Na consciência humana, o mundo aparece
completamente diverso daquilo que na realidade ele é:
aparece deformado em sua própria estrutura, separado de suas efetivas
conexões.
Torna-se necessário um peculiar trabalho mental para que
o homem do capitalismo penetre nessa fetichização
e descubra, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro,
preço, etc.)
que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência,
isto é, a de relações sociais entre os homens.
(Gyorgy Lukács)
É muito comum ver trabalhadores expressarem posições reacionárias que
são contrárias aos seus interesses históricos e, às vezes, imediatos. A maioria
deles não é de partido, correntes sindicais ou estudantis, não possuindo,
portanto, vida política ativa (em alguns casos podemos ver também trabalhadores
de organizações políticas oportunistas manifestando posições reacionárias). Como
pode ser possível alienar um indivíduo ao ponto dele defender posições
políticas que lhe oprimem?
Em primeiro lugar, não há dúvidas, está a alienação política, a falta
de conhecimento e a má versação nos assuntos políticos. Quem não quer entender
a política e o sistema econômico em que vive torna-se presa fácil da alienação.
Soma-se a isso o desgaste do “socialismo”, fruto da restauração capitalista na
ex-URSS, leste europeu, China e Cuba, e a subsequente campanha ideológica
mundial da burguesia para desmoralizar o socialismo e o marxismo, feita,
sobretudo, nas universidades e na grande mídia. O resultado é que o socialismo
saiu da perspectiva dos trabalhadores; foi-lhes inculcado que se trata de uma
utopia, que o “mundo é assim mesmo, cheio de dificuldades e desigualdades” e
que “não se pode fazer nada”.
Contudo, para além das causas objetivas, existem causas individuais que
vão além da alienação, até porque muitas vezes a política revolucionária é
explicada a estes trabalhadores pacientemente, e eles, mesmo assim, mantém-se
chafurdando em suas posições reacionárias. Como isso é possível?
O assunto torna-se mais assustador e preocupante se levarmos em
consideração as suas condições econômicas (isto é, condições de trabalho,
salariais, de vida), bem como a adaptação de uma categoria às suas condições de
vida que são de medianas para ruins (“pelo menos possuo casa, salário fixo,
estabilidade [nem sempre], não há guerra ou guerra civil – como nas periferias
–, etc.”, pensam rebaixadamente alguns). Até conseguirmos fazer um grupo de
trabalhadores chegar àquela consciência do Manifesto Comunista, que afirma que
com a revolução os “trabalhadores nada têm a perder, a não ser os seus
grilhões”, leva muito tempo. Nos períodos de calmaria – que geralmente se estendem
por um longo tempo –, um trabalhador pensa, erroneamente, que tem “muito a
perder” (como o seu emprego, por exemplo) e não consegue enxergar que, na
verdade, vive uma mentira, como um escravo moderno, trabalhando para sustentar
uma ordem econômica que o esmaga e oprime; a mesma ordem que é responsável por
lhe chantagear com a possibilidade de lhe tirar este mesmo emprego miserável a
qualquer momento e sob qualquer pretexto, e fazê-lo perder o salário medíocre
que mal lhe sustenta. Ele somente consegue chegar à consciência do Manifesto
Comunista quando sente que os demais trabalhadores estão juntos com ele,
dispostos a tudo, e não são meros concorrentes da disputa pelas migalhas e
sobras que caem da mesa da burguesia, dadas como se fosse um favor.
Nestes casos, a acomodação às condições precárias que estão “ao menos
garantidas”, serve de pretexto – inconsciente ou mesmo conscientemente – para a
aceitação passiva (ainda que às vezes haja reclamações verbais) de toda a
situação social vigente. Quando ocorre esta “adaptação”, a força do hábito
sobrepõem-se à racionalidade política. “Ação política” passa a significar a
possibilidade de se perder este emprego, ser importunado, incomodado em sua
inércia “habitual” que, apesar dos pesares, garante a ele e à sua família o
“ganha pão” e as suas precárias condições de existência (quantas pessoas na rua
não tem sequer isso? – eles pensam). Em suma: atuar politicamente, para eles,
significa colocar em risco esta “acomodação” e estas condições precárias de
vida. Por isso, a força do hábito não pode nunca ser menosprezada. Somado a
esta força está o medo enrustido (ou mesmo aberto) de se chocar com a moral
vigente e, também, o medo do “novo”; isto é, a sujeição baixa (que mata
lentamente) à rotina, a tudo aquilo que é estabelecido como “normal” e
(moralmente) “aceitável”.
***
Toda esta postura política descrita esconde um medo psicológico
intrínseco. Para aqueles que tomam uma mínima consciência de toda essa situação
e, sem se envergonhar, preferem manter o status
quo, passam a chafurdar na lama, no subsolo da indignidade. As categorias
mais “pequeno-aburgesadas” – geralmente no funcionalismo público, mas em alguns
setores privados também – institucionalizam esta hipocrisia (com exceções, é
claro). O que está minimamente bom para si – na aparência, pois é impossível um
indivíduo “viver bem” realmente enquanto seus pares apodrecem na barbárie
social – esconde o egoísmo mesquinho que destrói, segrega, dificulta e
impossibilita qualquer avanço coletivo, seja social, sindical, político ou
econômico.
Há também uma tendência a autoviolentação própria, a aceitação passiva
de sua dominação, ao seu autocerceamento moral, intelectual, profissional e
político. É a submissão passiva à violência contra si próprio. É o colonizado
que veste a “camisa da metrópole” porque não tem forças no momento e não vê
perspectivas imediatas de derrotá-la. Ao invés de preparar as condições para
isso, prefere “juntar-se ao opressor” no sentido de lhe ser subserviente, de
tentar cultuá-lo para ganhar algo em troca, nem que seja uma graça, quiçá um
sorriso. Trata-se, nestes casos, de um suborno contra si próprio, que aumenta e
aprofunda sua própria desgraça, sua própria opressão.
Em razão das descobertas psicanalíticas clássicas, podemos ver um
paralelo com o “complexo de culpa”. A aceitação da autoviolência é uma
demonstração da “necessidade” de autopunir-se, seja pelo Complexo de Édipo,
seja pelos “desejos impuros” ou de qualquer outra ordem.
Evidentemente que esta passividade e “auto punição” dura enquanto subsistem
as bases materiais (emprego, pensão, relacionamento, etc.) para que ela seja
fonte de “posições reacionárias” e atrasadas que, na maioria das vezes,
voltam-se contra si mesmo. Quando se perdem aquelas condições, por exemplo,
muitos procuram apressadamente uma nova “força do hábito” que lhes possibilite
concretizar aquelas “satisfações” momentâneas e ilusórias.
Esta submissão pessoal à opressão ajuda a burguesia a garantir a sua
dominação sem precisar gastar um centavo para a repressão; muito menos “sujar
as mãos” desgastando-se politicamente reprimindo mobilizações populares. Os
próprios dominados se auto sabotam, transformando essas posições em um
“reacionarismo militante”, que pode ser visto nas redes sociais, correntes de
e-mails, nos locais de trabalho, nos sindicatos e movimentos sociais. Este
“reacionarismo militante” deita raízes em um “medo profundo” que se
metamorfoseia em um “amor à podridão” (ou ao “subsolo”, no linguajar de
Dostoievski). A burguesia não poderia se sustentar sem ele.
Como se falou, uma das condições para a manutenção deste reacionarismo
contra si próprio é a sua base material. O trabalhador suporta a infâmia, a
humilhação e a autocomiseração por que tem um emprego ou alguma outra fonte de
sustento econômico. Quando esta cessa, geralmente de forma brusca, surge a
tendência de lutar e de se rebelar. É um momento rico de debate e de propaganda
revolucionária. Por isso, o militante revolucionário deve estar sempre atento e
se precaver contra este sentimento mesquinho, egoísta e de auto violência
existente em um trabalhador de base.
***
Andando na contra mão do que deveria ser feito, a “esquerda” reformista
e conciliadora se aproveita deste sentimento para ganhar adeptos, já que o seu
programa e a sua atuação política não se choca com a “força do hábito” e, muito
menos, propõe uma ruptura com o velho. Pelo contrário: ela reforça este atraso
por medo de perder influência política. É mais uma demonstração de como o
reformismo contribui para manter o passado em estado de putrefação, o atraso
intelectual, a infâmia dos trabalhadores, em suma, o capitalismo.
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