segunda-feira, 23 de novembro de 2020

De volta à República da Bruzundanga

Faz mais de 100 anos que Lima Barreto visitou e nos apresentou a peculiar República da Bruzundanga, da qual tomou as mais variadas e curiosas notas. Motivado por sua visita, estive lá recentemente e pude constatar algumas mudanças pra pior, que registro a seguir.

Na Bruzundanga as transformações sociais se dão pela cúpula, sem a participação organizada do povo. Primeiro uma guerra civil de elite, depois uma sangrenta ditadura militar acabaram por perverter a estrutura de governo da República da Bruzundanga, embora mantendo os mesmos problemas políticos e econômicos já descritos pelo nosso ilustre conterrâneo que lá esteve em princípios do século passado. Depois da ditadura sobreveio uma breve experiência de um governo democrático-popular que desgraçadamente não alterou nenhuma das estruturas antigas do país. Ao contrário, reforçou ilusões e deu lucros estratosféricos aos bancos e ao sistema financeiro. Terminou por sofrer um golpe de Estado, que abriu caminho para o atual governo.
 
Com o passar dos anos, o antigo cargo de Mandachuva acabou por transformar-se numa respeitosa presidência da República, tal como mandam as convenções internacionais. Contudo, ainda que o presidente seja eleito por um processo mais democrático do que a 100 anos atrás, o presidente não é eleito sem uma forte campanha financiada com rios de dinheiro e sem conformar alianças excêntricas, nem governa sem o consentimento dos grandes monopólios que controlam o mercado mundial. Portanto, sua margem de governo é muito estreita — para não dizer nula.

O mais curioso foi saber que no último processo eleitoral, ocorrido em 2018, elegeram um candidato exótico, chamado Sr. Lixo. Desde quando era vereador e deputado, Lixo defendeu todo o tipo de bandalheira reacionária, medieval, dos mais variados níveis de preconceitos; exaltando qualquer entulho, podre e decadente, religioso ou político, que expressasse ódio e raiva descontrolada e incontida. Seus apoiadores são como cães adestrados, que, por se identificarem plenamente com o Lixo, repetem tudo o que ele diz e saem entoado pelas ruas da capital da Bruzundanga, Bosomsy: Lixo é mito! Lixo é mito! Lixo é mito!

Com o apoio de muitos programas "humorísticos" que passavam em horário nobre da TV aberta da Bruzundanga, terminaram por fazer esta "máxima" entrar na mente de milhões de bruzundanguenses, sobretudo na de sua juventude. Eles diziam: "Lixo combate à corrupção e vai acabar com a mamata". Mas o que se viu após a sua eleição foi justamente o contrário: o despotismo mais desavergonhado e o poder paralelo do tráfico de drogas tomar os gabinetes dos partidários do Lixo. Não apenas ficou de joelhos aos grandes latifundiários da Bruzundanga — a principal base de sustentação política do Lixo —, como permitiu que tocassem fogo nas principais reservas florestais a fim de expandirem a fronteira agrícola do país. A antiga religião Católica oficial foi cedendo espaço para as igrejas evangélicas que, na pessoa do bispo Levir Kakedo, comanda o adestramento político em massa. Expulsa de Angola, sua igreja evangélica terminou por estabelecer-se plenamente na Bruzundanga. É preciso registrar também que o sistema financeiro e os grandes oligopólios de mercado apoiam Lixo na presidência da Bruzundanga, como lhe dão respaldo, afirmando tratar-se da "escolha democrática" do povo da Bruzundanga, apesar das inúmeras denúncias de disseminação de fake news contra adversários.

Povo, aliás, que conheci de perto quando lá estive. Durante o processo eleitoral se encontrou bastante dividido, mas graças a todo apoio da estrutura econômica ao Lixo, este conserva-se no poder e ainda mantém certo apoio popular. Numa manifestação pró-Lixo pude conversar com um apoiador do presidente e ele, apesar de não gostar muito das minhas perguntas por julgar que estava colocando em dúvida a pureza do Lixo (algo que estive longe de fazer), me dizia: "Lixo é mito! Meu peito bate pelo Lixo! Estou com o Lixo e não abro! É com Lixo que vamos consertar este país!".

Não bastasse Lixo no poder, o povo ainda cultiva esperanças eleitorais de que pode mudar a Bruzundanga pra melhor na qualidade de simples público, que apenas observa tudo passivamente e sem a menor organização. Lima Barreto, quando lá esteve, escreveu o que segue sobre as eleições: "um deputado eleito sai das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase sempre não tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas ideias políticas, as suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. (...) A superstição eleitoral é uma das nossas coisas modernas que mais há de fazer rir os nossos futuros bisnetos". Penso que, lamentavelmente, desde a época em que Lima Barreto lá esteve, nada de substancial desta análise mudou. Ao contrário, se aprofundou! 

O povo da Bruzundanga regrediu da condição de "público" para a de "torcida organizada", desconfiando da sua própria organização política e abraçando Lixo ou qualquer "salvador da pátria" como uma milagrosa solução para os seus graves problemas sociais. 

Pobre povo da Bruzundanga! Espero que o próximo viajante que por aquelas bandas passar nos traga melhores notícias do que Lima Barreto e eu fomos capazes de dar.   

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