terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O anarquismo é uma alternativa à degeneração da revolução russa?

*Por Eduardo Cambará

Sempre que falamos em organização revolucionário invocando o exemplo leninista é quase certo que escutaremos algum adepto do anarquismo lembrando a "repressão do bolchevismo" ao anarquismo organizado. A seguir, temos uma espécie de mantra que afirma que o stalinismo é a consequência inevitável do bolchevismo. Isto é, Lenin supostamente "foi o precursor de Stalin". Podemos ouvir isso desde os meios de comunicação e as universidades burguesas, até os ativistas "bem intencionados" por parte da esquerda  dentre os quais, encontram-se, sem dúvida, os anarquistas que reivindicam o legado de Nestor Makhno.

Ainda no final de 2019, em meio a uma greve do magistério, o camarada anarquista Pedro Fonseca me entregou em mãos um livro intitulado História do Movimento Makhnovista, do anarquista Piotr Arshinov, que conteriam as provas definitivas "do papel reacionário e nefasto do bolchevismo". Após, se travou uma polêmica nas nossas redes sociais quando Pedro postou um texto afirmando que Lenin foi o criador do stalinismo. Não pude deixar de intervir nessa postagem e as mensagens que seguem são o resultado deste embate de ideias:

Pedro Fonseca disse:
Sobre a questão do "bolchevismo": a princípio queria dizer que o socialismo de países que se autodefiniram como tal (URSS , Cuba, por exemplo) era um "falso socialismo" e que o bolchevismo que eles diziam assumir era também um "falso bolchevismo", mas como você respondeu com uma defesa do bolchevismo que soou ataque, então achei por bem dizer com sinceridade o que realmente penso sobre o bolchevismo em geral incluindo o trotskismo que pretende ser o herdeiro do leninismo supostamente mais autêntico. Há problemas pois há inúmeras correntes trotskistas diferentes e mesmo se não bastasse isso ainda há sem dúvida nenhuma elementos autoritários no bolchevismo desde a época de Lênin como os citados fatos exemplificam nos comentários (o que fizeram com os demais partidos ditos socialistas e com os aliados anarquistas na Ucrânia e etc.). Mas a preocupação maior de minha parte é tentar construir alguma opção viável para hoje, para o que vivemos, portanto essas propostas do passado pouco me interessam além da análise filosófica e histórica dado que já se desgastaram e "deram o que tinham que dar", também não simpatizo com a supervalorização de lideranças e ícones como Lenin, Trotski ou qualquer outro similar, mesmo que possa reconhecer que infelizmente é algo que deve ser encarado seriamente o fato de lideranças se destacarem em qualquer movimento ou organização política mesmo as que se dizem anarquistas, o que alguns vão encarar como uma "lei sociológica" (R. Michels, diria isso); mas não chego a esse exagero de afirmar algo assim , pois isso seria condenar (por consequência lógica simples) qualquer real possibilidade de superarmos essa "condição". 

No entanto, sob análise filosófica e sociológica/histórica, não tenho dúvidas com relação ao caráter autoritário do bolchevismo, embora reconheça que, em meio aos trotskistas, há militantes que buscam expressar o que eles mesmos identificam como positivo nessa proposta e a idealizam da melhor forma possível (de forma que ela me parece ganhar qualidades que não necessariamente possuía originalmente). Não tenho dúvidas das boas e sinceras intenções de vocês, por exemplo [e Pedro citou a nossa organização], mas não creio que Trotski e Lenin realmente seriam tão democráticos e francos como vocês são e isso, obviamente, é um elogio e reconhecimento sincero da minha parte a vocês.

Destaco que, se realmente há intenção de buscarmos uma estratégia racional séria para superarmos o que enfrentamos hoje, em busca do objetivo de todo movimento socialista que se preze, essa opção precisa ser construída coletivamente e isso exigirá sim críticas aos rótulos, ideologias ou propostas filosóficas as quais nos apegamos (de forma quase afetiva eu diria).

Eu, Eduardo Cambará, respondi o que segue:
Acho importante responder as questões que tu levantou não apenas pra esclarecer como penso, mas também porque são pautas permanentes da esquerda atual. Como tu bem nos conhece, sabes que não idealizamos nenhuma corrente política. Apenas temos referências. Certamente no passado já fomos adeptos daquelas práticas da "velha esquerda" que idealiza lideranças e organizações políticas. Minha defesa do bolchevismo nada tem a ver com isso. Já superei esta fase há tempos. A maneira como tu te posicionou na postagem do facebook (e depois a reafirmou nas mensagens acima) não deixam dúvidas de que tu iguala bolchevismo ao stalinismo como se fossem a mesma coisa (ou, então, para não ser injusto contigo, como quase a mesma coisa).

Para mim está claro que não é. O texto que te enviei explica isso detalhadamente e busca causas psicológicas por trás disso tudo. Achar isso nada tem a ver com uma idealização do bolchevismo, nem de Lenin e Trotski; tampouco me faz esquecer que há diferenças entre as distintas correntes políticas "trotskistas" que reivindicam o legado bolchevique (e que nestes casos apenas a prática pode nos ajudar). Pra mim, o bolchevismo é uma corrente política e uma prática militante. Como corrente política tinha uma posição clara sobre a natureza da revolução na Rússia (ou seja, diferentemente dos mencheviques, via a revolução democrático-burguesa como uma parte indissociável da construção socialista, e que apenas os trabalhadores no poder poderiam consumar tais tarefas já que a burguesia russa as tinha abandonada definitivamente; enquanto os mencheviques achavam que deveriam fortalecer a burguesia nacional e suas instituições, tornando-se uma bem comportada "oposição parlamentar-eleitoral" dentro dos moldes que hoje conhecemos). Além disso, o bolchevismo é uma prática militante profissional, de um trabalho árduo permanente, com uma organização correspondente (trabalho permanente que nos falta e te falta). Fazer uma revolução não é um jogo de sorte ou azar em que a gente acerta a palavra de ordem e aí está tudo garantido. É um hercúleo, longo e árduo trabalho permanente, de altos e baixos, pautado pelo profissionalismo.

Respondi teu post porque não acho justo a comparação. O stalinismo é a negação de tudo isso (Trotski bem o demonstrou em toda a sua obra, e basta ler, em particular, o artigo: Bolchevismo e stalinismo). Defendo o bolchevismo não como um fanático religioso, que acha que eles estão certos em tudo e que ele se aplicaria mecanicamente em todas as realidades. Não! O defendo, tal como defendo a Comuna de Paris: uma experiência em que os trabalhadores e as trabalhadoras tomaram o poder; como uma forma de aprendermos com o passado e afirmando, sem medo de ser mal compreendido, que o bolchevismo possui muito mais méritos do que deméritos. A forma como os bolcheviques tomaram o poder, a despeito de erros e possíveis excessos, é uma lição que não podemos jogar fora sob hipótese alguma ou desmerecê-la afirmando se tratar de autoritarismo stalinista.

As formas como Lenin foi pontuando as palavras de ordem e opondo-as às da burguesia e do reformismo, são lições de um método preciso que, sem dúvida, devem ser estudadas e conhecidas por todos aqueles que querem fazer uma revolução. Me parece que tu as joga fora com o medo da "contaminação" autoritária. E dizendo que Lenin e Trotski não são honestos como nós seríamos. Eu não tenho dúvida de que o eram. Podes ter certeza de que a nossa honestidade está pautada na deles. Mas não idealizamos ninguém. Como seres humanos, cometeram erros, mas não eram autoritários no sentido stalinista. Se o fossem, jamais teriam feito uma revolução, que pressupõem conquistar a confiança de centenas de milhares de trabalhadores  o que é muito diferente de apenas dominá-los pelo peso do aparato hegemônico.

Há também, profunda ignorância no trato de como os bolcheviques se relacionaram com os demais partidos socialistas nos sovietes. É uma impropriedade afirmar que defendiam partido único como princípio. Isso é uma ideia stalinista. No texto que te enviei tem um trecho que afirma o seguinte: "Mesmo no auge do processo revolucionário os bolcheviques procuraram as outras frações operárias para construir um governo em comum, como os mencheviques e os Socialistas Revolucionários (narodiniks), mesmo possuindo as mais profundas divergências políticas e programáticas. Estes deram as costas ao chamado dos bolcheviques, como atesta este trecho escrito por Trotski: 'O comitê central do nosso partido buscou uma aliança com os Socialistas Revolucionários (SRs) de esquerda. Propusemos a eles que tomasse parte na construção do governo dos sovietes. Eles hesitavam e diziam que o governo deveria ter o caráter de uma coalizão entre os partidos soviéticos. Mas os mencheviques e os SRs de direita havia rompido com o Congresso dos Sovietes porque eram defensores decididos de uma coalização com os partidos anti-soviéticos. Assim, só nos restava deixar os SRs de esquerda a tarefa de tentar trazer seus colegas de direita para o campo da revolução; porém, enquanto eles se ocupavam dessa causa sem esperança, nós nos sentíamos obrigados a assumir toda a responsabilidade pelo governo'".

Mais do que isso, parte desses partidos buscaram se aliar diretamente com a contra-revolução, tomando parte ativa nos exércitos brancos (ou pelo menos ajudando-os pela sua omissão). Infelizmente uma parte dos anarquistas cometeu o mesmo erro. Lenin atestou no artigo "Sobre o imposto em espécie", que as reivindicações de grande parte dos marinheiros do motim de Kronstadt repetiam textualmente o que o imperialismo alemão exigia (sobretudo seus banqueiros) e a sua concretização estrangularia sem dúvida o recém formado poder soviético (que lutava com inimigos por todos os lados). Os makhnivistas ucranianos não fugiam muito dessa regra, exigindo uma liberdade de atuação militar em meio a uma guerra contra 14 exércitos.

Neste luta possivelmente os bolcheviques cometeram excessos e erros, mas não são mau caráter e não mentiram; ou transformaram isso numa prática, tal como fez o stalinismo, que a usou até o final em contextos totalmente livres de guerras civis. Muito estudo histórico ainda precisa ser feito sobre o tema. E também, certamente, crítica e autocrítica. Apesar disso, não vejo os anarquistas darem nenhum passo nesse sentido, tanto na experiência da Comuna de Paris, em que foram responsáveis diretos pela não expropriação do banco da França, como na Espanha, em que as suas propostas impediram (conforme nos atesta Fernando Claudín) uma organização militar decente pra enfrentar os fascistas. Sempre com medo do "autoritarismo".

Percebo que há um grande receio por parte da esquerda (não apenas tua) de assumir uma postura firme, com medo de ser autoritário. Ou seja, teme lobos e mesmo assim pretende ir à floresta. Parece recear se contaminar com uma prática que quebre o seu "purismo" e o seu "revolucionarismo", esperando um caminho revolucionário sem contradição alguma; isto é, perfeito e exato! Os camaradas não compreendem (ou não querem compreender) a importância e o papel da direção política da classe trabalhadora. Atribuem a qualquer direção ou partido (indistintamente ao programa ou a política que defendem) o papel de “burocratizadores por natureza”. Este menosprezo à direção política, entendendo que a classe se dirige espontaneamente mesmo com distintos níveis de consciência e heterogeneidade, tende a caminhar para a desorganização política e à subordinação inconsciente às direções burguesas declaradas e não declaradas. Certos camaradas pensam que se “centralizar pela classe”, tal como ela é, representaria um antídoto contra a degeneração, o que é um grave erro. O proletariado se subdivide em vários segmentos, como vanguarda e retaguarda. Isto é um fato sociológico. Não se pode igualar a sua vanguarda com a sua retaguarda, ainda que se tenha que levar em consideração os anseios da retaguarda. 

Neste caso, se condena o bolchevismo pela ousadia de ter tomado o poder e, de quebra, se transforma esta grande experiência num crime. Ou seja, tomar o poder através de uma revolução vai colocar muito provavelmente o setor avançado da classe contra o seu setor atrasado. Poderá evitar qualquer tipo de repressão à própria classe trabalhadora? Muito provavelmente não. Afirmar que sim seria um exercício de futurologia, que desconsidera a contra-revolução e a realidade concreta. Isso não quer dizer que não tenhamos que tentar evitar isso, mas garantias exatas é impossível. Estamos lidando com seres-humanos: seres contraditórios por natureza em uma realidade permanentemente em modificação e em meio a uma sociedade dividida em classes. Renunciar a tomada do poder pela via revolucionária nos faz cair no reformismo do tipo petista, eleitoreiro e refém das instituições da democracia burguesa (ele supostamente não usa violência). Uma terceira via não existe, e dificilmente vai existir. Se tu tiver qualquer indício, por menor que seja, por favor nos demonstre...

Repara o que diz Engels acerca do debate "autoritarismo x autoridade": "os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reação".

É por tudo isso que temos que ser o mais cuidadoso possível no trato com as experiências históricas. Não tenho dúvida que condenar a Comuna de Paris ou o bolchevismo é um serviço pra burguesia contra os trabalhadores (pode ser que tu não tenha visto, ou não concorde. Não quero te ofender, porque sei da tua honestidade, mas é exatamente assim que eu vejo). Isso não significa que eu idealize religiosa e dogmaticamente o bolchevismo, Lenin e Trotski, ou quem quer que seja. Tu bem sabe o esforço que temos feito para renovar as práticas da esquerda. Não achamos que o bolchevismo possa ser aplicado mecanicamente ao Brasil ou a qualquer país do mundo fora do espaço-tempo, mas jogar fora seus ensinamentos é um erro crasso.

Por exemplo, pra nós o problema do bolchevismo ou da extinta-URSS não está na utilização do Estado ou do "autoritarismo" das armas, mas na ausência de preocupações relacionadas à psicologia de massas. Já escrevemos e falamos inúmeras vezes sobre isso: "O debate para superar a 'crise do socialismo' está muito menos no peso da 'ditadura do proletariado', no regime do terror e na sua posterior degeneração expressa nos regimes stalinistas (que tem causas bastante compreensíveis e evidentes), do que na necessidade de desenvolver a psicologia de massas do socialismo, a educação, a autonomia individual que respeite a coletividade e a individualidade dentro daquela, que combata a apatia, a repressão moral-sexual e o espírito de rebanho. Os problemas do 'socialismo' expressos no século 20 – tal como a sua degeneração em ditadura stalinista – é causa ou consequência do espírito de rebanho presente em grande parte da massa? Quem pode afirmar seguramente qual dessas duas opções é a preponderante? É justamente esta problemática que está colocada para a futura geração de revolucionários que poderá superar esta crise, e não os olhos no passado que condena as vitórias do proletariado e exalta o espontaneísmo. É saber como casar a direção política das massas com o seu espontaneísmo, sem castrá-lo ou oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás da própria cauda ou o que é ainda pior: canalizado e dirigido pela burguesia! São precisamente estas questões que a burguesia quer esconder dos trabalhadores, lançando preconceitos anti-partido, anti-organização e anti-bolchevique".

Desculpe o texto longo. Sei que preciso ser mais sucinto, mas espero que tu entenda e, principalmente, reflita sobre tudo isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário