terça-feira, 30 de setembro de 2014

Perguntas e respostas sobre a Revolução Cubana

Esta entrevista foi concedida em 2013 a uma jornalista de um portal da internet do litoral gaúcho por um militante dos movimentos sociais.

1 - Fidel Castro há 44 anos assumiu o poder em Cuba, em 1985, quase 25 anos após a revolução de 1959, alcançou índices surpreendentes, mesmo com o embargo americano. Em 1959 eram 2 mil universitários, em 1985, 28 mil. O país erradicou o analfabetismo, a desnutrição infantil, reformou os prédios culturais. Praticamente erradicou a prostituição, e o desemprego chegou a 3%. Números semelhantes a países de terceiro mundo. Como acha que o país conseguiu tantas realizações? (Dados retirados do livro Fidel e a Religião de 1985).

Tudo isso só foi possível graças aos métodos socialistas de produção e distribuição. Quando Cuba era um país capitalista neocolonial, além do baixo número de universidades e do alto índice de analfabetismo, lhe era imposto o monocultivo de açúcar, ao mesmo tempo em que lhe proibiam a construção de fábricas. Sendo assim, Cuba comprava dos EUA não só automóveis, as máquinas, os produtos químicos, o papel, o vestuário, mas também arroz, feijão, alho, cebola, carne e algodão. Veja o contrassenso: um país agrícola importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia. Enquanto isso, a maioria das terras das centrais açucareiras eram extensões ociosas e improdutivas. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47% da área açucareira total e faturavam cerca de U$180 milhões por safra. A riqueza mineral – como o níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio – fazia parte das reservas estratégicas dos EUA, sendo proibido aos governos fantoches explorá-los sem a sua permissão. Che dizia que “o sistema latifundiário, tanto em sua forma de exploração primitiva, quanto em sua forma monopolista, adapta-se às condições internacionais e torna-se um aliado do imperialismo. Esta forma de exploração pelo capital estrangeiro cria uma economia de tipo colonialista, chamada eufemisticamente de ‘subdesenvolvimento’”. Os EUA exploravam a terra e os minerais de acordo com as exigências do seu exército e da sua indústria. Em 1958, Cuba tinha mais prostitutas registradas do que operários mineiros. Um milhão e meio de cubanos estavam desempregada total ou parcialmente. Esta era a estrutura que o capitalismo reservava para Cuba na divisão internacional do trabalho.

O triunfo da revolução propiciou ao governo cubano a ruptura com este modelo e criou as condições para a destruição das estruturas econômicas desta submissão. O açúcar, que antes era o produto da humilhação e da submissão, tornou-se de início, nas mãos do governo revolucionário, uma forma de investimento em outras áreas. Fábricas e universidades passaram a ser construídas, por exemplo. Tudo é uma questão de prioridade. Para o capitalismo, o que interessa é o lucro privado. É por isso que as ditaduras capitalistas anteriores à revolução de 1959 atraíam os investimentos privados norte-americanos através da entrega da maior parte das suas terras produtivas e das riquezas minerais. O governo de Castro, ao contrário, logo depois da tomada do poder apostou no investimento social: educação, saúde, reforma agrária.

Contudo, todo o processo revolucionário é contraditório. Estas mudanças são extremamente penosas e difíceis. Cuba sofreu, como é sabido, com o embargo comercial imposto pelos EUA, pela carência de mão-de-obra técnica qualificada, baixa produtividade do trabalho e pelo isolamento internacional, uma vez que a revolução não se expandiu para os demais países da América Latina. Em suma, todas estas mudanças que tu citaste só foram possíveis porque a revolução de 1959 rompeu com o capitalismo e optou pelos métodos socialistas; muito embora, é preciso dizer, que nunca tenha existido socialismo plenamente na ilha e nem em outra localidade do mundo, apenas passos neste sentido.

2 - Em contrapartida, a realidade de 1985, Cuba hoje, vive uma crise lastimável. A prostituição é uma atividade normal, não por opção, mas pela pobreza que assola o país. Apesar da saúde, da cultura ter avanços, o povo não parece feliz. Como um país que alcançou números tão surpreendentes em 1985 chegou a queda? (Dados retirados do livro Havana do jornalista Airton Ortiz e de conversas com visitantes do país).      

Para responder esta pergunta é preciso definir alguns conceitos, retomando o que foi dito antes. É preciso dizer que em Cuba – assim como na ex-União Soviética, China e Coréia do Norte –, nunca existiu “socialismo” e, tampouco, “comunismo”. O revolucionário russo, Leon Trotsky, chamava estes países de “Estado Operário”. Isto é, um estado controlado pelas organizações dos operários, que promove as relações socialistas de produção – a propriedade coletiva, o monopólio do comércio exterior, o controle operário da produção, a economia planificada, etc. –, e que está em transição entre o capitalismo e o socialismo. Ou estes Estados conseguiriam expandir a revolução socialista aos outros países – principalmente aos imperialistas –, aí sim, atingindo o socialismo, ou retrocederiam ao capitalismo.

É preciso refletir também nas dificuldades da ruptura de um país subdesenvolvido com a estrutura do monocultivo agrário, razão do seu atraso. No 1º dia após o triunfo da revolução se constatou que o desenvolvimento industrial cubano era muito pobre e lento. Mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as pouquíssimas fábricas com tecnologia moderna eram telecomandadas diretamente dos EUA. Quando o governo revolucionário iniciou o processo de nacionalização houve uma enorme fuga de capitais e técnicos, que foi amplamente incentivada pelos EUA. Já não era possível solicitar apoio via telefone, uma vez que os EUA boicotaram a revolução de todas as formas possíveis, e os raros técnicos que conseguiriam reparar os defeitos secundários tinham ido embora também. Che, como ministro da indústria, muitas vezes reclamou da carência de peças de engrenagem para a indústria, que somente poderiam ser fornecidas pelos países imperialistas. O imperialismo cultivava esta política como forma de manter os países subdesenvolvidos permanentemente dependentes dos centros imperialistas. A tentativa dos EUA continua sendo a de sufocar a revolução por todos os meios possíveis: econômica, política, militarmente. Os críticos de Cuba precisam levar em consideração todos estes fatores e, sobretudo, que o país tinha, como diz Eduardo Galeano, “as pernas cortadas” em função da dependência econômica e que não lhe foi nada fácil andar por conta própria – como geralmente o é em todos os processos históricos que iniciam uma nova era de desenvolvimento.

Como já foi dito, a planificação econômica socialista mostrou novamente sua superioridade ao mercado capitalista no que tange ao melhoramento das condições sociais da população. Se Cuba erradicou o analfabetismo, desenvolveu a medicina, popularizou a assistência médica e eliminou a prostituição e o desemprego foi graças a estes métodos. Mas a planificação econômica socialista não pode fazer milagres por si só, uma vez que Cuba, por opção da burocracia dirigente, não se industrializou plenamente, tornando-se extremamente dependente da tecnologia vinda da URSS. A primeira causa disto está na sua direção política. Castro selou o destino da revolução cubana quando optou por não expandir a revolução internacionalmente. É célebre a sua frase dita frente ao processo revolucionário nicaragüense para acalmar as relações com o imperialismo: “Nicarágua não será outra Cuba”. O governo cubano adotou a política stalinista de “socialismo em um só país” na sua nova formulação de “coexistência pacífica com o imperialismo” (cerne do que a historiografia burguesa chama de “Guerra Fria”). Desde a década de 1960 que os EUA chantageiam a OEA para que nenhum estado latino-americano e mundial comercializasse com Cuba. Ficou célebre o caso do Uruguai, que deixou de comercializar com Cuba a sua carne de charque a partir de 1965, somando-se ao bloqueio determinado pela OEA. Foi assim, sob pressão do imperialismo ianque, que o Uruguai estupidamente perdeu o seu último mercado para este produto. Além do charque, inúmeros outros produtos de primeira necessidade foram impedidos de chegar à Cuba pelo bloqueio norte-americano. É possível deduzir daí as tremendas dificuldades as quais a população cubana foi submetida.

A partir da década de 1990, sobretudo após a restauração do capitalismo na ex-URSS, o governo cubano iniciou a sua restauração capitalista que levou a adoção das seguintes medidas: dolarização da economia, incentivo ao capital externo e legalização da propriedade privada. Muito antes do governo de Raul Castro, em meados de 1992, que o governo castrista legalizou a propriedade privada e destruiu, definitivamente o monopólio do comércio exterior – um dos pilares de um Estado Operário –, permitindo às empresas estatais e particulares o comércio direto com o estrangeiro, que não tardou a entrar na ilha para explorar a agricultura e o turismo. Estas medidas destruíram a possibilidade de planificação econômica socialista – outro princípio deste sistema –, já abaladas, por sua vez, por outras medidas de descentralização econômica. Foi instituída também, a partir deste momento, uma medida típica do capitalismo neoliberal: a autonomização do Banco Central. Em 1994, como reflexo da lenta reabertura capitalista, cerca de 80% da produção da tradicional indústria da cana-de-açúcar volta a ser privada. O mercado privado difunde-se novamente por toda a economia. Mas ainda havia uma contradição a ser superada pelo imperialismo: o governo revolucionário, que derrubou a ditadura capitalista de Batista em 1959 e desafiou os EUA, continua à testa do Estado. Este governo, sob hipótese alguma, pode ser aceito pelo imperialismo norte-americano. Por isso, a sua campanha política internacional – feita insistentemente por todos os meios de comunicação tradicionais – centra sua artilharia na reabertura democrático-burguesa, demonstrando as mazelas sociais e a violação dos direitos humanos em Cuba, mas omitindo que estas mesmas violações ocorrem a nível mundial e de forma sistemática nos países que os EUA apóiam e sustentam, como no Egito, Líbia, Iraque, Afeganistão, Arábia Saudita, Israel, Palestina, Colômbia, etc.

Uma economia “socialista” não pode permanecer isolada, sob pena de degenerar e de voltar ao capitalismo, uma vez que o socialismo somente pode se realizar em âmbito internacional. Enquanto isso não acontecer, algum nível de intercâmbio com os países capitalistas se torna inevitável. Principalmente nos países atrasados, a socialização da economia deve ser feita de forma gradativa, de acordo com o grau de desenvolvimento das forças produtivas (mão de obra, matéria-prima e tecnologia). O comércio com os países capitalistas do entorno de Cuba era inevitável, mas há uma profunda diferença entre o comércio sob direção de um governo que mantém os pilares de um Estado Operário, controlando os capitais que entram e saem do país; e de um governo que começa a destruir estes pilares em nome da busca por este comércio, facilitando e incentivando a entrada do capital privado e imperialista (no caso, do imperialismo europeu).

Acho a questão levantada sobre a “felicidade dos cubanos” um tanto vaga. Acredito que isso se refira a falta de democracia de base e a consequente burocratização do Partido Comunista Cubano e do Estado. Frente a isso, é preciso dizer que a questão da ausência de democracia operária e dos conselhos operários são reflexos da adoção da política stalinista e do isolamento econômico e político internacional; ou seja, da ausência do triunfo de outros processos revolucionários pelo mundo, mas em especial na América Latina.

Então podemos resumir os fatores que contribuíram para o retrocesso da revolução cubana da seguinte forma: o governo Castro não avançou, desde 1959, no sentido da democracia operária. Este fator, conjuntamente com o embargo econômico ianque e o isolamento internacional, foi um grande entrave que criou as condições para a burocratização do Estado Operário cubano. A falta de quadros técnicos capazes, a incompetência da administração em muitos ramos da produção, o embargo econômico, a adoção da política de “socialismo em um só país” e a temerosa resistência à imaginação criadora e à liberdade de decisão dos trabalhadores de base continuaram interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Todos estes elementos criaram as condições para o início da restauração do capitalismo. Hoje podemos afirmar que o capitalismo está restaurado em Cuba, apesar da burocracia castrista continuar a frente do Estado. Esta é a raiz do retrocesso que vem ocorrendo nas conquistas sociais da ilha desde fins do século passado.

3 - A queda da URSS em 1989 colaborou com a crise cubana?

Sim, e da forma mais decisiva possível. Em um país que foi isolado pelo inimigo, o intercâmbio com a URSS foi fundamental. O combustível que não era refinado pelas empresas norte-americanas em função do embargo, por exemplo, era feito pelas refinarias soviéticas. Produtos e bens industrializados eram comercializados com Cuba em troca de açúcar. Os artigos de primeira necessidade também eram fornecidos pela URSS. Porém, em função desta troca comercial, a burocracia stalinista da URSS incentivou o estancamento da industrialização cubana, fornecendo-lhes todos os seus produtos à preços baixos. De certa forma impediu a superação total da estrutura agrária.

Sobre isso cabe uma reflexão particular: o mais correto seria chamar o fim da URSS de “restauração do capitalismo”, e não “queda”, uma vez que este processo foi incentivado conscientemente pelo imperialismo através dos seus agentes no seio da burocracia stalinista do PCUS. Esta política ficou conhecida como “Perestroika”, que destruiu com um discurso “socialista”, todos os pilares do Estado Operário soviético. Com o fim da URSS, Cuba aprofundou o seu isolamento internacional. Seguindo os passos da restauração russa, Castro não abandonou o discurso “socialista”. Esse jogo duplo confundiu os trabalhadores e foi utilizado pela mídia burguesa como demonstração de que o regime de Cuba é “comunista”, pois quem ainda continua no poder é o velho Fidel. O que, conforme discutimos, não é verdade.

4 - Historicamente, você acredita que Cuba possa voltar a viver o apogeu, como isso seria possível?

Com o atual governo cubano e a restauração do capitalismo é praticamente impossível. Somente um novo ascenso dos operários e camponeses cubanos poderia reviver aquele apogeu histórico. Para isso era preciso uma nova direção política para o proletariado cubano, isto é, um novo e autêntico partido revolucionário, que revertesse os processos da restauração capitalista e concretizasse uma medida política que não foi feita pela burocracia castrista: a criação de conselhos operários, isto é, a instauração da democracia operária. A partir daí seria necessário restabelecer o monopólio do comércio exterior e a planificação econômica, retomando os métodos socialistas de produção, visando a expansão da revolução aos demais países do mundo e, em especial, à América Latina. Porém, a burocracia castrista é um impeditivo para isto. Para se concretizar todo este programa infelizmente é preciso lutar contra ela também, que está fazendo o oposto disso tudo.

Eu acredito que somente munidos de um programa revolucionário como este, adaptando-o à realidade concreta que vive a ilha, os trabalhadores cubanos poderiam retomar o seu velho apogeu!

5 - Você acredita que uma revolução semelhante a de Cuba poderia ser implantada no Brasil?

Acredito! Não só acredito como acho que seria a única saída para um país marcado pelo neocolonialismo, pelo analfabetismo, pela corrupção, por profundas e vergonhosas desigualdades sociais. Enquanto existir capitalismo no Brasil esta será sempre a sua realidade. É preciso construir uma saída revolucionária e socialista, caso contrário, só veremos aquelas mazelas aumentarem incessantemente. Mas para que essa revolução seja possível é preciso avaliar as condições específicas da realidade brasileira, que são bem distintas da realidade cubana, tanto no tempo quanto no espaço, e levantar um programa revolucionário em nosso país visando organizar o proletariado brasileiro, que hoje está profundamente desorganizado. A primeira tarefa nesse sentido seria a edificação de um partido revolucionário que conscientizasse e organizasse o povo – partido este que hoje não existe; ou seja, um partido que cumpriria o mesmo papel que cumpriu a guerrilha de Fidel e Che de 1956 até 1959. Este partido deveria também acertar contas com o oportunismo político que reina nos sindicatos e nas fileiras do movimento operário, dirigido pela atual “esquerda”: PT, PCdoB, PCB, PSOL, PSTU, PCO, etc. Estes partidos abandonaram definitivamente a estratégia revolucionária, apesar de falarem em “revolução” nos dias de festas, como em congressos e nos primeiros de maio. É preciso dizer que estes partidos de “esquerda” estão profundamente adaptados e integrados à democracia burguesa brasileira, por isso falo da necessidade premente de superá-los.

Nenhum comentário:

Postar um comentário