terça-feira, 10 de novembro de 2020

Bolsonarismo e peste emocional

Em muitas publicações deste blog demonstramos a relação do bolsonarismo e do neofascismo com a manipulação da psicologia das massas. Grande parte desta construção teórica se deveu à intuição baseada na observação do ódio sadomasoquista propagado pelos apoiadores do atual presidente. Neste texto pretendemos dar um embasamento àquelas afirmações que associam o fenômeno bolsonarista à manipulação da psicologia de massas; e desta com a peste emocional. Para isso, recorremos ao estudo do psicólogo norte-americano, Daniel Goleman, em seu célebre livro A inteligência emocional[i].

         Todas as páginas do livro são um elucidativo atestado de como funciona a nossa mente emocional e serve de base para compreender e descrever muitas das forças inconscientes que motivam a maioria dos apoiadores do bolsonarismo. Os métodos e o programa político da “esquerda” atual não são capazes de enfrentar tal fenômeno, o que exige a construção de uma nova prática.

 

Um estudo da mente emocional e da mente racional

         A questão central do livro de Goleman é demonstrar que não compreendemos a relação que existe entre as nossas emoções e a razão; ou seja, como o cérebro emocional influencia decisivamente o cérebro racional – e, sobretudo, a necessidade não apenas de compreendermos isso, mas de nos educarmos nesse sentido. Nas suas palavras: “como raiz da qual surgiu o cérebro mais novo, as áreas emocionais entrelaçam-se, através de milhares de circuitos de ligação, com todas as partes do neocórtex. Isso dá aos centros emocionais imensos poderes de influenciar o funcionamento do resto do cérebro – incluindo seus centros de pensamento”[ii].

         Eis que a psicologia de massas do neofascismo, desenvolvida pela escola de Steve Bannon e Donald Trump, especializou-se em utilizar o cérebro emocional contra o cérebro racional. Justiça seja feita: grande parte da mídia burguesa já sabia manipular tais centros nervosos; senão intencionalmente, pelo menos de forma indireta. Bannon e Trump apenas potencializaram tais métodos.

         Segundo Goleman, “a mente emocional possui uma lógica associativa; elementos que simbolizam uma realidade ou que de alguma forma lembrem essa realidade são, para a mente emocional, a própria realidade”[iii]. Tais processos podem ser associados aos “processos primários de pensamento” muito bem descritos por Freud. São justamente eles e a sua “lógica associativa” que são manipulados pelos marqueteiros do neofascismo.

         A cúpula do movimento neofascista é bastante consciente dos seus atos, mas a sua base na classe média e entre grande parte dos trabalhadores, não. Dito de outra forma: a mente racional dos primeiros manipula a mente emocional dos segundos, seja nos discursos reacionários de ódio sádico, seja nas redes sociais, através das fake news ou da espionagem dos seus movimentos na internet.

         Se baseando em Freud, Goleman aponta que “no processo primário não existe o interdito, porque tudo é possível”. Isso explica, em grande parte, o porquê dos bolsonaristas sustentarem tamanhas bizarrices sem nenhum problema. E não há argumento racional que possa convencê-lo do contrário, uma vez que “enquanto a mente racional faz conexões lógicas entre causa e efeito, a mente emocional não faz qualquer discriminação. Liga coisa com coisa que, entre si, guardam uma longínqua similaridade”.

         Tal como se fosse uma criança, o pensamento é personalizado e centrado no ego, “ou seja, os eventos são vivenciados como dirigidos à própria pessoa. (...) Esse modo infantil de pensar se autoconfirma, na medida em que descarta ou ignora lembranças que possam abalar sua crença e se agarra a tudo o que possa mantê-la”[iv]. Nesse sentido, qualquer tentativa de debate lógico termina em dicotomizações absurdas que transbordam de ódio, tal como se houvéssemos insultado pessoalmente o apoiador do governo que está na nossa frente. Então, ele transforma uma “crença”, como por exemplo, a de que o governo Bolsonaro não apenas não é corrupto, como combate a corrupção, em algo absolutamente verdadeiro a despeito de todas as contraindicações da realidade e da história.

 


A peste emocional em ação

         Dentro desta lógica bizarra que literalmente hipnotiza quem está sob sua influência, o neofascismo necessita da polarização política e social, que se transforma em uma dicotomização que simplifica a realidade com vistas a fazer cabê-la dentro do seu raciocínio estreito. Uma das formas de realizar isso é o pensamento categórico, onde as coisas só podem ser pretas ou brancas, sem qualquer tipo de coloração cinzenta intermediária.

         Ou seja, se somos contra o governo Bolsonaro, automaticamente somos petistas. A dicotomização serve, sobretudo, como combustível do fanatismo. Conforme atestou Wilhelm Reich – o descobridor da peste emocional –, a “esquerda” também sofre de distúrbio semelhante, uma vez que podemos constatar que o petismo (dentre outros) age quase da mesma maneira – às vezes até com o mesmo ódio. Tal postura não apenas finca pé em uma posição, mas é perfeita para dominar o rebanho humano, que tende a se assustar e a se localizar embaixo da asa de um ou de outro que gritar mais alto ou mais de acordo com a estreiteza do seu pensamento imediatista.

         A total desonestidade das lideranças que se utilizam inescrupulosamente da mente emocional está, sobretudo, no fato de saber explorar perfeitamente essa estreiteza do pensamento imediatista, já que tal mente tende a considerar que suas crenças são totalmente verdadeiras e, portanto, a descartar qualquer coisa que lhe contrarie. A figura de uma criança mimada serve como uma boa ilustração: se a mãe, de forma mais dura, tenta impor limites aos caprichos do filho, este busca se aninhar embaixo das asas do pai, mais frouxo e condescendente (ou vice-versa), para que continue tendo os seus interesses prontamente atendidos e não tenha que se defrontar com a realidade.

         Eis porque é tão difícil fazer com que alguém sob perturbação da peste emocional raciocine. Goleman aponta que “não importa quão válida seja a argumentação do ponto de vista lógico – nada que não esteja enquadrado nas convicções emocionais do momento pode influir”[v]. Os sentimentos se autojustificam por uma série de percepções e pseudoprovas auto “convincentes”.

         Esta “perturbação emocional” é, precisamente, o que Reich definiu como peste emocional, que é disparada uma vez que seja confrontada. Ela está presente de forma controlada ou descontrolada em todo o ser humano e possui momentos de surtos sociais que se transformam em epidemia. Segundo Reich, quanto mais reprimida sexual e moralmente a vida viva é, mais tende a desenvolver couraças musculares e emocionais por todo o corpo, que degenera em peste emocional, impondo, como vimos, uma “lógica própria” que é surda a qualquer argumento racional ou a empatia. Tais conclusões coadunam perfeitamente com análises desenvolvidas por Frantz Fanon: “no fóbico há prioridade do afeto em detrimento de todo o pensamento racional. (...) o fóbico é um indivíduo que obedece às leis da pré-lógica racional e da pré-lógica afetiva: processo de pensar e de sentir que relembra a época em que se deu o acidente causador da insegurança”[vi].

         Com efeito, se pelo processo do recalcamento a sexualidade for excluída das vias naturais de satisfação, toma os caminhos diversos da satisfação substitutiva. Assim, por exemplo, a agressividade natural amplifica-se para transformar-se em sadismo brutal que constitui uma parte essencial da base psicológica de massa do fascismo e mesmo da guerra, que repousa num mecanismo libidinal[vii] – somadas, é claro, a motivações determinantes, como a conjuntura, a economia e a política. Daí advém a política cultural e sexual do nazi-fascismo clássico e do atual neofascismo, que se expressam através das propostas nefastas da ministra Damares Alves e de grande parte da direita brasileira, calcadas na repressão sexual, na submissão religiosa e na família patriarcal.

         Já escrevemos que a sedução do neofascismo bolsonarista reside, precisamente, na manipulação do sadismo das massas, originado e fortalecido pela repressão sexual. Esta é a verdadeira finalidade da políticas públicas propostas por Damares. A força de Bolsonaro está, tal como no nazi-fascismo clássico, na legalização das descargas dos impulsos sádicos[viii]; e a peste emocional se alimenta sobretudo destes impulsos. A raiva resultante de todo o processo serve, segundo Goleman e outros autores citados por ele, para “energizar” e até mesmo “exaltar”[ix] a pessoa que sofre com sua descarga. É, portanto, um compensatório negativo para a descarga sexual contida e, até mesmo, para uma vida reprimida, deprimida e vazia, já que “as emoções descontroladas tolhem o intelecto”[x].

 

A peste emocional tem suas “razões”

         Ainda segundo Goleman, “o entendimento de que as emoções têm uma razão e uma lógica que lhe são tão peculiares”[xi] é fundamental para entendermos o fenômeno da inteligência – ou desinteligência – emocional. Ele aponta que “as ações desencadeadas pela mente emocional são prenhes de certeza, que é um subproduto de um tipo de comportamento bastante simplificado”. Este modo rápido de percepção desencadeado pela mente emocional perde em precisão, mas ganha em rapidez. Capta tudo num relance, reage e não perde tempo com uma análise minuciosa dos detalhes. Vem daí, provavelmente, a grande dificuldade de debater séria e frutiferamente com qualquer apoiador do bolsonarismo.

         Uma vez que “na mecânica da emoção, cada sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações e mesmo de memórias”[xii], os estrategistas e marqueteiros do neofascismo não querem lidar com argumentos lógicos, mas apenas com as emoções – sobretudo as emoções mal resolvidas. Esta é a chave do seu sucesso e a base da manipulação da psicologia de massas.

         Embora não utilize o termo peste emocional, Daniel Goleman fala em sequestro emocional ou inundação de ideias venenosas, o que ilustra bem a descoberta de Reich. Ou seja, o sequestro é caracterizado por um “assalto” ao cérebro racional pelo cérebro emocional, que fica tolhido de suas faculdades; a inundação, por sua vez, é uma figura de linguagem que expressa a noção de que o cérebro racional sofreu com uma espécie de rompimento de uma barragem de ideias confusas e irracionais que tolhem ou limitam a sua reflexão lógica.

         Segundo Goleman, “o momento de sequestro emocional é visível pelo ritmo cardíaco: pode subir 10, 20 ou mesmo até 30 batidas por minuto no espaço de uma única batida. Os músculos ficam tensos; a respiração opressa. Vem uma inundação de pensamentos tóxicos, uma desagradável sensação de medo e raiva. Nesse ponto – do pleno sequestro –, as emoções da pessoa são tão intensas, sua perspectiva tão estreita e seus pensamentos tão confusos, que não há a menor possibilidade de verem as coisas sob outro ângulo ou de resolver o assunto de uma maneira racional”[xiii].

         Tal narrativa serve perfeitamente para descrever a peste emocional e, ao mesmo tempo, a postura de um bolsonarista frente a um debate político da atualidade. Como seres humanos que cresceram dentro da lógica repressiva da moral familiar patriarcal, seja de classe média ou da classe trabalhadora “religiosa”, os apoiadores do governo sentem seus interesses reais ou imaginários ameaçados – geralmente mesquinhos e, muitas vezes, inexistentes – e o gatilho do sequestro e da inundação da peste emocional é acionado. Aqui cabe lembrar outra vez das contribuições de Fanon: “toda vez que há convicção delirante, há uma reprodução de si”[xiv].

         Quando o gatilho do sequestro da peste emocional é ativado, “os pensamentos e as reações (...) estarão sendo influenciados por sensações do passado, mesmo que possa parecer que a [sua] reação é devida unicamente às condições do momento presente. Nossa mente emocional aparelhará a mente racional para seus fins”[xv]. E então, a pessoa sob as chicotadas da peste emocional tentará justificar suas reações “racionalizando” pela sua ótica empesteada diante do que está acontecendo, atacando os oponentes (e o PT? E a Venezuela? Vai pra Cuba!), sem se dar conta (ou não querendo se dar conta) das influencias da memória emocional precedente. “Dessa forma”, conclui Goleman, “não temos a menor ideia do que realmente está ocorrendo, embora acreditemos piamente que sabemos. Nesses momentos a mente emocional arrebata a mente racional, colocando-a a seu serviço”[xvi].

         E quem, como Steve Bannon e os seus técnicos de manipulação a serviço do governo Trump e Bolsonaro, conseguir entender a dinâmica desta equação emocional, colocará centenas de milhões de mentes a serviço dos seus interesses políticos e econômicos. É importante salientar ainda que “na mecânica da emoção, cada sentimento tem um diferente repertório de pensamentos, de reações e mesmo de memórias. Esse repertório emocional específico se torna mais dominante nos momentos de intensa emoção. A memória seletiva é um dos sinais de que esse repertório está ativo. Parte do desempenho mental diante de uma situação emocional consiste em fustigar a memória e as opções para agir a fim de que as mais relevantes fiquem no topo da hierarquia, e desta forma, possam ser mais prontamente acionadas”[xvii].

         A memória seletiva é parte central da engenharia política do bolsonarismo e do neofascismo, que lembra seletivamente da corrupção nacional, de problemas econômicos, políticos e sociais, como a fome[xviii]. Da mesma forma funcionam em relação às “ditaduras comunistas”, mas fecham os olhos em relação às ditaduras e monarquias capitalistas, bem como às guerras patrocinadas por elas.

 

Combater o neofascismo bolsonarista requer o combate consciente à peste emocional

         Wilhelm Reich, Daniel Goleman e Frantz Fanon descreveram perfeitamente a psicologia de massas do neofascismo e do bolsonarismo, mesmo que não tenham chegado a conhecê-los. Isso porque eles perceberam determinadas tendências emocionais humanas que serviram e servem de base para regimes fascistas, neofascistas e mesmo democrático-burgueses.

         Definir com precisão o fenômeno é fundamental para combatê-lo. Desde Sun-Tzu não temos como combater um exército inimigo sem defini-lo e conhecê-lo. Apesar dessas análises com exata precisão feitas por Goleman, Reich e Fanon, quase como se tivessem sido escritas hoje, ainda não temos respostas para combater tal peste emocional, que inclusive, como foi dito, se expressa entre a “esquerda”. No entanto, o 1º passo para conseguir desenvolver um método de luta eficaz contra o bolsonarismo e o neofascismo é delimitá-lo e reconhecer a sua existência para, aí sim, poder trabalhar por respostas e “soluções”.

         Ao invés disso, a “esquerda” tem gritado “fora Bolsonaro”[xix] – ignorando correlação de forças, organização e os próprios métodos do neofascismo –, o que julga ser um facilitador político no sentido de diminuir as resistências na luta contra o governo, quando, na realidade, apenas tende a triplicá-las, gerando piores tipos de barreiras emocionais e fortalecendo o inimigo que pretende derrubar num passe de mágicas, apenas reproduzindo ad infinitum as velhas teorias e os discursos surrados que, ao fim e ao cabo, estão desconectados do sentimento de quem o escuta (e da própria realidade).

         Agitar “fora Bolsonaro” sem correlação de forças apenas ajuda a dicotomizar o debate e o pensamento, levando a luta para o campo de batalha que beneficia o inimigo e alimentando o ódio e a cegueira ocasionada pela peste emocional. Em síntese: agitar “Fora Bolsonaro” sem correlação de forças e organização real serve para dar coesão à base popular de apoio do bolsonarismo. Renovar os métodos, a prática e o nosso repertório político e teórico deve ser o primeiro passo nessa literal luta de morte.

 

REFERÊNCIAS


[i] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995.
[ii] Idem, página 26.
[iii] Idem, página 308.
[iv] Idem, página 309.
[v] Idem.
[vi] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (página 137).
[vii] Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html
[viii] Idem.
[ix] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995, página 72.
[x] Idem, página 99.
[xi] Idem, página 305.
[xii] Idem, página 310.
[xiii] Idem, página 153.
[xiv] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008 (página 141).
[xv] GOLEMAN, Daniel. A inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995, página 310.
[xvi] Idem.
[xvii] Idem.
[xviii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/04/quem-poderia-se-utilizar-da-fome-dos.html
[xix] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/sobre-palavra-de-ordem-fora-bolsonaro.html

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