I.
Para muitas pessoas descontentes com os rumos da sociedade e, em particular,
com o seu caráter anti-democrático, pensam que é suficiente a luta pela
ampliação da democracia. Uma vez superada esta, basta estabelecer as
“instâncias democráticas corretas” e tudo se resolveria por si mesmo. Por
exemplo: se não existe sindicato, basta lutar por sua criação; se existem sindicatos
burocratizados, basta organizá-los por local de trabalho, derrubando direções e
gerentes autoritários. Se vivemos na democracia burguesa, precisamos lutar pela
democracia proletária através de conselhos populares e sovietes. Tudo isso, de
fato, é muito importante, embora seja apenas um primeiro passo.
A democracia, seja em que esfera ou
instância for (incluso e, sobretudo, em um soviete ou em um sindicato combativo),
necessita superar o formalismo e a hipocrisia social, que inevitavelmente
asfixia e por fim mata qualquer esforço democrático. Para haver democracia, as
relações humanas (principalmente no socialismo) precisam ser sinceras, sem
falsas diplomacias. Assim, a sociedade criará as condições para uma verdadeira democracia.
II.
Reparem o caso do parlamento burguês. Qualquer parlamento ao redor do mundo
está inevitavelmente corroído e comprometido por relações cínicas e mentirosas,
chegando ao ponto de gerar uma retórica específica, que serve, na verdade, para
abafar divergências, criar novos e piores paliativos, dentre outros problemas
graves de formalismo. Certamente, esta característica expressa o grau de
degeneração das relações sociais sob o capitalismo. Porém, superar formalmente
a estrutura política burguesa não basta. Nesta luta é preciso superar, também,
suas relações hipócritas e artificiais, marcadas por um formalismo assustador.
Não haverá, portanto, verdadeira democracia sem que seja possível renovar todas
essas relações podendo trazer a verdade à tona, para falar o que realmente se
sente e se pensa, sem que isso seja tratado como “ataques pessoais”. Numa
sociedade onde mentir e dissimular é a regra, falar a verdade parece
provocação. Para além de revolucionar as instituições da burguesia, é
fundamental revolucionar as relações humanas, passando-as a limpo, fazendo com
quê a “vida viva” se sobreponha aos formalismos burgueses e burocráticos, que
geralmente escondem problemas inconscientes e inconvenientes que não deixam vir
à tona.
Todos nós estamos fartos da hipocrisia dos governos e dos
parlamentos burgueses. Para além da questão de exploração econômica, este é um
dos motivos. Relações de exploração no campo econômico – ainda mais nas formas
de contradições gritantes que adquirem na fase imperialista do capitalismo – necessitam
de relações fundamentalmente hipócritas para se esconder e se perpetuar.
Gerações e gerações humanas são educadas para aceitar a hipocrisia, o
formalismo e a obediência, sem jamais chegar perto das questões essenciais e
verdadeiras.
III.
Atualmente
tornou-se comum exigir “democracia real”, mas para isso, é necessário criar as
condições para a “democracia real”, trazendo para primeiro plano a necessidade
de uma educação que ensine as pessoas a falar a verdade, a compreenderem seus sentimentos e a facilitar as expressões da “vida
viva”; e não das convenções sociais hipócritas que apenas escondem
conveniências e a vida boa de poucos. A primeira condição para reciclarmos as
relações humanas é a criação de uma base material; portanto, de mudanças econômicas,
em que os meios de produção, comunicação e transporte sejam de propriedade
social. Então, a democracia de sua administração necessitará ser ampliada; e
todos e todas devem ser convocados a administrar juntos, não apenas as
empresas, a economia, mas a sociedade como um todo. Assim, a democracia será
necessária em todas as esferas sociais: os sovietes (conselhos populares) são
um exemplo. Não podemos ter nos sovietes um ambiente como o parlamento burguês,
onde imperam as conveniências e o sorrisinho falso. Necessitaremos, então, que
a verdade nua e crua seja dita quando assim a pessoa que o disser achar que
deve. As pessoas que ouvirão, não poderão ser frágeis emocionalmente ao ponto
de se sentirem mal ou chorar; ou, então, descambar para o ódio e as intrigas
palacianas. Esta prática deve ser denunciada e extirpada pela raiz por uma nova
educação social, sindical e psicológica. Caso contrário, ela não terá outro
resultado que não fazer o debate democrático recuar e as questões que devem vir
à luz retornarem para as profundezas.
IV.
Na maioria das vezes se fala em “democracia” esquecendo o seu conteúdo de classe. Quando este erro não é
cometido, erra-se pelo formalismo: se fala em “base”, em “organização pela
base”; em “trabalho de base” ou em “ouvir a base”; mas se ignora totalmente as
relações hipócritas que se estabelecem no cotidiano. Os trabalhadores estão, de
fato, preparados para falar e ouvir a verdade? Estão isentos de toda a pressão
exercida pela opinião pública burguesa, moralista e hipócrita? Exemplos
concretos em alguns locais de trabalho podem ser vistos, em que, após a
conquista dos espaços democráticos, muitos colegas o entendem como um local
para “tirar vantagem”, pensando apenas em benefícios próprios (folgas,
diminuição das demandas de trabalho, pequenas vantagens, etc.), não
participando de suas reuniões para fugir do debate cara a cara, olho no olho, e
dos reais problemas, evitando expor sua verdadeira opinião.
V.
Democracia não significa apenas direitos, mas, também, cumprimento dos nossos
deveres. Por exemplo, no caso de uma administração comum em que todos são
chefes (um dos principais objetivos almejados pelo socialismo) devemos nos
calar perante a cena de um colega fazendo um trabalho medíocre, cheio de erros
e deficiências, enquanto afeta a nossa relação com toda a sociedade? Sabemos
que uma crítica a este colega poderá ofendê-lo de distintas formas, criando um
mal estar. Mas qual deve ser a nossa postura? Tornarmo-nos hipócritas em nome
de uma diplomacia de amigos e colegas? É evidente que a moral socialista exige
uma mudança na nossa conduta, tal como exigia Rosa Luxemburgo[i].
Devemos ser afáveis e cordiais no trato cotidiano, mas no momento das reuniões
de deliberações e balanço – ou seja, nas instâncias e espaços democráticos –,
devemos saber fazer a crítica justa e honesta (muitas vezes interpretada erroneamente como ataque pessoal) visando o bem comum e ao bom andamento do trabalho social, caso contrário,
estaremos nos auto sabotando e/ou nos auto enganando.
VI.
Nos períodos revolucionários há uma tendência ao verdadeiro self vir à tona, combatendo a hipocrisia
e a dissimulação nas relações humanas, mas elas tendem a voltar nos períodos de
calmaria. Fora dos períodos revolucionários (e, em alguns casos, até neles) os
trabalhadores pensam na coletividade ou apenas em si mesmos? Até que ponto se
pode pensar em si mesmo sem comprometer o desenvolvimento coletivo e vice-versa?
As críticas de
Schopenhauer e Nietzsche à democracia: onde estão corretas e onde estão erradas?
VI.
Para a democracia real é necessário que haja o exercício da humildade e a
superação do orgulho individual. Nem todos os seres humanos possuem as mesmas
capacidades e sentimentos. A grande preocupação de filósofos como Schopenhauer
e Nietzsche em relação à democracia, onde se igualam seres desiguais, é diluir
a inteligência no senso comum; os “seres extraordinários” nos ordinários; o
especial no comum; o grandioso no medíocre; e assim por diante. Para isso, é
necessário que a educação pública e as “autoridades” influam no sentido de dar
consciência de todo o processo e procurem demonstrar que é necessário levar
seriamente em consideração estes problemas (para fazer o “senso comum”
tornar-se humilde, ao invés de simplesmente
se submeter, procurando elevar o próprio nível).
Mais importante ainda é a memória e o balanço do que foi executado, para que se possa avançar sempre, e
não andar em círculos, estagnar ou retroceder. A maioria erra frequentemente.
Então temos dois caminhos: ou o de Nietzsche (em que todos devem se submeter
acrítica e irrevogavelmente ao super-homem; ou seja, à aristocracia); ou,
então, temos que educar a maioria para que ela possa ser exercida com segurança,
sendo emocionalmente saudável e, de fato, servindo para o bem comum. E para
esta “educação”, é necessário balanços, rememorações e socializar as conclusões
do que foi executado (isto é, qual foi o resultado prático da opção adotada
pela maioria, que se formou a partir de uma decisão e, depois, se transformou
em prática?). A sinceridade de podermos olhar o universal, aquilo que nos unifica
enquanto seres humanos em sociedade, é fundamental. Se continuarmos reduzindo a
realidade ao individual, como benefícios pessoais e imediatos, tal como apregoa
o capitalismo, então os interesses pessoais e comerciais sempre deformarão a
visão do social, do real, e servirão para embaçar a real democracia.
VIII.
Schopenhauer sustenta que “a aprovação de
muitas vozes dos contemporâneos só pode ter pouco valor para as cabeças
pensantes, pois a única coisa que elas ouvem é sempre o eco de algumas vozes
que, além disso, são elas próprias um mero efeito do momento”[ii].
Nietzsche, indo no mesmo sentido, afirma
que a sociedade é comandada pelos fracos, uma vez que ele considera que
vivemos, de fato, em uma sociedade democrática, aonde os “sem vontade”, por
serem maioria, controlam através dos mecanismos democráticos a minoria dos
“super-homens” (isto é, daqueles que possuem vontade de vida). Mesmo que tal
constatação cause repulsa nos autênticos socialistas, por perceberem os perigos
que tal concepção abre para justificar a sociedade de classes, há que se
refletir seriamente sobre tais conclusões, uma vez que apontam uma perspectiva
importante que não pode ser descartadas de antemão apenas por preconceito
filosófico.
Ele escreve que “desde que há homens tem havido também rebanhos humanos (clãs,
comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas) sempre muito obedientes
relativamente ao reduzido número dos mandatários – entendo, portanto, que a
obediência foi até agora mais bem e longamente praticada e cultivada entre os
homens; é natural admitir-se que, de modo geral, cada um possui presentemente
inata a necessidade de obedecer, como uma consciência formal que ordena: ‘tu
deves absolutamente fazer tal coisa, deves absolutamente deixar de fazer tal
outra coisa’, enfim, ‘tu deves’. (...) Nesse
sentido, de acordo com sua intensidade, impaciência e tensão, aceitará tudo o
que lhe gritam aos ouvidos qualquer dos que comandam, sejam eles pais,
professores, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas. A curiosa
limitação da evolução humana, o que há nela de hesitante, lento, por vezes
retrógrado e tortuoso, baseia-se em que o instinto gregário da obediência é o
que se transmite mais facilmente por hereditariedade, e isso à custa da arte de
mandar. Supondo-se que este instinto atinja os últimos excessos, faltarão por
fim os governantes e os independentes. Se não for assim, estes sofrerão
intimamente de má consciência e precisarão primeiro se iludir, a fim de poderem
comandar. Fingem que também eles se limitam a obedecer. Realmente, esta é a
situação que existe hoje na Europa. Chamo-lhe a hipocrisia moral dos
governantes. Não sabem proteger-se da sua má consciência senão fingindo serem
os executores de ordens mais antigas ou superiores – dos antepassados, da
constituição, do direito, das leis ou até mesmo de deus –, ou então tomando
emprestadas, à maneira de pensar do rebanho, máximas de rebanho, como seja o
apresentarem-se como ‘primeiros servidores do seu povo’ ou ‘instrumentos do bem
comum’”[iii].
IX.
Em meio às grandes conclusões filosóficas de Nietzsche podemos encontrar os
seus preconceitos aristocráticos. Seduzido totalmente pela filosofia do super-homem, dos seres predestinados a
comandar justamente por sua vontade de poder, ele pensa que o instinto gregário
de rebanho tende a se impor sobre estes seres, diluindo-os na massa comum.
Chega ao cúmulo de dizer que eles “fingem se limitar a obedecer”, desenvolvendo
uma “hipocrisia moral dos governantes”.
Não há dúvidas de que essa hipocrisia
existe, mas ela não é o mero resultado da pressão dos “comuns e sem vontade”,
mas das insuficiências e contradições da filosofia do super-homem[iv].
Temos que olhar o problema pela ótica dos debaixo e não dos de cima, tal como
propõe Nietzsche.
X.
O espírito de rebanho, que tende a aceitar “tudo
o que lhe gritam aos ouvidos qualquer dos que comandam, sejam eles pais,
professores, leis, preconceitos de classe, opiniões públicas” é uma
realidade que compromete a democracia. Enquanto não encararmos de frente este
problema, não poderemos falar em democracia real, seja em que esfera for.
Certamente a democracia formal dos escravocratas gregos, romanos e dos
capitalistas modernos jamais precisou se colocar tais tipos de questões sobre
“democracia”. A estes basta o “formalismo democrático” para se venderem como
civilizados, liberais e progressistas. Porém, para a democracia socialista,
combater estas distorções é questão de
vida ou morte. Mesmo havendo uma base material social, como a socialização
dos meios de produção e organismos democráticos como conselhos populares (do
tipo soviético) de auto gestão, mas sem contar com uma educação e uma prática
que levem a autonomia individual de opiniões, condutas e sentimentos dentro
desses organismos, a democracia será formal e descambará, mais cedo ou mais
tarde, para outros tipos de autoritarismos e formalismos.
O que se entende por autonomia
individual nestes organismos? Ora, é a capacidade de pensar por conta e risco,
de expor corajosamente sua opinião, mesmo que contrarie amigos e “superiores”;
de estudar e ir atrás de um assunto polêmico quando o nosso conhecimento é
insuficiente para podermos opinar com segurança e propriedade; é, em suma,
assumir as nossas responsabilidades
sociais (que em nada tem a ver com interesses pessoais mesquinhos). A forma
de medir a maturidade de um organismo e uma sociedade democrática é justamente
a forma de condução de sua “direção”: ela necessita “proteger-se da sua má consciência senão fingindo serem os executores
de ordens mais antigas ou superiores – dos antepassados, da constituição, do
direito, das leis ou até mesmo de deus –, ou então tomando emprestadas, à
maneira de pensar do rebanho, máximas de rebanho”, ou pode agir livre e
democraticamente, incentivando a coragem e a independência intelectual na base
e preparando-se para “diluir-se” na autoridade de uma maioria que se encontrará
em um nível superior deixada por ela?
XI.
Por outro lado, quais são as relações humanas desenvolvidas pela nossa “cultura
democrática”? Elas são livres, sinceras e verdadeiras? Elas preocupam-se em
ouvir o que o outro tem a dizer honestamente ou simplesmente querem impor a sua
visão de mundo? Após uma divergência séria, que redunda em agressões verbais,
se busca o outro ou simplesmente continuamos tratando-o como um adversário
incorrigível?
Partindo do pressuposto que “ouvir
honestamente o que o outro tem a dizer”, não significa acatar oportunistamente
suas posições ou não ter o direito de discordar e debater estas divergências. Ao
contrário! Significa respeitá-lo, procurar sinceramente entendê-lo, para que as
divergências possam ser debatidas de fato. Evidentemente que quando falamos de
uma burocracia sindical, política ou empresarial é praticamente impossível
esperar sinceridade em suas palavras e ações, mas apenas reprodução de
dominações e sofismas. O problema, contudo, é que as suas práticas artificiais
são reproduzidas por muitas correntes políticas de “esquerda” e, até mesmo, por
trabalhadores independentes. Com estes últimos é necessário um esforço sincero
de aproximação, inclusive para se compreender honestamente suas apreensões e
construir a verdadeira unidade, que
só pode ser classista, revolucionária e pela
base.
No entanto, uma vez que as reais
posições individuais, ou mesmo de um grupo, sejam dissimuladas por que motivo
for (externo-autoritarismo ou interno-oportunismo-medo-conveniência),
então teremos um arremedo de democracia, mesmo
que haja uma base material socialista. Há que se educar os trabalhadores na
superação do espírito de rebanho. O primeiro passo é dar-lhes consciência deste
grave e sério problema. E todo aquele que, tendo consciência das consequências
nefastas dele, mesmo assim age naturalmente como se não houvesse nenhum
problema, está, portanto, sendo conivente com a inexistência ou a debilidade da
democracia, justamente porque ela lhe beneficia de alguma forma.
XII.
Quando se afirma que cada cabeça é um voto, quase sempre se esquece de
perguntar qual é a qualidade do pensamento desta cabeça e, consequentemente,
deste voto. Isto é: que influências sofre; quais são suas prioridades e dinâmicas
emocionais?
Por exemplo: somos acostumados desde
pequenos a mentir “para sermos educados” e outras tantas retóricas e práticas
vazias para sufocarmos nossos impulsos, nos levando a mentir e a dissimular em
nome da civilização. Como “cada cabeça” reage emocionalmente às pressões da
realidade? O quanto isso, somado ao espírito de rebanho, influencia esta
“cabeça” em um voto?
Francis Bacon dizia que a compreensão
humana não é um exame desinteressado, mas recebe influências da vontade e dos
afetos e das emoções. Tudo isso leva esta “cabeça” a acreditar mais facilmente
no que gostaria que fosse verdade. Assim, ela tende a rejeitar coisas difíceis
pela impaciência de pesquisar; as coisas sensatas, porque diminuem a esperança;
as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência,
por arrogância ou orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência
à opinião do senso comum[v].
O quanto o voto desta “cabeça” descrita
por Bacon não comprometerá a democracia real?
XIII.
Em uma interpretação não-aristocrática do espírito de rebanho nietzschiano, que
se traduz pela ausência da vontade de potência (ou de vida), um trabalhador
deve pensar que sua opinião não é importante, dado que seu nível de estudo e
conhecimento é muito baixo, bem como a confiança em si mesmo(a). Pensa que o
melhor é se guiar por alguém com mais visão e mais experiência. De muito bom
grado um burocrata sindical ouviria tal “declaração sensata”, criando as bases
do seu feudo eleitoral e político.
Na contramão disso, uma organização
consciente do proletariado precisa insuflar vontade
de vida e de potência nos
trabalhadores; isto é, desejo por dizer o que se pensa, a vontade de disputar
os rumos da vida social e da sua própria vida; enfim, vontade de verdade, de fazer,
praticar, ser protagonista e não mera
máquina executora (o que, lamentável e inconscientemente, é sempre mais fácil).
A mesma pulsão que leva o burguês a empreender, deve impulsionar o trabalhador
na vida social. Equiparar essas pulsões é muito difícil, sem dúvida alguma, mas
é uma necessidade.
É claro que o tipo de vontade de potência e de empreendedorismo sustentado pelo
capitalismo (vontade que se baseia totalmente no egoísmo) deve ser
completamente diferente da vontade de potência e de empreendedorismo nos trabalhadores
em luta pela sociedade socialista. Um reflete e impulsiona os desejos
individuais (aos quais bastam-se a si mesmos); o outro deve refletir os desejos
sociais, coletivos; numa palavra: comunistas!
(mas sem abafar totalmente os individuais)[vi].
XIV.
Nietzsche certamente diria que tentar insuflar os trabalhadores é perda de
tempo. Os seres humanos com vontade de potência e de vida são poucos. Mas a verdade é
que, tal como dizia Wilhelm Reich e Roger Dadoun, nunca vivenciamos outra
sociedade que não a autoritária. Mesmo as “sociedades democráticas” que
conhecemos foram, necessariamente, autoritárias. É por isso que as organizações
revolucionárias e os sindicatos combativos devem lutar, corajosamente, por criar
não apenas um punhado de super-homens, mas elevar todo o “populacho” à condição
de super-homem e de mulher-maravilha. Nossa tarefa não é se
conformar com a diferença entre intelectuais e o povo; mas criar as condições
materiais para que o povo possa se elevar ao nível dos intelectuais e os
intelectuais a se aproximarem dos problemas do povo.
Nietzsche e os intelectuais burgueses
dirão que isso é impossível. Os socialistas afirmam que isso é uma questão de
se criar as condições materiais: acabar com a propriedade privada dos meios de
produção de riqueza social, investir na elevação cultural, educacional e
política de todo o povo[vii].
XV.
As autoridades democráticas – sejam elas quem forem, mas, principalmente, as
que se reivindicam socialistas – devem trabalhar para se diluir no surgimento
de autoridades mais amplas e capacitadas para continuar o seu trabalho; ao
contrário do que acontece hoje, onde se formam feudos e currais eleitorais que
se convertem em novas formas de controle autoritário e anti-democrático,
terminando por reforçar totalmente o espírito de rebanho. Quem defende a
democracia e o socialismo tem o dever de lutar pela autonomia da suposta base
que representa, no sentido de ir criando as condições para que esta assuma
progressivamente o seu protagonismo. Sem essa preocupação, jamais teremos democracia real.
Sabemos que o espírito de rebanho é
avesso a este protagonismo, temendo suas responsabilidades sociais, uma vez que
é mais fácil seguir e obedecer do que tomar a iniciativa. Nesse sentido, é
imprescindível que a futura luta por democracia e pelo socialismo venha imbuída
da compreensão da necessidade de enfrentamento e superação do espírito de rebanho.
Conclusões
XVI. Em síntese, os pré-requisitos para
a democracia são:
1) Observar o caráter de classe: não é
possível falar em “democracia como valor universal” esquecendo que a sociedade
possui classes e, consequentemente, a democracia possui caráter de classe
(democracia escravista e burguesa). Não basta nos contentarmos com aquele
discurso cínico de que hoje “podemos falar o que pensamos”. A questão que deve
ser levantada é: podemos falar o que pensamos no nosso local de trabalho sem
sermos retaliados ou demitidos?
Enquanto a sociedade for dividida em
classes e, portanto, houver exploração, é impensável falar em democracia; senão
como um formalismo hipócrita em que a democracia é apenas de poucos para poucos
com a finalidade de manter a ordem social de exploração e opressão. Isso não
significa menosprezar as liberdades da democracia burguesa, mas jamais
transformá-la em um fim em si mesmo, como faz o reformismo e o petismo.
2) Garantir as instâncias e os espaços
corretos para que todos os setores oprimidos da sociedade possam se expressar
(conselhos populares, organização democrática por local de trabalho, sindicatos
organizados pela base, governo revolucionário socialista, etc.). De nada
adiantarão estes espaços e instâncias se não houver um esforço sincero para que
a massa trabalhadora vá superando suas concepções individualistas,
imediatistas, egoístas, que levem a colocá-la as questões de ganho pessoal
sobre o coletivo; fato que acontece hoje e se expressa no espírito de rebanho e
no corporativismo. A luta salarial, as vantagens individuais, as preocupações
enfáticas que levam alguns a propor a deflagração de uma greve somente porque
os atinge, mas calam quando se trata de outros problemas que atingiam parte de
sua própria categoria profissional sem lhes fazer mal diretamente, necessita
obrigatoriamente ser superado junto com as relações hipócritas que
estabelecemos por trás de linguagens e condutas viciadas.
3) A democracia deve ser vista como um processo. Ou seja, algo
permanentemente em movimento, que se critica e autocritica entre situação e
oposição, num processo que não se encerra nunca e que seja capaz de criar uma nova cultura democrática. Tal como andar
de bicicleta, que necessita do movimento para nos manter na vertical, já que parar
significa cair, a democracia necessita ser um movimento permanente. O encerramento deste processo leva ao seu
fim; isto é, a sua morte. É evidente que situação e oposição devem andar numa
espiral ascendente, sempre elevando o nível em todos os sentidos e jamais
regredindo. Este processo precisa
criar uma nova cultura que impulsione
a democracia socialista. Segundo Amílcar Cabral, são os atores sociais que, por
meio de suas práticas de relação com a sociedade, produzem a cultura. Esta,
entendida como um conjunto de representações, valores e normas coletivas,
funciona como um “sistema de modelos de
práticas”, como “organizadores de
ações sociais”, no sentido de ser “um
patrimônio específico de modos de fazer, mantido por uma ética e valorizado em
função de um projeto de sociedade com contornos mais ou menos definidos”. Por esse motivo a cultura exerce um papel
fundamental no processo de transição de uma fase revolucionária àquela de
construção de novas relações sociais[viii].
4) Mudar as direções burocráticas, sejam
elas políticas ou sindicais. Para uma democracia real é fundamental uma direção revolucionária que combata o
burocratismo e organize a sua base por local de trabalho, estudo ou moradia no
sentido do combate ao espírito de rebanho. Isso só pode ser feito
conscientemente e deve se refletir na sua prática política e na formação
teórica. Um programa político deve ser desenvolvido nesse sentido. Uma vez que
esse pré-requisito seja compreendido e praticado, metade do problema será
resolvido.
5) Nos espaços democráticos, como as instâncias
sindicais, laborais e governamentais, é imprescindível mudar a cultura de
escondermos o que realmente pensamos em nome de uma “diplomacia de amigos”, que
finge não ver o erro para continuar mantendo as “boas relações de trabalho e de
coleguismo”. É preciso superar as fragilidades emocionais, educar todos e todas
para que possamos dizer e ouvir o que realmente se pensa. Se escondemos o que
pensamos seja lá com que desculpas for, alguém virá e falará no nosso lugar, o
que gerará inevitavelmente distorções e autoritarismos ou, finalmente, o
naufrágio no desânimo niilista de que nada funciona. Por isso devemos zelar por
relações mais honestas, sinceras e autônomas, doa a quem doer...
NOTAS
[i]
No seu texto A socialização da sociedade,
Rosa Luxemburgo diz que “Com homens
preguiçosos, levianos, egoístas, irrefletidos e indiferentes não se pode
realizar o socialismo. A sociedade socialista precisa de homens que estejam,
cada um em seu lugar, cheios de paixão e entusiasmo pelo bem estar coletivo,
totalmente dispostos ao sacrifício e cheios de compaixão pelo próximo, cheios
de coragem e tenacidade para ousarem o mais difícil”.
[ii]
SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Editora da Folha de S.
Paulo, São Paulo, 2015.
[iii]
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e
do mal. Martin Claret, São Paulo, 2008 (página 112).
[iv]
Insuficiências e contradições estas já analisadas em detalhe no artigo O crepúsculo de Nietzsche, disponível em:
http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/08/o-crepusculo-de-nietzsche_13.html
[v]
Adaptado de BACON, Francis. Novum organum (1620).
[viii]
Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo; de VILLEN, Patrícia. Expressão
Popular, São Paulo, 2013 (página 199 e 200).
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