruir o setor público. Se poderia pensar numa forma em que alunos, pais e pacientes, enfim, os usuários e dependentes dos serviços públicos, cumpririam o papel de avaliadores, levando em conta a aprendizagem, o respeito, o desempenho geral, no sentido de melhorar a qualidade dos serviços públicos; e nunca a sua mera e simples demissão, que é sempre o objetivo dos governos neoliberais seguindo diretrizes econômicas internacionais. É preciso perguntar: seria a demissão um solucionador dos problemas sociais na prestação de qualquer serviço ou uma excelente forma dos patrões e governos se livrarem de encargos sociais?
O servidor que ao final de um período fosse aprovado, se manteria no seu posto, ganhando outras atribuições e podendo escolher certas condições de trabalho; enfim, tendo um pouco mais de liberdade no seu trabalho; os “reprovados” seriam deslocados para “reciclagem” em outras funções, mantendo o emprego, mas perdendo o posto anterior. Deveriam passar por cursos de formação e aprimoramento; isto é, deveriam começar de novo, levando em consideração as lições de sua “reprovação”. Quanto mais reincidente um reprovado se tornasse, mais ele seria tirado de circulação e do contato com o público, fazendo serviços administrativos, burocráticos, corriqueiros, mas, evidente e necessariamente, sendo acompanhado por uma equipe de Recursos Humanos, tentando elevar sua moral, e não simplesmente atirando-o num canto como “coisa inútil”.
No pior das hipóteses existiria a possibilidade de supervisão permanente e do desconto salarial, que são mecanismos que precisam ser utilizados com sabedoria para não desgastá-los desnecessariamente.

A questão do corte do ponto e do desconto salarial
O mecanismo de desconto salarial precisa ser utilizado com parcimônia e sabedoria. É certo que existem muitos dirigentes do serviço público que caem num “amiguismo” e tem medo de descontar omissões, faltas e problemas de outra ordem dos colegas mais próximos. Entramos numa sinuca de bico, que gera um mal estar muito grande e abre precedentes para a “ditadura do descaso”. O regime de trabalho se afrouxa a tal ponto de perder o controle da entidade pública, aprofundando o caos que vem de cima. Em outros casos, “gestores públicos” tentam agir como um patrão: descontam greve, não procuram saber ou desconsideram motivos de faltas, nem tentam solucionar o problema de outra forma. Simplesmente riscam o ponto e está tudo resolvido.
Em ambos os casos temos problemas sérios que levam ao desleixo total ou ao medo e ao assédio moral autoritário. O primeiro afrouxa o regime de trabalho; o segundo não é eficiente, pois com a atual estrutura do serviço público se desenvolvem várias formas de resistências (boas e más), mesmo ao autoritarismo de direções e gestores.
        O caminho para o desconto salarial deve ser construído de forma coletiva, como fruto de um novo trabalho entre colegas, onde se percebem os graves problemas e, pelo menos, a maioria, compreende a necessidade da mudança. O corte do ponto e o desconto salarial devem ter seus critérios também construídos democraticamente. Isto é, precisam ser precedidos por mecanismos para suprir a falta e não simplesmente o corte do ponto de forma nua e crua. É preciso o diálogo entre a coletividade no sentido de se mostrar que é preciso fazer alguma coisa frente à omissão e as ausências reincidentes. Caso nada seja feito, é um novo triunfo da grande mídia e dos governos neoliberais na sua luta pela desmoralização dos serviços públicos. A argumentação destes sobre a necessidade de se privatizar os serviços públicos ganha força e apoio. É importante lembrar que o aprimoramento e melhoramento dos serviços públicos serve, fundamentalmente, para atender o povo mais pobre e desassistido, os trabalhadores e seus filhos.
        Antes de tudo, é preciso ter a coragem que o movimento sindical não tem, de pautar estes temas incômodos no sentido de defender o serviço público contra os brutais ataques da mídia e do governo, mas também reconhecer nossos erros e falhas. O desconto salarial é um mecanismo ditatorial nas mãos de um individuo, que o utiliza para explorar, adestrar e subjugar indivíduos, mas, como lamentavelmente vivemos numa sociedade dividida em classes, com inúmeros problemas, podemos e devemos utilizá-lo no “bom sentido”, visando elevar a qualidade dos serviços públicos e o comprometimento com ele. Por tudo isso, o corte do ponto é apenas um meio possível de utilização, e não a solução dos problemas, como muitos “gestores públicos” pensam. Caso o corte salarial resolvesse todo o problema, a privatização total seria a solução.

É preciso uma gestão horizontal e transparente, respeitando as decisões coletivas e trabalhando para que elas sejam concretizadas honestamente
        A solução para melhorar os serviços públicos está numa forma de gestão aberta, transparente e voltada para o social, com decisões democráticas e abertas. Os pessimistas incuráveis ou os sabotadores conscientes dirão que isso é impossível, pois só serviria para aprofundar o desleixo e o caos. Mas uma forma de trabalho deste tipo nunca foi tentada seriamente. No essencial, sempre foi sabotada pelas leis, pelo hierarquismo e pelo burocratismo. Debater com o contraditório e procurar um caminho diferente gera medo, porque é algo novo e difícil. Se for tentado seriamente, principalmente com método e persistência, certamente dará frutos e tenderá ao aumento da qualidade do serviço prestado. Ao mesmo tempo que o coletivo decide democraticamente o que fazer, é necessário debater uma disciplina coletiva e as punições a quem infringe esta disciplina, que pode ser corte salarial ou outras formas. O debate democrático dará mais autoridade para este tipo de procedimento do que a ação arbitrária de uma única pessoa ou direção.
Os pessimistas e sabotadores insistirão que se houver ampla democracia, muitos trabalhadores simplesmente dirão que “preferem não trabalhar”, mas é importantíssimo ressaltar que esta opção não existe. Se somos uma escola pública, por exemplo, e temos um calendário letivo a ser cumprido, como construí-lo coletivamente? Como aproveitar os sábados (que são inevitáveis)? Não existirá, por exemplo, a possibilidade de não trabalhar nos sábados.
Em suma, não deverá haver a opção de não trabalhar e só ir empurrando com a barriga, como pensam e fazem muitos; mas simplesmente debater democraticamente a melhor forma de trabalhar e de prestar o nosso serviço para a população. Não é possível fazer tudo isso tendo salários parcelados e péssimas condições de trabalho, dirão alguns; o que é parcialmente correto. Mas como fazer o nosso melhor dentro de condições difíceis? O que priorizar e o que secundarizar? Por acaso devemos nós abrir mão de tudo, inclusive dos serviços públicos, facilitando a vida da grande mídia e dos governos neoliberais?
Pois é este o único caminho que nos espera, caso sejamos negligentes e desleixados. Somente apresentaremos um caminho alternativo se nos unirmos democraticamente e soubermos crescer, tropeçando e reconstruindo degraus em unidade. Se é difícil construirmos uma gestão democrática e coletiva, é mais certo ainda que quando o método for construído e solidificado em torno desta prática, a tendência é ir melhorando a qualidade do trabalho – uma vez que será mais compreendido e pensado coletivamente – e o conjunto de servidores tenderá a se ver como um corpo mais coeso e não numa guerra de todos contra todos, entre grupo de amigos e os excluídos.
Por outro lado, é certo também que a lei e a arrogância de muitos servidores públicos serão um empecilho para estas mudanças, mas toda e qualquer mudança começa com um primeiro passo, com uma nova visão e uma nova forma de pensar sobre velhos problemas. Para tudo isso é preciso, antes de qualquer coisa, coragem para se dar os primeiros passos!