sábado, 6 de fevereiro de 2021

Os méritos e os perigos do identitarismo

 

Prelúdio trágico: a decapitação de John Brown


Negros que escravizam
E vendem negros na África
Não são meus irmãos
Negros senhores na América
A serviço do capital
Não são meus irmãos
Negros opressores
Em qualquer parte do mundo
Não são meus irmãos
Só os negros oprimidos
Escravizados
Em luta por liberdade
São meus irmãos
Para estes tenho um poema
Grande como o Nilo
(Solano Trindade)

 

            Como tudo que está no mundo se transforma constantemente, a luta de classes, com as suas bandeiras e pautas, também muda. Um dos novos temas trazidos a luz é o do identitarismo, que seria uma espécie de modificação e adaptação aos dias atuais dos movimentos de luta contra as opressões, no caso: a luta feminista, antirracista e a antihomofobia.

         O termo identitarismo tem origem na expressão identity politics (políticas identitárias) que se popularizou amplamente nos EUA na década passada com a polarização das eleições que levaram Donald Trump ao poder[i]. Dos EUA se espalhou para o mundo. O conceito de identitarismo foi cunhado pelo Combahee River Collective, grupo feminista formado por negras e lésbicas, em 1974, que não se sentia representado pelo movimento feminista, branco e racista em sua quase totalidade[ii]. Certamente possui outras fundadoras e propagandistas, diretas ou indiretas, tanto nos EUA quanto em outros países, embora menos conhecidas.

         Como não poderia deixar de ser, todo o movimento surgido dos setores explorados e oprimidos da sociedade burguesa deve interessar e ter influência sobre o movimento socialista, que, por seus fins históricos, almeja atingir uma sociedade comunista, na qual não existam diferenças sociais, econômicas, de classe, cor, sexo, orientação sexual, etc.; e o Estado se transforme em uma peça de museu tão arcaica quanto um machadinho de pedra. Contudo, o movimento identitarista tem elementos positivos e negativos que precisam ser ponderados. Os últimos, por exemplo, podem ser utilizado pela burguesia e seus ideólogos no sentido de minar os primeiros e, consequentemente, sabotar a luta pelo socialismo.

         Tais precauções não deveriam ser novas, uma vez que Clara Zetkin e Lenin, com todas as suas limitações pessoais e históricas, já alertaram para tais possibilidades de desvios. A grande questão aqui é lançar luz sobre os possíveis desvios já consolidados ou em potenciais do identitarismo, que são diferentes dos da época de Clara e de Lenin; bem como identificar os seus elementos positivos para desenvolvê-los dentro de uma perspectiva classista.

         Para o canal do Youtube, Tese 11, o identitarismo vem substituindo cada vez mais a noção de “luta contra as opressões”, que já era uma política levantada pelo movimento socialista desde longa data[iii]. Tese 11 entende que isso representa um retrocesso porque tende a se sobrepor ou a esquecer completamente das demandas de classe (como veremos mais adiante). Em compensação, as “lutas contra as opressões” foram desfiguradas pelo stalinismo, que criou a noção mecânica de reivindicações primárias e secundárias. O socialismo seria “primário” e as questões específicas (econômicas, feministas, antirracistas, etc.) seriam “secundárias” e subordinadas às “primárias”, quase sempre caindo no esquecimento completo, quando não servindo para justificar o que deveria combater.

         Em contraposição a isso, uma visão dialética diria que são bandeiras complementares, como partes de um mesmo todo. No entanto, o atual identitarismo, às vezes sutilmente, às vezes abertamente, tende a inverter o erro da lógica stalinista.

 

O identitarismo e o partido democrata

         Um dos principais disseminadores da atual ideologia identitarista é, sem dúvida, o partido democrata dos EUA. Com isso, pretende se contrapor mecanicamente ao partido republicano, que é um antro de conservadores da pior espécie, tipo Tea Party, de Trump, que professa o “supremacismo branco” (isto é: uma política nazi-fascista). O crescimento da ideologia neofascista, que propaga tal tipo de política abjeta, denota a crise histórica do patriarcado, que não pode apresentar nenhuma solução sem deixar de perder privilégios. Contudo, nem sempre a resistência às políticas ofensivas do patriarcado apresenta uma política coerente, reproduzindo, por vezes, um certo desespero que descamba para o sectarismo ou mesmo para o policlassismo, o que se alimenta de outros desvios e os reforça.

         O partido democrata, por sua vez, ainda que defenda exatamente a mesma política econômica e internacional dos republicanos, vende uma ideia de que está aberto a todos os setores, sobretudo através da eleição de Barack Obama e da candidatura de Hillary Clinton. Mas não apenas disso. Pelo seu viés, propaga o identitarismo no seio do movimento sindical e social estadunidense, tal como fez impulsionando o Black Lives Matter a partir dos criminosos assassinatos de negros pela polícia de orientação trumpista.

         Num país com um sistema eleitoral bizarro e autoritário, onde o povo vota, mas não elege, a maior parte das pautas e reivindicações, para se expressarem politicamente, devem passar pelo gargalo de um dos dois partidos. O partido republicano tende a ser mais homogêneo, servindo como um comitê da alta burguesia; o democrata, reúne desde bilionários até movimentos pretensamente socialistas, passando pela classe média. Portanto, é um partido policlassista, sofrendo todas as pressões sociais resultantes disso; ainda que, sem dúvida, prevaleçam os interesses dos bilionários.

         As crises políticas periódicas dos democratas foram revertidas a partir da apropriação do identitarismo, que serviu para manter a coalizão do partido, “resolvendo” a contradição policlassista de interesses inconciliáveis entre bilionários, classe média e trabalhadores. Hillary Clinton venceu a indicação do seu partido sobre Bernie Sanders (que apresentava um programa mais progressivo), em 2016, utilizando-se de slogans identitários, mas sem nenhum classismo: “mulher vota em mulher”. Ao levantar as pautas identitárias, queriam passar a ideia de que estavam defendendo os interesses de todo mundo, quando, na verdade, ao se apropriarem destas pautas, usavam os movimentos sociais como bucha de canhão dos interesses dos bilionários; e, portanto, alinhavam os movimentos sociais aos interesses do grande capital imperialista justamente a partir do identitarismo.

         Guardadas as devidas proporções, culturas, discursos e métodos, o mesmo se passa com os partidos da “esquerda” brasileira, tipo PT, PCdoB, Psol (muitas vezes até com o PSTU). Dado que a maioria deles está infiltrado pelas ideologias, programas e caráteres pequeno-burgueses ou burgueses, a maneira de manter sua coesão e aparência de defesa de “interesses gerais” e “do povo” é, também, através da exaltação do identitarismo acima das pautas classistas e socialistas (muitas vezes suprimindo-as completamente).

        

Percepções de quando o identitarismo organiza ou desorganiza o movimento socialista

         Poucas organizações de esquerda percebem as contradições flagrantes do discurso identitário e da sua utilização demagógica. Algumas que percebem, como o POR e Línea Proletária (Organização pela reconstituição ideológica e política do comunismo) do Peru, caem numa política abertamente reacionária, jogando tudo fora. Por compreenderem que a burguesia tem se utilizado cada vez mais das bandeiras identitárias a seu favor, dividindo e enfraquecendo o movimento da classe trabalhadora e a luta pelo socialismo, chegam a conclusões reacionárias, como a negação da necessidade de se lutar contra as opressões machistas, racistas e homofóbicas desde já; ou seja: uma separação mecânica da luta pelo socialismo da luta contra tais opressões na sociedade atual[iv]. Línea Proletária chega ao cúmulo de levantar a bandeira reacionária de “abaixo o feminismo”[v], contrapondo tal palavra de ordem a uma abstração de “viva a emancipação revolucionária das mulheres!”, dentre outros objetivos, para poder justificar a tática permanente de luta armada.

         De fato, as bandeiras feministas que eram parte inseparável do programa socialista, bem como as justas reivindicações iniciais do coletivo Combahee River, foram, pouco a pouco, sendo apropriadas por parte da direita estadunidense, atingindo o seu ápice nas eleições de 2016, até chegarmos na atual conjuntura. Isso se deve, em grande parte, a pequenas vitórias dos movimentos sociais que conseguiram imprimir um novo discurso hegemônico contra o machismo, a homofobia e o racismo, abrindo espaço para outros segmentos e fazendo com que muitas emissoras da grande mídia tivessem que se adaptar a ele. Contudo, tal como já fez ao longo da história, a burguesia, não conseguindo mais esconder determinadas desigualdades, passa a tirar proveito delas criando uma “nova racionalidade” e um “novo discurso” – bem aos moldes do que fez com os sindicatos ao longo do século XIX e XX (de proibidos, passaram a ser sustentáculos indiretos da ordem do capital) e a própria luta pelo socialismo através da vertente reformista.

         Dito de outra forma: foi, sem dúvida, um mérito do identitarismo (e das lutas históricas das mulheres e do movimento negro socialistas) a vigilância e a “repressão moral” das piadinhas, hábitos e práticas desleixadas que reforçam o machismo, o racismo e a homofobia. Tal prática ajudou a reforçar uma incipiente mudança de postura na sociedade, dialogando com amplos setores da massa que não ouviam o discurso dos “comunistas”, bastante mecânico e arcaico; sendo sentida e gradativamente assimilada pela grande mídia e pelos mais perspicazes partidos da ordem, no intuito de neutralizá-los.

         Se lançarmos um olhar mais criterioso sobre o atual discurso identitário, podemos perceber que ele tem servido para ressignificar a ordem do capital, caso contrário, os partidos da ordem e a grande mídia não os assimilaria. Tem sido, a bem da verdade, um dos mais eficazes desvios do descontentamento popular contra o capitalismo da atualidade. Não quer dizer que seja o único e nem o principal, mas hoje cumpre um papel de vender “igualdades” e “vitórias” que não abalam estrutura alguma; ao contrário, lhes reforça dando algum tipo de legitimidade.

         O coletivo Combahee River, por exemplo, reconhece no seu manifesto um importante perigo: o tokenismo, que diz respeito a uma prática superficial de “inclusão” de grupos vulneráveis (tipo cotas de representatividade) com o objetivo de aparentar uma política de igualdade e se esquivar de acusações de discriminação. Isto é, ajudam a reciclar a imagem do Estado, da política burguesa[vi], de grandes empresas, da grande mídia; em suma, da estrutura de onde provém o racismo, o machismo e a homofobia estruturais.

         Contudo, entra numa perigosa contradição quando afirma que “embora nossa posição econômica ainda esteja no nível mais baixo da economia capitalista americana, um punhado de nós conseguiu obter certas ferramentas, resultantes de ‘tokenismos’ nos âmbitos de educação e emprego, o que potencialmente nos permite combater nossa opressão de forma mais eficaz”[vii]. Mesmo reconhecendo as armadilhas do “tokenismo”, o coletivo compreende que estaria combatendo de forma “mais eficaz” a sua opressão, e não ajudando a reciclar a imagem do sistema, inclusive o discurso meritocrático e da democracia burguesa, sem nenhum arranhão sequer na estrutura. Este tem sido o equívoco de toda a “esquerda” atual.

         As lutas contra as opressões específicas e pelo socialismo não estão dissociadas. São parte de um único e mesmo programa. Contudo, podem entrar em contradição caso não sejam observadas e equilibradas com lucidez. A “esquerda” oportunista, seguindo acriticamente as manobras da burguesia que se apropriou do discurso identitário, isola sua luta específica e a transforma em bandeira privilegiada, secundarizando ou mesmo renegando a luta contra a estrutura, isto é, a luta pelo socialismo. Este método não só está errado, como repete o que fez a “esquerda” conciliadora com o discurso reformista e com a adaptação dos sindicatos e dos movimentos sociais à estrutura oficial da sociedade capitalista ao longo dos séculos XIX e XX. Mudam-se os camundongos, mas as ratoeiras seguem as mesmas.

         Todas as lutas específicas não se bastam a si mesmas, nem se transformam automaticamente em socialistas. Da mesma forma, não é o desenvolvimento dessas lutas específicas que permitem a acumulação de forças dos trabalhadores e a sua transformação em luta pelo socialismo por si mesmo, é ao contrário, a partir da criação de um amplo movimento consciente contra o capitalismo – e não de adaptação disfarçada com discurso de “representatividade” – que conseguiremos atingir o socialismo, colocando abaixo as estruturas patriarcais, e, portanto, atingindo uma sociedade com estruturas igualitárias.

         O atual pensamento identitário afirma que não está em contradição com a luta pelo socialismo. Contudo, seu discurso está em contradição com o que é professado na sua teoria e feito na prática! Ele tem extraído um ou dois fatores que lhe parecem os mais importantes, os isola da realidade complexa e lhes atribuem uma força sem limites nem restrições. Parafraseando Rosa Luxemburgo: quem é feminista e não é socialista, carece de estratégia; quem é socialista e não é feminista, carece de profundidade. O atual movimento identitário, propagado pelo partido democrata e repetido pela “esquerda”, carece de estratégia e profundidade, transformando-se numa espécie de economicismo. Ele não está “equilibrado” em relação à luta e o programa socialista; ele transformou-se num novo discurso hegemônico entre a “esquerda”.

         Em síntese: o identitarismo organiza a classe trabalhadora e serve à luta pelo socialismo, atingindo em cheio a estrutura patriarcal, racista e homofóbica que sustenta o capitalismo, quando mulheres, negras, negros e LGBTs levantam a cabeça e, a partir da coletividade, do crescimento da consciência de classe e da emancipação individual harmônica dentro deste “todo”, deixam de crer na força do capital e reivindicam o direito à equidade social, econômica, civil, cultural, sexual, etc., para todos e todas; o identitarismo desorganiza a classe trabalhadora quando é utilizado direta ou indiretamente pelo sistema; quando se adapta a ele através do “tokenismo”, do discurso da “representatividade” de alguns em detrimento da classe, o que geralmente termina sustentando políticas burguesas e meritocráticas individuais, levando à divisão da classe, à renovação da estrutura oficial e, consequentemente, do machismo, racismo, homofobia e, em última análise, do próprio capitalismo. O “segundo identitarismo” tem prevalecido cada vez mais sobre o “primeiro”.

 

Os méritos e os perigos do manifesto do coletivo Combahee River

         Atualmente toda a burguesia se adapta ao “identitarismo” a olhos vistos: a grande mídia e as grandes empresas; o Estado e suas instituições; as eleições, os concursos públicos e os vestibulares. A vitória pontual do discurso hegemônico do identitarismo – que só foi possível, a bem da verdade, graças ao movimento do coletivo Combahee River e de toda uma tradição anterior do movimento operário que remonta a Segunda Internacional – tem se voltado contra si mesmo e, potencialmente, contra a união da classe. Este não é, evidentemente, o único fator de desagregação e desvios da classe trabalhadora, mas representa um perigo em potencial porque tem servido como uma “vitória” que acalma e paralisa. Na verdade, o perigo apontado no manifesto do coletivo Combahee River sobre o “tokenismo” tem sido a regra (embora o movimento possa não admitir).

         Como revolucionários, sem dúvida devemos saudar a iniciativa e a coragem das mulheres negras organizadas neste coletivo por assumirem a sua responsabilidade na luta e procurarem falar com voz própria sobre as suas demandas. As mulheres negras compõem o segmento mais explorado e oprimido da classe trabalhadora, lutando contra opressão tripla. Contudo, não devemos fechar os olhos para as inevitáveis infiltrações burguesas, que ocorrem mesmo no setor mais explorado, bem como a sua utilização demagógica e utilitária por partidos burgueses ou reformistas, grande mídia e outras esferas do establishment. Se isso não compromete a justeza da causa do identitarismo, não impede que sofra pressão permanente pela adaptação. A crítica apresentada aqui não se refere à justeza da causa, mas as tendências que o movimento vem tomando, que ameaçam segregar a classe trabalhadora e tornar-se um fim em si mesmo (apesar de que o manifesto original do coletivo fale corretamente em luta contra o capitalismo, e depois acabe por se contradizer).

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         Saudamos o manifesto quando ele afirma que o coletivo está comprometido “em contribuir com lutas nas quais raça, sexo e classe sejam fatores simultâneos na opressão”[viii]; embora não seja assim que o partido democrata e a “esquerda” tratem esta luta, que foi apropriada por eles. Infelizmente não há outra “luta” identitária no momento. Mesmo que todas essas opressões sejam simultâneas e precisem, de fato, ser combatidas simultaneamente, vemos a última ser substituída, gradativamente, por uma adesão sutil ao policlassismo e aos métodos reformistas, além de apostar num discurso segregacionista.

         Isso pode ser percebido na conclusão do manifesto do coletivo Combahee River, quando ele afirma praticamente o oposto do que afirmou ao longo de suas páginas, reduzindo a pó a compreensão de classe: “Em sua introdução de Sisterhood is powerful, Robin Morgan escreve: não tenho a menor noção de qual papel revolucionário homens heterossexuais brancos poderiam cumprir, já que eles são a própria personificação do poder e dos interesses reacionários”[ix].

         Aqui fica evidente que não se trata dos homens brancos e heterossexuais que detém o capital e o poder, mas deles como a “própria personificação do poder e dos interesses reacionários”, indistintamente. É exatamente contra esse inimigo sem distinção de classe que equivocadamente o movimento identitário atual tem proposto lutar. O que pode resultar disso senão uma segregação de novo tipo?

         Acaso o coletivo desconhece a história da luta abolicionista protagonizada pelo branco John Brown, que teve seus dois filhos mortos pela reação justamente por ser abolicionista?[x] Acaso o papel que ele cumpriu também foi o da personificação do poder e dos interesses reacionários? O fato é que a luta de John Brown nos dá uma boa noção do papel que homens brancos podem cumprir – basta ter um pouco de boa vontade e empatia para perceber que o coletivo Combahee River passou de certos limites.

 

Lugar de fala”, empatia e o internacionalismo socialista

         Uma das pontas de lança do atual identitarismo é o chamado “lugar de fala”, que consiste em dar a fala prioritariamente aos grupos que foram historicamente excluídos dos lugares decisórios para que falem por si mesmos. Ou seja: na prática apenas mulheres falam pelas mulheres; negros e negras pelos negros e negras; e LGBTs pelos LGBTs. Homens brancos e heterossexuais, que por séculos ocuparam os principais “lugares de fala”, devem ser colocados como ouvintes. Da mesma forma, seriam impedidos, de uma forma ou outra, de opinar ou criticar tais movimentos identitários.

         Dependendo da maneira como interpretamos e aplicamos tal princípio, isso pode ser justo ou completamente equivocado. Há, de fato, necessidade de respeitarmos “lugares de fala” quando partimos da compreensão de que por milênios e séculos o patriarcado branco oprimiu mulheres e escravos africanos, retirando-lhes a possibilidade de qualquer tipo de manifestação. Isso certamente deixou sequelas que se refletem ainda hoje, necessitando uma política que dê preferência a setores e grupos excluídos historicamente de qualquer lugar de comando e de formulação de políticas decisórias.

         O machismo, o racismo e a homofobia se expressam, muitas vezes, de forma sutil e excluem, de uma forma ou outra, os setores oprimidos da premente necessidade de se expressarem. Tais sutilezas muitas vezes decidem políticas e ajudam a sustentar a estrutura, portanto, se uma organização, um sindicato ou um movimento social não tem renovação em suas lideranças, no sentido de colocar em suas direções, mulheres, LGBTs, negros e negras, certamente há problemas que precisam ser enfrentados, com discussão ou mesmo com coerção. Da mesma forma deve ser encarado o seu silêncio recorrente. Nesse sentido, o método sindical e das organizações de “esquerda” para organizar falas através de inscrições, por mais burocrático que seja, é importante como forma de garantir a equidade e o respeito na escuta da outra pessoa, desde que esteja comprometido com o incentivo à fala destes setores. Tal método certamente não resolve tudo, mas é um bom começo que precisa ser aprimorado.

         Por outro lado, percebe-se que há, atualmente, uma forte tendência a transformar o “lugar de fala” em um princípio desagregador, que tende a criar uma torre de Babel quando observamos como tem se desenvolvido. Ele tem servido para afirmar tacitamente que o “lugar de fala” é exclusivo de cada grupo social excluído e oprimido, e que os homens brancos e heterossexuais não podem opinar a respeito, uma vez que “não sofrem tais tipos de opressão”.

         Se, por um lado, esta perspectiva é correta no sentido de afirmar a autonomia emancipatória de cada grupo e, através do “lugar de fala”, garantir o direito de dar a última palavra a respeito dos seus assuntos, políticas e programa; por outro, proceder desta forma é se fechar num sectarismo obtuso que joga suas práticas para antes da era burguesa, criando uma espécie de casta fechada em si mesma. É, em última análise, a total desconsideração pela capacidade humana de empatia, que é uma das bases da solidariedade de classe internacional. Não se pede aqui que se acate o que “outros setores” têm a dizer a respeito da luta antimachista, antirracista ou antihomofóbica, mas que se leve em consideração os seus argumentos, pesando cada pessoa deste “outro setor” por suas posições políticas e, sobretudo, por sua prática. Nesse sentido, o “lugar de fala” precisa ser “aberto” e não como algo que traz embutido determinadas certezas inquestionáveis.

         Se impera o “lugar de fala” sectário e excludente, se perderá um princípio da classe operária. Seria o mesmo que dizer: “um professor não pode opinar sobre a luta de um metalúrgico ou de um trabalhador terceirizado porque não sofre a mesma opressão”; ou ainda: “um trabalhador norte-americano não pode opinar sobre as posições de uma organização política chinesa ou africana porque não sofre a mesma opressão”. Todos e todas podem e devem ser livres para opinar sobre estas lutas, mas, neste caso, quem, em última análise, deve dar a palavra final, ponderando as críticas honestas e classistas, são os metalúrgicos, os terceirizados, os chineses e africanos. O mesmo método proletário deveria ser aplicado nas lutas “identitárias”.

         É muito pouco provável que o movimento abolicionista norte-americano, por exemplo, tenha condenado John Brown por ter se “apropriado do lugar de fala dos escravos”. E também seria um absurdo condená-lo. A sua prática lhe garantia a autoridade necessária. Se o condenasse, dividiria obtusamente o movimento e jogaria para longe, como se fosse um inimigo, um aliado inestimável. Embora hoje os tempos sejam outros e saibamos da importância de cada segmento da classe trabalhadora ter seu “lugar de fala”, isso não pode se tornar um dogma excludente. O “lugar de fala” é importante desde que garanta e incentive a fala dos setores oprimidos, mas sem piorar a segregação da classe e, principalmente, sem que a demagogia eleitoral burguesa (dentre outros desvios) fale por sua boca, querendo se legitimar pela autoridade dos setores oprimidos. Poucas pessoas tem se apercebido desse problema sério.

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         Na atual conjuntura o neofascismo está em franca ofensiva contra os ativistas do identitarismo (e do comunismo também), professando políticas de “supremacia branca” por perceberem a profunda crise do patriarcado. Propor o “direito a fala” para tais setores seria um absurdo completo; é o mesmo que dar fala à burguesia numa assembleia de trabalhadores. Obviamente, não se trata disso, mas de reconhecer trabalhadores homens, brancos e heterossexuais que estão no campo da classe trabalhadora e que, justamente por isso, devem valorizar as lutas de caráter identitário como parte da emancipação humana. Se não procedem desta forma, não podem ser considerados como trabalhadores socialistas e com consciência de classe. Tal consciência pressupõe a compreensão e o apoio à luta pela emancipação de mulheres, negros, negras e LGBTs. Da mesma forma, tais setores devem, forçosamente, reconhecer a condição de classe explorada para homens brancos e heterossexuais que estão nas fileiras da classe trabalhadora – o que não significa, de forma alguma, fechar os olhos para os seus desvios machistas, racistas e homofóbicos (que também existem entre os próprios “setores oprimidos”).

         Contudo, cada um desses desvios, por mais sutis que sejam (e muitos o são), não podem ser tratados como uma espécie de pecado original que se expressa em qualquer coisa que não tem expressão minimamente evidente. Há muitos episódios de debates polêmicos entre militantes das mais variadas esferas em que se pode constatar uma virulência contra, por exemplo, “machismos em potencial” que são, na verdade, divergências políticas. Aqui devemos ter o máximo de atenção para evitar contendas que não podem ter outro desfecho que não a segregação e o fechamento de cada um na sua bolha. O machismo, o racismo e a homofobia, no geral, se expressam de distintas formas, como piadas, tom de voz e, evidentemente, posições políticas, mas sempre com alguma manifestação minimante perceptível no concreto. Elas devem ser esmiuçadas a partir dos fatos, dos debates e discussões. Agir dessa forma não significa aceitar e concordar com posições e práticas de militantes que julgamos apresentar tais desvios, mas proceder a partir de novas relações entre nós, sem virulência e através do debate franco e honesto, bem como procurando evitar o caos a partir do método de inscrição de falas, onde tais imposições e interrupções machistas e racistas podem ser mais facilmente identificadas.

         Mais importante ainda é evitar que divergências políticas, que muitas vezes são sutis e podem partir de elementos inconscientes, sejam traduzidas em acusações de “machismo, racismo e homofobia” que não se traduzem em fatos concretos. Ser tolerante com pessoas da mesma classe no debate não significa concordar com o que ela diz, mesmo que na nossa percepção tenhamos certeza que se trate de casos de discriminação; significa, sobretudo, ser perseverante e trazer à tona a contradição dos seus argumentos, posições e práticas, demonstrando onde, como e porquê se trata de um caso de discriminação de gênero, raça ou orientação sexual. Se não formos cuidadosos com isso, em muitos casos (não em todos, leia-se bem) quem pode falar pela nossa boca é uma forma de manifestação da peste emocional[xi].

         Não foram poucas as vezes em que se calaram críticas importantíssimas à tendência de transformar as “saídas” institucionais burguesas do identitarismo em seu principal fim com o argumento de “lugar de fala” e de “desrespeito à independência destes movimentos”. Neste caso é nítido como divergências políticas são tratadas erroneamente como “opressão”.

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         A lógica do “lugar de fala” tem sido mais ou menos a seguinte: Platão e Aristóteles eram homens brancos e escravocratas, por isso devemos jogar fora tudo o que escreveram. Ao invés de fazermos a crítica à herança cultural do ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do ponto de vista das mulheres e do povo negro, tal como fizeram Simone de Beauvoir, Frantz Fanon e Angela Davis – para que recebam novas críticas no futuro, por sua vez –, joga-se fora a criança com a água suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é levantada; ou se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do zero, como se não houvesse nada positivo.

         Assim, este processo inicia-se com Platão e Aristóteles; depois se avança sobre Hegel, Marx, Engels, Lenin, Trotski, Nietzsche, Freud, Jung, Reich, Carl Sagan, José Mariátegui, Chico Mendes e tantos outros, por serem, da mesma forma, homens brancos. Nesta frequência, terminamos por jogar fora quase toda a cultura ocidental que, apesar de ser feita por homens brancos, deve ter os seus elementos positivos preservados e os ruins (evidentemente, aqueles que excluem as mulheres, negros e negras, e LGBTs) criticados e retificados. O proletariado deve assimilar a cultura burguesa remodelando-a conforme a sua visão. Parte deste processo está em criticar pela ótica feminina, da negritude e LGBT classistas todas estas teorias.

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         O trabalhador branco e heterossexual, por sua vez, tem que ser parte da luta pela equidade social entre todas as cores de pele, etnia, nacionalidade, sexos e orientações sexuais – e isso implica o apoio à representatividade destes setores na direção dos movimentos, embora não de forma exclusiva. Como já foi dito, se não proceder assim (mesmo que tenha inevitáveis desvios), não pode ser considerado um trabalhador socialista e com consciência de classe.

         Todos os movimentos identitários, por mais importantes que sejam, não possuem nenhum talismã contra a influência da classe dominante e, portanto, contra a degeneração; assim como o movimento sindical e socialista também não tem. Cada movimento deve ser medido na prática concreta e pra onde apontam suas tendências. Os movimentos identitários, por exemplo, ainda que levantem bandeiras históricas fundamentais para a emancipação da classe trabalhadora, não estão livres do desvio presente em todos os outros, como, por exemplo, o espírito de rebanho, que é outro problema reproduzido pela estrutura do sistema em que vivemos, assim como o machismo, o racismo e a homofobia.

         A postura stalinista, por exemplo, não é exclusiva dos movimentos socialistas e sindicais dirigidos por brancos. Pode se desenvolver nos movimentos identitários como, de fato, ocorrem em alguns, onde falam sempre as mesmas lideranças femininas, negras ou LGBTs. Ainda que muitas delas sejam justas e com autoridade conquistada na luta, outras tantas podem simplesmente reproduzir formas de dominação sobre o rebanho. Da mesma forma, o lugar de fala pode ser usado para a libertação ou para arrebanhar demagogicamente, a depender da maneira como proceda. Não existe receita de bolo e o melhor é ficar em estado de alerta permanente.

 


Identitarismo e autoverdade

         Dentro da lógica do atual identitarismo podemos perceber certos raciocínios políticos perigosos como aquele que afirma: as mulheres decidem o que é machismo; os negros e negras decidem o que é racismo; e os LGBTs decidem o que é homofobia. De fato, são os principais atores que devem ter o direito de exigir punição nestes casos, contudo, isso deve ser bem observado. Da maneira como está sendo colocada a questão, um acusado de cometer tais desvios não poderia se defender se, em última análise, quem tem o poder exclusivo de definir o que é machismo, racismo e homofobia é o próprio movimento identitário. Sabemos que tal postura defensiva é, de certa forma, um reflexo do erro oposto, geralmente ligado ao pensamento reacionário de direita, para quem “nada é machismo, racismo e homofobia”, chegando ao cúmulo de afirmar que “isso não existe no nosso país” ou seria apenas “mimimi”, para usar as edificantes palavras do “nosso” presidente neofascista.

         Rechaçando totalmente o discurso de que nunca existe machismo, racismo e homofobia em uma estrutura social que dissemina isso aos quatro cantos, devemos ser cuidadosos para não cairmos no equívoco de criar uma espécie de “autoverdade” que ignora elementos e fatos da realidade, aprofundando a segregação e propondo, em última análise, uma nova forma de dominação de uns sobre os outros – que é o que pode acontecer quando defendemos uma espécie de autoverdade.

         Há aqui um inevitável parentesco entre autoverdade e pragmatismo, a malfadada filosofia capitalista estadunidense, que toma como critério da “verdade” não a experiência ampla, social, dos fatos, do trabalho, mas unicamente as experiências individuais (ou de pequenos grupos). Neste sentido, qualquer pensamento que beneficie “a verdade” dos grupos ou de indivíduos pode ser reivindicado como verdadeiro. Assim, pontos jurídicos elementares surgidos na etapa progressista da era burguesa, como o direito a se defender a partir dos fatos e a presunção da inocência, serão perdidos.

         Todo o tipo de racismo, machismo e homofobia devem, sem dúvida, ser criminalizados e punidos, embora devam estar, como foi dito, alicerçado nos fatos passíveis de serem debatidos, com acusação e defesa. Sabemos da impunidade referente a estes crimes na sociedade burguesa, bem como a sutileza em que muitas vezes acontecem. Porém, sempre devemos nos amparar nos fatos e na realidade concreta, e não no direito exclusivo de movimentos definirem o que é ou não é tal ou qual tipo de opressão, o que não pode gerar outra coisa que não a confusão e, em casos mais extremos, a tirania da auto verdade.

         O direito que cada movimento tem de se auto organizar e fazer sua agitação e propaganda, inclusive apontando casos que compreende ser de machismo, racismo e homofobia, não deve ser confundido com o direito exclusivo de determinar o que é ou não é opressão sem confrontar-se com o contraditório e sem ouvir a defesa do acusado. Este direito à defesa, por sua vez, nada tem a ver com a blindagem que a justiça burguesa promove aos setores da burguesia e da classe média para protegê-los de seus crimes (tal como se passou no caso de Mariana Ferrer), mas, sim, com a necessidade de se ouvir e de se construir a acusação em cima dos fatos; sobretudo se falamos em desvios deste tipo no interior da nossa própria classe. Para isso existem os juris populares e o da classe trabalhadora, que ainda precisam ser melhor desenvolvidos; além da importância formativa de se recorrer às instâncias e reuniões de organizações, sindicatos, entidades, no sentido de promover o debate público, aberto, franco, olho no olho, com direito de acusação e de defesa para se chegar a uma síntese a partir dos fatos. Do contrário, se cai na autoverdade.

 

Identitarismo e comunismo: a dialética da parte e do todo

         O identitarismo, tal como está disseminado hoje, não apaga as ideologias burguesas e não as combate automaticamente. Pelo contrário: pode conviver muito bem com elas; o que, certamente, representa um grande perigo! Concepções burguesas, como a meritocracia e os valores da democracia burguesa, podem falar (e tem falado efetivamente) através do identitarismo – que também pode expressar sintomas da peste emocional!

         Facilmente percebe-se que para muitos grupos identitários (alguns presentes nos partidos reformistas) não importa os valores que professe, por exemplo, uma candidata negra eleita: se uma posição liberal, evangélica, neofascista, reformista ou revolucionária. Basta ser negra e ter um lugar de fala. Mesmo a cultura negra ou feminista, por exemplo, pode estar imbuída de uma visão burguesa de sociedade, o que significa dizer que este “lugar de fala” reforçará, mais adiante ou imediatamente, a estrutura que visa combater e que dissemina o racismo e o machismo. O mesmo poderia ser dito de uma jornalista negra (o que não tem nada a ver com ser contra a sua aparição na TV por qualquer pretexto, tampouco ser conivente com os absurdos comentários neofascistas de haters nas redes sociais, que devem ser combatidos sem trégua).

         É precisamente atrás desta visão, vendida como “vitoriosa” por colocar uma mulher negra no parlamento ou na TV, que se esconde um tipo novo de economicismo. Quem vê isso, sem admitir, como um fim em si mesmo, não importando que legitime a meritocracia, a democracia burguesa e, indiretamente, a estrutura patriarcal, não chamando a atenção para estas contradições, cava a nossa cova. Tudo isso joga o socialismo e o comunismo para mais longe ainda, uma vez que legitima e cria uma “nova racionalidade” para a estrutura atual através da “representatividade” de alguns em detrimento da maioria (as candidatas e jornalistas negras não estancaram a chacina de trabalhadores negros e negras nas periferias; e nem chegam perto disso). Assim, a questão da “representatividade” e do “lugar de fala” deve ter, como horizonte bem próximo, a perspectiva de emancipação de classe.

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         Para contribuir com esta polêmica, vejamos mais de perto a dialética do universal e do particular. O universal representa o todo; o particular, suas partes. A humanidade é o universal; a mulher (branca, negra, asiática, índia, etc.), o homem (branco, negro, asiático, índio, etc.), bem como todos os diversos tipos de orientação sexual (gays, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros, assexuados, etc.), são as suas particularidades. Por milênios o homem branco (sobretudo o europeu) se vendeu como o protótipo do universal. Isto é: uma particularidade que teve a pretensão egocêntrica de se tornar o modelo universal – inclusive se utilizando da mais brutal violência simbólica e física. Este mito caiu (ou está caindo) – daí advém o desespero neofascista em suas mais diversas facetas.

         Chegou o momento de “resolvermos” a particularidade egocêntrica no universal – esta é uma das principais tarefas do comunismo (que como sistema social nunca existiu sobre a face da Terra). A “resolução” do particular no universal deve, literalmente, respeitar todas as suas particularidades (culturais, folclóricas, sexuais, emocionais, etc.) sem colonização recíproca e sem a criação de novos bodes expiatórios – caso contrário, estaremos ameaçados de não atingirmos a equidade, mas formas de vingança. Aparentemente parece impossível entre seres humanos não termos colonização ou bodes expiatórios, uma vez que a humanidade “cresceu” em torno deles; mas não é se tivermos consciência e perseverança. Sem isso não haverá nova sociedade; sem isso, não haverá fim da dominação sexista e racista; sem isso não haverá comunismo.

         Frantz Fanon questiona: “Como sair do impasse? Há pouco utilizamos o termo narcisismo. Na verdade, pensamos que só uma interpretação psicanalítica do problema negro pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pela estrutura dos complexos. Trabalhamos para a dissolução total desse universo mórbido. Estimamos que o indivíduo deve tender ao universalismo inerente à condição humana”[xii].

         Em outro trecho, afirma o mesmo raciocínio: “Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do meu estar-aqui, constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim, senão um desalojamento, uma extirpação, uma hemorragia que coagulava sangue negro sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não queria esta reconsideração, esta esquematização. Queria simplesmente ser um ser humano entre outros seres humanos (...). Que jamais o instrumento domine o ser humano. Que cesse para sempre a servidão do ser humano pelo ser humano. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao ser humano, onde quer que ele se encontre”[xiii].

         E conclui: “como percebo que o preto é o [suposto] símbolo do pecado, começo a odiá-lo. Porém, constato que sou negro. Para escapar ao conflito, duas soluções. Ou peço aos outros que não prestem a atenção à minha cor, ou, ao contrário, quero que eles a percebam. Tento, então, valorizar o que é ruim – visto que, irrefletidamente, admiti que o negro é a cor do mal. Para pôr um termo a esta situação neurótica, na qual sou obrigado a escolher uma solução insana, conflitante, alimentada por fantasmagorias, antagônica, desumana, enfim – só tenho uma solução: passar por cima deste drama absurdo que os outros montaram em torno de mim, afastar estes dois termos que são igualmente inaceitáveis e, através de uma particularidade humana, tender ao universal”[xiv].

         O coletivo Combahee River escreveu algo semelhante, ainda que o movimento identitário atual, muito mais narcísico e altissonante, esteja bem longe desta compreensão: “é escancarado, ao olharmos para todos os movimentos políticos que nos precederam, que qualquer um é mais merecedor de liberação do que nós. Nós rejeitamos pedestais, reinados e caminhar dez passos atrás. Sermos reconhecidas como humanas, horizontalmente, é suficiente”[xv].

         Eis aí o caminho do comunismo!

         Contudo, a sociedade não é dividida apenas por raça, gênero ou orientação sexual. Negras e negros favelados não têm sido reconhecidos como “humanos” (inclusive mulheres e homens brancos pobres também) porque a sociedade atual é dividida em classes. Sabemos que simultaneamente ao surgimento das classes, surgiu o patriarcado. Neste “novo” contexto histórico, o ser humano branco escravizou outros seres humanos (sem poupar os brancos despossuídos, na antiguidade). A sociedade, atualmente, continua dividida em classes e não está nem próxima de resolver esta contradição.

         Uma minoria de exploradores brancos vive do trabalho da imensa maioria de trabalhadores, inclusive de brancos pobres (que recebem somente uma pequena parte dos “privilégios de cor” – mas isso não impede que o identitarismo atual se “esqueça disso” e transforme-o no principal “privilégio” a ser combatido, enquanto secundariza ou mesmo esquece da luta contra os maiores privilegiados). A minoria branca burguesa, que vive numa riqueza que nenhuma classe dominante anterior conheceu, desenvolve permanentemente novas técnicas para preservar a sua estrutura social (ainda que muito minoritários, também existem representantes de mulheres, LGBTs e negros e negras entre a classe dominante[xvi]).

         Portanto, a classe burguesa, majoritariamente branca, finge “humanismo” e interesse pela representatividade de negros e negras, mulheres e LGBTs, para melhor diluir a luta que tende ao “universalismo da condição humana” nas particularidades específicas e, assim, preservar os seus privilégios únicos e inimagináveis para um trabalhador branco. O identitarismo atual tem contribuído com isso e se fechado ao universalismo comunista, exaltando preferencialmente o particularismo grupal. Com boa vontade podemos compreender que se trata da consolidação de grupos e posições excluídas historicamente; contudo, a longo prazo, tende a segregar a classe, como, de fato, já está acontecendo. A burguesia nitidamente já se apercebeu disso.

         Assim, a classe dominante torna-se um empecilho econômico, político e social para esta “emancipação humana”. Tender ao universalismo inerente à condição humana nada tem a ver com apagar as especificidades particulares, nem abafar suas manifestações. Com consciência, método, respeito e solidariedade de classe, a parte se reforça no todo e o todo se enriquece com as partes. Não haverá comunismo sem o respeito à diversidade; aliás, apesar do stalinismo, essa é a nossa esperança, já que o capitalismo tende a uniformização e a submissão das maiorias às minorias dominantes economicamente.

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         O coletivo Combahee River também alertou:

         “Uma questão de grande preocupação para nós, e que começamos a abordar publicamente, é o racismo no movimento de mulheres brancas. Como feministas negras, somos frequente e penosamente forçadas a constatar quão pouco esforço mulheres brancas fazem para reconhecer e combater seu racismo, o que requer, entre outras coisas, algo além de uma compreensão rasa sobre raça, cor e sobre a cultura e história negras. Eliminar o racismo no movimento de mulheres brancas é, por definição, um trabalho para mulheres brancas, mas continuaremos a falar sobre e a cobrar responsabilidade”[xvii].

         No texto Para a questão judaica, Marx abordou um tema semelhante: “por que hão de os alemães interessarem-se pela libertação dos judeus, se o judeu não se interessa pela libertação dos alemães?”[xviii]. A essência do problema é: se o trabalhador branco não se interessa pela libertação das mulheres, dos LGBTs, dos negros e negras, não pode encontrar apoio nesses setores para a sua própria libertação numa outra forma de sociedade, terminando como refém desta. O erro oposto, do atual identitarismo, nos condena ao mesmo fim, já que não reconhece nada no homem branco, a não ser que eles são a própria personificação do poder e dos interesses reacionários, sem admitir, apesar de sua condição um pouco mais privilegiada, que sofrem também com a exploração do grande capital.

         Portanto, combater o racismo entre mulheres e homens brancos não é uma tarefa apenas destes, mas de toda a classe trabalhadora. E não apenas o racismo, o machismo e a homofobia, mas também o antissemitismo, a xenofobia, o espírito de rebanho, o desdém de trabalhadores efetivos em relação aos precarizados, o desdém ao direito dos animais; e a lista certamente não para aqui. Estas insígnias devem estar escritas no seu programa e ser parte das suas preocupações para a construção de uma outra sociedade; ou então a classe trabalhadora nunca se tornará apta a atingir a sociedade comunista e selará, de particularismo em particularismo, de economicismo em economicismo, a perpetuação da ordem atual.

         Foi por isso que Marx escreveu: “para nós o comunismo não é um estado que deve ser criado, ou um ideal pelo qual a realidade deverá ser conduzida. Consideramos o comunismo o movimento real que supera o atual status quo. (...) Assim, o proletariado só pode existir universal e historicamente, do mesmo modo que o comunismo, que é a sua ação, só pode ter uma existência ‘histórico-universal’. Quer dizer, existência histórica-universal de indivíduos, ou seja, existência de indivíduos diretamente vinculados à história mundial”[xix].

         E ainda: “a supressão da propriedade privada constitui, desse modo, a emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas. Mas só é esta emancipação porque os referidos sentidos e propriedades se tornaram humanos, tanto do ponto de vista subjetivo, como objetivo”[xx]. Só quando a realidade objetiva se torna em toda parte para o ser humano a realidade das faculdades humanas, e deste modo a realidade de todas suas faculdades humanas, é que todos os objetos se tornam para ele a objetivação de si mesmo. Os objetos confirmam e realizam então a sua individualidade. “Não é somente a riqueza, mas também a pobreza do ser humano que adquire – no ponto de vista do socialismo – um significado humano e, assim, social. A pobreza é o laço paciente que leva o ser humano a sentir como necessidade a maior riqueza: os outros seres humanos”![xxi] Independentemente de raça, cor, sexo, orientação sexual, etnia cultural, casta ou nacionalidade.

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         Algumas vozes influenciadas pela pequena burguesia (ou vindas dela diretamente) dirão: tudo isso é muito bonito em teoria, mas não é assim na prática. Para muitas ativistas do identitarismo o socialismo não tem valor algum (ou julgam ser sua realização “automática”). Em parte, porque temem a repetição mecânica da experiência com o stalinismo, que ainda hoje é vendido pela grande mídia, quase que 24h por dia, como sinônimo de “socialismo” ou “comunismo”. Outros tantos, nem sequer procuram entender; apenas rechaçam e colocam o identitarismo como salvação da lavoura (ainda que não admitam isso abertamente).

         Vemos, portanto, que não é apenas a luta contra as opressões machistas, racistas e homofóbicas que podem sofrer com uma luta de faz de conta. Muitos militantes e suas respectivas organizações políticas também fazem letra morta da luta pelo socialismo, contra as influências burguesas no meio sindical; bem como a luta contra o espírito de rebanho (sem o que não existirá socialismo, comunismo e sequer emancipação plena de mulheres, negras e negros; enfim, de seres humanos). A prática e a teoria precisam ser permanentemente contrastadas e examinadas. Nenhum ativista está livre das pressões burguesas e a prática ainda continua sendo o melhor critério da verdade.

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         O coletivo Combahee River ainda alerta em seu manifesto sobre o maquiavelismo de suposta orientação marxista: “Em nossas práticas políticas, nós não acreditamos que o fim sempre justifica os meios. Para atingir objetivos políticos ‘corretos’, usam-se muitas ações reacionárias e destrutivas. Como feministas, não queremos comprometer pessoas em nome da política”[xxii].

         Compreendemos todos os malefícios do maquiavelismo “marxista” (na verdade, stalinista), que justifica suas políticas dessa forma e, por isso mesmo, é justo chamar a atenção sobre esta contradição. Contudo, uma organização autenticamente revolucionária não pode atingir fins comunistas, como vimos, a partir de meios reacionários e destrutivos. Esta foi, precisamente, a lição do século XX com o stalinismo e a restauração do capitalismo na URSS. Apesar da justeza da observação, percebe-se uma contradição no próprio manifesto, quando ele afirma que “uma contribuição política que já fizemos é a expansão do princípio feminista de que o pessoal é político”[xxiii]. E o inverso, portanto, também é verdadeiro. Assim, se se compromete o pessoal em nome da política (ou vice-versa), significa que algo está errado na raiz da própria política; ou seja: não é uma política revolucionária.

         O que temos visto, outrossim, é que o erro não está em sacrificar a luta contra a opressão específica em nome do fim (isto é, da estratégia, do comunismo), mas que o fim deve emancipar e atingir, enquanto for meio, os diversos objetivos específicos das suas partes. Numa figura poética: a primavera, vista como um “fim” em analogia ao comunismo, não pode ser atingida sem o desabrochar de várias flores (os diversos “meios” e objetivos específicos do identitarismo, por exemplo) e não apenas de uma flor. Em suma: só poderemos atingir o comunismo se, na medida em que lutamos por ele, formos emancipando os diversos segmentos oprimidos da classe trabalhadora (como os LGBTs, as mulheres, os negros e negras) e não os reprimindo, como fez o “comunismo” soviético (isto é: o stalinismo) ao longo do século XX.

 

Algumas conclusões transitórias

         A luta feminista, antirracista e antihomofobia não é, por natureza, contraditória com a luta pelo socialismo e o comunismo; nem deve ser postergada para depois de uma revolução, tal como propõem algumas organizações mecanicistas, embora só possa ser resolvida no comunismo (isto é: com a realização da tendência ao universalismo inerente à condição humana). Criticar o identitarismo tal como ele se expressa hoje nada tem a ver com querer que o movimento da classe trabalhadora continue sendo dirigido majoritariamente por homens brancos. As lutas contra as opressões específicas são parte fundamental e indissociável da consciência de classe e da luta pelo comunismo. Contudo, o que este artigo quis demonstrar é que, da maneira como a luta identitária está configurada atualmente, ela entra em contradição com a luta pelo socialismo. Eis aí o seu principal perigo que requer uma reflexão crítica e delicada.

         Em certo sentido, ansiosos por supostamente aplicarmos as propostas progressivas feitas pelo identitarismo no sentido de dar voz às mulheres negras, por exemplo, estamos diante de um dilema teórico e prático dos movimentos atuais que, se nos mantiverem com a guarda crítica baixa, tal como está hoje, podemos retroceder para antes de 1896, ano em que ocorreu a ruptura entre as mulheres socialistas e burguesas no Congresso Feminista Internacional de Berlim[xxiv]. Ou seja, jogará no lixo um recorte de classe importantíssimo julgando estar dando um passo progressivo na luta pela sua emancipação.

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         As lutas específicas dos setores englobados pelo identitarismo têm apontado uma boa perspectiva de mobilização: a massiva luta pela legalização do aborto na Argentina; os atos pelo #EleNão (isto é, contra o neofascismo bolsonarista); os protestos de repúdio aos assassinatos premeditados pela polícia de negros nos EUA e no Brasil; a luta contra a cultura do estupro, como o absurdo caso de Mariana Ferrer. Porém, apesar de serem mais massivas do que as lutas sindicais (e talvez, por isso mesmo, os seus aparatos semimortos não se envolvem seriamente nelas), no geral, não apontam para nenhuma perspectiva para além do sistema. Se tornam reféns de um novo tipo de economicismo, que tende a entender essas lutas na restrita perspectiva eleitoral burguesa e, portanto, como um fim em si mesmo, não introduzindo novos debates programáticos socialistas e novas práticas de classe. Em parte por causa dos motivos elencados neste artigo, em parte pelas dificuldades inerentes a qualquer movimento social que luta contra uma estrutura secular, tornam-se um prato cheio para a classe dominante e o seu aparato – sempre melhor preparado do que nós.

         Por outro lado, o coletivo Combahee River acerta quando afirma em seu manifesto que devemos apostar “no processo coletivo e na distribuição não hierárquica de poder dentro de nosso grupo, bem como em nossa visão de sociedade revolucionária. Estamos comprometidas com um exame contínuo de nossas políticas, desenvolvidas por meio da crítica e autocrítica, aspectos essenciais de nossa prática”[xxv].

         Este deve ser o método de todo o movimento da classe trabalhadora em todas as suas esferas e ações. Infelizmente não tem sido assim em nenhuma delas – nem mesmo entre o movimento identitário dos partidos e organizações que o reivindicam, como, por exemplo, quando determinadas posições são impostas a partir de uma censura disfarçada de antemão para quem quer divergir honestamente. Um bom primeiro passo no caminho proposto pelo coletivo seria começar por fazer um exame de como o identitarismo tem se desenvolvido nos EUA e na América Latina: se estamos agregando ou desagregando a classe? Se temos atingido e aglutinado mais setores, superando o economicismo? Se a consciência de classe tem andado lado a lado com a “consciência identitária”? Se o socialismo aparece, mesmo que distante, na teoria e na prática desses movimentos? Se, a partir da correta preocupação de que muitos movimentos, organizações e sindicatos mantêm as opressões escondidas atrás de pequenos gestos não debatidos e pretensamente “socialistas”, o identitarismo atual não tem criado uma forma correspondente de repelir e de arrebanhar, não destruindo, mas fortalecendo o espírito de rebanho e outras formas de autoritarismo impositivo?

         Destas críticas e autocríticas depende o futuro do socialismo e, portanto, da classe trabalhadora e da humanidade.

 

 

REFERÊNCIAS


[xi] Um breve estudo sobre a peste emocional é feita nesse artigo: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/11/bolsonarismo-e-peste-emocional.html

[xii] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (páginas 27 e 28).

[xiii] Idem (páginas 106 e 191).

[xiv] Idem (página 166).

[xvi] Segundo Jessé Souza em seu livro “A elite do atraso”, das “500 maiores empresas do mundo, 492 são dirigidas por homens”, sendo apenas 8 dirigidas por mulheres. Os seguintes sites apontam sobre a pouca participação de negras, negros e LGBTs na direção das grandes empresas: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/11/negros-e-pardos-ocupam-so-10-dos-cargos-de-chefia-diz-pesquisa.html , https://mundonegro.inf.br/mulheres-negras-sao-menos-de-1-na-lideranca-de-grandes-empresas/ e https://vocesa.abril.com.br/geral/estes-3-executivos-sao-inspiracao-para-diversidade-nas-empresas/ - apesar de extremamente minoritários entre a classe dominante, possuem seus “representantes”!

[xviii] MARX, Karl. Para a questão judaica. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2009 (página 40).

[xix] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Martim Claret, São Paulo, 2005 (páginas 62 e 63).

[xx] MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Martim Claret, São Paulo, 2002 (página 142).

[xxi] Idem (página 147).

[xxiv] ASTOR, Dorian. Lou Andreas-Salomé – biografia. L&PM Pocket, Porto Alegre, 2018 (página 137).



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