sábado, 28 de novembro de 2020

Notas inconformadas sobre a conduta ética dos eleitores de “esquerda” – ou: como se escreve muito para quem está pouco se lixando para argumentos; ou ainda: o desespero eleitoral cega?

A eleição em curso demonstrou um desnível preocupante de consciência e de conduta ética por parte dos eleitores de “esquerda”. Me refiro aqui não à massa de eleitores em geral, mas àquela que tem alguma atuação política nos sindicatos e nos movimentos sociais.

Não! – eu não vou defender aqui em quem cada um deve votar, se na Manuela/Boulos ou nulo (excluo a direita porque jamais votaria nela – antro de mau caráteres e exploradores; a raiz histórica da corrupção nacional e internacional; ainda mais se tratando da quadrilha do MDB/PSDB). Não aponto em quem votar porque os trabalhadores estão pouco se lixando pra mim e, sobretudo, porque a ideia aqui não é mudar o voto de ninguém, mas mexer nas certezas absolutas e abrir um novo ângulo de visão, sobretudo porque o que li nos grupos das redes sociais me fez mal, muito mal. Na verdade, me gerou profundas náuseas. E os motivos serão arrolados a seguir:

1. 
Num desses grupos que participo assiduamente, divulgando textos sobre várias temáticas – uma espécie de pregação no deserto, visto que não gera nenhum debate apaixonado como as eleições (ou o desespero eleitoral) geram –, recolhi a maior parte dos argumentos que critico aqui. A experiência eleitoral/institucional de 13 anos com PCdoB/PT pouco ou nada originou de massa crítica. Pelo contrário, hoje se esquece que o MDB governou o país junto com PCdoB/PT e que não houve, nesses 13 anos, nenhuma divergência fundamental.

Cada um vote em quem achar que deve e cultive as ilusões que quiserem cultivar, mas deveria evitar entrar no fanatismo dicotômico pré-eleitoral e descambar para uma espécie de ódio contra quem defende o voto nulo. Neste caso, temos um caso evidente daquilo que Wilhelm Reich definiu como “fascismo vermelho”. Poderemos derrotar o bolsonarismo com... o método raivoso do bolsonarismo?

Podemos considerar que há um equívoco no voto nulo neste momento, mas serão estes companheiros e companheiras que estarão conosco, ombro a ombro, quando os governos eleitos começarem a nos massacrar, de uma forma ou de outra – e não os candidatos pra quem fazemos campanha hoje. O “voto nulo” não se restringe a estes setores. Mais de 350 mil pessoas não votaram nessas eleições – cerca de 33% do eleitorado porto alegrense (a maior abstenção entre as capitais brasileiras). Xingar tais setores sobre chamar voto nulo e 33% do eleitorado por se abster resolveria algo ou denotaria apenas desespero? O que eles querem dizer e o que devemos fazer com isso? Simplesmente trazê-los de volta à disputa eleitoral e à institucionalidade burguesa que é parte fundamental da manutenção do sistema ou dialogar tentando mostrar contradições e transformar essa passividade abstencionista em algo organizativo? De uma forma ou de outra a direita não governa sempre através da institucionalidade burguesa – e reconhecer isso não seria importante?

2. 
Com os brilhantes argumentos do desespero eleitoral, descobri que o culpado principal da vitória do bolsonarismo em 2018 foram os votos nulos e não a política levada a cabo pela frente popular nos seus 13 anos de governo federal. E aprendi também que, milagrosamente, as eleições municipais podem derrotar o bolsonarismo (cuja vitória neste pleito ficou claramente nas mãos dos partidos do “centrão”; quer dizer, da direita soft, que pensa exatamente como Bolsonaro, mas não tem coragem de externar).

Obviamente sei que o voto nulo pesou na vitória do bolsonarismo e de forma alguma nego isso – tanto que eu, uma pessoa que votou nulo (como tática, não como princípio) por vários anos, fui obrigado, com lágrimas nos olhos e tremor nos dedos, a votar no PT. Contudo, não dá pra concordar com quem tenta imputar a vitória do bolsonarismo aos votos nulos e menospreza parcial ou totalmente a política levada a cabo pelo PT/PCdoB em 13 anos de governo federal, que, inclusive, fez aliança com o MDB de Temer e o PP de Bolsonaro (na época). Tal política, que fica de joelhos à institucionalidade burguesa e a reforça, preparou aberta e claramente o golpe (chamado pelo próprio petismo de “institucional”) que devorou o governo “democrático-popular”.

Nada foi feito em 13 anos para derrotar a direita ou modificar a estrutura do país (um reformismo sem reformas). O golpe é resultado das alianças espúrias, da falta de política concreta para mudar o país e combater as elites e a direita nacional. Ao contrário, além de dar “lucro recorde aos bancos”, o petismo levava a passar os caciques oficiais da direita tradicional como grandes aliados, respeitáveis e confiáveis.

Votem na Manuela ou no Boulos, denunciem Melo e Covas (e eu também estarei com vocês), mas nunca esqueçam disso e jamais minimizem tais problemas!

3. 
Companheiras e companheiros, longe de mim querer lhes tentar explicar o porquê de certas pessoas e organizações optarem pelo voto nulo: votem no PCdoB/PT e no PSOL. Acreditem! Sonhem! Mas não embelezem o que não deve ser embelezado, nem prometam o que vocês não vão cumprir, pois assim vocês se tornarão parte daquilo que criticam (isto é, comungarão da prática dos políticos burgueses). Muitos dizem: “agora é Manuela”, depois acertamos contas com ela e com o PT. Porém, falam isso após embelezar e esquecer de todo o passado e de toda a prática dos governos de PCdoB e PT (tanto antes quanto agora), incluso as suas práticas nefastas de autoritarismo puro nos sindicatos, entidades estudantis e movimentos sociais que apoiam ou dirigem. Eu não esqueço isso; nem vocês deveriam. “Agora é Manuela”, depois fazemos o que? Continuamos levando a vida como se nada precisasse de alteração – inclusive a nossa postura pessoal nos sindicatos e nos movimentos sociais? E se começar uma nova vergonhosa conciliação com a institucionalidade burguesa (judiciário, a hipocrisia do funcionamento das instituições, etc.), simplesmente ignorarão aguardando as próximas eleições?

Após a eleição tudo isso é esquecido e um silêncio sepulcral leva a uma adaptação não apenas aos governos eleitos, mas à institucionalidade burguesa, que está totalmente mancomunada com a justiça dos ricos e o legislativo que tem maioria de direita e cria mil empecilhos reais ou imaginários para qualquer mudança ou legislação que beneficie os trabalhadores. Tanto é assim que muitos esqueceram ou simplesmente ignoram (como se fosse algo digno de ser ignorado) que o PCdoB apoiou Melo no 2º turno de 2016 e estão coligados em outros 194 municípios (dados do TSE). Pode ser que os tempos hoje sejam um pouco diferentes daquele, mas o MDB e Melo mudaram sua essência de lá para cá? Ou isso é algo que pode ser simplesmente ignorado?

Aí alguns me dizem: “ninguém é inocente a ponto de não entender que a chapa da Manu não está alinhada por completo com um projeto de emancipação humana plena, mas, infelizmente, é necessário ser pragmático e votar 65. De outra forma teremos mais 4 anos com pouco espaço pra lutar”. A isso respondo que não se trata de inocência, mas de uma amnésia voluntária por parte de tais eleitores da “esquerda”. Falo isso porque os argumentos do desespero eleitoral ignoram ou ocultam todos os problemas descritos até aqui e potencializam as diferenças em relação a Melo, que no fundo são exageradas. A intensidade da argumentação de muitos desses eleitores não denota um voto crítico num “menos pior”, mas a autêntica salvação messiânica, o que é muito mais grave. E, por fim, pouco espaço pra lutar sempre teremos em governos que são reféns da institucionalidade burguesa ou onde imperem as burocracia sindicais que, ao fim e ao cabo, são o resultado das políticas de PT e PCdoB.

Em síntese: votem no menos pior (não lhes tiro a razão), mas não dourem a pílula!

4. 

Em contrapartida, eu não concordo com a agitação da Transição Socialista. Não considero que Boulos seja Igual a Covas; nem que Manuela seja igual a Melo. Tal agitação equivocada simplesmente reforça todas as ilusões que supostamente quer combater, jogando os eleitores de “esquerda” nos braços dos candidatos “reformistas” e ajudando na polarização/fanatização (o campo preferido do bolsonarismo e do neofascismo – diga-se de passagem). As ilusões são grandes e profundas, como podemos constatar e, como não existe um movimento de massas que se ponha como alternativa clara e firme neste momento, tal polarização não ajuda em nada, mas atrapalha. A unidade dos trabalhadores deve se dar com muita paciência revolucionária. Não se pula etapas apenas simplificando a realidade, que não pode ser simplificada (seja por quem defende o voto nulo, seja por quem busca qualquer pretexto e ignora a prática dos candidatos e partidos que pretendem votar agora).

5. 
O grande problema, repito, é a institucionalidade burguesa a qual os candidatos que forem eleitos terão que lidar; e o PCdoB e o PT não apenas não combatem tal institucionalidade, como a reforçam. O que fizeram em 13 anos de governo federal? Tal “vitória” contra a direita nas urnas é solapada pelo funcionamento da institucionalidade que se segue e isso não é sequer lembrado por quem hoje está numa campanha alucinada pela “vitória” da “esquerda” e pela “luz no fim do túnel” que, uma vez que nos aproximemos dela, se transformará num novo túnel, ainda maior. É esta institucionalidade que compromete toda a gestão “popular” e que fortalece a direita que supostamente foi derrotada nas urnas, que precisa ser desmascarada e explicada pacientemente aos trabalhadores e às trabalhadoras. É esta a verdadeira “unidade” que falta à “esquerda”.

O desespero eleitoral esconde, no fundo, o sonho de fazer uma “mudança” no país (e mesmo na cidade) com tranquilidade e pacificamente, sem termos que tomar nas nossas mãos as responsabilidades sociais que nos cabem (como a atuação consciente nos sindicatos, nos movimentos sociais e na própria política – ou seja, responsabilidades e “mudanças” que vão muito além do voto de 2 em 2 anos), confessando involuntariamente os interesses imediatistas de quem o expressa. O desespero eleitoral também embaça o fato de que se fará todo o possível para não se colocar o dilema de uma revolução que, ao fim e ao cabo, abre a real mudança que traz o novo e o desconhecido (pra vocês e pra mim). Uma revolução coloca, de fato, em xeque mate a hipocrisia institucional, a justiça burguesa, a rotina, as certezas de hoje. Em síntese, o dilema eleitoral se resume a isso.

Aí dizem: mas votando na Manu vamos nos aproximar da “revolução”, certo? Errado! Em 13 anos de governos petistas nos aproximamos ou nos afastamos da revolução? Derrotamos ou fortalecemos a direita? Temos que “votar na Manu e no Boulos porque as pessoas da periferia sentem fome e ninguém faz revolução de barriga vazia”. Oi? Tristes argumentos oriundos do desespero eleitoral, repleto de ilusões. Eu não quero que ninguém passe fome e essa dicotomia – digna das dicotomias bolsonaristas – não ajudam, não esclarecem e não resolvem os problemas. Ao contrário: aprofundam a confusão! Eu sou partidário do fim da fome. É por isso que milito e por isso que sou socialista. Mas reforçando a institucionalidade burguesa e as ilusões no sistema econômico e eleitoral a fome não apenas não será solucionada, como se aprofundará.

Não será num evolucionismo vulgar de “solução” da fome conjuntural das pessoas que vamos acabar com ela; tampouco reforçando as ilusões na democracia burguesa. Além do mais, as revoluções na história foram feitas porque as pessoas passavam fome e não por quem tinha a barriga cheia (ou migalhas para “distrair o estômago”). O reformismo serve, justamente, para dar algumas migalhas agora, para abrandar a fome, contribuindo para que o sistema siga funcionando normalmente. Não fui eu que fiz o mundo assim; só estou tentando observá-lo da maneira mais sóbria possível – e, sobretudo, afastando a fumaça do desespero eleitoral, que embaça a visão e o juízo.

6. 
Votem em quem vocês quiserem, mas refinem os argumentos e não joguem no lixo as experiências históricas. Cuidado com a dicotomização e o desespero eleitoral. Respeitem as opções de quem é trabalhador e tem consciência de classe. Guardem o melhor do latim de vocês para os futuros governos burgueses que serão eleitos, a mídia e a hipocrisia institucional, que certamente pesará no futuro, independente de quem vença as eleições.

Vamos desenvolver, juntos, a coragem de ir além das eleições. Tomemos nas mãos as nossas responsabilidades sociais. Questionemos a hipocrisia institucional e do sistema. Evitemos a dicotomização que descamba no “fascismo vermelho”. Tenhamos a mesma coragem de combater e desmascarar os políticos burgueses, reformistas e as burocracias sindicais como temos a coragem de xingar quem “vota nulo”, se abstém ou, tristemente, vota na direita. Nos empenhemos em lutar “certo” todo o dia, mês e ano, para além do desespero de votar “certo” de 2 em 2 anos. Rompamos com o círculo vicioso e não reforcemo-lo. Estes são os meus “votos” para achar a saída definitiva do túnel; e não apenas uma luz opaca e fugidia no seu suposto fim.

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