Em muitas publicações deste blog
demonstramos a relação do bolsonarismo e do neofascismo
com a manipulação da psicologia das massas. Grande parte desta construção
teórica se deveu à intuição baseada na observação do ódio sadomasoquista
propagado pelos apoiadores do atual presidente. Neste texto pretendemos dar um
embasamento àquelas afirmações que associam o fenômeno bolsonarista à
manipulação da psicologia de massas; e desta com a peste emocional. Para isso,
recorremos ao estudo do psicólogo norte-americano, Daniel Goleman, em seu
célebre livro A inteligência emocional[i].
Todas
as páginas do livro são um elucidativo atestado de como funciona a nossa mente
emocional e serve de base para compreender e descrever muitas das forças
inconscientes que motivam a maioria dos apoiadores do bolsonarismo. Os métodos
e o programa político da “esquerda” atual não são capazes de enfrentar tal
fenômeno, o que exige a construção de uma nova prática.
Um
estudo da mente emocional e da mente racional
A
questão central do livro de Goleman é demonstrar que não compreendemos a
relação que existe entre as nossas emoções e a razão; ou seja, como o cérebro
emocional influencia decisivamente o cérebro racional – e, sobretudo, a
necessidade não apenas de compreendermos isso, mas de nos educarmos nesse
sentido. Nas suas palavras: “como raiz da
qual surgiu o cérebro mais novo, as áreas emocionais entrelaçam-se, através de
milhares de circuitos de ligação, com todas as partes do neocórtex. Isso dá aos
centros emocionais imensos poderes de influenciar o funcionamento do resto do
cérebro – incluindo seus centros de pensamento”[ii].
Eis
que a psicologia de massas do neofascismo,
desenvolvida pela escola de Steve Bannon e Donald Trump, especializou-se em
utilizar o cérebro emocional contra o cérebro racional. Justiça seja feita:
grande parte da mídia burguesa já sabia manipular tais centros nervosos; senão
intencionalmente, pelo menos de forma indireta. Bannon e Trump apenas
potencializaram tais métodos.
Segundo
Goleman, “a mente emocional possui uma
lógica associativa; elementos que simbolizam uma realidade ou que de alguma
forma lembrem essa realidade são, para a mente emocional, a própria realidade”[iii].
Tais processos podem ser associados aos “processos primários de pensamento”
muito bem descritos por Freud. São justamente eles e a sua “lógica associativa”
que são manipulados pelos marqueteiros do neofascismo.
A
cúpula do movimento neofascista é
bastante consciente dos seus atos, mas a sua base na classe média e entre
grande parte dos trabalhadores, não. Dito de outra forma: a mente racional dos
primeiros manipula a mente emocional dos segundos, seja nos discursos
reacionários de ódio sádico, seja nas redes sociais, através das fake news ou da espionagem dos seus
movimentos na internet.
Se
baseando em Freud, Goleman aponta que “no
processo primário não existe o interdito, porque tudo é possível”. Isso
explica, em grande parte, o porquê dos bolsonaristas sustentarem tamanhas
bizarrices sem nenhum problema. E não há argumento racional que possa
convencê-lo do contrário, uma vez que “enquanto
a mente racional faz conexões lógicas entre causa e efeito, a mente emocional
não faz qualquer discriminação. Liga coisa com coisa que, entre si, guardam uma
longínqua similaridade”.
Tal
como se fosse uma criança, o pensamento é personalizado e centrado no ego, “ou seja, os eventos são vivenciados como
dirigidos à própria pessoa. (...) Esse
modo infantil de pensar se autoconfirma, na medida em que descarta ou ignora
lembranças que possam abalar sua crença e se agarra a tudo o que possa
mantê-la”[iv].
Nesse sentido, qualquer tentativa de debate lógico termina em dicotomizações
absurdas que transbordam de ódio, tal como se houvéssemos insultado
pessoalmente o apoiador do governo que está na nossa frente. Então, ele
transforma uma “crença”, como por exemplo, a de que o governo Bolsonaro não
apenas não é corrupto, como combate a corrupção, em algo absolutamente verdadeiro a despeito de todas as contraindicações da
realidade e da história.
A
peste emocional em ação
Dentro
desta lógica bizarra que literalmente hipnotiza quem está sob sua influência, o
neofascismo necessita da polarização
política e social, que se transforma em uma dicotomização que simplifica a
realidade com vistas a fazer cabê-la dentro do seu raciocínio estreito. Uma das
formas de realizar isso é o pensamento categórico,
onde as coisas só podem ser pretas ou brancas, sem qualquer tipo de coloração
cinzenta intermediária.
Ou
seja, se somos contra o governo Bolsonaro, automaticamente somos petistas. A
dicotomização serve, sobretudo, como combustível do fanatismo. Conforme atestou
Wilhelm Reich – o descobridor da peste emocional –, a “esquerda” também sofre
de distúrbio semelhante, uma vez que podemos constatar que o petismo (dentre
outros) age quase da mesma maneira – às vezes até com o mesmo ódio. Tal postura
não apenas finca pé em uma posição, mas é perfeita para dominar o rebanho
humano, que tende a se assustar e a se localizar embaixo da asa de um ou de
outro que gritar mais alto ou mais de acordo com a estreiteza do seu pensamento
imediatista.
A
total desonestidade das lideranças que se utilizam inescrupulosamente da mente emocional
está, sobretudo, no fato de saber explorar perfeitamente essa estreiteza do pensamento
imediatista, já que tal mente tende a considerar que suas crenças são
totalmente verdadeiras e, portanto, a descartar qualquer coisa que lhe contrarie.
A figura de uma criança mimada serve como uma boa ilustração: se a mãe, de
forma mais dura, tenta impor limites aos caprichos do filho, este busca se
aninhar embaixo das asas do pai, mais frouxo e condescendente (ou vice-versa),
para que continue tendo os seus interesses prontamente atendidos e não tenha
que se defrontar com a realidade.
Eis
porque é tão difícil fazer com que alguém sob perturbação da peste emocional raciocine.
Goleman aponta que “não importa quão
válida seja a argumentação do ponto de vista lógico – nada que não esteja
enquadrado nas convicções emocionais do momento pode influir”[v].
Os sentimentos se autojustificam por uma série de percepções e pseudoprovas
auto “convincentes”.
Esta
“perturbação emocional” é, precisamente, o que Reich definiu como peste emocional, que é disparada uma vez
que seja confrontada. Ela está presente de forma controlada ou descontrolada em
todo o ser humano e possui momentos de surtos sociais que se transformam em
epidemia. Segundo Reich, quanto mais reprimida sexual e moralmente a vida viva é, mais tende a desenvolver couraças
musculares e emocionais por todo o corpo, que degenera em peste emocional, impondo,
como vimos, uma “lógica própria” que é surda a qualquer argumento racional ou a
empatia. Tais conclusões coadunam perfeitamente com análises desenvolvidas por
Frantz Fanon: “no fóbico há prioridade do
afeto em detrimento de todo o pensamento racional. (...) o fóbico é um indivíduo que obedece às leis
da pré-lógica racional e da pré-lógica afetiva: processo de pensar e de sentir
que relembra a época em que se deu o acidente causador da insegurança”[vi].
Com
efeito, se pelo processo do recalcamento a sexualidade for excluída das vias
naturais de satisfação, toma os caminhos diversos da satisfação substitutiva.
Assim, por exemplo, a agressividade natural amplifica-se para transformar-se em
sadismo brutal que constitui uma parte essencial da base psicológica de massa
do fascismo e mesmo da guerra, que repousa num mecanismo libidinal[vii]
– somadas, é claro, a motivações determinantes, como a conjuntura, a economia e
a política. Daí advém a política cultural e sexual do nazi-fascismo clássico e
do atual neofascismo, que se
expressam através das propostas nefastas da ministra Damares Alves e de grande
parte da direita brasileira, calcadas na repressão sexual, na submissão
religiosa e na família patriarcal.
Já
escrevemos que a sedução do neofascismo
bolsonarista reside, precisamente, na manipulação do sadismo das massas,
originado e fortalecido pela repressão sexual. Esta é a verdadeira finalidade da
políticas públicas propostas por Damares. A força de Bolsonaro está, tal como
no nazi-fascismo clássico, na legalização das descargas dos impulsos sádicos[viii];
e a peste emocional se alimenta sobretudo destes impulsos. A raiva resultante
de todo o processo serve, segundo Goleman e outros autores citados por ele,
para “energizar” e até mesmo “exaltar”[ix] a
pessoa que sofre com sua descarga. É, portanto, um compensatório negativo para
a descarga sexual contida e, até mesmo, para uma vida reprimida, deprimida e
vazia, já que “as emoções descontroladas
tolhem o intelecto”[x].
A
peste emocional tem suas “razões”
Ainda
segundo Goleman, “o entendimento de que
as emoções têm uma razão e uma lógica que lhe são tão peculiares”[xi] é
fundamental para entendermos o fenômeno da inteligência – ou desinteligência –
emocional. Ele aponta que “as ações
desencadeadas pela mente emocional são prenhes de certeza, que é um subproduto
de um tipo de comportamento bastante simplificado”. Este modo rápido de
percepção desencadeado pela mente emocional perde em precisão, mas ganha em
rapidez. Capta tudo num relance, reage e não perde tempo com uma análise
minuciosa dos detalhes. Vem daí, provavelmente, a grande dificuldade de debater
séria e frutiferamente com qualquer apoiador do bolsonarismo.
Uma
vez que “na mecânica da emoção, cada
sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações e mesmo de
memórias”[xii],
os estrategistas e marqueteiros do neofascismo
não querem lidar com argumentos lógicos, mas apenas com as emoções – sobretudo
as emoções mal resolvidas. Esta é a chave do seu sucesso e a base da
manipulação da psicologia de massas.
Embora
não utilize o termo peste emocional,
Daniel Goleman fala em sequestro
emocional ou inundação de ideias venenosas, o que ilustra bem a
descoberta de Reich. Ou seja, o sequestro é caracterizado por um “assalto” ao
cérebro racional pelo cérebro emocional, que fica tolhido de suas faculdades; a
inundação, por sua vez, é uma figura de linguagem que expressa a noção de que o
cérebro racional sofreu com uma espécie de rompimento de uma barragem de ideias
confusas e irracionais que tolhem ou limitam a sua reflexão lógica.
Segundo
Goleman, “o momento de sequestro
emocional é visível pelo ritmo cardíaco: pode subir 10, 20 ou mesmo até 30
batidas por minuto no espaço de uma única batida. Os músculos ficam tensos; a
respiração opressa. Vem uma inundação de pensamentos tóxicos, uma desagradável
sensação de medo e raiva. Nesse ponto – do pleno sequestro –, as emoções da
pessoa são tão intensas, sua perspectiva tão estreita e seus pensamentos tão
confusos, que não há a menor possibilidade de verem as coisas sob outro ângulo
ou de resolver o assunto de uma maneira racional”[xiii].
Tal
narrativa serve perfeitamente para descrever a peste emocional e, ao mesmo
tempo, a postura de um bolsonarista frente a um debate político da atualidade.
Como seres humanos que cresceram dentro da lógica repressiva da moral familiar
patriarcal, seja de classe média ou da classe trabalhadora “religiosa”, os
apoiadores do governo sentem seus interesses reais ou imaginários ameaçados –
geralmente mesquinhos e, muitas vezes, inexistentes – e o gatilho do sequestro
e da inundação da peste emocional é acionado. Aqui cabe lembrar outra vez das
contribuições de Fanon: “toda vez que há
convicção delirante, há uma reprodução de si”[xiv].
Quando
o gatilho do sequestro da peste emocional é ativado, “os pensamentos e as reações (...) estarão sendo influenciados por sensações do passado, mesmo que possa
parecer que a [sua] reação é devida
unicamente às condições do momento presente. Nossa mente emocional aparelhará a
mente racional para seus fins”[xv].
E então, a pessoa sob as chicotadas da peste emocional tentará justificar suas
reações “racionalizando” pela sua ótica empesteada diante do que está
acontecendo, atacando os oponentes (e o PT? E a Venezuela? Vai pra Cuba!), sem
se dar conta (ou não querendo se dar conta) das influencias da memória
emocional precedente. “Dessa forma”,
conclui Goleman, “não temos a menor ideia
do que realmente está ocorrendo, embora acreditemos piamente que sabemos.
Nesses momentos a mente emocional arrebata a mente racional, colocando-a a seu
serviço”[xvi].
E
quem, como Steve Bannon e os seus técnicos de manipulação a serviço do governo Trump e Bolsonaro, conseguir entender a
dinâmica desta equação emocional, colocará centenas de milhões de mentes a
serviço dos seus interesses políticos e econômicos. É importante salientar
ainda que “na mecânica da emoção, cada
sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações e mesmo de
memórias. Esse repertório emocional específico se torna mais dominante nos
momentos de intensa emoção. A memória seletiva é um dos sinais de que esse
repertório está ativo. Parte do desempenho mental diante de uma situação
emocional consiste em fustigar a memória e as opções para agir a fim de que as
mais relevantes fiquem no topo da hierarquia, e desta forma, possam ser mais
prontamente acionadas”[xvii].
A
memória seletiva é parte central da engenharia política do bolsonarismo e do neofascismo, que lembra seletivamente da
corrupção nacional, de problemas econômicos, políticos e sociais, como a fome[xviii].
Da mesma forma funcionam em relação às “ditaduras comunistas”, mas fecham os
olhos em relação às ditaduras e monarquias capitalistas, bem como às guerras
patrocinadas por elas.
Combater
o neofascismo bolsonarista requer o
combate consciente à peste emocional
Wilhelm
Reich, Daniel Goleman e Frantz Fanon descreveram perfeitamente a psicologia de
massas do neofascismo e do
bolsonarismo, mesmo que não tenham chegado a conhecê-los. Isso porque eles
perceberam determinadas tendências emocionais humanas que serviram e servem de
base para regimes fascistas, neofascistas
e mesmo democrático-burgueses.
Definir
com precisão o fenômeno é fundamental para combatê-lo. Desde Sun-Tzu não temos
como combater um exército inimigo sem defini-lo e conhecê-lo. Apesar dessas análises
com exata precisão feitas por Goleman, Reich e Fanon, quase como se tivessem
sido escritas hoje, ainda não temos respostas para combater tal peste
emocional, que inclusive, como foi dito, se expressa entre a “esquerda”. No
entanto, o 1º passo para conseguir desenvolver um método de luta eficaz contra
o bolsonarismo e o neofascismo é
delimitá-lo e reconhecer a sua existência para, aí sim, poder trabalhar por
respostas e “soluções”.
Ao
invés disso, a “esquerda” tem gritado “fora Bolsonaro”[xix]
– ignorando correlação de forças, organização e os próprios métodos do neofascismo –, o que julga ser um
facilitador político no sentido de diminuir as resistências na luta contra o
governo, quando, na realidade, apenas tende a triplicá-las, gerando piores
tipos de barreiras emocionais e fortalecendo o inimigo que pretende derrubar
num passe de mágicas, apenas reproduzindo ad
infinitum as velhas teorias e os discursos surrados que, ao fim e ao cabo,
estão desconectados do sentimento de quem o escuta (e da própria realidade).
Agitar
“fora Bolsonaro” sem correlação de forças
apenas ajuda a dicotomizar o debate e o pensamento, levando a luta para o campo
de batalha que beneficia o inimigo e alimentando o ódio e a cegueira ocasionada
pela peste emocional. Em síntese: agitar “Fora Bolsonaro” sem correlação de
forças e organização real serve para dar coesão à base popular de apoio do
bolsonarismo. Renovar os métodos, a prática e o nosso repertório político e
teórico deve ser o primeiro passo nessa literal luta de morte.
REFERÊNCIAS
[ii] Idem, página 26.
[iii] Idem, página 308.
[iv] Idem, página 309.
[v] Idem.
[vi] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (página 137).
[vii] Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html
[viii] Idem.
[ix] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995, página 72.
[x] Idem, página 99.
[xi] Idem, página 305.
[xii] Idem, página 310.
[xiii] Idem, página 153.
[xiv] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (página 141).
[xv] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995, página 310.
[xvi] Idem.
[xvii] Idem.
[xviii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/04/quem-poderia-se-utilizar-da-fome-dos.html
[xix] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/sobre-palavra-de-ordem-fora-bolsonaro.html
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