Prelúdio trágico: a decapitação de John Brown |
Como
tudo que está no mundo se transforma constantemente, a luta de classes, com as
suas bandeiras e pautas, também muda. Um dos novos temas trazidos a luz é o do identitarismo, que seria uma espécie de
modificação e adaptação aos dias atuais dos movimentos de luta contra as opressões, no caso: a
luta feminista, antirracista e a antihomofobia.
O termo identitarismo tem origem na
expressão identity politics
(políticas identitárias) que se popularizou amplamente nos EUA na década
passada com a polarização das eleições que levaram Donald Trump ao poder[i].
Dos EUA se espalhou para o mundo. O conceito de identitarismo foi cunhado pelo Combahee River Collective, grupo
feminista formado por negras e lésbicas, em 1974, que não se sentia
representado pelo movimento feminista, branco e racista em sua quase totalidade[ii].
Certamente possui outras fundadoras e propagandistas, diretas ou indiretas,
tanto nos EUA quanto em outros países, embora menos conhecidas.
Como não poderia deixar de ser, todo o
movimento surgido dos setores explorados e oprimidos da sociedade burguesa deve
interessar e ter influência sobre o movimento socialista, que, por seus fins históricos,
almeja atingir uma sociedade comunista, na qual não existam diferenças sociais,
econômicas, de classe, cor, sexo, orientação sexual, etc.; e o Estado se
transforme em uma peça de museu tão arcaica quanto um machadinho de pedra. Contudo,
o movimento identitarista tem elementos positivos e negativos que precisam ser
ponderados. Os últimos, por exemplo, podem ser utilizado pela burguesia e seus
ideólogos no sentido de minar os primeiros e, consequentemente, sabotar a luta
pelo socialismo.
Tais precauções não deveriam ser novas,
uma vez que Clara Zetkin e Lenin, com todas as suas limitações pessoais e
históricas, já alertaram para tais possibilidades de desvios. A grande questão
aqui é lançar luz sobre os possíveis desvios já consolidados ou em potenciais
do identitarismo, que são diferentes dos da época de Clara e de Lenin; bem como
identificar os seus elementos positivos para desenvolvê-los dentro de uma
perspectiva classista.
Para o canal do Youtube, Tese 11, o
identitarismo vem substituindo cada vez mais a noção de “luta contra as
opressões”, que já era uma política levantada pelo movimento socialista desde
longa data[iii].
Tese 11 entende que isso representa
um retrocesso porque tende a se sobrepor ou a esquecer completamente das
demandas de classe (como veremos mais adiante). Em compensação, as “lutas
contra as opressões” foram desfiguradas pelo stalinismo, que criou a noção
mecânica de reivindicações primárias e secundárias. O socialismo seria
“primário” e as questões específicas (econômicas, feministas, antirracistas,
etc.) seriam “secundárias” e subordinadas às “primárias”, quase sempre caindo
no esquecimento completo, quando não servindo para justificar o que deveria
combater.
Em contraposição a isso, uma visão
dialética diria que são bandeiras complementares, como partes de um mesmo todo.
No entanto, o atual identitarismo, às
vezes sutilmente, às vezes abertamente, tende a inverter o erro da lógica
stalinista.
O identitarismo e o partido democrata
Um dos principais disseminadores da
atual ideologia identitarista é, sem dúvida, o partido democrata dos EUA. Com
isso, pretende se contrapor mecanicamente ao partido republicano, que é um
antro de conservadores da pior espécie, tipo Tea Party, de Trump, que professa o “supremacismo branco” (isto é:
uma política nazi-fascista). O crescimento da ideologia neofascista, que propaga tal tipo de política abjeta, denota a
crise histórica do patriarcado, que não pode apresentar nenhuma solução sem deixar
de perder privilégios. Contudo, nem sempre a resistência às políticas ofensivas
do patriarcado apresenta uma política coerente, reproduzindo, por vezes, um
certo desespero que descamba para o sectarismo ou mesmo para o policlassismo, o
que se alimenta de outros desvios e os reforça.
O partido democrata, por sua vez, ainda
que defenda exatamente a mesma política econômica e internacional dos
republicanos, vende uma ideia de que está aberto a todos os setores, sobretudo
através da eleição de Barack Obama e da candidatura de Hillary Clinton. Mas não
apenas disso. Pelo seu viés, propaga o identitarismo no seio do movimento
sindical e social estadunidense, tal como fez impulsionando o Black Lives Matter a partir dos criminosos
assassinatos de negros pela polícia de orientação trumpista.
Num país com um sistema eleitoral
bizarro e autoritário, onde o povo vota, mas não elege, a maior parte das
pautas e reivindicações, para se expressarem politicamente, devem passar pelo
gargalo de um dos dois partidos. O partido republicano tende a ser mais
homogêneo, servindo como um comitê da alta burguesia; o democrata, reúne desde
bilionários até movimentos pretensamente socialistas, passando pela classe
média. Portanto, é um partido policlassista, sofrendo todas as pressões sociais
resultantes disso; ainda que, sem dúvida, prevaleçam os interesses dos
bilionários.
As crises políticas periódicas dos
democratas foram revertidas a partir da apropriação do identitarismo, que
serviu para manter a coalizão do partido, “resolvendo” a contradição
policlassista de interesses inconciliáveis entre bilionários, classe média e trabalhadores.
Hillary Clinton venceu a indicação do seu partido sobre Bernie Sanders (que
apresentava um programa mais progressivo), em 2016, utilizando-se de slogans
identitários, mas sem nenhum classismo: “mulher vota em mulher”. Ao levantar as
pautas identitárias, queriam passar a ideia de que estavam defendendo os
interesses de todo mundo, quando, na verdade, ao se apropriarem destas pautas,
usavam os movimentos sociais como bucha de canhão dos interesses dos
bilionários; e, portanto, alinhavam os movimentos sociais aos interesses do
grande capital imperialista justamente a partir do identitarismo.
Guardadas as devidas proporções,
culturas, discursos e métodos, o mesmo se passa com os partidos da “esquerda”
brasileira, tipo PT, PCdoB, Psol (muitas vezes até com o PSTU). Dado que a
maioria deles está infiltrado pelas ideologias, programas e caráteres
pequeno-burgueses ou burgueses, a maneira de manter sua coesão e aparência de
defesa de “interesses gerais” e “do povo” é, também, através da exaltação do identitarismo
acima das pautas classistas e socialistas (muitas vezes suprimindo-as
completamente).
Percepções de quando o identitarismo organiza
ou desorganiza o movimento socialista
Poucas organizações de esquerda
percebem as contradições flagrantes do discurso identitário e da sua utilização demagógica. Algumas que
percebem, como o POR e Línea Proletária
(Organização pela reconstituição
ideológica e política do comunismo) do Peru, caem numa política abertamente
reacionária, jogando tudo fora. Por compreenderem que a burguesia tem se
utilizado cada vez mais das bandeiras identitárias a seu favor, dividindo e
enfraquecendo o movimento da classe trabalhadora e a luta pelo socialismo,
chegam a conclusões reacionárias, como a negação da necessidade de se lutar
contra as opressões machistas, racistas e homofóbicas desde já; ou seja: uma
separação mecânica da luta pelo socialismo da luta contra tais opressões na
sociedade atual[iv]. Línea Proletária chega ao cúmulo de
levantar a bandeira reacionária de “abaixo o feminismo”[v],
contrapondo tal palavra de ordem a uma abstração de “viva a emancipação revolucionária das mulheres!”, dentre outros
objetivos, para poder justificar a tática permanente de luta armada.
De fato, as bandeiras feministas que
eram parte inseparável do programa socialista, bem como as justas
reivindicações iniciais do coletivo Combahee
River, foram, pouco a pouco, sendo apropriadas por parte da direita
estadunidense, atingindo o seu ápice nas eleições de 2016, até chegarmos na
atual conjuntura. Isso se deve, em grande parte, a pequenas vitórias dos
movimentos sociais que conseguiram imprimir um novo discurso hegemônico contra
o machismo, a homofobia e o racismo, abrindo espaço para outros segmentos e
fazendo com que muitas emissoras da grande mídia tivessem que se adaptar a ele.
Contudo, tal como já fez ao longo da história, a burguesia, não conseguindo
mais esconder determinadas desigualdades, passa a tirar proveito delas criando
uma “nova racionalidade” e um “novo discurso” – bem aos moldes do que fez com
os sindicatos ao longo do século XIX e XX (de proibidos, passaram a ser
sustentáculos indiretos da ordem do capital) e a própria luta pelo socialismo através
da vertente reformista.
Dito de outra forma: foi, sem dúvida,
um mérito do identitarismo (e das lutas históricas das mulheres e do movimento
negro socialistas) a vigilância e a
“repressão moral” das piadinhas, hábitos e práticas desleixadas que reforçam o
machismo, o racismo e a homofobia. Tal prática ajudou a reforçar uma incipiente mudança de postura na
sociedade, dialogando com amplos setores da massa que não ouviam o discurso dos
“comunistas”, bastante mecânico e arcaico; sendo sentida e gradativamente
assimilada pela grande mídia e pelos mais perspicazes partidos da ordem, no
intuito de neutralizá-los.
Se lançarmos um olhar mais criterioso
sobre o atual discurso identitário, podemos
perceber que ele tem servido para ressignificar a ordem do capital, caso
contrário, os partidos da ordem e a grande mídia não os assimilaria. Tem sido,
a bem da verdade, um dos mais
eficazes desvios do descontentamento popular contra o capitalismo da atualidade.
Não quer dizer que seja o único e nem o principal, mas hoje cumpre um papel de
vender “igualdades” e “vitórias” que não abalam estrutura alguma; ao contrário,
lhes reforça dando algum tipo de legitimidade.
O coletivo Combahee River, por exemplo, reconhece no seu manifesto um
importante perigo: o tokenismo, que
diz respeito a uma prática superficial de “inclusão” de grupos vulneráveis
(tipo cotas de representatividade) com o objetivo de aparentar uma política de
igualdade e se esquivar de acusações de discriminação. Isto é, ajudam a
reciclar a imagem do Estado, da política burguesa[vi],
de grandes empresas, da grande mídia; em suma, da estrutura de onde provém o racismo, o machismo e a homofobia estruturais.
Contudo, entra numa perigosa contradição
quando afirma que “embora nossa posição
econômica ainda esteja no nível mais baixo da economia capitalista americana,
um punhado de nós conseguiu obter certas ferramentas, resultantes de
‘tokenismos’ nos âmbitos de educação e emprego, o que potencialmente nos
permite combater nossa opressão de forma mais eficaz”[vii].
Mesmo reconhecendo as armadilhas do “tokenismo”, o coletivo compreende que
estaria combatendo de forma “mais eficaz” a sua opressão, e não ajudando a
reciclar a imagem do sistema, inclusive o discurso meritocrático e da
democracia burguesa, sem nenhum arranhão sequer na estrutura. Este tem sido o
equívoco de toda a “esquerda” atual.
As lutas contra as opressões
específicas e pelo socialismo não estão dissociadas. São parte de um único e
mesmo programa. Contudo, podem entrar em contradição caso não sejam observadas
e equilibradas com lucidez. A “esquerda” oportunista, seguindo acriticamente as
manobras da burguesia que se apropriou do discurso identitário, isola sua luta
específica e a transforma em bandeira privilegiada, secundarizando ou mesmo
renegando a luta contra a estrutura, isto é, a luta pelo socialismo. Este
método não só está errado, como repete o que fez a “esquerda” conciliadora com
o discurso reformista e com a adaptação dos sindicatos e dos movimentos sociais
à estrutura oficial da sociedade capitalista ao longo dos séculos XIX e XX.
Mudam-se os camundongos, mas as ratoeiras seguem as mesmas.
Todas as lutas específicas não se
bastam a si mesmas, nem se transformam automaticamente
em socialistas. Da mesma forma, não é o desenvolvimento dessas lutas
específicas que permitem a acumulação de forças dos trabalhadores e a sua
transformação em luta pelo socialismo por
si mesmo, é ao contrário, a partir da criação de um amplo movimento
consciente contra o capitalismo – e não de adaptação disfarçada com discurso de
“representatividade” – que conseguiremos atingir o socialismo, colocando abaixo
as estruturas patriarcais, e, portanto, atingindo uma sociedade com estruturas igualitárias.
O atual pensamento identitário afirma
que não está em contradição com a luta pelo socialismo. Contudo, seu discurso
está em contradição com o que é professado na sua teoria e feito na prática! Ele tem extraído um ou dois
fatores que lhe parecem os mais importantes, os isola da realidade complexa e
lhes atribuem uma força sem limites nem restrições. Parafraseando Rosa
Luxemburgo: quem é feminista e não é socialista, carece de estratégia; quem é
socialista e não é feminista, carece de profundidade. O atual movimento identitário, propagado pelo partido democrata e repetido
pela “esquerda”, carece de estratégia e profundidade, transformando-se numa espécie de economicismo. Ele não
está “equilibrado” em relação à luta e o programa socialista; ele transformou-se
num novo discurso hegemônico entre a “esquerda”.
Em síntese: o identitarismo organiza a classe trabalhadora e serve à
luta pelo socialismo, atingindo em cheio a estrutura patriarcal, racista e
homofóbica que sustenta o capitalismo, quando mulheres, negras, negros e LGBTs
levantam a cabeça e, a partir da
coletividade, do crescimento da
consciência de classe e da emancipação individual harmônica dentro deste “todo”, deixam
de crer na força do capital e reivindicam o direito à equidade social, econômica, civil, cultural, sexual, etc., para
todos e todas; o identitarismo desorganiza
a classe trabalhadora quando é utilizado direta ou indiretamente pelo sistema;
quando se adapta a ele através do “tokenismo”, do discurso da “representatividade”
de alguns em detrimento da classe, o que geralmente
termina sustentando políticas burguesas e meritocráticas individuais, levando à
divisão da classe, à renovação da estrutura oficial e, consequentemente, do machismo,
racismo, homofobia e, em última análise, do próprio capitalismo. O “segundo
identitarismo” tem prevalecido cada vez mais sobre o “primeiro”.
Os méritos e os perigos do manifesto do
coletivo Combahee River
Atualmente toda a burguesia se adapta ao “identitarismo” a olhos vistos:
a grande mídia e as grandes empresas; o Estado e suas instituições; as
eleições, os concursos públicos e os vestibulares. A vitória pontual do
discurso hegemônico do identitarismo – que só foi possível, a bem da verdade,
graças ao movimento do coletivo Combahee
River e de toda uma tradição anterior do movimento operário que remonta a
Segunda Internacional – tem se voltado contra si mesmo e, potencialmente,
contra a união da classe. Este não é, evidentemente, o único fator de
desagregação e desvios da classe trabalhadora, mas representa um perigo em potencial
porque tem servido como uma “vitória” que acalma e paralisa. Na verdade, o
perigo apontado no manifesto do coletivo Combahee
River sobre o “tokenismo” tem sido a regra (embora o movimento possa não
admitir).
Como revolucionários, sem dúvida devemos
saudar a iniciativa e a coragem das mulheres negras organizadas neste coletivo
por assumirem a sua responsabilidade na luta e procurarem falar com voz própria
sobre as suas demandas. As mulheres negras compõem o segmento mais explorado e
oprimido da classe trabalhadora, lutando contra opressão tripla. Contudo, não
devemos fechar os olhos para as inevitáveis infiltrações burguesas, que ocorrem
mesmo no setor mais explorado, bem como a sua utilização demagógica e
utilitária por partidos burgueses ou reformistas, grande mídia e outras esferas
do establishment. Se isso não
compromete a justeza da causa do identitarismo, não impede que sofra pressão
permanente pela adaptação. A crítica apresentada aqui não se refere à justeza
da causa, mas as tendências que o movimento vem tomando, que ameaçam segregar a
classe trabalhadora e tornar-se um fim em si mesmo (apesar de que o manifesto
original do coletivo fale corretamente em luta contra o capitalismo, e depois acabe
por se contradizer).
***
Saudamos o manifesto quando ele afirma
que o coletivo está comprometido “em
contribuir com lutas nas quais raça, sexo e classe sejam fatores simultâneos na
opressão”[viii];
embora não seja assim que o partido democrata e a “esquerda” tratem esta luta,
que foi apropriada por eles. Infelizmente não há outra “luta” identitária no
momento. Mesmo que todas essas opressões sejam simultâneas e precisem, de fato,
ser combatidas simultaneamente, vemos a última ser substituída, gradativamente,
por uma adesão sutil ao policlassismo e aos métodos reformistas, além de
apostar num discurso segregacionista.
Isso pode ser percebido na conclusão do
manifesto do coletivo Combahee River,
quando ele afirma praticamente o oposto do que afirmou ao longo de suas
páginas, reduzindo a pó a compreensão de classe: “Em sua introdução de Sisterhood is powerful, Robin Morgan escreve: não tenho a menor noção de qual papel
revolucionário homens heterossexuais brancos poderiam cumprir, já que eles são
a própria personificação do poder e dos interesses reacionários”[ix].
Aqui fica evidente que não se trata dos
homens brancos e heterossexuais que detém o capital e o poder, mas deles como a
“própria personificação do poder e dos
interesses reacionários”, indistintamente. É exatamente contra esse inimigo
sem distinção de classe que equivocadamente o movimento identitário atual tem
proposto lutar. O que pode resultar disso senão uma segregação de novo tipo?
Acaso o coletivo desconhece a história
da luta abolicionista protagonizada pelo branco
John Brown, que teve seus dois filhos mortos pela reação justamente por ser
abolicionista?[x] Acaso o
papel que ele cumpriu também foi o da personificação do poder e dos interesses
reacionários? O fato é que a luta de John Brown nos dá uma boa noção do papel
que homens brancos podem cumprir – basta ter um pouco de boa vontade e empatia
para perceber que o coletivo Combahee
River passou de certos limites.
“Lugar de fala”, empatia e o internacionalismo
socialista
Uma das pontas de lança do atual
identitarismo é o chamado “lugar de fala”, que consiste em dar a fala
prioritariamente aos grupos que foram historicamente excluídos dos lugares
decisórios para que falem por si mesmos. Ou seja: na prática apenas mulheres
falam pelas mulheres; negros e negras pelos negros e negras; e LGBTs pelos
LGBTs. Homens brancos e heterossexuais, que por séculos ocuparam os principais
“lugares de fala”, devem ser colocados como ouvintes. Da mesma forma, seriam
impedidos, de uma forma ou outra, de opinar ou criticar tais movimentos
identitários.
Dependendo da maneira como
interpretamos e aplicamos tal princípio,
isso pode ser justo ou completamente equivocado. Há, de fato, necessidade de
respeitarmos “lugares de fala” quando partimos da compreensão de que por
milênios e séculos o patriarcado branco oprimiu mulheres e escravos africanos,
retirando-lhes a possibilidade de qualquer tipo de manifestação. Isso
certamente deixou sequelas que se refletem ainda hoje, necessitando uma
política que dê preferência a setores e grupos excluídos historicamente de
qualquer lugar de comando e de formulação de políticas decisórias.
O machismo, o racismo e a homofobia se
expressam, muitas vezes, de forma sutil e excluem, de uma forma ou outra, os
setores oprimidos da premente necessidade de se expressarem. Tais sutilezas
muitas vezes decidem políticas e ajudam a sustentar a estrutura, portanto, se
uma organização, um sindicato ou um movimento social não tem renovação em suas
lideranças, no sentido de colocar em suas direções, mulheres, LGBTs, negros e
negras, certamente há problemas que precisam ser enfrentados, com discussão ou
mesmo com coerção. Da mesma forma deve ser encarado o seu silêncio recorrente.
Nesse sentido, o método sindical e das organizações de “esquerda” para
organizar falas através de inscrições, por mais burocrático que seja, é
importante como forma de garantir a equidade e o respeito na escuta da outra
pessoa, desde que esteja comprometido com o incentivo à fala destes setores.
Tal método certamente não resolve tudo, mas é um bom começo que precisa ser aprimorado.
Por outro lado, percebe-se que há, atualmente, uma forte tendência a transformar o “lugar de
fala” em um princípio desagregador, que tende a criar uma torre de Babel quando
observamos como tem se desenvolvido. Ele tem servido para afirmar
tacitamente que o “lugar de fala” é
exclusivo de cada grupo social excluído e oprimido, e que os homens brancos
e heterossexuais não podem opinar a respeito, uma vez que “não sofrem tais
tipos de opressão”.
Se, por um lado, esta perspectiva é
correta no sentido de afirmar a autonomia emancipatória de cada grupo e,
através do “lugar de fala”, garantir o direito de dar a última palavra a respeito dos seus assuntos, políticas e programa;
por outro, proceder desta forma é se fechar num sectarismo obtuso que joga suas
práticas para antes da era burguesa, criando uma espécie de casta fechada em si mesma. É, em última análise, a total
desconsideração pela capacidade humana de empatia,
que é uma das bases da solidariedade de classe
internacional. Não se pede aqui que se acate o que “outros setores” têm a
dizer a respeito da luta antimachista, antirracista ou antihomofóbica, mas que se
leve em consideração os seus argumentos, pesando cada pessoa deste “outro
setor” por suas posições políticas e, sobretudo, por sua prática. Nesse
sentido, o “lugar de fala” precisa ser “aberto” e não como algo que traz
embutido determinadas certezas inquestionáveis.
Se impera o “lugar de fala” sectário e
excludente, se perderá um princípio da
classe operária. Seria o mesmo que dizer: “um professor não pode opinar
sobre a luta de um metalúrgico ou de um trabalhador terceirizado porque não
sofre a mesma opressão”; ou ainda: “um trabalhador norte-americano não pode
opinar sobre as posições de uma organização política chinesa ou africana porque
não sofre a mesma opressão”. Todos e todas podem e devem ser livres para opinar sobre estas lutas, mas, neste
caso, quem, em última análise, deve dar a palavra final, ponderando as críticas
honestas e classistas, são os metalúrgicos, os terceirizados, os chineses e
africanos. O mesmo método proletário deveria
ser aplicado nas lutas “identitárias”.
É muito pouco provável que o movimento
abolicionista norte-americano, por exemplo, tenha condenado John Brown por ter
se “apropriado do lugar de fala dos escravos”. E também seria um absurdo
condená-lo. A sua prática lhe garantia a autoridade necessária. Se o condenasse,
dividiria obtusamente o movimento e jogaria para longe, como se fosse um inimigo, um aliado inestimável. Embora hoje os
tempos sejam outros e saibamos da importância de cada segmento da classe
trabalhadora ter seu “lugar de fala”, isso não pode se tornar um dogma
excludente. O “lugar de fala” é importante desde que garanta e incentive a fala
dos setores oprimidos, mas sem piorar a segregação da classe e, principalmente,
sem que a demagogia eleitoral burguesa (dentre outros desvios) fale por sua
boca, querendo se legitimar pela autoridade dos setores oprimidos. Poucas
pessoas tem se apercebido desse problema sério.
***
Na atual conjuntura o neofascismo está em franca ofensiva
contra os ativistas do identitarismo (e do comunismo também), professando
políticas de “supremacia branca” por perceberem a profunda crise do patriarcado.
Propor o “direito a fala” para tais setores seria um absurdo completo; é o
mesmo que dar fala à burguesia numa assembleia de trabalhadores. Obviamente, não
se trata disso, mas de reconhecer trabalhadores homens, brancos e
heterossexuais que estão no campo da classe trabalhadora e que, justamente por
isso, devem valorizar as lutas de caráter identitário como parte da emancipação humana. Se não procedem
desta forma, não podem ser considerados como trabalhadores socialistas e com
consciência de classe. Tal consciência pressupõe a compreensão e o apoio à luta
pela emancipação de mulheres, negros, negras e LGBTs. Da mesma forma, tais
setores devem, forçosamente, reconhecer a condição de classe explorada para
homens brancos e heterossexuais que estão nas fileiras da classe trabalhadora –
o que não significa, de forma alguma, fechar os olhos para os seus desvios
machistas, racistas e homofóbicos (que também existem entre os próprios “setores
oprimidos”).
Contudo, cada um desses desvios, por
mais sutis que sejam (e muitos o são), não podem ser tratados como uma espécie
de pecado original que se expressa em
qualquer coisa que não tem expressão
minimamente evidente. Há muitos episódios de debates polêmicos entre militantes
das mais variadas esferas em que se pode constatar uma virulência contra, por
exemplo, “machismos em potencial” que são, na verdade, divergências políticas. Aqui devemos ter o máximo de atenção para
evitar contendas que não podem ter outro desfecho que não a segregação e o fechamento de cada um na
sua bolha. O machismo, o racismo e a homofobia, no geral, se expressam de
distintas formas, como piadas, tom de voz e, evidentemente, posições políticas,
mas sempre com alguma manifestação minimante perceptível no concreto. Elas devem ser esmiuçadas a partir dos fatos, dos
debates e discussões. Agir dessa forma não significa aceitar e concordar com
posições e práticas de militantes que julgamos apresentar tais desvios, mas
proceder a partir de novas relações entre
nós, sem virulência e através do debate franco e honesto, bem como procurando
evitar o caos a partir do método de inscrição
de falas, onde tais imposições e interrupções machistas e racistas podem ser
mais facilmente identificadas.
Mais importante ainda é evitar que
divergências políticas, que muitas vezes são sutis e podem partir de elementos
inconscientes, sejam traduzidas em acusações de “machismo, racismo e homofobia”
que não se traduzem em fatos concretos.
Ser tolerante com pessoas da mesma classe no debate não significa concordar com
o que ela diz, mesmo que na nossa percepção tenhamos certeza que se trate de
casos de discriminação; significa, sobretudo, ser perseverante e trazer à tona
a contradição dos seus argumentos, posições e práticas, demonstrando onde, como
e porquê se trata de um caso de discriminação de gênero, raça ou orientação
sexual. Se não formos cuidadosos com isso, em
muitos casos (não em todos, leia-se
bem) quem pode falar pela nossa boca é uma forma de manifestação da peste
emocional[xi].
Não foram poucas as vezes em que se
calaram críticas importantíssimas à tendência de transformar as “saídas”
institucionais burguesas do identitarismo em seu principal fim com o argumento
de “lugar de fala” e de “desrespeito à independência destes movimentos”. Neste
caso é nítido como divergências políticas são tratadas erroneamente como
“opressão”.
***
A lógica do “lugar de fala” tem sido mais ou menos a seguinte: Platão e
Aristóteles eram homens brancos e escravocratas, por isso devemos jogar fora
tudo o que escreveram. Ao invés de fazermos a crítica à herança cultural do
ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do ponto de vista das
mulheres e do povo negro, tal como fizeram Simone de Beauvoir, Frantz Fanon e
Angela Davis – para que recebam novas críticas no futuro, por sua vez –,
joga-se fora a criança com a água suja da bacia. A equiparação cultural, muitas
vezes, também não é levantada; ou se é feita, apresenta-se de forma destrutiva,
exagerada, a começar tudo do zero, como se não houvesse nada positivo.
Assim, este processo inicia-se com
Platão e Aristóteles; depois se avança sobre Hegel, Marx, Engels, Lenin,
Trotski, Nietzsche, Freud, Jung, Reich, Carl Sagan, José Mariátegui, Chico
Mendes e tantos outros, por serem, da mesma forma, homens brancos. Nesta
frequência, terminamos por jogar fora quase toda a cultura ocidental que,
apesar de ser feita por homens brancos, deve ter os seus elementos positivos
preservados e os ruins (evidentemente, aqueles que excluem as mulheres, negros
e negras, e LGBTs) criticados e retificados. O proletariado deve assimilar a
cultura burguesa remodelando-a conforme a sua visão. Parte deste processo está
em criticar pela ótica feminina, da negritude e LGBT classistas todas estas teorias.
***
O trabalhador branco e heterossexual,
por sua vez, tem que ser parte da luta pela equidade social entre todas as
cores de pele, etnia, nacionalidade, sexos e orientações sexuais – e isso
implica o apoio à representatividade destes setores na direção dos movimentos,
embora não de forma exclusiva. Como
já foi dito, se não proceder assim (mesmo que tenha inevitáveis desvios), não
pode ser considerado um trabalhador socialista e com consciência de classe.
Todos os movimentos identitários, por
mais importantes que sejam, não possuem nenhum talismã contra a influência da
classe dominante e, portanto, contra a degeneração; assim como o movimento
sindical e socialista também não tem. Cada movimento deve ser medido na prática
concreta e pra onde apontam suas
tendências. Os movimentos identitários, por exemplo, ainda que levantem
bandeiras históricas fundamentais para a emancipação da classe trabalhadora,
não estão livres do desvio presente em todos os outros, como, por exemplo, o espírito de rebanho, que é outro
problema reproduzido pela estrutura do sistema em que vivemos, assim como o
machismo, o racismo e a homofobia.
A postura stalinista, por exemplo, não
é exclusiva dos movimentos socialistas e sindicais dirigidos por brancos. Pode
se desenvolver nos movimentos identitários como, de fato, ocorrem em alguns, onde
falam sempre as mesmas lideranças femininas, negras ou LGBTs. Ainda que muitas
delas sejam justas e com autoridade conquistada na luta, outras tantas podem
simplesmente reproduzir formas de dominação sobre o rebanho. Da mesma forma, o
lugar de fala pode ser usado para a libertação ou para arrebanhar
demagogicamente, a depender da maneira como proceda. Não existe receita de bolo
e o melhor é ficar em estado de alerta permanente.
Identitarismo e autoverdade
Dentro da lógica do atual identitarismo
podemos perceber certos raciocínios políticos perigosos como aquele que afirma:
as mulheres decidem o que é machismo; os negros e negras decidem o que é
racismo; e os LGBTs decidem o que é homofobia. De fato, são os principais
atores que devem ter o direito de exigir punição nestes casos, contudo, isso
deve ser bem observado. Da maneira como está sendo colocada a questão, um
acusado de cometer tais desvios não poderia se defender se, em última análise, quem tem o poder exclusivo de definir o que é
machismo, racismo e homofobia é o próprio movimento identitário. Sabemos que
tal postura defensiva é, de certa forma, um reflexo do erro oposto, geralmente
ligado ao pensamento reacionário de direita, para quem “nada é machismo,
racismo e homofobia”, chegando ao cúmulo de afirmar que “isso não existe no
nosso país” ou seria apenas “mimimi”, para usar as edificantes palavras do
“nosso” presidente neofascista.
Rechaçando totalmente o discurso de que
nunca existe machismo, racismo e homofobia em uma estrutura social que
dissemina isso aos quatro cantos, devemos ser cuidadosos para não cairmos no equívoco
de criar uma espécie de “autoverdade” que ignora elementos e fatos da
realidade, aprofundando a segregação e propondo, em última análise, uma nova
forma de dominação de uns sobre os outros – que é o que pode acontecer quando defendemos
uma espécie de autoverdade.
Há aqui um inevitável parentesco entre autoverdade e pragmatismo, a malfadada filosofia
capitalista estadunidense, que toma como critério da “verdade” não a
experiência ampla, social, dos fatos,
do trabalho, mas unicamente as experiências individuais (ou de pequenos
grupos). Neste sentido, qualquer pensamento que beneficie “a verdade” dos
grupos ou de indivíduos pode ser reivindicado como verdadeiro. Assim, pontos
jurídicos elementares surgidos na etapa progressista da era burguesa, como o
direito a se defender a partir dos fatos e a presunção da inocência, serão
perdidos.
Todo o tipo de racismo, machismo e
homofobia devem, sem dúvida, ser criminalizados e punidos, embora devam estar,
como foi dito, alicerçado nos fatos passíveis de serem debatidos, com acusação
e defesa. Sabemos da impunidade referente a estes crimes na sociedade burguesa,
bem como a sutileza em que muitas vezes acontecem. Porém, sempre devemos nos
amparar nos fatos e na realidade concreta, e não no direito exclusivo de movimentos definirem o que é ou não é tal ou
qual tipo de opressão, o que não pode gerar outra coisa que não a confusão e, em
casos mais extremos, a tirania da auto verdade.
O direito
que cada movimento tem de se auto organizar
e fazer sua agitação e propaganda, inclusive apontando casos que compreende ser
de machismo, racismo e homofobia, não deve ser confundido com o direito
exclusivo de determinar o que é ou não é opressão sem confrontar-se com o
contraditório e sem ouvir a defesa do acusado. Este direito à defesa, por sua
vez, nada tem a ver com a blindagem que a justiça burguesa promove aos setores
da burguesia e da classe média para protegê-los de seus crimes (tal como se
passou no caso de Mariana Ferrer), mas, sim, com a necessidade de se ouvir e de
se construir a acusação em cima dos fatos; sobretudo se falamos em desvios
deste tipo no interior da nossa própria classe. Para isso existem os juris
populares e o da classe trabalhadora, que ainda precisam ser melhor desenvolvidos;
além da importância formativa de se recorrer às instâncias e reuniões de
organizações, sindicatos, entidades, no sentido de promover o debate público,
aberto, franco, olho no olho, com
direito de acusação e de defesa para se chegar a uma síntese a partir dos fatos.
Do contrário, se cai na autoverdade.
Identitarismo e comunismo: a dialética
da parte e do todo
O identitarismo, tal como está
disseminado hoje, não apaga as
ideologias burguesas e não as combate automaticamente.
Pelo contrário: pode conviver muito bem com elas; o que, certamente, representa
um grande perigo! Concepções burguesas, como a meritocracia e os valores da
democracia burguesa, podem falar (e tem falado efetivamente) através do
identitarismo – que também pode expressar sintomas da peste emocional!
Facilmente percebe-se que para muitos
grupos identitários (alguns presentes nos partidos reformistas) não importa os
valores que professe, por exemplo, uma candidata negra eleita: se uma posição
liberal, evangélica, neofascista,
reformista ou revolucionária. Basta ser negra e ter um lugar de fala. Mesmo a
cultura negra ou feminista, por exemplo, pode estar imbuída de uma visão
burguesa de sociedade, o que significa dizer que este “lugar de fala” reforçará,
mais adiante ou imediatamente, a estrutura que visa combater e que dissemina o racismo
e o machismo. O mesmo poderia ser dito de uma jornalista negra (o que não tem
nada a ver com ser contra a sua aparição na TV por qualquer pretexto, tampouco ser
conivente com os absurdos comentários neofascistas
de haters nas redes sociais, que
devem ser combatidos sem trégua).
É precisamente atrás desta visão,
vendida como “vitoriosa” por colocar uma mulher negra no parlamento ou na TV,
que se esconde um tipo novo de
economicismo. Quem vê isso, sem admitir, como um fim em si mesmo, não
importando que legitime a meritocracia, a democracia burguesa e, indiretamente,
a estrutura patriarcal, não chamando a atenção para estas contradições, cava a nossa cova. Tudo isso joga o socialismo
e o comunismo para mais longe ainda, uma vez que legitima e cria uma “nova
racionalidade” para a estrutura atual através da “representatividade” de alguns
em detrimento da maioria (as candidatas e jornalistas negras não estancaram a
chacina de trabalhadores negros e negras nas periferias; e nem chegam perto
disso). Assim, a questão da “representatividade” e do “lugar de fala” deve ter,
como horizonte bem próximo, a
perspectiva de emancipação de classe.
***
Para contribuir com esta polêmica, vejamos
mais de perto a dialética do universal e do particular. O universal representa
o todo; o particular, suas partes. A humanidade é o universal; a mulher
(branca, negra, asiática, índia, etc.), o homem (branco, negro, asiático,
índio, etc.), bem como todos os diversos tipos de orientação sexual (gays,
lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros, assexuados, etc.), são as suas
particularidades. Por milênios o homem branco (sobretudo o europeu) se vendeu como o protótipo do universal.
Isto é: uma particularidade que teve a pretensão egocêntrica de se tornar o
modelo universal – inclusive se utilizando da mais brutal violência simbólica e
física. Este mito caiu (ou está caindo) – daí advém o desespero neofascista em suas mais diversas
facetas.
Chegou o momento de “resolvermos” a
particularidade egocêntrica no universal – esta é uma das principais tarefas do
comunismo (que como sistema social nunca existiu sobre a face da Terra). A
“resolução” do particular no universal deve, literalmente, respeitar todas as suas particularidades (culturais, folclóricas, sexuais,
emocionais, etc.) sem colonização recíproca e sem a criação de novos bodes
expiatórios – caso contrário, estaremos ameaçados de não atingirmos a equidade,
mas formas de vingança. Aparentemente
parece impossível entre seres humanos não termos colonização ou bodes
expiatórios, uma vez que a humanidade “cresceu” em torno deles; mas não é se
tivermos consciência e perseverança. Sem isso não haverá nova sociedade; sem
isso, não haverá fim da dominação sexista e racista; sem isso não haverá comunismo.
Frantz Fanon questiona: “Como sair do impasse? Há pouco utilizamos o
termo narcisismo. Na verdade, pensamos que só uma interpretação psicanalítica
do problema negro pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pela
estrutura dos complexos. Trabalhamos para a dissolução total desse universo
mórbido. Estimamos que o indivíduo deve tender ao universalismo inerente à
condição humana”[xii].
Em outro trecho, afirma o mesmo
raciocínio: “Nessa época, desorientado,
incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que impiedosamente
me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do meu
estar-aqui, constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim,
senão um desalojamento, uma extirpação, uma hemorragia que coagulava sangue negro
sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não queria esta reconsideração, esta
esquematização. Queria simplesmente ser um ser humano entre outros seres
humanos (...). Que jamais o
instrumento domine o ser humano. Que cesse para sempre a servidão do ser humano
pelo ser humano. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir
e querer bem ao ser humano, onde quer que ele se encontre”[xiii].
E conclui: “como percebo que o preto é o [suposto] símbolo do pecado, começo a odiá-lo. Porém, constato que sou negro.
Para escapar ao conflito, duas soluções. Ou peço aos outros que não prestem a
atenção à minha cor, ou, ao contrário, quero que eles a percebam. Tento, então,
valorizar o que é ruim – visto que, irrefletidamente, admiti que o negro é a
cor do mal. Para pôr um termo a esta situação neurótica, na qual sou obrigado a
escolher uma solução insana, conflitante, alimentada por fantasmagorias,
antagônica, desumana, enfim – só tenho uma solução: passar por cima deste drama
absurdo que os outros montaram em torno de mim, afastar estes dois termos que
são igualmente inaceitáveis e, através de uma particularidade humana, tender ao
universal”[xiv].
O coletivo Combahee River escreveu algo semelhante, ainda que o movimento
identitário atual, muito mais narcísico e altissonante, esteja bem longe desta
compreensão: “é escancarado, ao olharmos
para todos os movimentos políticos que nos precederam, que qualquer um é mais
merecedor de liberação do que nós. Nós rejeitamos pedestais, reinados e
caminhar dez passos atrás. Sermos reconhecidas como humanas, horizontalmente, é
suficiente”[xv].
Eis aí o caminho do comunismo!
Contudo, a sociedade não é dividida
apenas por raça, gênero ou orientação sexual. Negras e negros favelados não têm
sido reconhecidos como “humanos” (inclusive mulheres e homens brancos pobres também) porque a sociedade atual é
dividida em classes. Sabemos que simultaneamente ao surgimento das classes, surgiu
o patriarcado. Neste “novo” contexto histórico, o ser humano branco escravizou
outros seres humanos (sem poupar os brancos despossuídos, na antiguidade). A
sociedade, atualmente, continua dividida em classes e não está nem próxima de
resolver esta contradição.
Uma minoria de exploradores brancos
vive do trabalho da imensa maioria de trabalhadores, inclusive de brancos
pobres (que recebem somente uma pequena parte dos “privilégios de cor” – mas
isso não impede que o identitarismo atual se “esqueça disso” e transforme-o no
principal “privilégio” a ser combatido, enquanto secundariza ou mesmo esquece
da luta contra os maiores privilegiados). A minoria branca burguesa, que vive numa
riqueza que nenhuma classe dominante anterior conheceu, desenvolve
permanentemente novas técnicas para preservar a sua estrutura social (ainda que
muito minoritários, também existem representantes de mulheres, LGBTs e negros e
negras entre a classe dominante[xvi]).
Portanto, a classe burguesa, majoritariamente
branca, finge “humanismo” e interesse pela representatividade de negros e
negras, mulheres e LGBTs, para melhor diluir a luta que tende ao “universalismo
da condição humana” nas particularidades específicas e, assim, preservar os
seus privilégios únicos e inimagináveis para um trabalhador branco. O identitarismo
atual tem contribuído com isso e se fechado ao universalismo comunista, exaltando preferencialmente o particularismo grupal. Com boa vontade
podemos compreender que se trata da consolidação de grupos e posições excluídas
historicamente; contudo, a longo prazo, tende a segregar a classe, como, de
fato, já está acontecendo. A burguesia nitidamente já se apercebeu disso.
Assim, a classe dominante torna-se um
empecilho econômico, político e social para esta “emancipação humana”. Tender
ao universalismo inerente à condição humana nada tem a ver com apagar as
especificidades particulares, nem abafar suas manifestações. Com consciência,
método, respeito e solidariedade de classe, a parte se reforça no todo e o todo
se enriquece com as partes. Não haverá comunismo sem o respeito à diversidade; aliás,
apesar do stalinismo, essa é a nossa esperança, já que o capitalismo tende a
uniformização e a submissão das maiorias às minorias dominantes economicamente.
***
O coletivo Combahee River também alertou:
“Uma
questão de grande preocupação para nós, e que começamos a abordar publicamente,
é o racismo no movimento de mulheres brancas. Como feministas negras, somos
frequente e penosamente forçadas a constatar quão pouco esforço mulheres
brancas fazem para reconhecer e combater seu racismo, o que requer, entre
outras coisas, algo além de uma compreensão rasa sobre raça, cor e sobre a
cultura e história negras. Eliminar o racismo no movimento de mulheres brancas
é, por definição, um trabalho para mulheres brancas, mas continuaremos a falar
sobre e a cobrar responsabilidade”[xvii].
No texto Para a questão judaica, Marx abordou um tema semelhante: “por que hão de os alemães interessarem-se
pela libertação dos judeus, se o judeu não se interessa pela libertação dos
alemães?”[xviii]. A
essência do problema é: se o trabalhador branco não se interessa pela
libertação das mulheres, dos LGBTs, dos negros e negras, não pode encontrar apoio
nesses setores para a sua própria libertação numa outra forma de sociedade,
terminando como refém desta. O erro oposto, do atual identitarismo, nos condena ao mesmo fim, já que não reconhece
nada no homem branco, a não ser que eles são
a própria personificação do poder e dos interesses reacionários, sem
admitir, apesar de sua condição um pouco mais privilegiada, que sofrem também
com a exploração do grande capital.
Portanto, combater o racismo entre
mulheres e homens brancos não é uma tarefa apenas destes, mas de toda a classe
trabalhadora. E não apenas o racismo, o machismo e a homofobia, mas também o
antissemitismo, a xenofobia, o espírito de rebanho, o desdém de trabalhadores
efetivos em relação aos precarizados, o desdém ao direito dos animais; e a
lista certamente não para aqui. Estas insígnias devem estar escritas no seu
programa e ser parte das suas preocupações para a construção de uma outra
sociedade; ou então a classe trabalhadora nunca se tornará apta a atingir a
sociedade comunista e selará, de particularismo em particularismo, de
economicismo em economicismo, a perpetuação da ordem atual.
Foi por isso que Marx escreveu: “para nós o comunismo não é um estado que deve
ser criado, ou um ideal pelo qual a realidade deverá ser conduzida.
Consideramos o comunismo o movimento real que supera o atual status quo.
(...) Assim, o proletariado só pode
existir universal e historicamente, do mesmo modo que o comunismo, que é a sua
ação, só pode ter uma existência ‘histórico-universal’. Quer dizer, existência
histórica-universal de indivíduos, ou seja, existência de indivíduos
diretamente vinculados à história mundial”[xix].
E ainda: “a supressão da propriedade privada constitui, desse modo, a
emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas. Mas só é esta
emancipação porque os referidos sentidos e propriedades se tornaram humanos,
tanto do ponto de vista subjetivo, como objetivo”[xx].
Só quando a realidade objetiva se torna em toda parte para o ser humano a
realidade das faculdades humanas, e deste modo a realidade de todas suas
faculdades humanas, é que todos os objetos se tornam para ele a objetivação de
si mesmo. Os objetos confirmam e realizam então a sua individualidade. “Não é somente a riqueza, mas também a
pobreza do ser humano que adquire – no ponto de vista do socialismo – um
significado humano e, assim, social. A pobreza é o laço paciente que leva o ser
humano a sentir como necessidade a maior riqueza: os outros seres humanos”![xxi]
Independentemente de raça, cor, sexo, orientação sexual, etnia cultural, casta
ou nacionalidade.
***
Algumas vozes influenciadas pela
pequena burguesia (ou vindas dela diretamente) dirão: tudo isso é muito bonito
em teoria, mas não é assim na prática. Para muitas ativistas do identitarismo o
socialismo não tem valor algum (ou julgam ser sua realização “automática”). Em
parte, porque temem a repetição mecânica da experiência com o stalinismo, que
ainda hoje é vendido pela grande mídia, quase que 24h por dia, como sinônimo de
“socialismo” ou “comunismo”. Outros tantos, nem sequer procuram entender;
apenas rechaçam e colocam o identitarismo como salvação da lavoura (ainda que
não admitam isso abertamente).
Vemos, portanto, que não é apenas a luta
contra as opressões machistas, racistas e homofóbicas que podem sofrer com uma
luta de faz de conta. Muitos militantes e suas respectivas organizações
políticas também fazem letra morta da luta pelo socialismo, contra as
influências burguesas no meio sindical; bem como a luta contra o espírito de
rebanho (sem o que não existirá socialismo, comunismo e sequer emancipação
plena de mulheres, negras e negros; enfim, de seres humanos). A prática e a
teoria precisam ser permanentemente contrastadas e examinadas. Nenhum ativista
está livre das pressões burguesas e a prática ainda continua sendo o melhor
critério da verdade.
***
O coletivo Combahee River ainda alerta em seu manifesto sobre o maquiavelismo
de suposta orientação marxista: “Em
nossas práticas políticas, nós não acreditamos que o fim sempre justifica os
meios. Para atingir objetivos políticos ‘corretos’, usam-se muitas ações
reacionárias e destrutivas. Como feministas, não queremos comprometer pessoas
em nome da política”[xxii].
Compreendemos todos os malefícios do
maquiavelismo “marxista” (na verdade, stalinista), que justifica suas políticas
dessa forma e, por isso mesmo, é justo chamar a atenção sobre esta contradição.
Contudo, uma organização autenticamente revolucionária não pode atingir fins comunistas,
como vimos, a partir de meios reacionários e destrutivos. Esta foi,
precisamente, a lição do século XX com o stalinismo e a restauração do
capitalismo na URSS. Apesar da justeza da observação, percebe-se uma
contradição no próprio manifesto, quando ele afirma que “uma contribuição política que já fizemos é a expansão do princípio
feminista de que o pessoal é político”[xxiii].
E o inverso, portanto, também é verdadeiro. Assim, se se compromete o pessoal
em nome da política (ou vice-versa), significa que algo está errado na raiz da
própria política; ou seja: não é uma política revolucionária.
O que temos visto, outrossim, é que o
erro não está em sacrificar a luta contra a opressão específica em nome do fim
(isto é, da estratégia, do comunismo), mas que o fim deve emancipar e atingir, enquanto for meio, os diversos objetivos
específicos das suas partes. Numa figura poética: a primavera, vista como um
“fim” em analogia ao comunismo, não pode ser atingida sem o desabrochar de
várias flores (os diversos “meios” e objetivos específicos do identitarismo,
por exemplo) e não apenas de uma flor. Em suma: só poderemos atingir o comunismo
se, na medida em que lutamos por ele, formos emancipando os diversos segmentos
oprimidos da classe trabalhadora (como os LGBTs, as mulheres, os negros e
negras) e não os reprimindo, como fez o “comunismo” soviético (isto é: o
stalinismo) ao longo do século XX.
Algumas conclusões transitórias
A luta feminista, antirracista e
antihomofobia não é, por natureza, contraditória com a luta pelo socialismo e o
comunismo; nem deve ser postergada para depois de uma revolução, tal como
propõem algumas organizações mecanicistas, embora só possa ser resolvida no
comunismo (isto é: com a realização da tendência ao universalismo inerente à condição humana). Criticar o
identitarismo tal como ele se expressa hoje
nada tem a ver com querer que o movimento da classe trabalhadora continue sendo
dirigido majoritariamente por homens brancos. As lutas contra as opressões
específicas são parte fundamental e indissociável da consciência de classe e da
luta pelo comunismo. Contudo, o que este artigo quis demonstrar é que, da
maneira como a luta identitária está configurada atualmente, ela entra em contradição com a luta pelo socialismo.
Eis aí o seu principal perigo que requer uma reflexão crítica e delicada.
Em certo sentido, ansiosos por supostamente aplicarmos as propostas
progressivas feitas pelo identitarismo no sentido de dar voz às mulheres
negras, por exemplo, estamos diante de um dilema teórico e prático dos
movimentos atuais que, se nos mantiverem com a guarda crítica baixa, tal como
está hoje, podemos retroceder para antes de 1896, ano em que ocorreu a ruptura
entre as mulheres socialistas e burguesas no Congresso Feminista Internacional
de Berlim[xxiv]. Ou
seja, jogará no lixo um recorte de classe importantíssimo julgando estar dando
um passo progressivo na luta pela sua emancipação.
***
As lutas específicas dos setores
englobados pelo identitarismo têm apontado uma boa perspectiva de mobilização:
a massiva luta pela legalização do aborto na Argentina; os atos pelo #EleNão (isto é, contra o neofascismo bolsonarista); os protestos
de repúdio aos assassinatos premeditados pela polícia de negros nos EUA e no
Brasil; a luta contra a cultura do estupro, como o absurdo caso de Mariana
Ferrer. Porém, apesar de serem mais massivas do que as lutas sindicais (e
talvez, por isso mesmo, os seus aparatos semimortos não se envolvem seriamente
nelas), no geral, não apontam para nenhuma perspectiva para além do sistema. Se
tornam reféns de um novo tipo de
economicismo, que tende a entender essas lutas na restrita perspectiva
eleitoral burguesa e, portanto, como um fim em si mesmo, não introduzindo novos
debates programáticos socialistas e novas práticas de classe. Em parte por causa dos motivos elencados neste artigo,
em parte pelas dificuldades inerentes a qualquer movimento social que luta
contra uma estrutura secular, tornam-se um prato cheio para a classe dominante
e o seu aparato – sempre melhor preparado do que nós.
Por outro lado, o coletivo Combahee River acerta quando afirma em
seu manifesto que devemos apostar “no
processo coletivo e na distribuição não hierárquica de poder dentro de nosso
grupo, bem como em nossa visão de sociedade revolucionária. Estamos
comprometidas com um exame contínuo de nossas políticas, desenvolvidas por meio
da crítica e autocrítica, aspectos essenciais de nossa prática”[xxv].
Este deve ser o método de todo o movimento da classe trabalhadora
em todas as suas esferas e ações. Infelizmente
não tem sido assim em nenhuma delas – nem mesmo entre o movimento identitário
dos partidos e organizações que o reivindicam, como, por exemplo, quando
determinadas posições são impostas a partir de uma censura disfarçada de antemão para quem quer divergir honestamente. Um bom primeiro passo no
caminho proposto pelo coletivo seria começar por fazer um exame de como o
identitarismo tem se desenvolvido nos EUA e na América Latina: se estamos
agregando ou desagregando a classe? Se temos atingido e aglutinado mais setores,
superando o economicismo? Se a consciência de classe tem andado lado a lado com
a “consciência identitária”? Se o socialismo aparece, mesmo que distante, na
teoria e na prática desses movimentos? Se, a partir da correta preocupação de que muitos movimentos, organizações e
sindicatos mantêm as opressões escondidas atrás de pequenos gestos não
debatidos e pretensamente “socialistas”, o identitarismo atual não tem criado
uma forma correspondente de repelir e de arrebanhar, não destruindo, mas
fortalecendo o espírito de rebanho e outras formas de autoritarismo impositivo?
Destas críticas e autocríticas depende
o futuro do socialismo e, portanto, da classe trabalhadora e da humanidade.
REFERÊNCIAS
[i]
Ver: https://www.publico.pt/2018/11/13/mundo/opiniao/america-america-nacionalismo-identitarismo-destrutivo-1850742
e também: https://www.vox.com/polyarchy/2016/8/30/12697920/race-dividing-american-politics
[iii]
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=4b3StHWY1ms&feature=youtu.be&ab_channel=TeseOnze
e https://www.youtube.com/watch?v=SdXBbkwtNG8&ab_channel=TeseOnze
[v]
Ver: https://yatahaze.medium.com/oportunismo-e-feminismo-uma-breve-hist%C3%B3ria-de-um-casamento-contra-revolucion%C3%A1rio-e19bdf138726
[vi]
Ver: https://www.causaoperaria.org.br/identitarismo-71-das-deputadas-votam-com-bolsonaro/
e https://www.causaoperaria.org.br/direita-tambem-faz-demagogia-com-nomeacao-de-mulheres/
[x]
Ver: https://www.peoplesworld.org/article/today-in-history-abolitionist-john-brown-was-hanged/
e http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/08/deus-e-john-brown.html
[xi]
Um breve estudo sobre a peste emocional é feita nesse artigo: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/11/bolsonarismo-e-peste-emocional.html
[xii] FANON,
Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (páginas 27 e 28).
[xiii]
Idem (páginas 106 e 191).
[xiv]
Idem (página 166).
[xvi]
Segundo Jessé Souza em seu livro “A elite
do atraso”, das “500 maiores empresas
do mundo, 492 são dirigidas por homens”, sendo apenas 8 dirigidas por
mulheres. Os seguintes sites apontam sobre a pouca participação de negras,
negros e LGBTs na direção das grandes empresas: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/11/negros-e-pardos-ocupam-so-10-dos-cargos-de-chefia-diz-pesquisa.html
, https://mundonegro.inf.br/mulheres-negras-sao-menos-de-1-na-lideranca-de-grandes-empresas/
e https://vocesa.abril.com.br/geral/estes-3-executivos-sao-inspiracao-para-diversidade-nas-empresas/
- apesar de extremamente minoritários entre a classe dominante, possuem seus
“representantes”!
[xviii]
MARX, Karl. Para a questão judaica. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2009
(página 40).
[xix]
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Martim Claret, São
Paulo, 2005 (páginas 62 e 63).
[xx]
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Martim Claret, São Paulo, 2002
(página 142).
[xxi]
Idem (página 147).
[xxiv]
ASTOR, Dorian. Lou Andreas-Salomé – biografia. L&PM Pocket, Porto Alegre,
2018 (página 137).
Ótimo.Legitimo!
ResponderExcluirObrigado seu Romdrac! Valeu a leitura.
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