quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Pré-requisitos para a democracia


I. Para muitas pessoas descontentes com os rumos da sociedade e, em particular, com o seu caráter anti-democrático, pensam que é suficiente a luta pela ampliação da democracia. Uma vez superada esta, basta estabelecer as “instâncias democráticas corretas” e tudo se resolveria por si mesmo. Por exemplo: se não existe sindicato, basta lutar por sua criação; se existem sindicatos burocratizados, basta organizá-los por local de trabalho, derrubando direções e gerentes autoritários. Se vivemos na democracia burguesa, precisamos lutar pela democracia proletária através de conselhos populares e sovietes. Tudo isso, de fato, é muito importante, embora seja apenas um primeiro passo.
A democracia, seja em que esfera ou instância for (incluso e, sobretudo, em um soviete ou em um sindicato combativo), necessita superar o formalismo e a hipocrisia social, que inevitavelmente asfixia e por fim mata qualquer esforço democrático. Para haver democracia, as relações humanas (principalmente no socialismo) precisam ser sinceras, sem falsas diplomacias. Assim, a sociedade criará as condições para uma verdadeira democracia.

II. Reparem o caso do parlamento burguês. Qualquer parlamento ao redor do mundo está inevitavelmente corroído e comprometido por relações cínicas e mentirosas, chegando ao ponto de gerar uma retórica específica, que serve, na verdade, para abafar divergências, criar novos e piores paliativos, dentre outros problemas graves de formalismo. Certamente, esta característica expressa o grau de degeneração das relações sociais sob o capitalismo. Porém, superar formalmente a estrutura política burguesa não basta. Nesta luta é preciso superar, também, suas relações hipócritas e artificiais, marcadas por um formalismo assustador. Não haverá, portanto, verdadeira democracia sem que seja possível renovar todas essas relações podendo trazer a verdade à tona, para falar o que realmente se sente e se pensa, sem que isso seja tratado como “ataques pessoais”. Numa sociedade onde mentir e dissimular é a regra, falar a verdade parece provocação. Para além de revolucionar as instituições da burguesia, é fundamental revolucionar as relações humanas, passando-as a limpo, fazendo com quê a “vida viva” se sobreponha aos formalismos burgueses e burocráticos, que geralmente escondem problemas inconscientes e inconvenientes que não deixam vir à tona.
Todos nós estamos fartos da hipocrisia dos governos e dos parlamentos burgueses. Para além da questão de exploração econômica, este é um dos motivos. Relações de exploração no campo econômico – ainda mais nas formas de contradições gritantes que adquirem na fase imperialista do capitalismo – necessitam de relações fundamentalmente hipócritas para se esconder e se perpetuar. Gerações e gerações humanas são educadas para aceitar a hipocrisia, o formalismo e a obediência, sem jamais chegar perto das questões essenciais e verdadeiras. 

III. Atualmente tornou-se comum exigir “democracia real”, mas para isso, é necessário criar as condições para a “democracia real”, trazendo para primeiro plano a necessidade de uma educação que ensine as pessoas a falar a verdade, a compreenderem seus sentimentos e a facilitar as expressões da “vida viva”; e não das convenções sociais hipócritas que apenas escondem conveniências e a vida boa de poucos. A primeira condição para reciclarmos as relações humanas é a criação de uma base material; portanto, de mudanças econômicas, em que os meios de produção, comunicação e transporte sejam de propriedade social. Então, a democracia de sua administração necessitará ser ampliada; e todos e todas devem ser convocados a administrar juntos, não apenas as empresas, a economia, mas a sociedade como um todo. Assim, a democracia será necessária em todas as esferas sociais: os sovietes (conselhos populares) são um exemplo. Não podemos ter nos sovietes um ambiente como o parlamento burguês, onde imperam as conveniências e o sorrisinho falso. Necessitaremos, então, que a verdade nua e crua seja dita quando assim a pessoa que o disser achar que deve. As pessoas que ouvirão, não poderão ser frágeis emocionalmente ao ponto de se sentirem mal ou chorar; ou, então, descambar para o ódio e as intrigas palacianas. Esta prática deve ser denunciada e extirpada pela raiz por uma nova educação social, sindical e psicológica. Caso contrário, ela não terá outro resultado que não fazer o debate democrático recuar e as questões que devem vir à luz retornarem para as profundezas.

IV. Na maioria das vezes se fala em “democracia” esquecendo o seu conteúdo de classe. Quando este erro não é cometido, erra-se pelo formalismo: se fala em “base”, em “organização pela base”; em “trabalho de base” ou em “ouvir a base”; mas se ignora totalmente as relações hipócritas que se estabelecem no cotidiano. Os trabalhadores estão, de fato, preparados para falar e ouvir a verdade? Estão isentos de toda a pressão exercida pela opinião pública burguesa, moralista e hipócrita? Exemplos concretos em alguns locais de trabalho podem ser vistos, em que, após a conquista dos espaços democráticos, muitos colegas o entendem como um local para “tirar vantagem”, pensando apenas em benefícios próprios (folgas, diminuição das demandas de trabalho, pequenas vantagens, etc.), não participando de suas reuniões para fugir do debate cara a cara, olho no olho, e dos reais problemas, evitando expor sua verdadeira opinião.

V. Democracia não significa apenas direitos, mas, também, cumprimento dos nossos deveres. Por exemplo, no caso de uma administração comum em que todos são chefes (um dos principais objetivos almejados pelo socialismo) devemos nos calar perante a cena de um colega fazendo um trabalho medíocre, cheio de erros e deficiências, enquanto afeta a nossa relação com toda a sociedade? Sabemos que uma crítica a este colega poderá ofendê-lo de distintas formas, criando um mal estar. Mas qual deve ser a nossa postura? Tornarmo-nos hipócritas em nome de uma diplomacia de amigos e colegas? É evidente que a moral socialista exige uma mudança na nossa conduta, tal como exigia Rosa Luxemburgo[i]. Devemos ser afáveis e cordiais no trato cotidiano, mas no momento das reuniões de deliberações e balanço – ou seja, nas instâncias e espaços democráticos –, devemos saber fazer a crítica justa e honesta (muitas vezes interpretada erroneamente como ataque pessoal) visando o bem comum e ao bom andamento do trabalho social, caso contrário, estaremos nos auto sabotando e/ou nos auto enganando.

VI. Nos períodos revolucionários há uma tendência ao verdadeiro self vir à tona, combatendo a hipocrisia e a dissimulação nas relações humanas, mas elas tendem a voltar nos períodos de calmaria. Fora dos períodos revolucionários (e, em alguns casos, até neles) os trabalhadores pensam na coletividade ou apenas em si mesmos? Até que ponto se pode pensar em si mesmo sem comprometer o desenvolvimento coletivo e vice-versa?

As críticas de Schopenhauer e Nietzsche à democracia: onde estão corretas e onde estão erradas?

VI. Para a democracia real é necessário que haja o exercício da humildade e a superação do orgulho individual. Nem todos os seres humanos possuem as mesmas capacidades e sentimentos. A grande preocupação de filósofos como Schopenhauer e Nietzsche em relação à democracia, onde se igualam seres desiguais, é diluir a inteligência no senso comum; os “seres extraordinários” nos ordinários; o especial no comum; o grandioso no medíocre; e assim por diante. Para isso, é necessário que a educação pública e as “autoridades” influam no sentido de dar consciência de todo o processo e procurem demonstrar que é necessário levar seriamente em consideração estes problemas (para fazer o “senso comum” tornar-se humilde, ao invés de simplesmente se submeter, procurando elevar o próprio nível).
Mais importante ainda é a memória e o balanço do que foi executado, para que se possa avançar sempre, e não andar em círculos, estagnar ou retroceder. A maioria erra frequentemente. Então temos dois caminhos: ou o de Nietzsche (em que todos devem se submeter acrítica e irrevogavelmente ao super-homem; ou seja, à aristocracia); ou, então, temos que educar a maioria para que ela possa ser exercida com segurança, sendo emocionalmente saudável e, de fato, servindo para o bem comum. E para esta “educação”, é necessário balanços, rememorações e socializar as conclusões do que foi executado (isto é, qual foi o resultado prático da opção adotada pela maioria, que se formou a partir de uma decisão e, depois, se transformou em prática?). A sinceridade de podermos olhar o universal, aquilo que nos unifica enquanto seres humanos em sociedade, é fundamental. Se continuarmos reduzindo a realidade ao individual, como benefícios pessoais e imediatos, tal como apregoa o capitalismo, então os interesses pessoais e comerciais sempre deformarão a visão do social, do real, e servirão para embaçar a real democracia.

VIII. Schopenhauer sustenta que “a aprovação de muitas vozes dos contemporâneos só pode ter pouco valor para as cabeças pensantes, pois a única coisa que elas ouvem é sempre o eco de algumas vozes que, além disso, são elas próprias um mero efeito do momento”[ii].
Nietzsche, indo no mesmo sentido, afirma que a sociedade é comandada pelos fracos, uma vez que ele considera que vivemos, de fato, em uma sociedade democrática, aonde os “sem vontade”, por serem maioria, controlam através dos mecanismos democráticos a minoria dos “super-homens” (isto é, daqueles que possuem vontade de vida). Mesmo que tal constatação cause repulsa nos autênticos socialistas, por perceberem os perigos que tal concepção abre para justificar a sociedade de classes, há que se refletir seriamente sobre tais conclusões, uma vez que apontam uma perspectiva importante que não pode ser descartadas de antemão apenas por preconceito filosófico.
Ele escreve que “desde que há homens tem havido também rebanhos humanos (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas) sempre muito obedientes relativamente ao reduzido número dos mandatários – entendo, portanto, que a obediência foi até agora mais bem e longamente praticada e cultivada entre os homens; é natural admitir-se que, de modo geral, cada um possui presentemente inata a necessidade de obedecer, como uma consciência formal que ordena: ‘tu deves absolutamente fazer tal coisa, deves absolutamente deixar de fazer tal outra coisa’, enfim, ‘tu deves’. (...) Nesse sentido, de acordo com sua intensidade, impaciência e tensão, aceitará tudo o que lhe gritam aos ouvidos qualquer dos que comandam, sejam eles pais, professores, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas. A curiosa limitação da evolução humana, o que há nela de hesitante, lento, por vezes retrógrado e tortuoso, baseia-se em que o instinto gregário da obediência é o que se transmite mais facilmente por hereditariedade, e isso à custa da arte de mandar. Supondo-se que este instinto atinja os últimos excessos, faltarão por fim os governantes e os independentes. Se não for assim, estes sofrerão intimamente de má consciência e precisarão primeiro se iludir, a fim de poderem comandar. Fingem que também eles se limitam a obedecer. Realmente, esta é a situação que existe hoje na Europa. Chamo-lhe a hipocrisia moral dos governantes. Não sabem proteger-se da sua má consciência senão fingindo serem os executores de ordens mais antigas ou superiores – dos antepassados, da constituição, do direito, das leis ou até mesmo de deus –, ou então tomando emprestadas, à maneira de pensar do rebanho, máximas de rebanho, como seja o apresentarem-se como ‘primeiros servidores do seu povo’ ou ‘instrumentos do bem comum’”[iii].

         IX. Em meio às grandes conclusões filosóficas de Nietzsche podemos encontrar os seus preconceitos aristocráticos. Seduzido totalmente pela filosofia do super-homem, dos seres predestinados a comandar justamente por sua vontade de poder, ele pensa que o instinto gregário de rebanho tende a se impor sobre estes seres, diluindo-os na massa comum. Chega ao cúmulo de dizer que eles “fingem se limitar a obedecer”, desenvolvendo uma “hipocrisia moral dos governantes”.
Não há dúvidas de que essa hipocrisia existe, mas ela não é o mero resultado da pressão dos “comuns e sem vontade”, mas das insuficiências e contradições da filosofia do super-homem[iv]. Temos que olhar o problema pela ótica dos debaixo e não dos de cima, tal como propõe Nietzsche.

X. O espírito de rebanho, que tende a aceitar “tudo o que lhe gritam aos ouvidos qualquer dos que comandam, sejam eles pais, professores, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas” é uma realidade que compromete a democracia. Enquanto não encararmos de frente este problema, não poderemos falar em democracia real, seja em que esfera for. Certamente a democracia formal dos escravocratas gregos, romanos e dos capitalistas modernos jamais precisou se colocar tais tipos de questões sobre “democracia”. A estes basta o “formalismo democrático” para se venderem como civilizados, liberais e progressistas. Porém, para a democracia socialista, combater estas distorções é questão de vida ou morte. Mesmo havendo uma base material social, como a socialização dos meios de produção e organismos democráticos como conselhos populares (do tipo soviético) de auto gestão, mas sem contar com uma educação e uma prática que levem a autonomia individual de opiniões, condutas e sentimentos dentro desses organismos, a democracia será formal e descambará, mais cedo ou mais tarde, para outros tipos de autoritarismos e formalismos.
O que se entende por autonomia individual nestes organismos? Ora, é a capacidade de pensar por conta e risco, de expor corajosamente sua opinião, mesmo que contrarie amigos e “superiores”; de estudar e ir atrás de um assunto polêmico quando o nosso conhecimento é insuficiente para podermos opinar com segurança e propriedade; é, em suma, assumir as nossas responsabilidades sociais (que em nada tem a ver com interesses pessoais mesquinhos). A forma de medir a maturidade de um organismo e uma sociedade democrática é justamente a forma de condução de sua “direção”: ela necessita “proteger-se da sua má consciência senão fingindo serem os executores de ordens mais antigas ou superiores – dos antepassados, da constituição, do direito, das leis ou até mesmo de deus –, ou então tomando emprestadas, à maneira de pensar do rebanho, máximas de rebanho”, ou pode agir livre e democraticamente, incentivando a coragem e a independência intelectual na base e preparando-se para “diluir-se” na autoridade de uma maioria que se encontrará em um nível superior deixada por ela?

XI. Por outro lado, quais são as relações humanas desenvolvidas pela nossa “cultura democrática”? Elas são livres, sinceras e verdadeiras? Elas preocupam-se em ouvir o que o outro tem a dizer honestamente ou simplesmente querem impor a sua visão de mundo? Após uma divergência séria, que redunda em agressões verbais, se busca o outro ou simplesmente continuamos tratando-o como um adversário incorrigível?
Partindo do pressuposto que “ouvir honestamente o que o outro tem a dizer”, não significa acatar oportunistamente suas posições ou não ter o direito de discordar e debater estas divergências. Ao contrário! Significa respeitá-lo, procurar sinceramente entendê-lo, para que as divergências possam ser debatidas de fato. Evidentemente que quando falamos de uma burocracia sindical, política ou empresarial é praticamente impossível esperar sinceridade em suas palavras e ações, mas apenas reprodução de dominações e sofismas. O problema, contudo, é que as suas práticas artificiais são reproduzidas por muitas correntes políticas de “esquerda” e, até mesmo, por trabalhadores independentes. Com estes últimos é necessário um esforço sincero de aproximação, inclusive para se compreender honestamente suas apreensões e construir a verdadeira unidade, que só pode ser classista, revolucionária e pela base.
No entanto, uma vez que as reais posições individuais, ou mesmo de um grupo, sejam dissimuladas por que motivo for (externo-autoritarismo ou interno-oportunismo-medo-conveniência), então teremos um arremedo de democracia, mesmo que haja uma base material socialista. Há que se educar os trabalhadores na superação do espírito de rebanho. O primeiro passo é dar-lhes consciência deste grave e sério problema. E todo aquele que, tendo consciência das consequências nefastas dele, mesmo assim age naturalmente como se não houvesse nenhum problema, está, portanto, sendo conivente com a inexistência ou a debilidade da democracia, justamente porque ela lhe beneficia de alguma forma.

XII. Quando se afirma que cada cabeça é um voto, quase sempre se esquece de perguntar qual é a qualidade do pensamento desta cabeça e, consequentemente, deste voto. Isto é: que influências sofre; quais são suas prioridades e dinâmicas emocionais?
Por exemplo: somos acostumados desde pequenos a mentir “para sermos educados” e outras tantas retóricas e práticas vazias para sufocarmos nossos impulsos, nos levando a mentir e a dissimular em nome da civilização. Como “cada cabeça” reage emocionalmente às pressões da realidade? O quanto isso, somado ao espírito de rebanho, influencia esta “cabeça” em um voto?
Francis Bacon dizia que a compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe influências da vontade e dos afetos e das emoções. Tudo isso leva esta “cabeça” a acreditar mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ela tende a rejeitar coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; as coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância ou orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do senso comum[v].
O quanto o voto desta “cabeça” descrita por Bacon não comprometerá a democracia real?

XIII. Em uma interpretação não-aristocrática do espírito de rebanho nietzschiano, que se traduz pela ausência da vontade de potência (ou de vida), um trabalhador deve pensar que sua opinião não é importante, dado que seu nível de estudo e conhecimento é muito baixo, bem como a confiança em si mesmo(a). Pensa que o melhor é se guiar por alguém com mais visão e mais experiência. De muito bom grado um burocrata sindical ouviria tal “declaração sensata”, criando as bases do seu feudo eleitoral e político.
Na contramão disso, uma organização consciente do proletariado precisa insuflar vontade de vida e de potência nos trabalhadores; isto é, desejo por dizer o que se pensa, a vontade de disputar os rumos da vida social e da sua própria vida; enfim, vontade de verdade, de fazer, praticar, ser protagonista e não mera máquina executora (o que, lamentável e inconscientemente, é sempre mais fácil). A mesma pulsão que leva o burguês a empreender, deve impulsionar o trabalhador na vida social. Equiparar essas pulsões é muito difícil, sem dúvida alguma, mas é uma necessidade.
É claro que o tipo de vontade de potência e de empreendedorismo sustentado pelo capitalismo (vontade que se baseia totalmente no egoísmo) deve ser completamente diferente da vontade de potência e de empreendedorismo nos trabalhadores em luta pela sociedade socialista. Um reflete e impulsiona os desejos individuais (aos quais bastam-se a si mesmos); o outro deve refletir os desejos sociais, coletivos; numa palavra: comunistas! (mas sem abafar totalmente os individuais)[vi].

XIV. Nietzsche certamente diria que tentar insuflar os trabalhadores é perda de tempo. Os seres humanos com vontade de potência e de vida são poucos. Mas a verdade é que, tal como dizia Wilhelm Reich e Roger Dadoun, nunca vivenciamos outra sociedade que não a autoritária. Mesmo as “sociedades democráticas” que conhecemos foram, necessariamente, autoritárias. É por isso que as organizações revolucionárias e os sindicatos combativos devem lutar, corajosamente, por criar não apenas um punhado de super-homens, mas elevar todo o “populacho” à condição de super-homem e de mulher-maravilha. Nossa tarefa não é se conformar com a diferença entre intelectuais e o povo; mas criar as condições materiais para que o povo possa se elevar ao nível dos intelectuais e os intelectuais a se aproximarem dos problemas do povo.
Nietzsche e os intelectuais burgueses dirão que isso é impossível. Os socialistas afirmam que isso é uma questão de se criar as condições materiais: acabar com a propriedade privada dos meios de produção de riqueza social, investir na elevação cultural, educacional e política de todo o povo[vii].

XV. As autoridades democráticas – sejam elas quem forem, mas, principalmente, as que se reivindicam socialistas – devem trabalhar para se diluir no surgimento de autoridades mais amplas e capacitadas para continuar o seu trabalho; ao contrário do que acontece hoje, onde se formam feudos e currais eleitorais que se convertem em novas formas de controle autoritário e anti-democrático, terminando por reforçar totalmente o espírito de rebanho. Quem defende a democracia e o socialismo tem o dever de lutar pela autonomia da suposta base que representa, no sentido de ir criando as condições para que esta assuma progressivamente o seu protagonismo. Sem essa preocupação, jamais teremos democracia real.
Sabemos que o espírito de rebanho é avesso a este protagonismo, temendo suas responsabilidades sociais, uma vez que é mais fácil seguir e obedecer do que tomar a iniciativa. Nesse sentido, é imprescindível que a futura luta por democracia e pelo socialismo venha imbuída da compreensão da necessidade de enfrentamento e superação do espírito de rebanho.

Conclusões

XVI. Em síntese, os pré-requisitos para a democracia são:
1) Observar o caráter de classe: não é possível falar em “democracia como valor universal” esquecendo que a sociedade possui classes e, consequentemente, a democracia possui caráter de classe (democracia escravista e burguesa). Não basta nos contentarmos com aquele discurso cínico de que hoje “podemos falar o que pensamos”. A questão que deve ser levantada é: podemos falar o que pensamos no nosso local de trabalho sem sermos retaliados ou demitidos?
Enquanto a sociedade for dividida em classes e, portanto, houver exploração, é impensável falar em democracia; senão como um formalismo hipócrita em que a democracia é apenas de poucos para poucos com a finalidade de manter a ordem social de exploração e opressão. Isso não significa menosprezar as liberdades da democracia burguesa, mas jamais transformá-la em um fim em si mesmo, como faz o reformismo e o petismo.
2) Garantir as instâncias e os espaços corretos para que todos os setores oprimidos da sociedade possam se expressar (conselhos populares, organização democrática por local de trabalho, sindicatos organizados pela base, governo revolucionário socialista, etc.). De nada adiantarão estes espaços e instâncias se não houver um esforço sincero para que a massa trabalhadora vá superando suas concepções individualistas, imediatistas, egoístas, que levem a colocá-la as questões de ganho pessoal sobre o coletivo; fato que acontece hoje e se expressa no espírito de rebanho e no corporativismo. A luta salarial, as vantagens individuais, as preocupações enfáticas que levam alguns a propor a deflagração de uma greve somente porque os atinge, mas calam quando se trata de outros problemas que atingiam parte de sua própria categoria profissional sem lhes fazer mal diretamente, necessita obrigatoriamente ser superado junto com as relações hipócritas que estabelecemos por trás de linguagens e condutas viciadas.
3) A democracia deve ser vista como um processo. Ou seja, algo permanentemente em movimento, que se critica e autocritica entre situação e oposição, num processo que não se encerra nunca e que seja capaz de criar uma nova cultura democrática. Tal como andar de bicicleta, que necessita do movimento para nos manter na vertical, já que parar significa cair, a democracia necessita ser um movimento permanente. O encerramento deste processo leva ao seu fim; isto é, a sua morte. É evidente que situação e oposição devem andar numa espiral ascendente, sempre elevando o nível em todos os sentidos e jamais regredindo. Este processo precisa criar uma nova cultura que impulsione a democracia socialista. Segundo Amílcar Cabral, são os atores sociais que, por meio de suas práticas de relação com a sociedade, produzem a cultura. Esta, entendida como um conjunto de representações, valores e normas coletivas, funciona como um “sistema de modelos de práticas”, como “organizadores de ações sociais”, no sentido de ser “um patrimônio específico de modos de fazer, mantido por uma ética e valorizado em função de um projeto de sociedade com contornos mais ou menos definidos”.  Por esse motivo a cultura exerce um papel fundamental no processo de transição de uma fase revolucionária àquela de construção de novas relações sociais[viii].
4) Mudar as direções burocráticas, sejam elas políticas ou sindicais. Para uma democracia real é fundamental uma direção revolucionária que combata o burocratismo e organize a sua base por local de trabalho, estudo ou moradia no sentido do combate ao espírito de rebanho. Isso só pode ser feito conscientemente e deve se refletir na sua prática política e na formação teórica. Um programa político deve ser desenvolvido nesse sentido. Uma vez que esse pré-requisito seja compreendido e praticado, metade do problema será resolvido.
5) Nos espaços democráticos, como as instâncias sindicais, laborais e governamentais, é imprescindível mudar a cultura de escondermos o que realmente pensamos em nome de uma “diplomacia de amigos”, que finge não ver o erro para continuar mantendo as “boas relações de trabalho e de coleguismo”. É preciso superar as fragilidades emocionais, educar todos e todas para que possamos dizer e ouvir o que realmente se pensa. Se escondemos o que pensamos seja lá com que desculpas for, alguém virá e falará no nosso lugar, o que gerará inevitavelmente distorções e autoritarismos ou, finalmente, o naufrágio no desânimo niilista de que nada funciona. Por isso devemos zelar por relações mais honestas, sinceras e autônomas, doa a quem doer...



NOTAS


[i] No seu texto A socialização da sociedade, Rosa Luxemburgo diz que “Com homens preguiçosos, levianos, egoístas, irrefletidos e indiferentes não se pode realizar o socialismo. A sociedade socialista precisa de homens que estejam, cada um em seu lugar, cheios de paixão e entusiasmo pelo bem estar coletivo, totalmente dispostos ao sacrifício e cheios de compaixão pelo próximo, cheios de coragem e tenacidade para ousarem o mais difícil”.
[ii] SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Editora da Folha de S. Paulo, São Paulo, 2015.
[iii] NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Martin Claret, São Paulo, 2008 (página 112).
[iv] Insuficiências e contradições estas já analisadas em detalhe no artigo O crepúsculo de Nietzsche, disponível em: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/08/o-crepusculo-de-nietzsche_13.html
[v] Adaptado de BACON, Francis. Novum organum (1620).
[viii] Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo; de VILLEN, Patrícia. Expressão Popular, São Paulo, 2013 (página 199 e 200).

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