segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Zé! Nº1

Publicamos abaixo, na íntegra, a revista de literatura e poesia Zé! (nº1), criada por Paulo Moacir Farias da Silva e Cezar Dias. A revista teve dois números, sendo a primeira publicada em maio de 2011 e a segunda em janeiro de 2012. Zé! ainda tinha um blog, cujo endereço é: http://ze-digital.blogspot.com/

“Jamais esqueça as palavras que nos tornaram importantes, embora só por um momento: Nada para nós; tudo para todos”.

Subcomandante Marcos

 

Então, este é o Zé!
E é Zé! porque somos bilhões de Zés no mundo.
Somos Zés porque nos fazem de Zés, e porque deixamos que nos façam de Zés.
Mas o lado bom disso tudo é que somos Zés.
Isto é, somos simples e humildes (às vezes até demais)
e somos a maioria. Era um ideia de muito tempo.
Podemos mudar esse jogo.
Há sempre um jogo sendo jogado, não sabiam?
E estamos perdendo.
Talvez só por enquanto. Depende de nós, os Zés.
Mas não se vira um jogo somente querendo.
É preciso muito trabalho e consciência.
É preciso agir.
Então estes Zés aqui resolveram começar.
Era uma ideia de muito tempo.
É que como bons Zés demoramos a pô-la em prática.
Mas vejam só como há esperança para tudo –
aqui está o primeiro Zé.
Ele é para todos os que aprenderam a ler e leem.
É para todos que se importam e sentem.
E especialmente para aqueles que choram.
De raiva, de tristeza, de alegria – verdadeiras.
É simples e humilde como um Zé.
Mas nem por isso carece de valor.
Leia-o, por favor.
Mas se não for lê-lo, passe-o para outro.
É importante.
Só queremos espalhar um pouco de literatura e poesia.
E de indignação e raiva também.
Por que não?
Há muito a ser feito neste mundo.
Não é um trabalho que se esgota em seis dias.
Então mãos à obra.
Talvez, todos juntos, consigamos que aqueles
que constroem belas casas tenham uma também.
Que aqueles que produzem teu alimento, possam comer à vontade.
E que a sensibilidade e o cuidado com o outro não despertem apenas quando um barranco despenque no Rio, um terremoto devaste o Japão ou um desequilibrado chacine crianças numa escola.
Acho que vale tentar.
Vamos?


Defesa dos lobos contra os cordeiros

Querem que o abutre coma miosótis?
O que exigem do chacal,
do lobo, que mude de pele? Querem
que ele mesmo extraia seus dentes?
O que é que não apreciam
nos comissários políticos e nos papas,
por que olham, feito burros,
o vídeo mentiroso?

Quem costura a faixa de sangue
nas calças do general? Quem
trincha, diante do agiota, o capão?
Quem pendura, orgulhoso, a cruz de lata
sobre o umbigo que ronca de fome? Quem
aceita a propina, a moeda de prata,
o centavo para calar-se? Há
muitos roubados, poucos ladrões; quem
os aplaude, quem
lhes põe insígnias no peito, quem
é sequioso de mentiras?

Olhem-se no espelho: covardes,
temendo a fadiga da verdade,
sem vontade de aprender, entregando
o pensar aos lobos
um anel no nariz como adorno preferido,
nenhuma ilusão burra o bastante, nenhum consolo
barato o suficiente, cada chantagem
é ainda clemente demais para vocês.

Ó cordeiros, irmãs
são as gralhas comparadas a vocês:
vocês se arrancam os olhos uns aos outros.
Fraternidade reina
entre os lobos:
andam em alcateias.

Louvado sejam os salteadores: vocês
convidam ao estupro
deitando-se no leito preguiçoso

da obediência. Mesmo gemendo
vocês mentem. Querem
ser devorados. Vocês
não mudam o mundo.

Do livro “Eu falo dos que não falam”, do poeta alemão Hans Magnus Enzensberger. Ed. Brasiliense, 1985.


***

O título já é um poema.
A capa outro.
O Livro: "Um barco remenda o mar", cujo subtítulo é "Dez poetas chineses contemporâneos".
Mais que um belo trabalho, um trabalho necessário.
O melhor da China milenar sempre foi sua cultura milenar.
Eis uma boa ocasião de entrar em contato com ela.

DEVOLVAM-ME

Devolvam-me
Devolvam-me aquela porta sem fechadura
Mesmo que já não ligue a nenhum quarto, devolvam-me
Devolvam-me o galo que me acordava todas as manhãs
Mesmo que tenha sido devorado, devolvam-me os ossos
Devolvam-me o canto do pastor que soava na encosta da
montanha
Mesmo que tenha sido gravado em cassete, devolvam-me
a flauta
Devolvam-me o espaço do sexo
Mesmo que tenha sido poluído, quero o direito à proteção
do ambiente
Devolvam-me a boa relação com os meus irmãos e as
minhas irmãs
Mesmo que só tenha meio ano de vida, devolvam-me
Devolvam-me todo o globo
Mesmo que tenha sido dividido
em mil países
em cem milhões de aldeias
ainda o quero, muito.

Yan Li
(1986)


ESSA MULHER...

Queria já ter dito algo sobre esta mulher que denunciou e enfrentou os policiais assassinos no cemitério. Mas não encontrava o texto certo que queria anexar (sempre a literatura!).

Queria dizer-lhe que esse tipo de coisa, ultimamente, só tenho visto em mulheres.
De como nos faltam homens com esta coragem.
E que prestei atenção em como ela se expressou:
claramente e com firmeza.
E de como sinto falta disso nos jornalistas.
E que, por causa dela, todos nós nos tornamos um pouco melhores.
E que minha família, desde esse dia, ficou maior.

(Paulo de Quadros)


A Arte e o Tempo

Quem são meus contemporâneos? - pergunta-se Juan Gelman
Juan diz que às vezes encontra homens que têm cheiro de medo, em Buenos Aires, em Paris, ou em qualquer lugar, e sente que estes homens não são os seus contemporâneos.
Mas existe um chinês que há milhares de anos escreveu um poema, sobre um pastor de cabras que está longe, muito longe da mulher amada e mesmo assim pode escutar, no meio da noite, no meio da neve, o rumor do pente em seus cabelos.
E lendo esse poema remoto, Juan comprova que sim, que eles sim:
que esse poeta, que esse pastor e essa mulher são seus contemporâneos.

Eduardo Galeano, in O Livro dos Abraços.


PÃO & CIRCO
Há pouco tempo, num jogo de vôlei, uma torcida inteira urrou a homossexualidade de um jogador do time adversário, tentando desestabilizá-lo.
Era um jogo importante, se não estou enganado. Decisão de um título, acho.
Então é licito que se perca o respeito por um ser humano.
Que se jogue as favas a dignidade de alguém.
Que se apele ao mais reles preconceito. Tudo pelo nosso time!
Já se vem fazendo isso há muito tempo neste país.
Aqui não se luta por direitos, mata-se por futebol.
Não se range os dentes para a injustiça, mas para o adversário.
“Jornalistas” discutem seriamente um 0x0 medíocre entre jogadores medíocres.
Enquanto a violência e a falta de ética grassam nos gramados e mal noticiadas, homens feitos aguardam ansiosamente por uma copa do mundo.
E continuarão aguardando ansiosamente, no chão de uma sala de espera de um hospital.
E ansiosamente sairão à rua para trabalhar, temendo a falta de segurança.
- Não há dinheiro – dizem.
O que não há é vergonha na cara - digo eu.
Como ter esperanças?
Antônio Abujamra diz que a Esperança matou este país.
E não sei se cada povo tem o governo que merece...
(embora muitas vezes pareça que sim).
Panis et circenses...

(Paulo de Quadros)

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