terça-feira, 30 de setembro de 2014

Perguntas e respostas sobre a Revolução Cubana

Esta entrevista foi concedida em 2013 a uma jornalista de um portal da internet do litoral gaúcho por um militante dos movimentos sociais.

1 - Fidel Castro há 44 anos assumiu o poder em Cuba, em 1985, quase 25 anos após a revolução de 1959, alcançou índices surpreendentes, mesmo com o embargo americano. Em 1959 eram 2 mil universitários, em 1985, 28 mil. O país erradicou o analfabetismo, a desnutrição infantil, reformou os prédios culturais. Praticamente erradicou a prostituição, e o desemprego chegou a 3%. Números semelhantes a países de terceiro mundo. Como acha que o país conseguiu tantas realizações? (Dados retirados do livro Fidel e a Religião de 1985).

Tudo isso só foi possível graças aos métodos socialistas de produção e distribuição. Quando Cuba era um país capitalista neocolonial, além do baixo número de universidades e do alto índice de analfabetismo, lhe era imposto o monocultivo de açúcar, ao mesmo tempo em que lhe proibiam a construção de fábricas. Sendo assim, Cuba comprava dos EUA não só automóveis, as máquinas, os produtos químicos, o papel, o vestuário, mas também arroz, feijão, alho, cebola, carne e algodão. Veja o contrassenso: um país agrícola importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia. Enquanto isso, a maioria das terras das centrais açucareiras eram extensões ociosas e improdutivas. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47% da área açucareira total e faturavam cerca de U$180 milhões por safra. A riqueza mineral – como o níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio – fazia parte das reservas estratégicas dos EUA, sendo proibido aos governos fantoches explorá-los sem a sua permissão. Che dizia que “o sistema latifundiário, tanto em sua forma de exploração primitiva, quanto em sua forma monopolista, adapta-se às condições internacionais e torna-se um aliado do imperialismo. Esta forma de exploração pelo capital estrangeiro cria uma economia de tipo colonialista, chamada eufemisticamente de ‘subdesenvolvimento’”. Os EUA exploravam a terra e os minerais de acordo com as exigências do seu exército e da sua indústria. Em 1958, Cuba tinha mais prostitutas registradas do que operários mineiros. Um milhão e meio de cubanos estavam desempregada total ou parcialmente. Esta era a estrutura que o capitalismo reservava para Cuba na divisão internacional do trabalho.

O triunfo da revolução propiciou ao governo cubano a ruptura com este modelo e criou as condições para a destruição das estruturas econômicas desta submissão. O açúcar, que antes era o produto da humilhação e da submissão, tornou-se de início, nas mãos do governo revolucionário, uma forma de investimento em outras áreas. Fábricas e universidades passaram a ser construídas, por exemplo. Tudo é uma questão de prioridade. Para o capitalismo, o que interessa é o lucro privado. É por isso que as ditaduras capitalistas anteriores à revolução de 1959 atraíam os investimentos privados norte-americanos através da entrega da maior parte das suas terras produtivas e das riquezas minerais. O governo de Castro, ao contrário, logo depois da tomada do poder apostou no investimento social: educação, saúde, reforma agrária.

Contudo, todo o processo revolucionário é contraditório. Estas mudanças são extremamente penosas e difíceis. Cuba sofreu, como é sabido, com o embargo comercial imposto pelos EUA, pela carência de mão-de-obra técnica qualificada, baixa produtividade do trabalho e pelo isolamento internacional, uma vez que a revolução não se expandiu para os demais países da América Latina. Em suma, todas estas mudanças que tu citaste só foram possíveis porque a revolução de 1959 rompeu com o capitalismo e optou pelos métodos socialistas; muito embora, é preciso dizer, que nunca tenha existido socialismo plenamente na ilha e nem em outra localidade do mundo, apenas passos neste sentido.

2 - Em contrapartida, a realidade de 1985, Cuba hoje, vive uma crise lastimável. A prostituição é uma atividade normal, não por opção, mas pela pobreza que assola o país. Apesar da saúde, da cultura ter avanços, o povo não parece feliz. Como um país que alcançou números tão surpreendentes em 1985 chegou a queda? (Dados retirados do livro Havana do jornalista Airton Ortiz e de conversas com visitantes do país).      

Para responder esta pergunta é preciso definir alguns conceitos, retomando o que foi dito antes. É preciso dizer que em Cuba – assim como na ex-União Soviética, China e Coréia do Norte –, nunca existiu “socialismo” e, tampouco, “comunismo”. O revolucionário russo, Leon Trotsky, chamava estes países de “Estado Operário”. Isto é, um estado controlado pelas organizações dos operários, que promove as relações socialistas de produção – a propriedade coletiva, o monopólio do comércio exterior, o controle operário da produção, a economia planificada, etc. –, e que está em transição entre o capitalismo e o socialismo. Ou estes Estados conseguiriam expandir a revolução socialista aos outros países – principalmente aos imperialistas –, aí sim, atingindo o socialismo, ou retrocederiam ao capitalismo.

É preciso refletir também nas dificuldades da ruptura de um país subdesenvolvido com a estrutura do monocultivo agrário, razão do seu atraso. No 1º dia após o triunfo da revolução se constatou que o desenvolvimento industrial cubano era muito pobre e lento. Mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as pouquíssimas fábricas com tecnologia moderna eram telecomandadas diretamente dos EUA. Quando o governo revolucionário iniciou o processo de nacionalização houve uma enorme fuga de capitais e técnicos, que foi amplamente incentivada pelos EUA. Já não era possível solicitar apoio via telefone, uma vez que os EUA boicotaram a revolução de todas as formas possíveis, e os raros técnicos que conseguiriam reparar os defeitos secundários tinham ido embora também. Che, como ministro da indústria, muitas vezes reclamou da carência de peças de engrenagem para a indústria, que somente poderiam ser fornecidas pelos países imperialistas. O imperialismo cultivava esta política como forma de manter os países subdesenvolvidos permanentemente dependentes dos centros imperialistas. A tentativa dos EUA continua sendo a de sufocar a revolução por todos os meios possíveis: econômica, política, militarmente. Os críticos de Cuba precisam levar em consideração todos estes fatores e, sobretudo, que o país tinha, como diz Eduardo Galeano, “as pernas cortadas” em função da dependência econômica e que não lhe foi nada fácil andar por conta própria – como geralmente o é em todos os processos históricos que iniciam uma nova era de desenvolvimento.

Como já foi dito, a planificação econômica socialista mostrou novamente sua superioridade ao mercado capitalista no que tange ao melhoramento das condições sociais da população. Se Cuba erradicou o analfabetismo, desenvolveu a medicina, popularizou a assistência médica e eliminou a prostituição e o desemprego foi graças a estes métodos. Mas a planificação econômica socialista não pode fazer milagres por si só, uma vez que Cuba, por opção da burocracia dirigente, não se industrializou plenamente, tornando-se extremamente dependente da tecnologia vinda da URSS. A primeira causa disto está na sua direção política. Castro selou o destino da revolução cubana quando optou por não expandir a revolução internacionalmente. É célebre a sua frase dita frente ao processo revolucionário nicaragüense para acalmar as relações com o imperialismo: “Nicarágua não será outra Cuba”. O governo cubano adotou a política stalinista de “socialismo em um só país” na sua nova formulação de “coexistência pacífica com o imperialismo” (cerne do que a historiografia burguesa chama de “Guerra Fria”). Desde a década de 1960 que os EUA chantageiam a OEA para que nenhum estado latino-americano e mundial comercializasse com Cuba. Ficou célebre o caso do Uruguai, que deixou de comercializar com Cuba a sua carne de charque a partir de 1965, somando-se ao bloqueio determinado pela OEA. Foi assim, sob pressão do imperialismo ianque, que o Uruguai estupidamente perdeu o seu último mercado para este produto. Além do charque, inúmeros outros produtos de primeira necessidade foram impedidos de chegar à Cuba pelo bloqueio norte-americano. É possível deduzir daí as tremendas dificuldades as quais a população cubana foi submetida.

A partir da década de 1990, sobretudo após a restauração do capitalismo na ex-URSS, o governo cubano iniciou a sua restauração capitalista que levou a adoção das seguintes medidas: dolarização da economia, incentivo ao capital externo e legalização da propriedade privada. Muito antes do governo de Raul Castro, em meados de 1992, que o governo castrista legalizou a propriedade privada e destruiu, definitivamente o monopólio do comércio exterior – um dos pilares de um Estado Operário –, permitindo às empresas estatais e particulares o comércio direto com o estrangeiro, que não tardou a entrar na ilha para explorar a agricultura e o turismo. Estas medidas destruíram a possibilidade de planificação econômica socialista – outro princípio deste sistema –, já abaladas, por sua vez, por outras medidas de descentralização econômica. Foi instituída também, a partir deste momento, uma medida típica do capitalismo neoliberal: a autonomização do Banco Central. Em 1994, como reflexo da lenta reabertura capitalista, cerca de 80% da produção da tradicional indústria da cana-de-açúcar volta a ser privada. O mercado privado difunde-se novamente por toda a economia. Mas ainda havia uma contradição a ser superada pelo imperialismo: o governo revolucionário, que derrubou a ditadura capitalista de Batista em 1959 e desafiou os EUA, continua à testa do Estado. Este governo, sob hipótese alguma, pode ser aceito pelo imperialismo norte-americano. Por isso, a sua campanha política internacional – feita insistentemente por todos os meios de comunicação tradicionais – centra sua artilharia na reabertura democrático-burguesa, demonstrando as mazelas sociais e a violação dos direitos humanos em Cuba, mas omitindo que estas mesmas violações ocorrem a nível mundial e de forma sistemática nos países que os EUA apóiam e sustentam, como no Egito, Líbia, Iraque, Afeganistão, Arábia Saudita, Israel, Palestina, Colômbia, etc.

Uma economia “socialista” não pode permanecer isolada, sob pena de degenerar e de voltar ao capitalismo, uma vez que o socialismo somente pode se realizar em âmbito internacional. Enquanto isso não acontecer, algum nível de intercâmbio com os países capitalistas se torna inevitável. Principalmente nos países atrasados, a socialização da economia deve ser feita de forma gradativa, de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas (mão de obra, matéria-prima e tecnologia). O comércio com os países capitalistas do entorno de Cuba era inevitável, mas há uma profunda diferença entre o comércio sob direção de um governo que mantém os pilares de um Estado Operário, controlando os capitais que entram e saem do país; e de um governo que começa a destruir estes pilares em nome da busca por este comércio, facilitando e incentivando a entrada do capital privado e imperialista (no caso, do imperialismo europeu).

Acho a questão levantada sobre a “felicidade dos cubanos” um tanto vaga. Acredito que isso se refira a falta de democracia de base e a consequente burocratização do Partido Comunista Cubano e do Estado. Frente a isso, é preciso dizer que a questão da ausência de democracia operária e dos conselhos operários são reflexos da adoção da política stalinista e do isolamento econômico e político internacional; ou seja, da ausência do triunfo de outros processos revolucionários pelo mundo, mas em especial na América Latina.

Então podemos resumir os fatores que contribuíram para o retrocesso da revolução cubana da seguinte forma: o governo Castro não avançou, desde 1959, no sentido da democracia operária. Este fator, conjuntamente com o embargo econômico ianque e o isolamento internacional, foi um grande entrave que criou as condições para a burocratização do Estado Operário cubano. A falta de quadros técnicos capazes, a incompetência da administração em muitos ramos da produção, o embargo econômico, a adoção da política de “socialismo em um só país” e a temerosa resistência à imaginação criadora e à liberdade de decisão dos trabalhadores de base continuaram interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Todos estes elementos criaram as condições para o início da restauração do capitalismo. Hoje podemos afirmar que o capitalismo está restaurado em Cuba, apesar da burocracia castrista continuar a frente do Estado. Esta é a raiz do retrocesso que vem ocorrendo nas conquistas sociais da ilha desde fins do século passado.

3 - A queda da URSS em 1989 colaborou com a crise cubana?

Sim, e da forma mais decisiva possível. Em um país que foi isolado pelo inimigo, o intercâmbio com a URSS foi fundamental. O combustível que não era refinado pelas empresas norte-americanas em função do embargo, por exemplo, era feito pelas refinarias soviéticas. Produtos e bens industrializados eram comercializados com Cuba em troca de açúcar. Os artigos de primeira necessidade também eram fornecidos pela URSS. Porém, em função desta troca comercial, a burocracia stalinista da URSS incentivou o estancamento da industrialização cubana, fornecendo-lhes todos os seus produtos à preços baixos. De certa forma impediu a superação total da estrutura agrária.

Sobre isso cabe uma reflexão particular: o mais correto seria chamar o fim da URSS de “restauração do capitalismo”, e não “queda”, uma vez que este processo foi incentivado conscientemente pelo imperialismo através dos seus agentes no seio da burocracia stalinista do PCUS. Esta política ficou conhecida como “Perestroika”, que destruiu com um discurso “socialista”, todos os pilares do Estado Operário soviético. Com o fim da URSS, Cuba aprofundou o seu isolamento internacional. Seguindo os passos da restauração russa, Castro não abandonou o discurso “socialista”. Esse jogo duplo confundiu os trabalhadores e foi utilizado pela mídia burguesa como demonstração de que o regime de Cuba é “comunista”, pois quem ainda continua no poder é o velho Fidel. O que, conforme discutimos, não é verdade.

4 - Historicamente, você acredita que Cuba possa voltar a viver o apogeu, como isso seria possível?

Com o atual governo cubano e a restauração do capitalismo é praticamente impossível. Somente um novo ascenso dos operários e camponeses cubanos poderia reviver aquele apogeu histórico. Para isso era preciso uma nova direção política para o proletariado cubano, isto é, um novo e autêntico partido revolucionário, que revertesse os processos da restauração capitalista e concretizasse uma medida política que não foi feita pela burocracia castrista: a criação de conselhos operários, isto é, a instauração da democracia operária. A partir daí seria necessário restabelecer o monopólio do comércio exterior e a planificação econômica, retomando os métodos socialistas de produção, visando a expansão da revolução aos demais países do mundo e, em especial, à América Latina. Porém, a burocracia castrista é um impeditivo para isto. Para se concretizar todo este programa infelizmente é preciso lutar contra ela também, que está fazendo o oposto disso tudo.

Eu acredito que somente munidos de um programa revolucionário como este, adaptando-o à realidade concreta que vive a ilha, os trabalhadores cubanos poderiam retomar o seu velho apogeu!

5 - Você acredita que uma revolução semelhante a de Cuba poderia ser implantada no Brasil?

Acredito! Não só acredito como acho que seria a única saída para um país marcado pelo neocolonialismo, pelo analfabetismo, pela corrupção, por profundas e vergonhosas desigualdades sociais. Enquanto existir capitalismo no Brasil esta será sempre a sua realidade. É preciso construir uma saída revolucionária e socialista, caso contrário, só veremos aquelas mazelas aumentarem incessantemente. Mas para que essa revolução seja possível é preciso avaliar as condições específicas da realidade brasileira, que são bem distintas da realidade cubana, tanto no tempo quanto no espaço, e levantar um programa revolucionário em nosso país visando organizar o proletariado brasileiro, que hoje está profundamente desorganizado. A primeira tarefa nesse sentido seria a edificação de um partido revolucionário que conscientizasse e organizasse o povo – partido este que hoje não existe; ou seja, um partido que cumpriria o mesmo papel que cumpriu a guerrilha de Fidel e Che de 1956 até 1959. Este partido deveria também acertar contas com o oportunismo político que reina nos sindicatos e nas fileiras do movimento operário, dirigido pela atual “esquerda”: PT, PCdoB, PCB, PSOL, PSTU, PCO, etc. Estes partidos abandonaram definitivamente a estratégia revolucionária, apesar de falarem em “revolução” nos dias de festas, como em congressos e nos primeiros de maio. É preciso dizer que estes partidos de “esquerda” estão profundamente adaptados e integrados à democracia burguesa brasileira, por isso falo da necessidade premente de superá-los.

domingo, 14 de setembro de 2014

Trotsky: censurado na URSS e no Brasil!

Parece que não foi só na ex-União Soviética de Stálin que a obra de Trotsky foi censurada. Qual das grandes editoras brasileiras publicou um único livro dele para popularizar "democraticamente" suas ideias? L&PM? Martin Claret? Editora34? Companhia das Letras?

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A relação entre a alienação política, o sentimentalismo mal resolvido e as posições visceralmente reacionárias de um trabalhador de base

Na consciência humana, o mundo aparece
completamente diverso daquilo que na realidade ele é:
aparece deformado em sua própria estrutura, separado de suas efetivas conexões.
Torna-se necessário um peculiar trabalho mental para que
o homem do capitalismo penetre nessa fetichização
e descubra, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro, preço, etc.)
que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência,
isto é, a de relações sociais entre os homens.
(Gyorgy Lukács)

É muito comum ver trabalhadores expressarem posições reacionárias que são contrárias aos seus interesses históricos e, às vezes, imediatos. A maioria deles não é de partido, correntes sindicais ou estudantis, não possuindo, portanto, vida política ativa (em alguns casos podemos ver também trabalhadores de organizações políticas oportunistas manifestando posições reacionárias). Como pode ser possível alienar um indivíduo ao ponto dele defender posições políticas que lhe oprimem?
           
Em primeiro lugar, não há dúvidas, está a alienação política, a falta de conhecimento e a má versação nos assuntos políticos. Quem não quer entender a política e o sistema econômico em que vive torna-se presa fácil da alienação. Soma-se a isso o desgaste do “socialismo”, fruto da restauração capitalista na ex-URSS, leste europeu, China e Cuba, e a subsequente campanha ideológica mundial da burguesia para desmoralizar o socialismo e o marxismo, feita, sobretudo, nas universidades e na grande mídia. O resultado é que o socialismo saiu da perspectiva dos trabalhadores; foi-lhes inculcado que se trata de uma utopia, que o “mundo é assim mesmo, cheio de dificuldades e desigualdades” e que “não se pode fazer nada”.
           
Contudo, para além das causas objetivas, existem causas individuais que vão além da alienação, até porque muitas vezes a política revolucionária é explicada a estes trabalhadores pacientemente, e eles, mesmo assim, mantém-se chafurdando em suas posições reacionárias. Como isso é possível?
           
O assunto torna-se mais assustador e preocupante se levarmos em consideração as suas condições econômicas (isto é, condições de trabalho, salariais, de vida), bem como a adaptação de uma categoria às suas condições de vida que são de medianas para ruins (“pelo menos possuo casa, salário fixo, estabilidade [nem sempre], não há guerra ou guerra civil – como nas periferias –, etc.”, pensam rebaixadamente alguns). Até conseguirmos fazer um grupo de trabalhadores chegar àquela consciência do Manifesto Comunista, que afirma que com a revolução os “trabalhadores nada têm a perder, a não ser os seus grilhões”, leva muito tempo. Nos períodos de calmaria – que geralmente se estendem por um longo tempo –, um trabalhador pensa, erroneamente, que tem “muito a perder” (como o seu emprego, por exemplo) e não consegue enxergar que, na verdade, vive uma mentira, como um escravo moderno, trabalhando para sustentar uma ordem econômica que o esmaga e oprime; a mesma ordem que é responsável por lhe chantagear com a possibilidade de lhe tirar este mesmo emprego miserável a qualquer momento e sob qualquer pretexto, e fazê-lo perder o salário medíocre que mal lhe sustenta. Ele somente consegue chegar à consciência do Manifesto Comunista quando sente que os demais trabalhadores estão juntos com ele, dispostos a tudo, e não são meros concorrentes da disputa pelas migalhas e sobras que caem da mesa da burguesia, dadas como se fosse um favor.
           
Nestes casos, a acomodação às condições precárias que estão “ao menos garantidas”, serve de pretexto – inconsciente ou mesmo conscientemente – para a aceitação passiva (ainda que às vezes haja reclamações verbais) de toda a situação social vigente. Quando ocorre esta “adaptação”, a força do hábito sobrepõem-se à racionalidade política. “Ação política” passa a significar a possibilidade de se perder este emprego, ser importunado, incomodado em sua inércia “habitual” que, apesar dos pesares, garante a ele e à sua família o “ganha pão” e as suas precárias condições de existência (quantas pessoas na rua não tem sequer isso? – eles pensam). Em suma: atuar politicamente, para eles, significa colocar em risco esta “acomodação” e estas condições precárias de vida. Por isso, a força do hábito não pode nunca ser menosprezada. Somado a esta força está o medo enrustido (ou mesmo aberto) de se chocar com a moral vigente e, também, o medo do “novo”; isto é, a sujeição baixa (que mata lentamente) à rotina, a tudo aquilo que é estabelecido como “normal” e (moralmente) “aceitável”.
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Toda esta postura política descrita esconde um medo psicológico intrínseco. Para aqueles que tomam uma mínima consciência de toda essa situação e, sem se envergonhar, preferem manter o status quo, passam a chafurdar na lama, no subsolo da indignidade. As categorias mais “pequeno-aburgesadas” – geralmente no funcionalismo público, mas em alguns setores privados também – institucionalizam esta hipocrisia (com exceções, é claro). O que está minimamente bom para si – na aparência, pois é impossível um indivíduo “viver bem” realmente enquanto seus pares apodrecem na barbárie social – esconde o egoísmo mesquinho que destrói, segrega, dificulta e impossibilita qualquer avanço coletivo, seja social, sindical, político ou econômico.
           
Há também uma tendência a autoviolentação própria, a aceitação passiva de sua dominação, ao seu autocerceamento moral, intelectual, profissional e político. É a submissão passiva à violência contra si próprio. É o colonizado que veste a “camisa da metrópole” porque não tem forças no momento e não vê perspectivas imediatas de derrotá-la. Ao invés de preparar as condições para isso, prefere “juntar-se ao opressor” no sentido de lhe ser subserviente, de tentar cultuá-lo para ganhar algo em troca, nem que seja uma graça, quiçá um sorriso. Trata-se, nestes casos, de um suborno contra si próprio, que aumenta e aprofunda sua própria desgraça, sua própria opressão.
           
Em razão das descobertas psicanalíticas clássicas, podemos ver um paralelo com o “complexo de culpa”. A aceitação da autoviolência é uma demonstração da “necessidade” de autopunir-se, seja pelo Complexo de Édipo, seja pelos “desejos impuros” ou de qualquer outra ordem.

Evidentemente que esta passividade e “auto punição” dura enquanto subsistem as bases materiais (emprego, pensão, relacionamento, etc.) para que ela seja fonte de “posições reacionárias” e atrasadas que, na maioria das vezes, voltam-se contra si mesmo. Quando se perdem aquelas condições, por exemplo, muitos procuram apressadamente uma nova “força do hábito” que lhes possibilite concretizar aquelas “satisfações” momentâneas e ilusórias.

Esta submissão pessoal à opressão ajuda a burguesia a garantir a sua dominação sem precisar gastar um centavo para a repressão; muito menos “sujar as mãos” desgastando-se politicamente reprimindo mobilizações populares. Os próprios dominados se auto sabotam, transformando essas posições em um “reacionarismo militante”, que pode ser visto nas redes sociais, correntes de e-mails, nos locais de trabalho, nos sindicatos e movimentos sociais. Este “reacionarismo militante” deita raízes em um “medo profundo” que se metamorfoseia em um “amor à podridão” (ou ao “subsolo”, no linguajar de Dostoievski). A burguesia não poderia se sustentar sem ele.

Como se falou, uma das condições para a manutenção deste reacionarismo contra si próprio é a sua base material. O trabalhador suporta a infâmia, a humilhação e a autocomiseração por que tem um emprego ou alguma outra fonte de sustento econômico. Quando esta cessa, geralmente de forma brusca, surge a tendência de lutar e de se rebelar. É um momento rico de debate e de propaganda revolucionária. Por isso, o militante revolucionário deve estar sempre atento e se precaver contra este sentimento mesquinho, egoísta e de auto violência existente em um trabalhador de base.
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Andando na contra mão do que deveria ser feito, a “esquerda” reformista e conciliadora se aproveita deste sentimento para ganhar adeptos, já que o seu programa e a sua atuação política não se choca com a “força do hábito” e, muito menos, propõe uma ruptura com o velho. Pelo contrário: ela reforça este atraso por medo de perder influência política. É mais uma demonstração de como o reformismo contribui para manter o passado em estado de putrefação, o atraso intelectual, a infâmia dos trabalhadores, em suma, o capitalismo.

domingo, 7 de setembro de 2014

Brasil: um país independente?

O Brasil não é um país independente. A sua “independência” foi proclamada pelo príncipe de Portugal, Dom Pedro I, que passou a ser o chefe de Estado do “novo país livre”. A sua primeira medida de governo foi aceitar, em nome do Brasil, todas as dívidas de Portugal com a Inglaterra.

A elite brasileira especializou-se em evitar rupturas, em “fazer ‘revoluções’ antes que o povo a fizesse”; é campeã dos formalismos, das convenções sociais artificiais. Preferiu sempre ser lambe botas das elites internacionais à preparar um caminho independente para si e para o seu povo. Apenas mudou de amo: antes era serva da metrópole portuguesa, agora é da burguesia imperialista britânica, francesa e norte-americana; antes era refém do Pacto Colonial; agora é das dívidas externa/interna.

O que se comemora, então, no 7 de setembro? Uma ficção inventada para alimentar um nacionalismo subserviente, que serve às potências imperialistas internacionais. Dentro do capitalismo, o “futuro” do Brasil é ser uma colônia exportadora de matérias-primas para os mercados centrais, produtores da alta tecnologia. Nenhuma candidatura à presidência da república romperá com esse “futuro” porque não se propõem a romper com as estruturas econômicas que mantém o Brasil dependente, isto é, nenhuma se propõe a romper seriamente com o capitalismo através de uma verdadeira revolução que leve os trabalhadores ao poder.

Em contrapartida, poderíamos dizer que o 7 de setembro deveria exaltar a autêntica cultura do povo, a literatura nacional, a diversidade popular. Mas não é isso que está em jogo. Apenas desfiles militares, um falso discurso otimista no futuro e uma propaganda enganosa – feita pelos diversos governos, mas, em especial, pelo governo Dilma (PT) – que afirma que o Brasil é “um país cada vez mais independente”. A partir desse discurso nacionalista se cria uma cunha entra as diversas nacionalidades latino americanas: os povos irmãos passam a ser vistos como competidores. Não é a toa que o nacionalismo foi e continua sendo a base do nazi-fascismo e das ditaduras militares. Justamente porque o 7 de setembro é utilizado como uma data para reforçar o chauvinismo burguês, é preciso reafirmar que os trabalhadores não tem pátria, que a verdadeira independência nacional surgirá quando os trabalhadores de todos os países se unirem em uma só força para destruir o grande colonizador e escravizador de povos – o imperialismo capitalista – e abrir caminho para a revolução socialista internacional!

A nossa máxima deve continuar sendo: proletários de todos os países, uni-vos!

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Entrevista com um militante dos movimentos sociais sobre a Instituição Policial*

Eduardo Cambará é professor de História do Estado e militante do movimento operário. Marxista, participa de um grupo de oposição à direção do sindicato dos professores estaduais, o CPERS. Eduardo afirma acreditar na teoria como condição para a prática e diz que é intrínseco para o desenvolvimento da sociedade uma revolução. A entrevista que nos concedeu é de grande importância para a compreensão da realidade da instituição policial, bem como suas finalidades. Ele também explica o que é o fascismo, e qual é a diferença entre este regime e o regime democrático burguês.

Vamos começar falando um pouco da USP: a alegação pra polícia entrar lá dentro foi a insegurança. No entanto, encontraram resistência do movimento estudantil...
O reitor usou de pretexto pra poder botar a polícia dentro do campus, e usou essa questão da falta de segurança pra militarizar o campus, e infiltrou gente no movimento estudantil, pra acompanhar o movimento estudantil, infiltrou gente no Sintusp (que é o sindicato dos funcionários da USP) pra acompanhar as Assembléias, então, fez essa infiltração policial com essa desculpa da insegurança no campus. Foi uma ação conjunta tanto da reitoria da USP (do Rodas) e do Alckmin, o governador do Estado.

O reitor usou a questão da segurança como desculpa pra infiltrar a polícia na USP. Mas essa infiltração tem alguma coisa a ver com a elevação dos ânimos do movimento estudantil na universidade?
Tem tudo a ver. Porque a USP é a universidade no Brasil onde eu acho que tem quase todas as correntes políticas de esquerda, e até as que não tem no resto do Brasil tem na USP, com raras exceções. Então, tem um movimento unificado entre os funcionários, professores e movimento estudantil em geral. Então, tem uma tradição. A ocupação das reitorias começou na USP, a USP foi a vanguarda das ocupações que aconteceram em 2008. Em primeiro lugar, teve uma ocupação que foi bem significativa, que inflamou os ânimos de todo o movimento estudantil no Brasil inteiro.

Saiu até na novela, né?
Saiu na novela, saiu em tudo que é lugar, e se se popularizou esse método de ocupação de reitoria, foi graças à USP. Foi a USP que deu o primeiro passo pra esse movimento de ação. Por isso, o governo, dando a desculpa da insegurança – que, na verdade, sempre houve insegurança, em qualquer lugar, principalmente nas universidades públicas, sempre houve – agora, o pretexto pra invasão da USP se deu principalmente por causa do ascenso do movimento estudantil que teve lá, e do movimento dos trabalhadores também, Sintusp, que tem bastante corrente política lá.

É comum que se chamem os policiais de fascistas, inclusive posso citar o exemplo de Guarulhos, em que os alunos da Unifesp chamando-os de fascistas e logo são reprimidos brutalmente. A questão que eu quero te colocar é: a polícia brasileira é fascista? Dá pra dizer “polícia fascista”? Afinal, o que é o fascismo? O que tu pode me dizer sobre isso?
Olha, a pergunta é difícil porque, na verdade, o fascismo é um regime político, antes de qualquer coisa. O fascismo é um regime que surgiu na Itália e na Alemanha precedente à segunda guerra mundial e surgiu como uma forma de frear o movimento operário como um todo. Então, me parece que a polícia comete geralmente excessos, seja regime democrático ou seja regime fascista, ditadura militar, mas existe uma diferença na forma, não no conteúdo, de como age a polícia num regime democrático burguês e num regime fascista. Acredito que os alunos da Unifesp nessa manifestação que tu te referiu estão num momento de excesso, eles estão sofrendo uma repressão brutal, sem justificativa e, até pode-se dizer, que se utilizando de um método fascista, porque foram tirados à força, teve aluno que foi imobilizado, que sangrou, que apanhou... Meninas, também, que tomaram chave de braço e ficaram imobilizadas, então, foi utilizado um método fascista, mas dizer, assim, que a polícia é fascista independentemente do regime, acho que é um pouco exagerado.

Esse exagero tem a ver com o nível de revolta e ódio que as pessoas tem, não é? Já classificam como fascistas independente de qualquer coisa.
Sim. Aqui a polícia, no regime democrático, ainda tem que responder por algumas coisas, alguns excessos. Por mais que seja uma justiça burguesa, também, não vá dar nada em lugar nenhum, mas ela tem que responder, cai na mídia, ela tem em certo sentido que se resguardar de certas atitudes. No regime fascista não! No regime fascista invade sindicato, prende, bate, tortura, sequestra, leva pra sala de tortura e tá tranquilo, isso aí é a natureza do regime. Então, aí existe essa diferença, essa diferença de forma. O conteúdo é a mesma coisa.

Num texto recente da corrente sindical Construção pela Base (construcaopelabase.blogspot.com.br), vimos que os trabalhadores do PAC são torturados sem que isso receba nenhuma visibilidade em lugar algum, de forma que a polícia provavelmente não tenha que responder a nada. Isso não é uma característica do fascismo?
Primeiro é importante frisar isso: o conteúdo é o mesmo. O conteúdo da polícia, seja ela no regime democrático burguês ou no regime fascista é o mesmo, qual seja: de defender a propriedade privada, é perseguir o movimento operário. A polícia existe não pra defender pessoa que tá sendo assaltada na rua, a polícia não é pra isso, eles dizem que é, mas não é, a polícia é pra reprimir o movimento operário, o movimento estudantil, pra defender a propriedade. Só muda no regime. No regime fascista eles fazem isso abertamente, sem responder por nada, é legalizado; no regime democrático burguês, eles tem outros mecanismos pra fazer isso, embora se utilizem de métodos fascistas. Por exemplo, na desocupação do Pinheirinho, foram utilizados métodos fascistas de intimidação, bomba de gás lacrimogêneo contra família de trabalhador que não contava com nenhum tipo de arma, e gente tomando tiro com bala de borracha, só que tem essa diferença de forma nos dois regimes. Na democracia burguesa, a gente pode dizer o seguinte, que ao contrário do regime fascista onde a polícia atua de forma indiscriminada, persegue, esmaga, qualquer tipo de oposição ou resistência, sem responder nada por isso, no regime democrático burguês a gente tem uma repressão seletiva. Nem todos os atos de rua, principalmente nas grandes cidades, são reprimidos com a mesma brutalidade que os operários da obra do PAC, que o Pinheirinho, ou que tá acontecendo na favela do Rio de Janeiro nesse momento, por exemplo. No Rio de Janeiro, no Morro do Alemão, provavelmente em todas as favelas do Rio de Janeiro, estes lugares sofrem, sim, com um regime fascista. Lá é legalizado, lá isso não aparece na mídia, mas é legalizado, mas a polícia invade a casa de qualquer pessoa suspeita, seja ela ligada ao tráfico ou não, aliás, o tráfico virou desculpa pra se fazer o que bem entende, entrar em qualquer tipo de casa, prender, bater, torturar, isso aí acontece legalizado. Não precisa nem ir tão longe: na obra do PAC. Aqui na Restinga, a mesma coisa, as UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora], embora de uma forma um pouco mais branda do que no Rio de Janeiro, eu não tenho certeza, né, (no Rio de Janeira o negócio é um pouco mais pesado), aqui na Restinga tem UPP também, e o pessoal invade casa de morador, prende, ameaça, então isso aí é uma forma seletiva de fazer repressão. Não deixa de atingir a mesma finalidade de um regime fascista, por exemplo, que é intimidar, que é coagir, criminalizar a pobreza, e os movimentos sociais. A mesma coisa se dá com os movimentos sociais. Nestes não precisa haver uma repressão tão grande como era lá na década de 60, 70, na ditadura militar. Agora, reprime diretamente a cabeça, a liderança do movimento, de diversas maneiras, né. Por exemplo, no interior do Brasil, no Pará, as ocupações de terra, no Mato Grosso, enfim, Nordeste, Norte em geral, o MST vive sob uma ditadura fascista de latifundiários, do agronegócio, que persegue, intimida, mata em alguns casos. Tem o caso de Eldorado dos Carajás, em 96, o governo do FHC, onde 20 sem-terras foram sumariamente executados, mortos, empilhados lá num canto e a mídia nem tomou conhecimento. E provavelmente os jagunços e cangaceiros que fizeram isso devem continuar em liberdade.

As camadas mais pobres se revoltam mais facilmente com o sistema, pois elas estão sentindo muito mais na pele aquilo que às vezes a classe média não sente. A brutalidade econômica do sistema, isso gera uma revolta. Mas a questão é: elas são mais organizadas como classe, no sentido sindical, etc.?
Não necessariamente. Claro que têm uma tendência maior pra camada popular, o proletariado, se organizar, tem uma tendência maior, pela questão sindical, pela questão de convergência de interesses, mas não necessariamente essa repressão seja somente ao movimento sindical. Aqui não há dúvida, o movimento sindical vai ser sempre reprimido. Quando o movimento sindical sai do limite da legalidade, aí cada vez mais tentam apertar a corda: fazer greves dentro de parâmetros da justiça burguesa. Não sei se tu tem acompanhado as ultimas greves que tiveram dos professores federais, e a polícia fica tentando tornar qualquer tipo de greve inócua. E é cada vez mais difícil tu não sair de dentro da lei. Porque cada vez mais a justiça, que obviamente representa interesses de classe dentro do capitalismo, ela cada vez mais tenta colocar mordaça no movimento sindical. Então, por exemplo, uma greve dos rodoviários, 70% da frota pode fazer greve, 30% tem que continuar trabalhando. Então, é uma forma de fazer qualquer greve não ter sentido. O objetivo de qualquer greve é parar total, né, 100%, por mais que seja difícil, naturalmente. Mas vem a lei e diz que tem serviços essenciais que não podem parar. E aí, se está fora da lei, que é facilmente manejável pela justiça e pelos empresários, a polícia pode tanto reprimir quanto pode multar o sindicato e tal. Qualquer movimento que vá um pouco além vai se chocar com essa estrutura do Estado e da polícia em geral. Então, isso é certo que vai haver repressão, seja uma repressão mais dura ou mais branda, ou apenas judicial, de multa. Por exemplo, pro sindicato dos professores federais, ameaçaram multa de 170 mil reais por dia se a greve seguisse sem parar. Por que que tem o Carlinhos Cachoeira, tem tantos outros corruptos que a gente sabe que os caras roubam e saqueiam dinheiro público e ainda por cima não pagam multa nenhuma! Nem sequer metade do que eles roubaram então, quer dizer, um sindicato pagar 170 mil reais por dia se seguir a greve é uma repressão econômica não necessariamente fascista. É uma repressão “democrática”, vamos colocar assim. E agora, o que eu me referi com a criminalização da pobreza é porque não tem necessariamente um movimento sindical nesse caso, aliás, não é um movimento sindical. A pobreza, as favelas do Rio de Janeiro, a cracolândia em São Paulo, não são movimentos sociais, organizados, pelo contrário, a gente pode classificar como movimento lumpenzinato, de pessoas dependentes-químico, prostitutas, moradores de rua, enfim, assaltantes e coisas do gênero, e muitas vezes eles não fazem nada também, né. Então é uma maneira de controle social. Por exemplo, eles estavam ocupando... Não estavam fazendo nada, a não ser consumir drogas, e muito provavelmente vendendo, traficando, e não estavam fazendo nada além disso, não tinha nenhum ônus maior, não tinha necessariamente, acredito eu, aumentado a criminalidade, mas a polícia foi lá porque era um ponto nobre de São Paulo...

“Suja” a zona, né?
Suja no sentido visual, no sentido social. Enfim, é a limpeza social, higienização, que estão falando aí em função da Copa. Tirar e jogar pras periferias, não pode ficar no centro, o centro é um lugar, né... E no Rio de Janeiro é a mesma coisa, aliás, é mais complexo, um pouco mais. Provavelmente tem alguma semelhança com São Paulo, mas é que no Rio de Janeiro tem uma infiltração do tráfico no Estado. Então este recruta grande parte dos cabos da polícia, o escalão mais baixo, entre os trabalhadores, e paga um salário muito medíocre também. Se pegar um cabo da polícia militar, ou da brigada militar no Rio Grande do Sul, se pegar aqui o mais baixo escalão ele ganha muito pouco. Quando entra em contato com o tráfico é uma maneira de melhorar a condição de vida. É claro que a mídia não deu destaque nenhum, abafou, escondeu, mas ficou comprovado no Rio de Janeiro que houve uma infiltração do tráfico no Estado. Ligação inclusive com políticos em geral, Democratas, outros partidos desses da burguesia. E algumas milícias que surgiram no Rio de Janeiro eram ligadas à polícia indiretamente, como uma infiltração, e havia tipo uma guerra civil entre o Estado oficial e o Estado, vamos colocar assim, alternativo, “Estado negro”, (como se fosse o “mercado negro”). Um conflito entre duas faces do mesmo Estado, e isso aí era inadmissível. Tem que reinar um só Estado, dá pra tolerar por um tempo, mas agora o Rio de Janeiro vai sediar a Copa do Mundo, Olimpíadas, seguido, então tem que ter um controle que se estava perdendo sobre as favelas. Um controle que o Estado estava vendo, sabia, que estava perdendo, mas foi deixando acontecer, se criar, enquanto não atrapalhasse, mas agora tem dois eventos mundiais, o Rio de Janeiro começa a ficar mais visado.

Se agora esse “Estado negro” tornou-se intolerável, talvez isso explique o espaço e a visibilidade que o Freixo está recebendo, já que se posicionou contra as milícias.
É, mas ele apoia as UPPs (risos). É contraditório.

Mas tem alguma coisa a ver?
Tem também. Não só isso. Isso aí é um outro debate, do desgaste nas eleições dos partidos burgueses que o PSOL tenta canalizar com um discurso demagógico. Claro que tem a ver; o Freixo tocou nessa ferida, mas a meu ver ele é um oportunista, porque ele tocou nesse assunto, denunciou, mas não pra emancipar os trabalhadores eventuais da favela ali. Ele denunciou em nome das UPP, foi com o Lula inaugurar a UPP no Rio de Janeiro, ou com a Dilma, não me lembro se com o Lula ou com a Dilma, um desses dois. Ele foi, declarou que era um avanço e tal e a UPP é uma repressão, é uma instituição de uma polícia, vamos colocar assim, aí sim mais próxima do fascismo dentro da favela. Pra controlar as milícias, mas transcende a questão das milícias, porque reprime qualquer tipo de gente. Um trabalhador que tá chegando fora do horário do toque de recolher da favela é sumariamente preso, interrogado, questionado, provavelmente torturado, a família dele a mesma coisa. Então, a UPP transcende as questões das milícias. Isso que eu quis dizer com a repressão seletiva. Aí não necessariamente tem a ver com a questão do movimento sindical, voltando atrás ao que a gente falou, porque não existe dentro do capitalismo o pleno emprego, é inviável, é um contrassenso, a pobreza vai sempre surgir como decorrente do desemprego, do subemprego, e como não tem como resolver esse problema dentro do capitalismo, tem que manter a pobreza sob controle, tem que manter esses setores que estão mais afastados dos centros urbanos, oficiais, aceitos como civilizados, esses aí tem que sofrer uma repressão. Então, às vezes o cara não tá fazendo nada, só porque mora na favela, na Rocinha, ele sofre interrogatório, algum tipo de repressão.

O que eu queria te dizer anteriormente é que, de acordo com Trotsky no Programa de Transição, as camadas mais pobres do proletariado muitas vezes demonstram ser os guerreiros mais abnegados da revolução. Então, essa repressão é uma forma de manter os eventuais trabalhadores com medo.
Também, evitando qualquer tipo de organização. Sim, a condição material continua determinando a consciência e a forma de organização, obviamente que esses setores tem uma tendência maior a se organizar, mas não é uma regra, não é uma receita de bolo.

Tu pode ver ali no Pinheirinho, os caras improvisaram uma luta armada, com pedaço de barril, construíram escudos, com pedaços de pau, pelo que eu vi no jornal, e enfrentaram a polícia.
O Pinheirinho é um protesto distinto, porque é uma ocupação onde estão envolvidos sindicatos, organizações de esquerda, então é um pouco diferente, eles se organizavam de uma maneira diferente, em sua maioria eram de trabalhadores, tanto das fábricas quanto do comércio em geral de São José dos Campos, eles tinham uma forma de organização diferenciada, funcionavam por assembleias, decidiam tudo conjuntamente, e a polícia tentou desmerecer, a polícia infiltrou provavelmente gente dentro do Pinheirinho, tentou dizer que tinha tráfico de droga... Provavelmente até pudesse existir tráfico de droga, mas era uma coisa secundária, absolutamente alheia ao problema de habitação em geral, e em especial ao Pinheirinho. Eu pessoalmente conheci o Pinheirinho, fui em 2006 lá, e é uma ocupação de gente trabalhadora, não tinha nada disso... Tudo o que falaram na mídia pra justificar [a repressão] é tudo mentira, se houver consumo de droga, era um consumo de droga pontual, o tráfico de droga era pontual... O Pinheirinho não existia pra isso. Ele existia como gente que se organizou pra ocupar aquele espaço de terra que era do Nagi Nahas, que era inclusive um especulador, tinha um pedaço de terra que estava lá só servindo pra se valorizar na Bolsa de Valores. No Rio de Janeiro, existe sim uma autoridade maior, uma tendência maior a se organizar, agora, no Rio de Janeiro existe uma influência maior do tráfico... Ele envolve muito dinheiro, tanto é que os traficantes, como a gente vê nesses filmes em geral, em especial no Cidade de Deus, eles mexem com armas pesadas, provavelmente devem ter contato com mercador de arma, então, têm arma pesada, arma que derruba avião, então, não mexem com pouco dinheiro, mexem com muito dinheiro. E a população que mora na favela fica entre esses dois fogos: o fogo da polícia e o fogo dos traficantes, sendo que os traficantes tem essa vinculação com o lado da polícia, né, como se costumou chamar, a banda podre da polícia, (como se existisse uma banda boa), mas o que a mídia costuma chamar de banda podre é a parte que se juntava com os traficantes, e fazia isso nas horas livres, enquanto que nas horas oficiais ia lá e fingia que estava cumprindo o seu papel.

Segundo os meios de comunicação hegemônicos, como a RBS, inclusive nas faculdades e entre partidos políticos, o marxismo é algo do passado. Ele não tem mais validade pros dias atuais. Pra Marx, o Estado é um instrumento de opressão de uma classe sobre outra. Recentemente eu li num livro do governo sobre a polícia que falava que lá no período colonial a polícia era conformada estritamente por brancos, excluindo negros, índios, mamelucos, e o próprio livro atesta que essa polícia era feita pra defender uma minoria contra uma maioria. Embora o livro apresente outras coisas mais adiante que contradizem, esse trecho em particular está de acordo com o dizer marxista, de que a polícia é feita pra oprimir. Pra ti, o marxismo ainda tem validade neste aspecto? E em outros?
Acho que não tem nenhuma teoria sociológica, histórica, que tenha superado o marxismo. Pelo contrário, eu acho que essa tentativa de renegar o marxismo, de desmerecer o marxismo, de enterrá-lo, visa justamente esconder essas questões que ele levantou e trouxe à luz, como a questão da polícia, a questão do Estado, a quem este serve, a questão das classes sociais. Então, na verdade, agora é o momento, já passados 20 anos, de fazer um balanço da teoria que circulava no meio acadêmico de que o socialismo morreu, de que é o fim da história, de que as classes sociais não existem, de que o marxismo foi superado, porque isso não é verdade. Primeiro, como pode ser superada uma teoria que é baseada na dialética, que reconhece que a única coisa que não muda é o movimento, que tudo está em eterno movimento, como superar uma teoria que é baseada na dialética materialista?

Fugindo um pouco do tema principal, mas já que tu falou de dialética, a gente vê por aí que algumas pessoas falam que: “Não, a dialética tem um erro, se a gente chegar no comunismo e não existir mais contradição de classe, então não vai mais existir evolução, porque a contradição é a base da evolução”. Eu acho isso um pouco absurdo, porque talvez não exista uma contradição de classe, mas vai existir contradição sempre, contradições psicológicas, existenciais, todo tipo de contradição, e vão ser muito mais exploradas do que nos é permitido agora com o capitalismo.
Sem dúvida nenhuma... A gente tá fugindo bem do tema, mas não há dúvida, isso aí é uma maneira de desmerecer a dialética e o marxismo com um argumento aparentemente racional, aparentemente bem fundado. Mas, enfim: primeiro que o Engels falou assim: “Deixemos o comunismo para os homens do comunismo, nossa tarefa principal é derrubar o capitalismo”. Se a gente ficar tentando imaginar como vai ser, a gente não vai olhar pro aqui e o agora, que é o mais importante, onde as contradições são bem claras e tangentes. Agora, é evidente, e isso está claro em toda a obra tanto do Marx quanto do Engels, e do Trotsky e do Lênin, que a contradição não vai deixar de existir nunca... O movimento, a base da dialética materialista, se dá através da contradição. Não existe movimento que não tenha contradição. Agora, do ponto de vista do marxismo, o que o comunismo visa é o fim das contradições de classe. Então, acabando as classes sociais, essa e unicamente essa contradição vai acabar, mas inúmeras outras contradições vão surgir, vão ser resolvidas em outro patamar. Contradições até mesmo econômicas, não necessariamente ligadas à classe social, mas a questão de matéria prima e bens de consumo, questões que provavelmente os homens do comunismo é que vão ter que resolver, né?

A tão falada sustentabilidade...
Sustentabilidade, dentre tantas outras. Mas voltando à questão do marxismo que tu falou e que eu ainda não respondi. Não existe nenhuma outra teoria, nenhuma outra, seja ela do Durkheim ou Max Weber, do Augusto Comte, seja ele quem for, que seja tão precisa quanto o marxismo nesse aspecto. O Estado é um instrumento de dominação de classe, isso está comprovado; a cada novo estágio histórico surge uma classe que tenta remodelar o Estado de acordo com os seus interesses, e se ela não consegue ela é derrubada, e se ela consegue aí começa um novo estágio do desenvolvimento histórico. Desde os princípios, o Estado surgiu pra manter os escravos trabalhando, depois o “Estado” feudal (não era bem um Estado na concepção moderna) para manter os servos trabalhando e a ordem social funcionando e, enfim, o Estado burguês moderno, que a burguesia tenta fazer crer que é o suprassumo da democracia, que não pode nunca mais existir uma democracia melhor do que essa, quando, na verdade, não existe democracia pra população trabalhadora, em nenhum campo... A democracia é uma ilusão, não existe democracia no lugar de trabalho, não existe democracia nas empresas, não existe democracia nas greves... O diálogo democrático que o governo do PT tenta vender, não existe... Não existe democracia nas favelas, isso aí tá comprovado com tudo o que a gente já falou até agora. Existe uma dura repressão à pobreza, criminalização dos movimentos sociais, e quando a gente diz assim que o Estado é um instrumento de dominação de classe, o marxismo também traz pro concreto, ele não deixa no ar, ao contrário das outras teorias, dos outros pensadores. Eles não colocam no papel claramente: como é que se dá essa dominação de classe? A principal forma é o Exército e as Forças Armadas, dentre elas a polícia, né, a polícia é tão antiga quanto o Estado. Onde existiu classe social, existiu formas de repressão e coação, de manutenção da ordem através da força, da violência organizada. Então a polícia pro marxismo, resumindo tudo, tem a finalidade não de evitar furto ou assalto, isso aí é uma coisa que ela faz secundariamente, quartenariamente. O principal papel dela é proteger a propriedade privada, reprimir greve, os movimentos sociais e manter a ordem do capital – essa é a principal função dela.

Uma das coisas que se conversa é: se a polícia não serve, se a polícia deve acabar, quem é que deve proteger as pessoas? Por mais que a proteção seja uma questão secundária como tu tinha dito agora, ou quartenária, a questão da segurança ainda é importante, porque enquanto existir capitalismo, enquanto não existir uma sociedade plena, livre pra todos, vão existir interesses mesquinhos, vão existir pessoas doentes, enfim, vai existir todo tipo de mazela. Eu costumo colocar que é preciso inventar uma outra polícia, diferente, que não fosse corrupta, que não fosse servil as capitalistas... Tu concorda com isso? Em que termos aconteceria?
O termo “polícia” remete a repressão, a esse controle social que é exercido em especial no capitalismo. É que não tem como dissociar a questão da polícia e da repressão da repressão econômica. Por que que existe repressão? Porque existem possuidores e despossuídos.

O Freud falava que é impossível não existir coerção enquanto a gente continuar distribuindo os bens dessa maneira. A questão é: sempre o mesmo tipo de coerção?
É bom ter tocado no Freud porque o Freud e o Marx é que vão ajudar a arrumar o meio de campo da teoria futuramente. Mas dentro do capitalismo a violência nunca vai acabar, impossível; a violência vai mudar de forma, tá em ascenso ou descenso, mas tem coisas de violência, tá aí a prova dos morros cariocas, da criminalidade que acontece em todas as cidades brasileiras, homicídio, isso aí vai continuar existindo porque é uma mazela que é reflexo da desigualdade social. Uma sociedade doente, neurótica, uma sociedade que é mais importante tu ter, consumir, tu é um reflexo do que tu tem, se tu não tem nada tu não é nada. Então, isso vai continuar existindo enquanto existir capitalismo. Quando a gente coloca outra polícia, é inviável existir outra polícia se tu não destruir o Estado e colocar um Estado socialista no lugar do Estado burguês, o Estado capitalista. Fazer uma revolução, em essência, sem papas na língua. Não tem como tu colocar o problema de uma outra forma de organização pra controlar esses excessos pessoais que tu te referiu se não mudar o Estado. Enquanto existir o Estado burguês vai existir a polícia burguesa e enquanto existir Estado burguês vai existir propriedade privada e as desigualdades sociais.

Mas, seguinte: nesse processo da revolução é preciso gerar uma força contrária às Forças Armadas, às forças policiais que sustentam o Estado burguês.
Sim. Mas uma coisa é um exército como foi o Exército Vermelho. Vamos nos basear então no concreto, não vamos falar em coisas que eu acho que é ou não é. A Revolução Russa: surgiu o Exército Vermelho, formado em sua maioria por operários, os operários mais conscientes, que foi a vanguarda da organização do Exército, com alguns quadros, com alguns militares antigos que por coação ou por livre vontade se somaram ao Exército Vermelho. Então esse é o exército que resistiu bravamente à invasão de 14 exércitos imperialistas estrangeiros e conseguiu rechaçar essa intervenção internacional. Agora, a polícia, do ponto de vista civil, do ponto de vista da população em geral, ela foi substituída por milícias populares, organizadas pelos trabalhadores através dos sindicatos, pra evitar qualquer tipo de excesso porque as mudanças econômicas, mesmo sendo uma revolução, não são automáticas, vão permanecer na consciência durante muito tempo ainda muitos resquícios do passado, muitas picuinhas, mesquinharias, muitas coisas que é preciso se reeducar pra surgir um novo homem, né? Então, provavelmente ainda vai ser necessário um certo tipo de força de ordem. Mas aí não podemos chamar de polícia, nem vai ter a mesma finalidade. Lenin chamava de milícias populares, os operários armados, organizados pelos próprios sindicatos, pelos soviets, no caso da Rússia, os trabalhadores em armas que vão, por exemplo, cuidar qualquer tipo de excesso que não esteja na lógica da nova ordem social, socialista, vamos colocar assim. Aí tu tocou no Freud, né, o Freud diz que existe uma tendência natural no ser humano à agressividade, independente da questão econômica, uma tendência de amor e de ódio, uma tendência intrínseca. Essas tendências, por exemplo, o estupro de uma mulher, uma agressão a alguém, pra isso vai haver a necessidade de um poder de coação, quiçá num regime socialista já mais desenvolvido, que a gente não teve a oportunidade de conhecer, talvez ainda seja necessário esse tipo de força pra evitar esses excessos, seja eles quais forem, pra conter qualquer tipo de excesso que venha nesse sentido. Agora, o essencial, e aí é importante pra todas as pessoas que levantam essa pergunta de “ah! o que que vai segurar a ordem social, o que vai surgir?”, o que vai segurar o socialismo é a questão econômica, é tu acabar com a desigualdade de liberdade de emprego, gerar a democracia econômica, que é o mais importante, que não existe. Hoje a gente pode ir lá fazer um protesto, falar o que tu quiser do governo, tu até pode, pode ficar berrando na frente do palácio do governo o dia inteiro; vai te cansar, vai ficar ali berrando, gastando a tua voz, agora, a liberdade econômica não existe... Decidir meta, ter emprego, não existe liberdade de emprego! As pessoas estão condenadas a morrerem quietas, passivas, num canto, esperando. É introjetada na psique delas uma culpa, de que elas são vagabundas, de que elas não trabalham, de que elas não estudaram, disso, daquilo, então, o essencial é a questão econômica. Resolvendo essa questão econômica, há uma tendência a diminuir drasticamente qualquer nível criminal, de assalto, de morte, de homicídio, de estupro, e, ao mesmo tempo, havendo uma inclusão social geral, a questão da neurose social que a gente vive hoje, há uma tendência dela ir se extinguindo também. Mas isso aí, como o Engels disse, é pros homens do comunismo, agora a gente tem que só preparar o caminho pra isso.

Como definir o fascismo mais precisamente?
Pra não deixar passar em branco: a questão do fascismo: primeiro, antes de entender o que é a polícia fascista tem de se entender o que é o regime fascista. O regime fascista é um reflexo do ascenso do movimento operário, e isso é uma coisa que a gente está começando a ver no mundo todo. Quando os trabalhadores começam a levantar a cabeça, quando rompem com a alienação, se dá o fascismo. Num regime democrático burguês, os trabalhadores estão alienados, senão não existiria regime democrático burguês, a alienação é o que deixa o regime existir, uma alienação generalizada, desorganização, conformismo, quando isso existe a burguesia tolera o regime democrático burguês. Quando se rompe essa alienação, começa a se organizar, a organizar greve, tomar consciência, começam a querer interferir na política, começam a unificar as lutas, começam a ter relações internacionais, aí a burguesia dá um passo adiante, aí ela não tolera esse tipo de coisa. A fachada democrática, a máscara democrática cai, ela [a burguesia] começa a usar métodos mais severos. A repressão que está acontecendo nos movimentos atuais está num crescente, se tu for vendo a questão da justiça, da polícia, as repressões estão aumentando, estão ficando mais pesadas, mais truculentas, cada vez mais. Compara com a polícia na Europa, que se dizia "Estado Democrático de Direito", e vai agora olhar as manifestações da Espanha, de Portugal, da Grécia, a polícia tá cada vez mais truculenta. Agora, quando os trabalhadores começam a se organizar, começam questionar os interesses mais fundamentais da burguesia, e quando os trabalhadores começam a se organizar, nesse ponto temos uma instauração do regime fascista aberto. Esse foi o caso da Itália, da Alemanha, onde a burguesia democrática começa a bater cabeça, não sabe o que fazer, ou até sabe mas não tem unidade pra isso, então uma ala do Exército toma a decisão por ela. Inclusive com a ditadura militar brasileira, foi a mesma coisa: a ditadura militar brasileira foi um regime fascista, onde a repressão nada seletiva, a repressão a tudo e a todos... Inclusive a burguesia não prefere esse regime, ela prefere a democracia burguesa, porque uma parte dela, a chamada “burguesia democrática”, também é reprimida, também acaba tendo que perder certos direitos. É o caso do Brizola, dentre outros, o José Serra que acabou sendo perseguido pela própria ditadura. O que explica isso? A burguesia, quando chega num estágio de desespero, num regime fascista, o Exército e a polícia passam a ser uma burocracia autônoma, que reprime quem tiver qualquer tipo de resistência aos seus interesses por menor que seja. Então aí a polícia cumpre um papel abertamente de repressão, não presta conta de mais nada, reprime, esmaga, qualquer tipo de oposição existente. Então essa é uma diferença nada sutil entre um regime democrático burguês e um regime fascista.

Boa parcela da população critica os movimentos sociais em suas manifestações porque trancam o trânsito, causam “baderna” (dá pra citar o caso do tatu-bola da Copa do Mundo, um caso bem particular, que começaram dançando em volta e depois estouraram o boneco), depredam o patrimônio público, etc. Justifica-se então a repressão policial. Até que ponto uma manifestação tá dialogando com as pessoas ao redor trancando o trânsito, por exemplo, e até que ponto não é justificada essa repressão, de repente pra manter a ordem, ou se é uma desculpa pra reprimir...
Olha... Eu acho que é um pretexto pra reprimir porque se existe depredação, pichação do patrimônio público, então qualquer tipo de autoridade tinha que interpretar como algum problema social que não está sendo atendido, a população não está sendo ouvida... Deveria ser tratado dessa maneira. Por exemplo, a “depredação” do tatu-bola é um rechaço à Copa do Mundo – que eu acho que a burguesia sabe que é, mas obviamente não pode assumir – que vai desviar bilhões de dinheiro público pra bolso de políticos, de banqueiros, de empresários, sendo que existem milhares de outras necessidades mais prementes do que a Copa do Mundo e do que construir estádio. Então, é uma demonstração popular do ódio à Copa do Mundo, que o Brasil precisa de tudo menos de Copa do Mundo! Então, é um pretexto [pra reprimir]. Mas aí tu chegou a tocar em outro ponto, que tem a ver com o tino da direção política do ato, da manifestação, embora às vezes seja espontâneo, acredito que o do tatu-bola foi espontâneo, não foi algo premeditado nem organizado, acabou acontecendo pelo momento, mas geralmente os atos são organizados pelos sindicatos, pelas organizações de esquerda. Então, acho que cada organização de esquerda tem que tem um tino político pra saber na hora o que que causa impacto. Eu acho que, dependendo do tamanho da organização, trancar uma via pública com pouco apoio do movimento da população geral causa um desgaste desnecessário. Agora, uma paralisação de milhares de pessoas, que é inclusive inevitável que se tranque o trânsito, né?, aí são outros quinhentos. Eu acho que os movimentos sociais têm que se reciclar, tem que pensar em novos métodos. É claro que a burguesia quer jogar a opinião pública contra os movimentos sociais: “são um bando de vândalos, de baderneiros, etc., etc., etc.” Ela desmerece totalmente as reivindicações que o movimento tem. Mas a burguesia, como eu já ouvi falar uma vez na mídia, no rádio, quer que o movimento fique em cima da calçada, gritando, não interessa se vai ser atendido pelo governador, pelo prefeito, pelo presidente, daí tu fica lá berrando, gastando energia dentro da ordem e dos bons costumes, que pra eles manifestação é isso. Uma manifestação que é inócua, que vai servir de muito pouca coisa, mas aí vai de caso a caso, aí vai do tino político da direção política saber entender o que pode ser feito no momento ou não, tratar o ato como uma forma de denúncia pública, de chamar atenção, de angariar mais pessoas, tentar ir crescendo, fazer sempre um crescente, conquistar o apoio e não rechaçar... Embora às vezes seja difícil, porque a mídia tá sempre cumprindo o papel de desmoralizar. É difícil achar esse tino, essa sintonia, e a mídia vai estar sempre jogando contra, então é inevitável que vá ter gente contra, justamente porque acaba tendo a sua cabeça feita pela mídia... Mas tem que saber fazer do limão uma limonada, como se diz. Só para dar um exemplo singelo, usando o exemplo dos rodoviários do Nordeste, não sei se foi Recife ou Natal, uma greve dos rodoviários, e a Justiça decretou que os 40% ou 30% da frota tinha que continuar em circulação e que não podia ter 100% de adesão á greve porque senão iam ser multados e a polícia ia poder intervir, etc., etc. Pelo que eu fiquei sabendo, não havia correlação de forças pra piquete, pra fazer a categoria inteira parar, e nem havia consciência política a tal ponto pra categoria paralisar, então qual foi a ideia que não sei qual corrente, partido – não sei se foi espontâneo também – teve, que foi uma jogada muito inteligente. Esses 30% que tinham que trabalhar se revezando, falaram “tudo bem, nós vamos trabalhar, só que nós vamos dar passe livre pra população”. Então, fizeram isso, continuaram atingindo a finalidade política que era estancar o lucro da burguesia, que somente é aí que eles nos escutam, fora isso nunca que vão nos ouvir, e ao mesmo tempo ganham a simpatia da população. Mídia, por exemplo, campanha contra, não, como vai fazer campanha contra se a população tá andando no ônibus de graça, o que, aliás, deveria ser um direito – ônibus [livre transporte] deveria ser um direito. Então, só pra dar um exemplo mais ou menos como é que eles se saíram nesse caso contra a mídia, contra a polícia, contra a Justiça, foi uma saída inteligente. Diferente de se apegar sempre a uma receita de bolo: “ato de rua tem que trancar rua”... Não. Depende do ato. “Ah! ato de rua tem que quebrar tudo senão não é ato, senão não valeu!”... Não. Depende. Às vezes é fundamental tu ser ouvido e tu ter uma negociação, talvez tu tenha que apelar, tu tenha que quebrar alguma coisa pra ser ouvido, agora quebrar por quebrar, demonstra alguma coisa, que eles sempre interpretam como vandalismo, não como problema social, então... Por isso que eu falei que vai do tino de cada direção política de cada ato, cada finalidade, de cada noção, de cada tipo de noção programática que cada organização tem.
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*Entrevista publicada originalmente em 2012 no blog www.avantefilosofia.blogspot.com (atualmente fora do ar).