quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Zé! Nº2

Publicamos abaixo, na íntegra, a revista de literatura e poesia Zé! (nº2), criada por Paulo Moacir Farias da Silva e Cezar Dias. A revista teve dois números, sendo a primeira publicada em maio de 2011 e a segunda em janeiro de 2012. Zé! ainda tinha um blog, cujo endereço é: http://ze-digital.blogspot.com/




“A morte não é nada. 

Mas viver derrotado 

e sem glória é morrer 

diariamente.”

Eurípides




MEDIOCRIDADE

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saúdam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o céu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.

Jules Laforgue, do livro Litanias da Lua
Tradução de Régis Bonvicino


Jules Laforge; Montevidéu, 1860/ Paris, 1887



Para que servem as palavras

Tem um filme de terror em que ocorre um blecaute num cinema.
Ao retornar a luz, a maioria das pessoas da sessão haviam desaparecido.
Os sobreviventes pouco sabem, a princípio, o porquê daquilo.
Mas percebem que o fenômeno se deu no mundo todo.
Começam a entender que há uma escuridão, que cada vez avança mais e mais.
O sol, a cada dia que passa, surge mais tarde e a noite se prolonga.
Essa escuridão tem por finalidade encurralá-los e, por fim, devorá-los.
Começam a perceber também que a única coisa que os pode salvar é alguma luz que, porventura, consigam manter acesa.
Um a um são tragados pela sombra, enquanto correm desesperados atrás de lanternas e postes de luz, faróis de carros e baterias portáteis.
É assim que acontece.
Essa luz é tua humanidade.
E essa sombra é a barbárie se aproximando.
Tua vida vale menos que teus pertences e é facilmente tirada por causa de uma discussão.
Essa pequena e preciosa luz, que levamos milênios para criar desde que nos arrastamos das obscuras cavernas da nossa animalidade, está desaparecendo.
Sendo engolida pela ignorância, pela indiferença e pela esperteza daqueles que já perderam a sua chama.
E mesmo aqueles que estão no mundo apenas pela festa, quando esta acaba – se não estão bêbados o suficiente –, sentem o perigo a rondá-los, mesmo em seus carros.
Por isso entram assustados para dentro de seus condomínios.
Esperando ali estarem a salvo.
Esquecem eles que castelos já foram postos abaixo.
Enfim – somos nós correndo com uma lanterna na mão e cuja pilha está enfraquecendo.
Mas, como os personagens do filme, precisamos continuar nessa corrida mesmo que a escuridão nos engula.
Talvez encontremos mais luzes pela frente e consigamos espantar as sombras.
Você tem pilhas?

Festa
     Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis brancos, um mais velho e o outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos.
     Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.
      O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.
      — Duzentos e vinte.
        O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido.
   — Que tal o pão no molho de almôndega? Fica muito mais gostoso.
       O homem olha para os meninos.
      — O preço é o mesmo — informa o rapaz.
      — Está certo.
      Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se estivessem fazendo pela primeira vez na vida.
     O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e, em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele ) os dois meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira.
       Os meninos aguarda que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até a boca, depois cada um prova os eu guaraná e morde o primeiro bocado de pão.
     O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.
         Eles não tem pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.

Wander Piroli (contista mineiro).


JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Sabem este poema do João: "Tecendo a manhã"?
Essa manhã é o futuro. Ele convida a nos unirmos para que o possamos inventar.
Mas, poeta que é, nos dá a deixa: não o construiremos com a tecnologia, com o dinheiro.
Nós o construiremos com as nossas vozes.
Vozes essas que precisam, primeiro, ser ouvidas. Por isso um galo "apanha" o grito de outro.
É necessário esse movimento lateral para que haja o entendimento. O futuro não está a tua frente. Está ao teu lado. Esse é o gesto essencial para que funcione.
Ir ao teu semelhante. Ouvi-lo.
Só assim compreenderemos realmente o que diz e poderemos passar adiante a mensagem, formando essa tenda que nada mais é do que um lar onde todos se reconhecem.
Um lar que se vai erguendo pelo contato, pelo convívio, pelo calor do outro.
Que se forma pelo que é ouvido. Não pelo que é dito.
Sem paredes, que é para que caibam todos.
Ele tem razão.
O mundo não é nossa casa, mas nossa tenda.
Uma casa tem limites. De capacidade, de deslocamento, de posse.
Uma casa tem trancas, que nos transformam em "os de dentro" e "os de fora".
Uma tenda está sempre aberta. É sempre um abrigo. Para quantos.
Talvez os nômades sejam mais sábios.

João Cabral de Melo Neto; Recife (1920), Rio de Janeiro (1999).

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

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