quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Tito, um grande estadista proletário?


“Stalin, pare de enviar assassinos para me liquidarem.
Já apanhamos cinco. Se não parar com isso,
eu enviarei pessoalmente um homem a Moscou,
e não haverá necessidade de mandar outro.”
(Marechal Tito, em carta datada de 1950 encontrada
nos arquivos pessoais de Stalin in
“O homem que amava os cachorros”,
de Leonardo Padura)


            Ao longo da história as classes sociais em luta produziram seus grandes estadistas que resolveram contradições do desenvolvimento social de sua época. A sociedade escravista gerou Alexandre, o grande, e Júlio César; a sociedade feudal gerou Carlos Magno e Ricardo Coração de Leão; a sociedade burguesa gerou Napoleão, Otto Von Bismark e Abraham Lincoln. A era proletária engendrou Lenin, Trotsky e Tito. Este último, líder partisan e fundador da Iugoslávia “comunista”, tem sido pouco analisado pela perspectiva dos trabalhadores. Em contrapartida, abundam livros sobre ele pela ótica burguesa.
Tito, em uma de suas últimas fotos
            Não há dúvidas de que o termo “estadista”, tão apreciado pelos historiadores, escritores e jornalistas burgueses, está repleto de problemas e contradições, embora defina bem o papel cumprido por Tito na 2ª Guerra Mundial e na direção da Iugoslávia. Tal como qualquer estadista que dirige um Estado e um exército em tempos de guerra e de paz, Tito possui inúmeras contradições que precisam ser analisadas. Não poderia ser diferente, pois quem se propõe a fazer uma revolução real e não apenas no mundo das especulações filosóficas e dos livros, está sujeito a sofrer com graves contradições impostas pela realidade. Sem querer diminuí-las ou ignorá-las, é necessário, antes de tudo, sempre julgar caso a caso, levando em consideração todo o contexto histórico e não qualquer tipo de “moral” descolada da realidade concreta.
       Tito é lembrado como líder do exército guerrilheiro que conseguiu derrotar e expulsar os nazistas dos Balcãs, por ter “desobedecido” e, posteriormente, rompido com Stalin; e, por fim, erigido um governo estável entre os povos da Iugoslávia (conhecidos por suas disputas sangrentas). Todos estes elementos são reais, mas se faz necessário uma análise mais criteriosa sobre todos estes fatos. Assim, para podermos compreender o governo dirigido por Tito, bem como a sua mentalidade, é importante regressarmos aos anos de sua juventude, que foram decisivos para a sua formação política.

Um soldado de base do Exército Vermelho
            Nascido em 1892, no vilarejo de Kumrovec, na Croácia, quando esta ainda fazia parte do Império Austro-Húngaro, Tito (de nome original Josip Broz) teve uma infância feliz segundo a maior parte dos seus biógrafos. Aprendeu a lida da terra ainda no seio de sua família, tornando-se familiarizado com a realidade camponesa desde cedo. Sentindo os pesados grilhões dos resquícios do feudalismo no campo, Tito decidiu estudar mecânica e tornar-se operário para tentar uma vida mais promissora na cidade grande.
            Dos 18 aos 20 anos (1910-1912), passou por vários empregos nas fábricas da Áustria, Boêmia e Alemanha. Quando a guerra estourou em 1914, Tito foi convocado para a frente de batalha contra os russos, atingindo a patente de sargento. Ferido em combate, terminou preso e levado para a Rússia. Aproveitando-se do conhecimento técnico de cada prisioneiro, os russos colocaram-no na condição de mecânicos de reparo da ferrovia transiberiana, a linha vital das comunicações russas. Em 1917, foi testemunha ocular do processo revolucionário que levou os bolcheviques ao poder, tornando-se membro ativo da guarda vermelha da região de Omsk. Lutou ativamente na guerra civil revolucionária contra os 21 exércitos estrangeiros. Com a vitória definitiva do Exército Vermelho decide voltar para a Croácia junto de sua primeira esposa. Sofreu gravemente com a crise de 1929, ficando desempregado por vários meses e chegando a perder três dos seus quatro filhos.
            Em um século marcado por guerras cruéis e quase ininterruptas, a experiência com a revolução russa e o seu Exército Vermelho seriam determinantes para a sua formação política e militar. Nestas incursões sobre a Europa, Tito ainda aprendeu alemão e russo, o que aumentou os seus conhecimentos técnicos e a sua autoridade quando retornou à Croácia. Aderindo ao Partido Comunista e ocupando cargos na III Internacional, Tito consolidou uma posição de liderança autêntica dentro do movimento comunista internacional e, principalmente, na região dos Balcãs. Foi um dos responsáveis por recrutar voluntários iugoslavos para lutar na Espanha contra o aliado do Eixo, Francisco Franco, durante a guerra civil. Este trabalho militar possibilitou a Tito estabelecer inúmeras redes de contatos que lhe seriam fundamentais durante a ocupação nazista da Iugoslávia.

Uma “revolução” longa a partir da resistência armada ao nazi-fascismo
            Em 1941, no auge da Segunda Guerra Mundial, os nazistas invadem os países do Balcãs e os desmembram. Foi uma das invasões militares mais violentas de toda a guerra, com bombardeios, massacres e execuções públicas. A ordem de Hitler para aquela região era que 100 civis locais fossem executados em represália pela morte de um único soldado alemão. A Alemanha anexou o norte da Eslovênia e ocupou a Sérvia; a Itália incorporou parte da Dalmácia, o sul da Eslovênia, as regiões povoadas por albaneses, e estabeleceu um protetorado sobre Montenegro; a Bulgária anexou a Macedônia, enquanto a Hungria ocupou as regiões adjacentes. A Croácia tornou-se um estado fascista católico independente e aderiu ao Eixo.
            A população ficou acuada e um movimento de resistência armada surgiu e se dividiu em duas forças principais: os partisans (tinham o mesmo nome da resistência ao fascismo espanhol), liderados pelos comunistas; e o movimento chetnik, um grupo monarquista liderado por Mihailovic, que pretendia reestabelecer o governo do rei deposto e impor a hegemonia sérvia. Era visceralmente anticroata e obcecado pela ideia de que cabia à Sérvia a posição dominante do futuro estado iugoslavo. Portanto, continuava a alimentar o chauvinismo e as rixas regionais. Percebendo o potencial do movimento partisan liderado por Tito, os chetniks cultivaram um ódio implacável aos comunistas.
            Desde o início da ocupação nazistas dos Balcãs, Tito recebeu ordens diretas do Comintern (a III Internacional, já dominada pelo stalinismo) para organizar uma Frente Nacional de combatentes de resistência que ignorasse nacionalidade, credo ou ideologia política. Várias foram as tentativas feitas por ele para formar uma frente única com os chetniks até o outono de 1941. Mihailovic e os chetniks, por sua vez, estavam determinados a angariar apoio dos Aliados – em particular da Inglaterra – para restaurar uma monarquia servil, uma vez que lograssem expulsar os nazistas dos Balcãs. Então, passaram para a ofensiva contra os partisans, desencadeando uma guerra civil, ao mesmo tempo que supostamente lutavam contra a ocupação nazista.
            Assim, Tito foi obrigado a lutar em duas frentes, com escassos recursos e poucas armas; além do que ficou completamente desassistido pela União Soviética quase até o final da guerra. A Inglaterra percebeu que a sanha dos chetniks na sua luta doméstica contra os comunistas tornava-os estrategicamente inúteis para atacar as linhas de comunicações alemãs nos Balcãs. O forte sentimento sérvio e anticroata de Mihailovic não favorecia a atração dos iugoslavos das partes mais distantes do país. Mais tarde os britânicos descobriram que ele mantinha relações secretas com alguns elementos das forças de ocupação alemã. Tito e os partisans, ao contrário, representavam a ideia de uma Iugoslávia unida e combativa, determinados a expulsar os nazi-fascistas do território nacional. Por tudo isso, mesmo com sua posição claramente comunista, os britânicos passaram a apoiar os partisans, fornecendo-lhes armas, munição, mantimentos e apoio logístico. 

Brigada Partisan durante a Segunda Guerra

            Sobre o acordo militar e político assinado com a Inglaterra, que lhe limitava a autoridade e a liberdade política de dirigir a Iugoslávia, Tito assim se justifica: “Tínhamos consentido nisso, pois isso era a condição necessária para que os Aliados reconhecessem o novo estado de coisas na Iugoslávia. Decidimos assinar esse acordo porque estávamos cônscios da nossa força, porque sabíamos que a grande maioria do povo estaria conosco para o que fosse preciso. Além disso, tínhamos uma força armada cujos efetivos nossos adversários não tinham como imaginar. Assim, por não termos o que temer, concordamos com a assinatura do acordo, que não nos poderia causar dano algum, só benefícios – se trabalhássemos corretamente[i]. Ainda hoje a relação que Tito estabeleceu com a Inglaterra é um pouco dúbia, merecendo uma atenção cuidadosa por parte dos historiadores proletários. Certamente ela foi um ponto de apoio que permitiu a Tito uma margem maior de manobra em relação a Stalin e à URSS.
            O movimento chetnik, que já era menor em número, começou a perder influência até ser visto como inimigo do povo. Os “comunistas” se alçaram como uma força autenticamente unificadora e capaz de derrotar o nazismo. Tito e os comunistas lançaram-se num grande trabalho de organização política e militar, que se hierarquizavam numa série de comitês populares ao longo do país. Um comitê central foi estabelecido em Zagreb, na Croácia, e, abaixo deste, uma série de comitês regionais, urbanos e células locais, que trabalhavam com o comando imediatamente superior. O método de Tito dependia de missões especiais a diferentes partes do país, realizadas por membros do Comitê Central e por jovens recrutados para injetar entusiasmo nos comitês locais deprimidos ou vacilantes. Outro método usado para estimular a unidade política dos Balcãs era através da realização de reuniões e congressos clandestinos de âmbito nacional, nas quais os delegados de todas as partes da Iugoslávia podiam conhecer-se e debater os problemas de natureza político-partidária e tornarem-se solidários e vislumbrarem juntos a possibilidade de sucesso. Esta organização social se transformará na base do Estado socialista futuro.
            No Segundo Congresso Nacional dos Comitês de Libertação Nacional, em 29 de novembro de 1943, foi proclamada a República Popular Federal da Iugoslávia, embora a URSS tenha ordenado desesperadamente que não se criasse um governo provisório independente para não romper a possibilidade de “aliança” com os chetniks, já amplamente desmoralizados. As condições para o poder proletário estavam sendo criadas rapidamente a partir deste trabalho de comitês nacionais, quase como uma reprodução dos sovietes. Apesar disso, Stalin ordenou que os comunistas deveriam permitir o retorno do rei, que estava exilado na Grã-Bretanha, e “aconselhou” Tito: “Você não precisa restaurá-lo para sempre. Aceite-o de volta, e no momento oportuno, derrube-o”[ii].
            O momento oportuno, no entanto, era exatamente aquele. Stalin queria (como sempre!) renunciar aquela forma de organização social em comitês populares em nome da restauração da monarquia iugoslava, o que significava restaurar seu poder, seu exército, suas instituições, sua moral, suas tradições, etc. Não fosse a recusa de Tito em aceitar o “conselho”, Stalin teria liquidado outra possibilidade de sucesso de um processo revolucionário. Como forma de coroar os êxitos militares do seu exército partisan e ganhar legitimidade frente aos Aliados (sobretudo em relação à Inglaterra), Tito convocou eleições para 1945, logo após os nazifascistas terem sido definitivamente derrotados e expulsos da Iugoslávia. Ele confiava que tinha apoio popular o suficiente para sagrar-se vencedor; e de fato assim as coisas se sucederam, elegendo Ivan Ribar como presidente e Tito como primeiro ministro. Data daí o princípio de ruptura entre Tito e Stálin, que só se aprofundou ao longo dos anos.
            Em 1953 foi a vez de Tito ser eleito como presidente e, posteriormente, em 1963, ser indicado como “presidente vitalício” da Iugoslávia. A historiografia burguesa fala em “partido único”, mas Tito criou uma organização conhecida como Liga dos Comunistas, baseada em um governo dos comitês populares, que realizavam congressos periódicos onde debatiam e deliberavam livremente sobre todos os principais assuntos do país. Ao contrário do que querem nos fazer crer os historiadores burgueses, tratava-se de um regime político muito mais democrático do que qualquer democracia burguesa de ontem e de hoje, que se baseia em partidos financiados pelo capital privado e que exclui a grande massa da população, acostumada a votar apenas de 4 em 4 anos em candidatos que atendem apenas os interesses da corrupção, fomentados pelo mercado, sem poder deliberar sobre absolutamente nada.

A República Socialista Federativa da Iugoslávia: 1945 - 1992
            Em 1946 os partisans comunistas estavam no poder, ao contrário do que queriam os stalinistas. A URSS queria “domesticar” os “comunistas” do leste europeu, para demonstrar aos Aliados da Segunda Guerra Mundial o seu controle sobre a região. Em 1943, Stalin tinha ordenado a dissolução da III Internacional (Comintern), efetivando outro crime político e organizativo. Isso deu a Tito uma desculpa para a insubordinação política à URSS. Em 1947, tentando reverter a situação, Stalin decreta uma nova organização internacional, mais artificial e autoritariamente do que nunca: era a vez da chamada Kominform, que tinha a finalidade de unificar a política dos países do “campo soviético”. No entanto, a luta militar e política na Iugoslávia tinha criado as condições políticas e sociais para que Tito e os partisans (ainda organizados no Partido Comunista) ignorassem solenemente as imposições soviéticas, demonstrando que os iugoslavos não estavam dispostos a ceder sua autonomia. 

Mapa da antiga Iugoslávia (1945-1992)
            Outro passo decisivo é dado: o Partido Comunista é substituído pela Liga dos Comunistas, que foi importante para se insubordinar oficialmente às orientações de Moscou, incentivar a autogestão dos trabalhadores nas fábricas, empresas e nas terras. A burguesia iugoslava foi expropriada e os trabalhadores incentivados ao controle da economia através dos comitês populares e dos congressos nacionais periódicos. A democracia de base, somada ao poder compartilhado entre as várias nacionalidades, foi a base que permitiu a unificação e o desenvolvimento econômico do país (objetivos nunca conseguidos dentro da Iugoslávia capitalista, dado o incentivo permanente ao nacionalismo burguês). Os comunistas iugoslavos viam a industrialização e a mudança das estruturas sociais como uma forma de diminuição das rivalidades entre os nacionalismos. Tito conseguiu impulsionar formas políticas e instituições que correspondia a estes anseios. Sua autoridade foi conquistada – e não imposta pelo aparato –, sendo praticamente indisputada por cerca de 20 anos.
            Enquanto Stalin queria que a Iugoslávia fosse uma base agrária para o campo soviético, que se encontrava destruído após a Segunda Guerra, Tito sustentou e desenvolveu uma política de industrialização, sem o que não seria possível sequer falar em o socialismo ou exercer sua autonomia política. O “titoísmo” transformou-se em uma suposta doutrina política e econômica, como se fosse sinônimo de socialismo autogestionário. Ele afirmava que "o socialismo é um sistema social baseado na socialização dos meios de produção, em que a produção social é dirigida pelos produtores diretos associados"[iii]. De fato a proposta política de Tito estava baseada na autogestão, aprovada pelo Congresso da Liga dos Comunistas, em 1958, mas isso não é uma teoria exclusiva sua. Ao contrário: o socialismo ou é autogestionário ou não é socialismo. Os primeiros anos da Revolução Russa – que Tito conheceu de perto – estavam baseados na autogestão dos sovietes, que foi arruinada após a destruição das forças produtivas do país com a guerra civil de 1919-1921 e a subida ao poder da burocracia de Stálin. Muito criteriosamente podemos condescender com a ideia de que exista um tipo de “socialismo burocrático”, baseado em um Partido-Estado, que decide tudo arbitrariamente de cima para baixo e ignora (ou finge atender) os conselhos populares, tal como Stalin decretou na URSS, mas além de equivocado (pois aquilo não era socialismo, mas um Estado Operário burocratizado em transição do capitalismo ao socialismo), não leva em consideração o fato de que este tipo de regime só pode ter vida curta e resultar na restauração do capitalismo.
            Se justificando pela experiência do stalinismo (baseado no “Partido-Estado” que tudo controla e impõe), a intelectualidade burguesa e reformista criou a falsa ideia de que a organização em “partido” é por natureza autoritária e contra a autogestão. É preciso esclarecer que quem é contra a autogestão dos trabalhadores e a favor da imposição governamental de cima para baixo é o stalinismo e o governo de uma democracia burguesa. Um partido revolucionário não apenas é um dos principais incentivadores da autogestão dos trabalhadores, como em alguns casos é uma das condições primordiais para que possa existir e se desenvolver. Tudo tem a ver, então, com que programa cada partido sustenta. O stalinismo, por exemplo, erigiu o autoritarismo em teoria e em lei.
A autogestão dos trabalhadores (a verdadeira democracia) é impensável não apenas em um regime stalinista, mas também em uma democracia burguesa, com seus vários partidos e instituições para poucos. A condição essencial para a existência do socialismo é, conjuntamente à socialização dos meios de produção, a autogestão dos trabalhadores. Qualquer interferência nesta condição denota deficiência ou problemas de conteúdo deste "socialismo", podendo até mesmo ser reconsiderado enquanto tal.
            O “titoísmo”, portanto, fez o que qualquer regime que se diga socialista precisa fazer: socializar a produção a partir de uma autogestão dos trabalhadores. Destaca-se pelo contraste às práticas stalinistas da URSS, China e outros países do chamado bloco soviético. Se os iugoslavos não tivessem rompido com as orientações políticas do stalinismo, essa autogestão certamente não teria acontecido. Ainda assim, parte dela apresentava limitações e alguns problemas. Um deles é o personalismo, que acabava centralizando a autoridade em Tito, ainda que isso nem de longe se iguale ao que foi o culto à personalidade de Stalin. É mais uma herança da inércia política do movimento “comunista” do leste europeu e o resultado de uma autoridade autenticamente construída e conquistada a partir da liderança da resistência antifascista, do que uma construção imposta de cima para baixo, tal como na URSS. De qualquer forma, a autogestão precisa trabalhar progressivamente pelo fim de todo tipo de personalismo e autoridade que não seja a coletividade dos trabalhadores. Esta preocupação existiu muito limitadamente na Iugoslávia de Tito. Tanto é assim que após a sua morte – somado a outros fatores externos, como a intervenção imperialista – a Iugoslávia se desmembrou rapidamente.
            No entanto, isso tudo não invalidou o fato de que, diferentemente da URSS, na Iugoslávia houve respeito e consideração às liberdades civis, deslocamentos sazonais de trabalhadores para outros países e o compartilhamento do poder entre as distintas nacionalidades. Na URSS dominada por Stalin, o princípio leninista de autodeterminação das nações foi substituído pela política de “russificação” militar dos povos vizinhos. Na Iugoslávia, ao contrário, se erigiu em princípio de governo a convivência harmônica entre as distintas etnias, expresso pelo lema fraternidade e unidade. Esta política de pluralidade étnica foi tornada obrigatória como prática de governo. Isso era realizado por políticas de cotas mínimas para cada etnia, inclusive minorias, em cargos públicos, escolas e postos de trabalho. Mesmo sendo incentivador da laicidade, o governo de Tito condescendeu com a liberdade de culto religioso (algo impensável na Iugoslávia capitalista e monarquista). Outra originalidade política e econômica da Iugoslávia foi a criação do “fundo de desenvolvimento”, que utilizava os recursos das zonas mais ricas para desenvolver as mais atrasadas, inclusive de regiões dos antigos países que eram, no passado, considerados inimigos. Podemos afirmar, seguramente, que estes princípios garantiram a harmonia e a possibilidade de existência do Estado iugoslavo em uma região historicamente dilacerada por conflitos chauvinistas-burgueses. É mais uma demonstração da superioridade dos métodos socialistas sobre os capitalistas – quando bem aplicados!
            A compreensão de que nem toda propriedade privada deveria ser expropriada, tais como os pequenos negócios, pequenas propriedades rurais, comércio familiar e outros, possibilitou a convivência da intervenção econômica do Estado em um mercado relativamente livre e controlado. A valorização da participação "direta" dos trabalhadores na produção (e nos ganhos obtidos com ela), somada a tolerância com a pequena propriedade, possibilitou um crescimento econômico que elevou o padrão de vida da população. A pressão das distintas nacionalidades, que se desenvolveram ao longo da década de 1970, não foram combatidas e puderam disseminar preconceitos reacionários, sobretudo de caráter anticomunista, contribuindo para aprofundar a falta de clareza da suposta teoria revolucionária sustentada pelo “titoísmo”.

O pragmatismo político e os problemas da “teoria revolucionária”
            Uma das principais características do Tito enquanto “estadista” é o pragmatismo. Suas ações estão embasadas por esta compreensão, embora não estejam desprovidas de escrúpulos e de alguns princípios – elementos que, de fato, não existiam nas ações do stalinismo. Mas por mais progressivo que tenha sido o governo de Tito, do ponto de vista da teoria revolucionária não se avançou quase nada. Há um nítido vácuo teórico, apesar de ele ter deixado escrito um punhado de textos e muitos discursos. Sem uma sólida teoria revolucionária, as ações políticas só podem trilhar o caminho do pragmatismo ou do espontaneísmo, o que é sempre muito arriscado.
            O principal erro teórico de Tito são os seus ataques ao trotskismo, expresso no texto “O trotskismo e os seus ajudantes”[iv], onde reproduz um grosseiro discurso stalinista. Tal como todos discursos embasados nesta vertente, não há nenhum embasamento sério, apenas distorções, falsificações e ataques gratuitos. Como o texto foi escrito em 1939, certamente Tito se lançou numa cruzada anti-trotskista para subir na carreira “comunista” dentro do Comintern e do Partido Iugoslavo. Esta ação pragmática lhe rendeu resultados, embora lhe tenha reduzido drasticamente as perspectivas revolucionárias.
            Ao trilhar seu caminho independentemente da URSS, Tito foi, naturalmente, acusado de ser “trotskista”, sobretudo em razão da sua defesa da autogestão pelos trabalhadores. No seu pragmatismo imutável, isso não lhe gerou nenhum tipo de constrangimento, muito menos uma revisão do seu passado “stalinista”. Permaneceu mudo sobre o “trotskismo”, e respondeu os ataques vindos da URSS de forma muito superficial, sem tirar nenhuma conclusão. Apesar de todos os elementos progressivos da Iugoslávia, em comparação ao totalitarismo burocrático da URSS, há no discurso de Tito uma tendência a ser um eco da retórica stalinista, reafirmando a suposta necessidade de um “monolitismo socialista”[v], ainda que isso não signifique nem de perto o que foi o “monolitismo stalinista”.
            Em alguns momentos críticos da história iugoslava, Tito recorreu à repressão policial, embora de forma completamente diferente do stalinismo (isto é, nada que os partidos burgueses não usem corriqueiramente contra as manifestações de trabalhadores numa democracia burguesa). Durante a década de 1970, aproveitando-se dos ventos que sopravam da Tchecoslováquia, grupos nacionalistas passaram a exigir maior autonomia, em um movimento que ficou conhecido como “primavera croata”. Tito reprimiu o movimento, prendeu a maior parte dos seus líderes e, ao mesmo tempo, procurou atender algumas de suas reivindicações para evitar que o movimento se repetisse. Não se sabia exatamente para quê estes grupos exigiam maior liberdade; muito provavelmente para legalizar e propagandear um programa de tendências burguesas.
            Outro ponto não menos digno de atenção é sobre os limites da política dos “países não-alinhados”. Durante o que se convencionou chamar de “Guerra Fria”, a Iugoslávia afirmava não fazer parte nem do bloco liderado pelos EUA, nem do liderado pela URSS, mas sim de uma “terceira via”. Houve um abandono do discurso socialista e da disputa no campo soviético. Tito descambou em parte para políticas de “Frente Popular”, apoiando em diversos países o nacionalismo burguês, tal como o de Nasser no Egito. Esta omissão política não poderia deixar de cobrar o seu preço: a falta de perspectiva! Ao contrariar as imposições da URSS, Tito não propôs um caminho revolucionário e alternativo ao “socialismo soviético”, mas defendeu uma vaga política de “não alinhamento”, abrindo fendas para o ecletismo político, o que sempre beneficia a burguesia, e os próprios interesses econômicos das burguesias nacionais do “terceiro mundo”. Também é preciso investigar melhor as relações entre a Iugoslávia de Tito com os países “socialistas” do leste europeu (Romênia, Hungria, Tchecoslováquia, Polônia, etc.) e Cuba. Todas as análises burguesas sobre Tito são omissas nesse sentido.
Talvez temendo confirmar o seu rótulo de “trotskista”, não incitou os trabalhadores soviéticos a retomarem os sovietes; isto é, à autogestão proletária dentro da URSS e sequer via a necessidade de demonstrar que retomar a autogestão lá era a continuação natural da sua. Reconhecer os graves desvios e problemas do “socialismo” da URSS significava revisar o seu próprio “passado teórico” stalinista. Em razão destas limitações, houve uma tendência personalista em torno do nome de Tito, que não teve capacidade ou mesmo condições de superar sua “visão teórica” (na verdade, pragmática) de socialismo. A sua autogestão socialista, embora infinitamente mais progressiva que a da URSS, não foi capaz de gerar autoconfiança e independência criativa nos trabalhadores, possibilitando a geração de novas, maiores e melhores lideranças proletárias do que Tito tinha sido, diversificando o espectro político para outras organizações políticas proletárias (e não burguesas, entenda-se bem!) além da Liga dos Comunistas Iugoslavos.
Para a vitória de qualquer revolução é necessário a construção de uma autoridade moral, geralmente como reflexo de políticas corretas durante o processo revolucionário. Desde que sentida sinceramente pelas massas, esta autoridade construída e reconhecida só tem sentido se trabalhar para criar as plenas condições de uma autogestão e para a formação de novas e mais amplas lideranças que estejam em sintonia com os interesses dos trabalhadores. É necessário criar uma nova forma de “divergir” dentro do campo proletário, inclusive com a criação de organizações operárias autônomas. A pluralidade, em contraposição aos regimes de partido único (tal como foram os regimes stalinistas), não pode significar reconhecer partidos burgueses ou tender para a restauração da “democracia burguesa”. Isso só pode preparar as bases para o retorno ao capitalismo.

A restauração do capitalismo e a destruição imperialista da Iugoslávia: a guerra do Kosovo e a intervenção da OTAN
            A grande mídia burguesa fez todo o esforço possível para apagar a experiência socialista iugoslava. A despeito de todos os problemas apontados, podemos reconhecer que o “socialismo iugoslavo” é a prova de que o “socialismo dá certo” (para usar a malfada expressão utilitarista da pequena burguesia), desde que esteja livre das amarras e dos dogmas stalinistas. Para atingir este “resultado”, Tito teve que romper, na prática (mesmo que o tolerando em teoria), com o stalinismo. A falta de uma perspectiva clara de expansão da revolução pelo mundo, tal como preconizava o trotskismo, impôs vários limites e retrocessos à experiência iugoslava. A política subsequente de restauração do capitalismo levada a cabo pela burocracia stalinista da URSS entre 1989 e 1991 teve um caráter devastador sobre a Iugoslávia.
            Tal como na Perestroika – que foi uma política consciente de restauração do capitalismo na ex-URSS e não um colapso como vende a historiografia burguesa –, a Iugoslávia foi conscientemente desmembrada a partir de uma criminosa incitação ao separatismo e à guerra civil, inclusive criando as condições na opinião pública para a intervenção armada da OTAN. Tito morreu em 1980, sendo sucedido por uma direção colegiada das repúblicas federadas, enquanto a economia passou a degradar-se mais rapidamente que os demais “países socialistas”.
            Se tivesse vivido ao longo da década de 1980 – período em que a restauração capitalista se gestou –, muito provavelmente Tito teria se colocado como oposição à Perestroika; sobretudo em razão do seu senso pragmático. Certamente a ausência de uma política de formação de novos quadros e “líderes” que fossem capazes de identificar e se opor à restauração capitalista, os sucessos do imperialismo no desmembramento da ex-Iugoslávia e do leste europeu teriam sido mais difíceis. Os sucessores de Tito, reféns da visão anti-trotskista, foram presas fáceis dos interesses imperialistas na região, tal como o foram os burocratas soviéticos (que trabalharam conscientemente pela restauração capitalista).
            Os “nacionalistas” iugoslavos desejavam se desembaraçar das regiões mais pobres e atrasadas. Suas posturas involuíram ao nacional-chauvinismo, servindo de base para reconstruir suas identidades étnicas. O caos se instaurou e o imperialismo aproveitou-se dessa situação. Em setembro de 1991, vários países “proclamaram” suas independências, sendo rapidamente reconhecidas pelo imperialismo norte-americano e alemão. A grande mídia continuou fazendo seu serviço sujo de confundir, afirmando se tratar de disputas inter-raciais e étnicas. Omitiu todo o histórico comunista da Iugoslávia e os grandes avanços conquistados, sobretudo seu período de convivência pacífica e promissora. O caos social, político e econômico em que o imperialismo lançou o país, expulsando populações e realizando massacres em guerras civis foi abafado com o velho método de encontrar um único vilão. Os ideólogos burgueses lançaram suas teses nefastas para tentar desmoralizar o comunismo, afirmando que os confrontos étnicos tinham sido reprimidos pelos comunistas no poder e que, naquele momento, simplesmente teria despertado novamente. Escondeu todas as ações políticas conscientes que levavam inevitavelmente ao confronto étnico e à guerra civil. Os EUA passaram à ofensiva, apoiando e financiando “exércitos de libertação nacional” – que na verdade não passavam de milícias de partidos ultranacionalistas – contra Milosevic, acusado permanentemente pela mídia de ser um ditador sanguinário.
            Em 1992 foi a vez da Macedônia, Sérvia e Montenegro se declararem independentes. A União Europeia imediatamente reconheceu a independência e ofereceu socorro às repúblicas separatistas. As cidades ou povoados que resistiram ao desmembramento, reivindicando a ideia de uma Iugoslávia unida, sofreram com um embargo político e econômico, ao mesmo tempo em que era estigmatizada pela imprensa internacional. Esgotado por este embargo, alguns resistentes foram obrigados a romper acordos impostos pelo imperialismo. Assim, sofreram com a ocupação das forças de “paz” da ONU e com bombardeios da OTAN, sobretudo na cidade de Kosovo[vi].
            Em março de 2002, por pressão da União Europeia e dos EUA, o que restou da Iugoslávia teve que abandonar este nome e aceitar o de República da Sérvia e Montenegro. A geopolítica dos Balcãs voltou a ser um mosaico de pequenos países e reinos tutelados pelas grandes potências imperialistas, palco de xenofobia, chauvinismo e agressão. A exitosa experiência da revolução liderada por Tito deveria ser, definitivamente apagada e esquecida. Cabe aos historiadores a serviço dos trabalhadores, resgatar e cultivar a memória da Iugoslávia, que com todos os seus acertos e erros demonstrou que é possível uma via diferente ao socialismo.
  

NOTAS


[i] Tito: história ilustrada da Segunda Guerra Mundial. Coleção líderes, número 9, de Phyllis Auty. Editora Renes LTDA., Rio de Janeiro, 1972.
[ii] Idem.
[iii] Programa da SKJ, in HOBSBAWM, Eric (org.). "História do Marxismo".
[iv] https://www.marxists.org/archive/tito/1939/x01/x01.htm
[v] https://www.marxists.org/archive/tito/1957/06/25.htm
[vi] Com informações extraídas de: “Revoluções e Regimes Marxistas – Rupturas, experiências e impacto internacional”, de Paulo G Fagundes Visentini (org.). Leitura XXI, Porto Alegre, 2013.

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