quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A relação entre a alienação política, o sentimentalismo mal resolvido e as posições visceralmente reacionárias de um trabalhador de base

Na consciência humana, o mundo aparece
completamente diverso daquilo que na realidade ele é:
aparece deformado em sua própria estrutura, separado de suas efetivas conexões.
Torna-se necessário um peculiar trabalho mental para que
o homem do capitalismo penetre nessa fetichização
e descubra, por trás das categorias reificadas (mercadoria, dinheiro, preço, etc.)
que determinam a vida cotidiana dos homens, a sua verdadeira essência,
isto é, a de relações sociais entre os homens.
(Gyorgy Lukács)

É muito comum ver trabalhadores expressarem posições reacionárias que são contrárias aos seus interesses históricos e, às vezes, imediatos. A maioria deles não é de partido, correntes sindicais ou estudantis, não possuindo, portanto, vida política ativa (em alguns casos podemos ver também trabalhadores de organizações políticas oportunistas manifestando posições reacionárias). Como pode ser possível alienar um indivíduo ao ponto dele defender posições políticas que lhe oprimem?
           
Em primeiro lugar, não há dúvidas, está a alienação política, a falta de conhecimento e a má versação nos assuntos políticos. Quem não quer entender a política e o sistema econômico em que vive torna-se presa fácil da alienação. Soma-se a isso o desgaste do “socialismo”, fruto da restauração capitalista na ex-URSS, leste europeu, China e Cuba, e a subsequente campanha ideológica mundial da burguesia para desmoralizar o socialismo e o marxismo, feita, sobretudo, nas universidades e na grande mídia. O resultado é que o socialismo saiu da perspectiva dos trabalhadores; foi-lhes inculcado que se trata de uma utopia, que o “mundo é assim mesmo, cheio de dificuldades e desigualdades” e que “não se pode fazer nada”.
           
Contudo, para além das causas objetivas, existem causas individuais que vão além da alienação, até porque muitas vezes a política revolucionária é explicada a estes trabalhadores pacientemente, e eles, mesmo assim, mantém-se chafurdando em suas posições reacionárias. Como isso é possível?
           
O assunto torna-se mais assustador e preocupante se levarmos em consideração as suas condições econômicas (isto é, condições de trabalho, salariais, de vida), bem como a adaptação de uma categoria às suas condições de vida que são de medianas para ruins (“pelo menos possuo casa, salário fixo, estabilidade [nem sempre], não há guerra ou guerra civil – como nas periferias –, etc.”, pensam rebaixadamente alguns). Até conseguirmos fazer um grupo de trabalhadores chegar àquela consciência do Manifesto Comunista, que afirma que com a revolução os “trabalhadores nada têm a perder, a não ser os seus grilhões”, leva muito tempo. Nos períodos de calmaria – que geralmente se estendem por um longo tempo –, um trabalhador pensa, erroneamente, que tem “muito a perder” (como o seu emprego, por exemplo) e não consegue enxergar que, na verdade, vive uma mentira, como um escravo moderno, trabalhando para sustentar uma ordem econômica que o esmaga e oprime; a mesma ordem que é responsável por lhe chantagear com a possibilidade de lhe tirar este mesmo emprego miserável a qualquer momento e sob qualquer pretexto, e fazê-lo perder o salário medíocre que mal lhe sustenta. Ele somente consegue chegar à consciência do Manifesto Comunista quando sente que os demais trabalhadores estão juntos com ele, dispostos a tudo, e não são meros concorrentes da disputa pelas migalhas e sobras que caem da mesa da burguesia, dadas como se fosse um favor.
           
Nestes casos, a acomodação às condições precárias que estão “ao menos garantidas”, serve de pretexto – inconsciente ou mesmo conscientemente – para a aceitação passiva (ainda que às vezes haja reclamações verbais) de toda a situação social vigente. Quando ocorre esta “adaptação”, a força do hábito sobrepõem-se à racionalidade política. “Ação política” passa a significar a possibilidade de se perder este emprego, ser importunado, incomodado em sua inércia “habitual” que, apesar dos pesares, garante a ele e à sua família o “ganha pão” e as suas precárias condições de existência (quantas pessoas na rua não tem sequer isso? – eles pensam). Em suma: atuar politicamente, para eles, significa colocar em risco esta “acomodação” e estas condições precárias de vida. Por isso, a força do hábito não pode nunca ser menosprezada. Somado a esta força está o medo enrustido (ou mesmo aberto) de se chocar com a moral vigente e, também, o medo do “novo”; isto é, a sujeição baixa (que mata lentamente) à rotina, a tudo aquilo que é estabelecido como “normal” e (moralmente) “aceitável”.
***
Toda esta postura política descrita esconde um medo psicológico intrínseco. Para aqueles que tomam uma mínima consciência de toda essa situação e, sem se envergonhar, preferem manter o status quo, passam a chafurdar na lama, no subsolo da indignidade. As categorias mais “pequeno-aburgesadas” – geralmente no funcionalismo público, mas em alguns setores privados também – institucionalizam esta hipocrisia (com exceções, é claro). O que está minimamente bom para si – na aparência, pois é impossível um indivíduo “viver bem” realmente enquanto seus pares apodrecem na barbárie social – esconde o egoísmo mesquinho que destrói, segrega, dificulta e impossibilita qualquer avanço coletivo, seja social, sindical, político ou econômico.
           
Há também uma tendência a autoviolentação própria, a aceitação passiva de sua dominação, ao seu autocerceamento moral, intelectual, profissional e político. É a submissão passiva à violência contra si próprio. É o colonizado que veste a “camisa da metrópole” porque não tem forças no momento e não vê perspectivas imediatas de derrotá-la. Ao invés de preparar as condições para isso, prefere “juntar-se ao opressor” no sentido de lhe ser subserviente, de tentar cultuá-lo para ganhar algo em troca, nem que seja uma graça, quiçá um sorriso. Trata-se, nestes casos, de um suborno contra si próprio, que aumenta e aprofunda sua própria desgraça, sua própria opressão.
           
Em razão das descobertas psicanalíticas clássicas, podemos ver um paralelo com o “complexo de culpa”. A aceitação da autoviolência é uma demonstração da “necessidade” de autopunir-se, seja pelo Complexo de Édipo, seja pelos “desejos impuros” ou de qualquer outra ordem.

Evidentemente que esta passividade e “auto punição” dura enquanto subsistem as bases materiais (emprego, pensão, relacionamento, etc.) para que ela seja fonte de “posições reacionárias” e atrasadas que, na maioria das vezes, voltam-se contra si mesmo. Quando se perdem aquelas condições, por exemplo, muitos procuram apressadamente uma nova “força do hábito” que lhes possibilite concretizar aquelas “satisfações” momentâneas e ilusórias.

Esta submissão pessoal à opressão ajuda a burguesia a garantir a sua dominação sem precisar gastar um centavo para a repressão; muito menos “sujar as mãos” desgastando-se politicamente reprimindo mobilizações populares. Os próprios dominados se auto sabotam, transformando essas posições em um “reacionarismo militante”, que pode ser visto nas redes sociais, correntes de e-mails, nos locais de trabalho, nos sindicatos e movimentos sociais. Este “reacionarismo militante” deita raízes em um “medo profundo” que se metamorfoseia em um “amor à podridão” (ou ao “subsolo”, no linguajar de Dostoievski). A burguesia não poderia se sustentar sem ele.

Como se falou, uma das condições para a manutenção deste reacionarismo contra si próprio é a sua base material. O trabalhador suporta a infâmia, a humilhação e a autocomiseração por que tem um emprego ou alguma outra fonte de sustento econômico. Quando esta cessa, geralmente de forma brusca, surge a tendência de lutar e de se rebelar. É um momento rico de debate e de propaganda revolucionária. Por isso, o militante revolucionário deve estar sempre atento e se precaver contra este sentimento mesquinho, egoísta e de auto violência existente em um trabalhador de base.
***
Andando na contra mão do que deveria ser feito, a “esquerda” reformista e conciliadora se aproveita deste sentimento para ganhar adeptos, já que o seu programa e a sua atuação política não se choca com a “força do hábito” e, muito menos, propõe uma ruptura com o velho. Pelo contrário: ela reforça este atraso por medo de perder influência política. É mais uma demonstração de como o reformismo contribui para manter o passado em estado de putrefação, o atraso intelectual, a infâmia dos trabalhadores, em suma, o capitalismo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário