“Stalin, pare de enviar assassinos para me liquidarem.
Já apanhamos cinco. Se não parar com isso,
eu enviarei pessoalmente um homem a Moscou,
e não haverá necessidade de mandar outro.”
(Marechal
Tito, em carta datada de 1950 encontrada
nos arquivos
pessoais de Stalin in
“O homem que
amava os cachorros”,
de Leonardo
Padura)
Ao
longo da história as classes sociais em luta produziram seus grandes estadistas
que resolveram contradições do desenvolvimento social de sua época. A sociedade
escravista gerou Alexandre, o grande, e Júlio César; a sociedade feudal gerou
Carlos Magno e Ricardo Coração de Leão; a sociedade burguesa gerou Napoleão,
Otto Von Bismark e Abraham Lincoln. A era proletária engendrou Lenin, Trotsky e
Tito. Este último, líder partisan e
fundador da Iugoslávia “comunista”, tem sido pouco analisado pela perspectiva
dos trabalhadores. Em contrapartida, abundam livros sobre ele pela ótica
burguesa.
Tito, em uma de suas últimas fotos |
Não
há dúvidas de que o termo “estadista”, tão apreciado pelos historiadores,
escritores e jornalistas burgueses, está repleto de problemas e contradições,
embora defina bem o papel cumprido por Tito na 2ª Guerra Mundial e na direção da
Iugoslávia. Tal como qualquer estadista que dirige um Estado e um exército em
tempos de guerra e de paz, Tito possui inúmeras contradições que precisam ser
analisadas. Não poderia ser diferente, pois quem se propõe a fazer uma
revolução real e não apenas no mundo das especulações filosóficas e dos livros,
está sujeito a sofrer com graves contradições impostas pela realidade. Sem
querer diminuí-las ou ignorá-las, é necessário, antes de tudo, sempre julgar
caso a caso, levando em consideração todo o contexto histórico e não qualquer
tipo de “moral” descolada da realidade concreta.
Tito
é lembrado como líder do exército guerrilheiro que conseguiu derrotar e
expulsar os nazistas dos Balcãs, por ter “desobedecido” e, posteriormente,
rompido com Stalin; e, por fim, erigido um governo estável entre os povos da
Iugoslávia (conhecidos por suas disputas sangrentas). Todos estes elementos são
reais, mas se faz necessário uma análise mais criteriosa sobre todos estes
fatos. Assim, para podermos compreender o governo dirigido por Tito, bem como a
sua mentalidade, é importante regressarmos aos anos de sua juventude, que foram
decisivos para a sua formação política.
Um
soldado de base do Exército Vermelho
Nascido
em 1892, no vilarejo de Kumrovec, na Croácia, quando esta ainda fazia parte do
Império Austro-Húngaro, Tito (de nome original Josip Broz) teve uma infância
feliz segundo a maior parte dos seus biógrafos. Aprendeu a lida da terra ainda
no seio de sua família, tornando-se familiarizado com a realidade camponesa
desde cedo. Sentindo os pesados grilhões dos resquícios do feudalismo no campo,
Tito decidiu estudar mecânica e tornar-se operário para tentar uma vida mais
promissora na cidade grande.
Dos
18 aos 20 anos (1910-1912), passou por vários empregos nas fábricas da Áustria,
Boêmia e Alemanha. Quando a guerra estourou em 1914, Tito foi convocado para a
frente de batalha contra os russos, atingindo a patente de sargento. Ferido em
combate, terminou preso e levado para a Rússia. Aproveitando-se do conhecimento
técnico de cada prisioneiro, os russos colocaram-no na condição de mecânicos de
reparo da ferrovia transiberiana, a linha vital das comunicações russas. Em
1917, foi testemunha ocular do processo revolucionário que levou os
bolcheviques ao poder, tornando-se membro ativo da guarda vermelha da região de
Omsk. Lutou ativamente na guerra civil revolucionária contra os 21 exércitos estrangeiros.
Com a vitória definitiva do Exército Vermelho decide voltar para a Croácia
junto de sua primeira esposa. Sofreu gravemente com a crise de 1929, ficando
desempregado por vários meses e chegando a perder três dos seus quatro filhos.
Em
um século marcado por guerras cruéis e quase ininterruptas, a experiência com a
revolução russa e o seu Exército Vermelho seriam determinantes para a sua
formação política e militar. Nestas incursões sobre a Europa, Tito ainda
aprendeu alemão e russo, o que aumentou os seus conhecimentos técnicos e a sua
autoridade quando retornou à Croácia. Aderindo ao Partido Comunista e ocupando
cargos na III Internacional, Tito consolidou uma posição de liderança autêntica
dentro do movimento comunista internacional e, principalmente, na região dos Balcãs.
Foi um dos responsáveis por recrutar voluntários iugoslavos para lutar na
Espanha contra o aliado do Eixo, Francisco Franco, durante a guerra civil. Este
trabalho militar possibilitou a Tito estabelecer inúmeras redes de contatos que
lhe seriam fundamentais durante a ocupação nazista da Iugoslávia.
Uma
“revolução” longa a partir da resistência armada ao nazi-fascismo
Em
1941, no auge da Segunda Guerra Mundial, os nazistas invadem os países do Balcãs
e os desmembram. Foi uma das invasões militares mais violentas de toda a
guerra, com bombardeios, massacres e execuções públicas. A ordem de Hitler para
aquela região era que 100 civis locais fossem executados em represália pela
morte de um único soldado alemão. A Alemanha anexou o norte da Eslovênia e
ocupou a Sérvia; a Itália incorporou parte da Dalmácia, o sul da Eslovênia, as
regiões povoadas por albaneses, e estabeleceu um protetorado sobre Montenegro;
a Bulgária anexou a Macedônia, enquanto a Hungria ocupou as regiões adjacentes.
A Croácia tornou-se um estado fascista católico independente e aderiu ao Eixo.
A
população ficou acuada e um movimento de resistência armada surgiu e se dividiu
em duas forças principais: os partisans
(tinham o mesmo nome da resistência ao fascismo espanhol), liderados pelos
comunistas; e o movimento chetnik, um
grupo monarquista liderado por Mihailovic, que pretendia reestabelecer o governo
do rei deposto e impor a hegemonia sérvia. Era visceralmente anticroata e
obcecado pela ideia de que cabia à Sérvia a posição dominante do futuro estado
iugoslavo. Portanto, continuava a alimentar o chauvinismo e as rixas regionais. Percebendo o potencial do
movimento partisan liderado por Tito,
os chetniks cultivaram um ódio
implacável aos comunistas.
Desde
o início da ocupação nazistas dos Balcãs, Tito recebeu ordens diretas do Comintern (a III Internacional, já
dominada pelo stalinismo) para organizar uma Frente Nacional de combatentes de
resistência que ignorasse nacionalidade, credo ou ideologia política. Várias
foram as tentativas feitas por ele para formar uma frente única com os chetniks até o outono de 1941.
Mihailovic e os chetniks, por sua
vez, estavam determinados a angariar apoio dos Aliados – em particular da
Inglaterra – para restaurar uma monarquia servil, uma vez que lograssem
expulsar os nazistas dos Balcãs. Então, passaram para a ofensiva contra os partisans, desencadeando uma guerra
civil, ao mesmo tempo que supostamente lutavam contra a ocupação nazista.
Assim,
Tito foi obrigado a lutar em duas frentes, com escassos recursos e poucas
armas; além do que ficou completamente desassistido pela União Soviética quase
até o final da guerra. A Inglaterra percebeu que a sanha dos chetniks na sua luta doméstica contra os
comunistas tornava-os estrategicamente inúteis para atacar as linhas de
comunicações alemãs nos Balcãs. O forte sentimento sérvio e anticroata de
Mihailovic não favorecia a atração dos iugoslavos das partes mais distantes do
país. Mais tarde os britânicos descobriram que ele mantinha relações secretas
com alguns elementos das forças de ocupação alemã. Tito e os partisans, ao contrário, representavam a
ideia de uma Iugoslávia unida e combativa, determinados a expulsar os
nazi-fascistas do território nacional. Por tudo isso, mesmo com sua posição
claramente comunista, os britânicos passaram a apoiar os partisans, fornecendo-lhes armas, munição, mantimentos e apoio
logístico.
Brigada Partisan durante a Segunda Guerra |
Sobre
o acordo militar e político assinado com a Inglaterra, que lhe limitava a
autoridade e a liberdade política de dirigir a Iugoslávia, Tito assim se
justifica: “Tínhamos consentido nisso,
pois isso era a condição necessária para que os Aliados reconhecessem o novo
estado de coisas na Iugoslávia. Decidimos assinar esse acordo porque estávamos
cônscios da nossa força, porque sabíamos que a grande maioria do povo estaria
conosco para o que fosse preciso. Além disso, tínhamos uma força armada cujos
efetivos nossos adversários não tinham como imaginar. Assim, por não termos o
que temer, concordamos com a assinatura do acordo, que não nos poderia causar
dano algum, só benefícios – se
trabalhássemos corretamente”[i].
Ainda hoje a relação que Tito estabeleceu com a Inglaterra é um pouco dúbia,
merecendo uma atenção cuidadosa por parte dos historiadores proletários. Certamente
ela foi um ponto de apoio que permitiu a Tito uma margem maior de manobra em
relação a Stalin e à URSS.
O
movimento chetnik, que já era menor
em número, começou a perder influência até ser visto como inimigo do povo. Os “comunistas”
se alçaram como uma força autenticamente unificadora e capaz de derrotar o
nazismo. Tito e os comunistas lançaram-se num grande trabalho de organização política
e militar, que se hierarquizavam numa série de comitês populares ao longo do
país. Um comitê central foi estabelecido em Zagreb, na Croácia, e, abaixo deste,
uma série de comitês regionais, urbanos e células locais, que trabalhavam com o
comando imediatamente superior. O método de Tito dependia de missões especiais
a diferentes partes do país, realizadas por membros do Comitê Central e por
jovens recrutados para injetar entusiasmo nos comitês locais deprimidos ou
vacilantes. Outro método usado para estimular a unidade política dos Balcãs era
através da realização de reuniões e congressos clandestinos de âmbito nacional,
nas quais os delegados de todas as partes da Iugoslávia podiam conhecer-se e
debater os problemas de natureza político-partidária e tornarem-se solidários e
vislumbrarem juntos a possibilidade de sucesso. Esta organização social se
transformará na base do Estado socialista futuro.
No
Segundo Congresso Nacional dos Comitês de Libertação Nacional, em 29 de
novembro de 1943, foi proclamada a República Popular Federal da Iugoslávia,
embora a URSS tenha ordenado desesperadamente que não se criasse um governo
provisório independente para não romper a possibilidade de “aliança” com os chetniks, já amplamente desmoralizados.
As condições para o poder proletário estavam sendo criadas rapidamente a partir
deste trabalho de comitês nacionais, quase como uma reprodução dos sovietes. Apesar
disso, Stalin ordenou que os comunistas deveriam permitir o retorno do rei, que
estava exilado na Grã-Bretanha, e “aconselhou” Tito: “Você não precisa restaurá-lo para sempre. Aceite-o de volta, e no
momento oportuno, derrube-o”[ii].
O
momento oportuno, no entanto, era exatamente aquele. Stalin queria (como
sempre!) renunciar aquela forma de organização social em comitês populares em
nome da restauração da monarquia iugoslava, o que significava restaurar seu
poder, seu exército, suas instituições, sua moral, suas tradições, etc. Não
fosse a recusa de Tito em aceitar o “conselho”, Stalin teria liquidado outra
possibilidade de sucesso de um processo revolucionário. Como forma de coroar os
êxitos militares do seu exército partisan
e ganhar legitimidade frente aos Aliados (sobretudo em relação à Inglaterra), Tito
convocou eleições para 1945, logo após os nazifascistas terem sido
definitivamente derrotados e expulsos da Iugoslávia. Ele confiava que tinha apoio
popular o suficiente para sagrar-se vencedor; e de fato assim as coisas se
sucederam, elegendo Ivan Ribar como presidente e Tito como primeiro ministro.
Data daí o princípio de ruptura entre Tito e Stálin, que só se aprofundou ao
longo dos anos.
Em
1953 foi a vez de Tito ser eleito como presidente e, posteriormente, em 1963,
ser indicado como “presidente vitalício” da Iugoslávia. A historiografia
burguesa fala em “partido único”, mas Tito criou uma organização conhecida como
Liga dos Comunistas, baseada em um
governo dos comitês populares, que realizavam congressos periódicos onde
debatiam e deliberavam livremente sobre todos os principais assuntos do país.
Ao contrário do que querem nos fazer crer os historiadores burgueses, tratava-se
de um regime político muito mais democrático do que qualquer democracia
burguesa de ontem e de hoje, que se baseia em partidos financiados pelo capital
privado e que exclui a grande massa da população, acostumada a votar apenas de
4 em 4 anos em candidatos que atendem apenas os interesses da corrupção,
fomentados pelo mercado, sem poder deliberar sobre absolutamente nada.
A
República Socialista Federativa da Iugoslávia: 1945 - 1992
Em
1946 os partisans comunistas estavam
no poder, ao contrário do que queriam os stalinistas. A URSS queria
“domesticar” os “comunistas” do leste europeu, para demonstrar aos Aliados da
Segunda Guerra Mundial o seu controle sobre a região. Em 1943, Stalin tinha
ordenado a dissolução da III Internacional (Comintern),
efetivando outro crime político e organizativo. Isso deu a Tito uma desculpa para
a insubordinação política à URSS. Em 1947, tentando reverter a situação, Stalin
decreta uma nova organização internacional, mais artificial e autoritariamente
do que nunca: era a vez da chamada Kominform,
que tinha a finalidade de unificar a política dos países do “campo soviético”.
No entanto, a luta militar e política na Iugoslávia tinha criado as condições
políticas e sociais para que Tito e os partisans
(ainda organizados no Partido Comunista) ignorassem solenemente as imposições
soviéticas, demonstrando que os iugoslavos não estavam dispostos a ceder sua
autonomia.
Mapa da antiga Iugoslávia (1945-1992) |
Outro
passo decisivo é dado: o Partido Comunista é substituído pela Liga dos Comunistas, que foi importante
para se insubordinar oficialmente às orientações de Moscou, incentivar a
autogestão dos trabalhadores nas fábricas, empresas e nas terras. A burguesia
iugoslava foi expropriada e os trabalhadores incentivados ao controle da
economia através dos comitês populares e dos congressos nacionais periódicos. A
democracia de base, somada ao poder compartilhado entre as várias
nacionalidades, foi a base que permitiu a unificação e o desenvolvimento
econômico do país (objetivos nunca conseguidos dentro da Iugoslávia capitalista,
dado o incentivo permanente ao nacionalismo burguês). Os comunistas iugoslavos
viam a industrialização e a mudança das estruturas sociais como uma forma de
diminuição das rivalidades entre os nacionalismos. Tito conseguiu impulsionar
formas políticas e instituições que correspondia a estes anseios. Sua
autoridade foi conquistada – e não imposta pelo aparato –, sendo praticamente
indisputada por cerca de 20 anos.
Enquanto
Stalin queria que a Iugoslávia fosse uma base agrária para o campo soviético,
que se encontrava destruído após a Segunda Guerra, Tito sustentou e desenvolveu
uma política de industrialização, sem o que não seria possível sequer falar em
o socialismo ou exercer sua autonomia política. O “titoísmo” transformou-se em
uma suposta doutrina política e econômica, como se fosse sinônimo de socialismo
autogestionário. Ele afirmava que "o
socialismo é um sistema social baseado na socialização dos meios de produção,
em que a produção social é dirigida pelos produtores diretos associados"[iii].
De fato a proposta política de Tito estava baseada na autogestão, aprovada pelo
Congresso da Liga dos Comunistas, em
1958, mas isso não é uma teoria exclusiva sua. Ao contrário: o socialismo ou é
autogestionário ou não é socialismo. Os primeiros anos da Revolução Russa – que
Tito conheceu de perto – estavam baseados na autogestão dos sovietes, que foi
arruinada após a destruição das forças produtivas do país com a guerra civil de
1919-1921 e a subida ao poder da burocracia de Stálin. Muito criteriosamente
podemos condescender com a ideia de que exista um tipo de “socialismo
burocrático”, baseado em um Partido-Estado, que decide tudo arbitrariamente de cima para baixo e
ignora (ou finge atender) os conselhos populares, tal como Stalin decretou na
URSS, mas além de equivocado (pois aquilo não era socialismo, mas um Estado
Operário burocratizado em transição
do capitalismo ao socialismo), não leva em consideração o fato de que este tipo
de regime só pode ter vida curta e resultar na restauração do capitalismo.
Se
justificando pela experiência do stalinismo (baseado no “Partido-Estado” que
tudo controla e impõe), a intelectualidade burguesa e reformista criou a falsa
ideia de que a organização em “partido” é por natureza autoritária e contra a
autogestão. É preciso esclarecer que quem é contra a autogestão dos
trabalhadores e a favor da imposição governamental de cima para baixo é o
stalinismo e o governo de uma democracia burguesa. Um partido revolucionário
não apenas é um dos principais incentivadores da autogestão dos trabalhadores,
como em alguns casos é uma das condições primordiais para que possa existir e
se desenvolver. Tudo tem a ver, então, com que programa cada partido sustenta.
O stalinismo, por exemplo, erigiu o autoritarismo em teoria e em lei.
A
autogestão dos trabalhadores (a verdadeira democracia) é impensável não apenas
em um regime stalinista, mas também em uma democracia burguesa, com seus vários
partidos e instituições para poucos. A condição essencial para a existência do
socialismo é, conjuntamente à socialização dos meios de produção, a autogestão
dos trabalhadores. Qualquer interferência nesta condição denota deficiência ou
problemas de conteúdo deste "socialismo", podendo até mesmo ser
reconsiderado enquanto tal.
O
“titoísmo”, portanto, fez o que qualquer regime que se diga socialista precisa
fazer: socializar a produção a partir de uma autogestão dos trabalhadores. Destaca-se
pelo contraste às práticas stalinistas da URSS, China e outros países do
chamado bloco soviético. Se os iugoslavos não tivessem rompido com as
orientações políticas do stalinismo, essa autogestão certamente não teria
acontecido. Ainda assim, parte dela apresentava limitações e alguns problemas.
Um deles é o personalismo, que acabava centralizando a autoridade em Tito,
ainda que isso nem de longe se iguale ao que foi o culto à personalidade de
Stalin. É mais uma herança da inércia política do movimento “comunista” do
leste europeu e o resultado de uma autoridade autenticamente construída e conquistada
a partir da liderança da resistência antifascista, do que uma construção
imposta de cima para baixo, tal como na URSS. De qualquer forma, a autogestão
precisa trabalhar progressivamente pelo fim de todo tipo de personalismo e
autoridade que não seja a coletividade dos trabalhadores. Esta preocupação
existiu muito limitadamente na Iugoslávia de Tito. Tanto é assim que após a sua
morte – somado a outros fatores externos, como a intervenção imperialista – a
Iugoslávia se desmembrou rapidamente.
No
entanto, isso tudo não invalidou o fato de que, diferentemente da URSS, na
Iugoslávia houve respeito e consideração às liberdades civis, deslocamentos
sazonais de trabalhadores para outros países e o compartilhamento do poder
entre as distintas nacionalidades. Na URSS dominada por Stalin, o princípio leninista
de autodeterminação das nações foi substituído pela política de “russificação” militar
dos povos vizinhos. Na Iugoslávia, ao contrário, se erigiu em princípio de
governo a convivência harmônica entre as distintas etnias, expresso pelo lema fraternidade e unidade. Esta política de
pluralidade étnica foi tornada obrigatória como prática de governo. Isso era
realizado por políticas de cotas mínimas para cada etnia, inclusive minorias,
em cargos públicos, escolas e postos de trabalho. Mesmo sendo incentivador da
laicidade, o governo de Tito condescendeu com a liberdade de culto religioso
(algo impensável na Iugoslávia capitalista e monarquista). Outra originalidade
política e econômica da Iugoslávia foi a criação do “fundo de desenvolvimento”,
que utilizava os recursos das zonas mais ricas para desenvolver as mais
atrasadas, inclusive de regiões dos antigos países que eram, no passado,
considerados inimigos. Podemos afirmar, seguramente, que estes princípios garantiram
a harmonia e a possibilidade de existência do Estado iugoslavo em uma região
historicamente dilacerada por conflitos chauvinistas-burgueses.
É mais uma demonstração da superioridade dos métodos socialistas sobre os
capitalistas – quando bem aplicados!
A
compreensão de que nem toda propriedade privada deveria ser expropriada, tais
como os pequenos negócios, pequenas propriedades rurais, comércio familiar e
outros, possibilitou a convivência da intervenção econômica do Estado em um
mercado relativamente livre e controlado. A valorização da participação
"direta" dos trabalhadores na produção (e nos ganhos obtidos com
ela), somada a tolerância com a pequena propriedade, possibilitou um
crescimento econômico que elevou o padrão de vida da população. A pressão das
distintas nacionalidades, que se desenvolveram ao longo da década de 1970, não
foram combatidas e puderam disseminar preconceitos reacionários, sobretudo de
caráter anticomunista, contribuindo para aprofundar a falta de clareza da
suposta teoria revolucionária sustentada pelo “titoísmo”.
O
pragmatismo político e os problemas da “teoria revolucionária”
Uma
das principais características do Tito enquanto “estadista” é o pragmatismo.
Suas ações estão embasadas por esta compreensão, embora não estejam desprovidas
de escrúpulos e de alguns princípios – elementos que, de fato, não existiam nas
ações do stalinismo. Mas por mais progressivo que tenha sido o governo de Tito,
do ponto de vista da teoria revolucionária não se avançou quase nada. Há um
nítido vácuo teórico, apesar de ele ter deixado escrito um punhado de textos e
muitos discursos. Sem uma sólida teoria revolucionária, as ações políticas só
podem trilhar o caminho do pragmatismo ou do espontaneísmo, o que é sempre muito
arriscado.
O
principal erro teórico de Tito são os seus ataques ao trotskismo, expresso no
texto “O trotskismo e os seus ajudantes”[iv],
onde reproduz um grosseiro discurso stalinista. Tal como todos discursos
embasados nesta vertente, não há nenhum embasamento sério, apenas distorções,
falsificações e ataques gratuitos. Como o texto foi escrito em 1939, certamente
Tito se lançou numa cruzada anti-trotskista para subir na carreira “comunista”
dentro do Comintern e do Partido
Iugoslavo. Esta ação pragmática lhe rendeu resultados, embora lhe tenha
reduzido drasticamente as perspectivas revolucionárias.
Ao
trilhar seu caminho independentemente da URSS, Tito foi, naturalmente, acusado
de ser “trotskista”, sobretudo em razão da sua defesa da autogestão pelos
trabalhadores. No seu pragmatismo imutável, isso não lhe gerou nenhum tipo de
constrangimento, muito menos uma revisão do seu passado “stalinista”.
Permaneceu mudo sobre o “trotskismo”, e respondeu os ataques vindos da URSS de
forma muito superficial, sem tirar nenhuma conclusão. Apesar de todos os
elementos progressivos da Iugoslávia, em comparação ao totalitarismo
burocrático da URSS, há no discurso de Tito uma tendência a ser um eco da retórica
stalinista, reafirmando a suposta necessidade de um “monolitismo socialista”[v],
ainda que isso não signifique nem de perto o que foi o “monolitismo
stalinista”.
Em
alguns momentos críticos da história iugoslava, Tito recorreu à repressão
policial, embora de forma completamente diferente do stalinismo (isto é, nada
que os partidos burgueses não usem corriqueiramente contra as manifestações de
trabalhadores numa democracia burguesa). Durante a década de 1970, aproveitando-se
dos ventos que sopravam da Tchecoslováquia, grupos nacionalistas passaram a
exigir maior autonomia, em um movimento que ficou conhecido como “primavera
croata”. Tito reprimiu o movimento, prendeu a maior parte dos seus líderes e,
ao mesmo tempo, procurou atender algumas de suas reivindicações para evitar que
o movimento se repetisse. Não se sabia exatamente para quê estes grupos exigiam
maior liberdade; muito provavelmente para legalizar e propagandear um programa
de tendências burguesas.
Outro
ponto não menos digno de atenção é sobre os limites da política dos “países
não-alinhados”. Durante o que se convencionou chamar de “Guerra Fria”, a
Iugoslávia afirmava não fazer parte nem do bloco liderado pelos EUA, nem do
liderado pela URSS, mas sim de uma “terceira via”. Houve um abandono do
discurso socialista e da disputa no campo soviético. Tito descambou em parte
para políticas de “Frente Popular”, apoiando em diversos países o nacionalismo
burguês, tal como o de Nasser no Egito. Esta omissão política não poderia
deixar de cobrar o seu preço: a falta de perspectiva! Ao contrariar as
imposições da URSS, Tito não propôs um caminho revolucionário e alternativo ao “socialismo
soviético”, mas defendeu uma vaga política de “não alinhamento”, abrindo fendas
para o ecletismo político, o que sempre beneficia a burguesia, e os próprios
interesses econômicos das burguesias nacionais do “terceiro mundo”. Também é
preciso investigar melhor as relações entre a Iugoslávia de Tito com os países “socialistas”
do leste europeu (Romênia, Hungria, Tchecoslováquia, Polônia, etc.) e Cuba.
Todas as análises burguesas sobre Tito são omissas nesse sentido.
Talvez
temendo confirmar o seu rótulo de “trotskista”, não incitou os trabalhadores
soviéticos a retomarem os sovietes; isto é, à autogestão proletária dentro da
URSS e sequer via a necessidade de demonstrar que retomar a autogestão lá era a
continuação natural da sua. Reconhecer os graves desvios e problemas do
“socialismo” da URSS significava revisar o seu próprio “passado teórico”
stalinista. Em razão destas limitações, houve uma tendência personalista em
torno do nome de Tito, que não teve capacidade ou mesmo condições de superar
sua “visão teórica” (na verdade, pragmática) de socialismo. A sua autogestão
socialista, embora infinitamente mais progressiva que a da URSS, não foi capaz
de gerar autoconfiança e independência criativa nos trabalhadores,
possibilitando a geração de novas, maiores e melhores lideranças proletárias do
que Tito tinha sido, diversificando o espectro político para outras organizações políticas proletárias
(e não burguesas, entenda-se bem!) além da Liga dos Comunistas Iugoslavos.
Para
a vitória de qualquer revolução é necessário a construção de uma autoridade
moral, geralmente como reflexo de políticas corretas durante o processo
revolucionário. Desde que sentida sinceramente pelas massas, esta autoridade
construída e reconhecida só tem sentido se trabalhar para criar as plenas condições
de uma autogestão e para a formação de novas e mais amplas lideranças que
estejam em sintonia com os interesses dos trabalhadores. É necessário criar uma
nova forma de “divergir” dentro do campo proletário, inclusive com a criação de
organizações operárias autônomas. A pluralidade, em contraposição aos regimes
de partido único (tal como foram os regimes stalinistas), não pode significar
reconhecer partidos burgueses ou tender para a restauração da “democracia
burguesa”. Isso só pode preparar as bases para o retorno ao capitalismo.
A
restauração do capitalismo e a destruição imperialista da Iugoslávia: a guerra
do Kosovo e a intervenção da OTAN
A
grande mídia burguesa fez todo o esforço possível para apagar a experiência
socialista iugoslava. A despeito de todos os problemas apontados, podemos
reconhecer que o “socialismo iugoslavo” é a prova de que o “socialismo dá
certo” (para usar a malfada expressão utilitarista da pequena burguesia), desde
que esteja livre das amarras e dos dogmas stalinistas. Para atingir este
“resultado”, Tito teve que romper, na prática (mesmo que o tolerando em
teoria), com o stalinismo. A falta de uma perspectiva clara de expansão da
revolução pelo mundo, tal como preconizava o trotskismo, impôs vários limites e
retrocessos à experiência iugoslava. A política subsequente de restauração do
capitalismo levada a cabo pela burocracia stalinista da URSS entre 1989 e 1991
teve um caráter devastador sobre a Iugoslávia.
Tal
como na Perestroika – que foi uma
política consciente de restauração do capitalismo na ex-URSS e não um colapso como vende a historiografia
burguesa –, a Iugoslávia foi conscientemente desmembrada a partir de uma criminosa
incitação ao separatismo e à guerra civil, inclusive criando as condições na
opinião pública para a intervenção armada da OTAN. Tito morreu em 1980, sendo
sucedido por uma direção colegiada das repúblicas federadas, enquanto a
economia passou a degradar-se mais rapidamente que os demais “países
socialistas”.
Se
tivesse vivido ao longo da década de 1980 – período em que a restauração
capitalista se gestou –, muito provavelmente Tito teria se colocado como
oposição à Perestroika; sobretudo em
razão do seu senso pragmático. Certamente a ausência de uma política de
formação de novos quadros e “líderes” que fossem capazes de identificar e se
opor à restauração capitalista, os sucessos do imperialismo no desmembramento
da ex-Iugoslávia e do leste europeu teriam sido mais difíceis. Os sucessores de
Tito, reféns da visão anti-trotskista, foram presas fáceis dos interesses
imperialistas na região, tal como o foram os burocratas soviéticos (que
trabalharam conscientemente pela restauração capitalista).
Os
“nacionalistas” iugoslavos desejavam se desembaraçar das regiões mais pobres e
atrasadas. Suas posturas involuíram ao nacional-chauvinismo, servindo de base
para reconstruir suas identidades étnicas. O caos se instaurou e o imperialismo
aproveitou-se dessa situação. Em setembro de 1991, vários países “proclamaram”
suas independências, sendo rapidamente reconhecidas pelo imperialismo
norte-americano e alemão. A grande mídia continuou fazendo seu serviço sujo de
confundir, afirmando se tratar de disputas inter-raciais e étnicas. Omitiu todo
o histórico comunista da Iugoslávia e os grandes avanços conquistados,
sobretudo seu período de convivência pacífica e promissora. O caos social,
político e econômico em que o imperialismo lançou o país, expulsando populações
e realizando massacres em guerras civis foi abafado com o velho método de
encontrar um único vilão. Os ideólogos burgueses lançaram suas teses nefastas
para tentar desmoralizar o comunismo, afirmando que os confrontos étnicos
tinham sido reprimidos pelos comunistas no poder e que, naquele momento,
simplesmente teria despertado novamente. Escondeu todas as ações políticas
conscientes que levavam inevitavelmente ao confronto étnico e à guerra civil. Os
EUA passaram à ofensiva, apoiando e financiando “exércitos de libertação
nacional” – que na verdade não passavam de milícias de partidos
ultranacionalistas – contra Milosevic, acusado permanentemente pela mídia de
ser um ditador sanguinário.
Em
1992 foi a vez da Macedônia, Sérvia e Montenegro se declararem independentes. A
União Europeia imediatamente reconheceu a independência e ofereceu socorro às
repúblicas separatistas. As cidades ou povoados que resistiram ao
desmembramento, reivindicando a ideia de uma Iugoslávia unida, sofreram com um
embargo político e econômico, ao mesmo tempo em que era estigmatizada pela
imprensa internacional. Esgotado por este embargo, alguns resistentes foram
obrigados a romper acordos impostos pelo imperialismo. Assim, sofreram com a
ocupação das forças de “paz” da ONU e com bombardeios da OTAN, sobretudo na
cidade de Kosovo[vi].
Em
março de 2002, por pressão da União Europeia e dos EUA, o que restou da
Iugoslávia teve que abandonar este nome e aceitar o de República da Sérvia e
Montenegro. A geopolítica dos Balcãs voltou a ser um mosaico de pequenos países
e reinos tutelados pelas grandes potências imperialistas, palco de xenofobia,
chauvinismo e agressão. A exitosa experiência da revolução liderada por Tito
deveria ser, definitivamente apagada e esquecida. Cabe aos historiadores a
serviço dos trabalhadores, resgatar e cultivar a memória da Iugoslávia, que com
todos os seus acertos e erros demonstrou que é possível uma via diferente ao
socialismo.
NOTAS
[i] Tito: história ilustrada da Segunda Guerra Mundial.
Coleção líderes, número 9, de Phyllis Auty. Editora Renes LTDA., Rio de
Janeiro, 1972.
[vi] Com informações extraídas de: “Revoluções e Regimes
Marxistas – Rupturas, experiências e impacto internacional”, de Paulo G
Fagundes Visentini (org.). Leitura XXI, Porto Alegre, 2013.
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