sábado, 6 de julho de 2019

John Locke e os "liberais" da atualidade


A direita brasileira faz um uso indiscriminado do termo “liberalismo”, distorcendo ou falsificando seu real significado histórico. Esconde-se atrás de jargões velhos e caducos para defender as posições mais atrasadas, embora o liberalismo tenha sido em sua época extremamente progressivo. Por isso, é importante resgatar e refletir sobre o pensamento de John Locke, que foi um dos responsáveis por desenvolvê-lo. Sem compreender efetivamente o que representou o iluminismo e o liberalismo econômico, não é possível superar esta maçaroca ideológica feita pela elite nacional com a finalidade de defender os seus privilégios imorais.

John Locke (1632-1704)
        John Locke foi um dos precursores do iluminismo filosófico e do liberalismo. Suas contribuições no campo da filosofia, da economia e da política são parte fundamental da luta contra o absolutismo monárquico, o que teve papel de alavanca para o desenvolvimento do capitalismo. É exatamente o resultado da experiência com a Revolução Inglesa do século XVII. Foi a prosperidade econômica da burguesia inglesa daquela época que tencionou pela revolução social e obrigou os pensadores da época – como Locke – a tirar conclusões. Ao contrário dos “liberais” atuais, que falam em liberalismo para esconder as contradições e o esgotamento do capitalismo.

Política, economia, propriedade e exploração
         Remetendo ao estilo daquele período, com suas preocupações estilísticas e filosóficas características (muitas delas também presente na obra de Thomas Hobbes), John Locke inicia o seu Segundo tratado sobre o governo analisando os motivos que levam os seres humanos a se organizarem em sociedade, partindo do estado de natureza e concluindo que “por poder político” entende “o direito de elaborar leis, incluindo a pena de morte e portanto as demais penalidades menores, no intuito de regular e conservar a propriedade, e de utilizar a força da comunidade para garantir a execução de tais leis e para protegê-la de ofensas externas. E tudo visando só ao bem da comunidade”[i].
         Uma de suas principais preocupações girou em torno da legitimação de um poder legislativo como “supremo”, que deveria ter a finalidade de limitar os poderes do rei e de garantir para si o direito exclusivo na elaboração das leis. Nesse sentido, tal como Rousseau e Montesquieu, é um dos precursores do Estado moderno e um dos patriarcas das instituições da democracia burguesa. Nesta luta ideológica contra o absolutismo monárquico, Locke dá importância fundamental ao “direito à propriedade” que era constantemente ameaçada pelo poder real, dentre outros. Ele se deu conta bem cedo (ainda que não tenha podido tirar todas as conclusões) da importância da propriedade para sustentar o poder burguês, o que criava as condições para a independência econômica, política e intelectual de sua classe. Por isso, Locke tenta naturalizá-la: “a razão básica que leva os homens a se juntarem em sociedade é a preservação da propriedade”[ii].
         Nesta defesa da propriedade privada dá passos decisivos na elaboração da sua visão social. Se aproximando das noções econômicas contemporâneas, Locke sustenta que “é o trabalho que provoca a diferença de valor nas coisas que nos rodeiam”[iii]; e, mais adiante: “Acho que será cálculo bem cauteloso afirmar que, dos produtos da terra úteis à vida do homem, nove décimos são devidos ao trabalho. (...) Se o pão, pois, tem mais valor que as bolotas, o vinho mais que a água, e o tecido e a seda mais do que as folhas e peles, deve-se inteiramente ao trabalho e à indústria dos homens”[iv].
         Todas estas contribuições são corretas e se aproximam dos economistas mais atuais, inclusive do pensamento marxista. Defender a propriedade e a sua relação com o trabalho cumpriu papel determinante na luta política e ideológica contra os resquícios medievais que viviam no absolutismo monárquico. Constituíram-se, portanto, em armas imprescindíveis na luta do capitalismo contra o feudalismo, visando demonstrar que a propriedade era, teoricamente, um direito universal e não apenas da nobreza (direito garantido pelo sangue). Assim, ajudou a preparar as bases para a transformação da propriedade feudal (grande, improdutiva e reacionária) em propriedade capitalista (“menor”, rentável e voltada para o mercado).
Porém, apesar de todas estas contribuições importantes, há claros limites no seu pensamento que hoje são muito visíveis para qualquer observador honesto. O primeiro deles é a vinculação da propriedade como uma questão divina: “esforçar-me-ei – ele escreve – para demonstrar como os homens podem chegar à propriedade de partes daquilo que Deus deu à humanidade em comum, e sem necessidade de um pacto lavrado entre os membros da comunidade”[v]. Neste ponto, seu pensamento volta-se para a Idade Média, de onde não podia se desvencilhar totalmente, ainda que isso não tire o caráter progressista de suas ideias gerais.
Além destas limitações, existem outras. Tal como os “liberais” modernos (em particular os brasileiros) não difere os tipos de propriedade: se trataria da propriedade de uma casa, de um meio de produção (terras, fábricas, empresas), de uma propriedade de outra ordem ou de todas elas juntas? A falta de clareza em Locke é muito mais compreensível do que a dos liberais modernos. Tratar todas estas propriedades como uma mesma coisa abre erros profundos que tem consequências nefastas, como o aumento descontrolado das desigualdades sociais e das guerras de classe; isto é, aquilo que Hobbes e Locke supostamente queriam evitar com seus tratados filosóficos.
A maior contradição do seu pensamento, contudo, se dá na confusão entre o trabalho e a propriedade. Locke afirma que “Deus deu o mundo em comum a todos os homens; mas, como o fez para seu benefício e para a maior fartura que fossem capazes de obter dele, não é viável supor que fosse sua intenção que devesse ficar sempre em comum e inculto. Deu-o para desfrute do diligente e racional – cujo trabalho seria alicerce de posse –, não à fantasia e ambição dos agressores e altercadores”[vi]. Certamente Locke tinha em mente o burguês diligente e “trabalhador” do seu tempo, cujos maiores expoentes foram os colonizadores protestantes da América do Norte (tendo seu máximo representante em Benjamin Franklin). É por isso que ele afirma que o trabalho retira os frutos da natureza do estado comum em que se encontravam, fixando a “minha propriedade sobre eles”[vii].
A contradição começa quando Locke demonstra que existem “criados” – isto é, trabalhadores sem a posse da terra ou dos instrumentos – que exercem algum tipo de trabalho sobre a terra ou de outras formas: “Assim, o capim que o meu cavalo pastou, a turfa que o criado cortou, o minério que extraí em qualquer lugar onde ele tenho direito em comum com outros, tornam-se minha propriedade sem a adjudicação ou consentimento de qualquer outra pessoa”[viii]. E mais adiante: “Se considerarmos necessário o consentimento explícito de cada membro da comunidade à apropriação de qualquer parte do que é comunitário, os filhos ou os criados não poderiam cortar a carne que o pai ou o senhor lhe fornece em comum, sem atribuir a cada um seu quinhão em particular. Embora a água que corre na fonte seja de todos, quem poderia duvidar que a que está na bilha pertence apenas a quem a recolheu?”[ix].
Locke está correto quando diz que a água no pote pertence a quem a recolheu da natureza, pois a propriedade do fruto do trabalho é de quem o levou a cabo. Porém, ignora a contradição com o resto do seu pensamento. A propriedade deveria pertencer aos criados, pois foram eles que realmente trabalharam. O obscurantismo em relação ao tipo de propriedade ajuda a esconder a exploração do trabalho alheio e a mascarar todo o funcionamento do sistema. Apenas 200 anos mais tarde Marx e Engels desmascarariam toda essa estrutura. Para isso, contaram com o pontapé inicial de Proudhon, que anunciou que “a propriedade é um roubo” no seu livro publicado em 1840, O que é a propriedade?
O que existe, então, é apenas a relação entre trabalhos humanos, de natureza e habilidades diferentes. É justamente por isso que todos os membros da sociedade devem trabalhar. Nesse sentido, deve-se estabelecer um critério para trabalhos de tipos diferentes, uma vez que existem distintas habilidades que se equivalem (e não usar as diferentes habilidades e, sobretudo, a propriedade, para continuar justificando a exploração do trabalho alheio). Cabe apontar que a constituição mais progressiva e consciente que já existiu foi a dos primeiros anos da União Soviética, antes da burocratização stalinista. Nela podemos encontrar trechos como este: “quem explora o trabalho de outrem não pode votar e não tem direito a ser eleito”. Lenin assim a descrevia: “A nossa organização é a mais elevada de todas; não tem o direito de participar nesta organização nenhum explorador nem nenhuma pessoa que não trabalhe. Esta organização tem um único objetivo: a destruição do capitalismo. Não nos enganaram com falsos slogans com ‘fetiches’, tais como ‘liberdade’ e ‘igualdade’. Nós não reconhecemos nem a liberdade nem a igualdade, ou mesmo a democracia do trabalho se se opuserem aos interesses da emancipação do trabalho da opressão do capital”[x].
O que não é dito por Locke e pelos “nossos liberais”, portanto, é que a propriedade confere o “direito” de um ser humano explorar outro. É por isso que ela precisa ser limitada, diferenciada e, no que diz respeito à exploração do trabalho: abolida!
“Horrorizai-vos porque querermos abolir a propriedade privada” – escreveram Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848 – “Mas, em vossa atual sociedade, a propriedade privada já está abolida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente porque não existe para esses nove décimos. Vocês nos acusam de querer suprimir a propriedade cuja a premissa é privar de propriedade a imensa maioria da sociedade”[xi].
Em sua análise sobre o Termidor Francês, Trotsky afirma que os burgueses termidorianos da segunda fase da Revolução Francesa, que se iniciou após o cansaço das massas e o golpe contra os jacobinos em 1794, eram perfeitamente conscientes desse papel social e econômico cumprido pela propriedade. Ao reeditar a Declaração dos Direitos do Homem, eles apagaram um parágrafo significativo: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”. Eles justificaram esta supressão afirmando que este trecho era ambíguo e, portanto, perigoso. É claro que as pessoas nascem iguais em direitos, mas não em suas habilidades, nem em sua propriedade[xii].

Liberalismo econômico e liberdades individuais
         Além da defesa da propriedade capitalista contra a propriedade feudal e o absolutismo monárquico, John Locke é um dos principais defensores do estabelecimento de uma “sociedade civil”, cuja expressão maior é o princípio do livre comércio. A sociedade civil seria a encarnação das organizações e instituições voluntárias e independentes do aparato de governo e de Estado, como associações profissionais, sindicatos, corporações econômicas e políticas; órgãos de defesa do consumidor, clubes cívicos, sociais, religiosos e esportivos. Para Antonio Gramsci, a sociedade civil é como um organismo não-estatal ou privado, o que inclui a economia. A sociedade política (governo e Estado) é associada com a força e a sociedade civil com o consentimento. Assim, esta última seria resultante do poder econômico oriundo da propriedade individual e do livre comércio. Para o pensamento liberal-burguês, isto é a realização máxima da liberdade individual, expressando o que seria o desenvolvimento “natural” da sociedade.
         Ainda que a propriedade individual e a sociedade civil sejam capazes de gerar um certo tipo limitado de liberdade individual, criam novas “prisões” a outros tipos de autoritarismos, uma vez que estão condicionadas pelo funcionamento do capitalismo. Para os “liberais” modernos só existe liberdade individual se existe propriedade, o que é uma contradição, como vimos antes. Para eles não interessa o fato de que nove décimos da sociedade não tenha propriedade e seja apenas “carne barata” para ser explorada pelos detentores de algum tipo de propriedade.
A propriedade privada criou unidades econômicas autônomas que fortaleceram as organizações da sociedade civil desde o século XVII. Há uma transformação social humana resultante deste progresso que merece ser levada em consideração: o surgimento da individualidade. Isto tem implicações no campo econômico, social e sexual. No campo econômico levou ao surgimento de determinados tipos de empreendedorismo (que nunca chegaram a existir plenamente no Brasil em razão do seu atraso histórico e da sua localização periférica no mercado); no campo social “separou” o indivíduo das massas (embora tenha lhe jogado, com raras exceções, na tirania da família patriarcal) e criou as condições para uma vida sexual (seja de um casal ou mesmo individual). Ainda que a individualidade tenha se tornado uma arma reacionária nas mãos da burguesia, incentivando o hedonismo, o utilitarismo, a ganância e o egotismo, ela foi progressiva até certo ponto, pois ninguém pode viver o tempo todo em sociedade sem perder algo de si. Necessita, então, buscar um tempo para si próprio se quiser desenvolver pensamento independente. Nesse sentido, a propriedade de uma casa, de um quarto, de um espaço próprio (elementos que surgiram a partir das noções burguesas de propriedade) é importante. Porém, ninguém vive e se desenvolve sozinho. Somos “animais sociais”, e nesse sentido necessitamos, quer queiramos ou não, viver com outros seres humanos em comunidade.
Este tipo de espaço (uma casa, um quarto; em suma, um espaço íntimo) foi, até certo ponto, resultado do desenvolvimento da propriedade privada burguesa, mas não é a mesma coisa que ela. Cabe destacar que o socialismo visa abolir a propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terras, minas, bancos, transportes, mídias de informação); e não a propriedade privada individual de uma casa, de um quarto, de um carro, etc. Estas conquistas para o desenvolvimento de uma individualidade sadia e comprometida com o social só podem ser mantidas e aprofundadas pelo socialismo, uma vez que no capitalismo não é possível acabar com o desemprego, a miséria, os sem teto, os sem terra (sem falar nas milhares de casas proletárias de apenas um cômodo) e as ideologias individualistas.
Nesse ponto, os nossos “liberais” são os primeiros a saltar de suas cadeiras para gritar que o “socialismo” acaba com as liberdades individuais; mas o que eles e a sua imprensa comercial insistem em chamar de “socialismo real” é, na verdade, o regime stalinista. Os primeiros anos da Revolução Russa não puderam colocar estas questões para reflexão e superação; e o regime stalinista nem sequer se deu o trabalho de pensar sobre todos estes problemas. Simplesmente liquidou qualquer descontentamento com o cassetete da repressão burocrática. A supressão das liberdades individuais não é um princípio do socialismo, nem um “resultado inevitável” dele como os “liberais” da direita brasileira querem nos fazer crer. Pelo contrário, o socialismo é a garantia de que ele possa se desenvolver.
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         Pensadores que justificam a sociedade de classe, como Nietzsche, afirmam que “mandar é mais difícil que obedecer; e não apenas porque aquele que manda suporta o peso de todos os que obedecem, e essa carga facilmente o derruba. Mandar parece-me um perigo e um risco. E quando manda, o vivo sempre se arrisca”[xiii]. Com isso, Nietzsche e os ideólogos da sociedade de classe querem atribuir virtudes ao “nobre”, que não desejaria ser parte de um rebanho. Isto é: ser nobre ou aristocrata significaria arriscar-se sempre. Por certo existem riscos em ordenar, cabendo um papel de relativa autonomia e preponderância sobre o rebanho; ao mesmo tempo que a massa humana de trabalhadores se coloca numa condição subalterna que tende a uma espécie de comodismo. Esta suposta “independência” está assentada, certamente, nas exigências de manutenção da propriedade (risco de endividar-se, de falência, etc.). No entanto, estas mazelas existem também para os trabalhadores, só que com consequências muito mais nefastas.
         É preciso apontar, contudo, que o nobre, aristocrata ou burguês não “segue apenas a si mesmo”, mas a toda uma estrutura social pautada pela economia, pela moral, pela tradição. As classes dominantes são historicamente educadas para governar, administrar, ser autônomas e a “arriscar”; as classes dominadas, ao contrário, devem se subordinar, obedecer, aceitar. Não casualmente, o cristianismo é plantado desde a mais tenra infância; e, como Nietzsche insiste em sua obra, o cristianismo é a adaptação do platonismo para o povo. Ou seja, é “educação social” para a espera passiva, a atitude contemplativa e a aceitação de fatalidades “divinas”. O que deve nos causar espanto é o fato de que, ainda assim, existem aqueles proletários que “acordam” e se rebelam contra esta estrutura.
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         Houve um tempo em que o capitalismo crescia e se chocava com os restos de uma sociedade em decadência: a sociedade absolutista feudal. O crescimento econômico foi progressivo neste período porque iniciou o salto da humanidade do reino da subsistência para o da abundância comercial. Foi refletindo esta realidade histórica que os verdadeiros pensadores liberais – como Adam Smith – escreveram: “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas de sua consideração com o seu próprio interesse. Dirigimo-nos não a sua humanidade, mas a seu amor-próprio; e nunca lhes falamos de nossas necessidades, mas sempre de suas vantagens”[xiv].
Como se vê, o capitalismo cresceu e se manteve alimentando inescrupulosamente o egoísmo. Este método nefasto de funcionamento teve, contraditoriamente, papel determinante no desenvolvimento social entre os séculos XVII e XIX, mas agora tornou-se obsoleto e uma ameaça para a existência da própria humanidade. A justificativa teórica de Smith serviu para legitimar a transformação de seres-humanos em reles objetos; isto é, meras máquinas “sem vontade” nas mãos dos capitalistas. Isto tem matado a humanidade a olhos vistos em todas as suas manifestações.
Adam Smith concluía “da experiência de todas as eras e nações que o trabalho feito por homens livres torna-se mais barato no final do que aquele realizado por escravos”[xv]. Foi baseando-se nesse tipo de justificativa que os “humanistas ingleses” tencionaram pelo fim da escravidão negra e sustentaram o seu “liberalismo”. Ou seja: acabar com um tipo desumano de escravidão para instituir outro, com a nomenclatura de “trabalho livre”, mas que garantia os lucros desejados para o “desenvolvimento econômico”.
         A era em que os seres humanos não compreendiam os efeitos colaterais do desenvolvimento econômico ficou definitivamente para trás. Hoje entendemos o papel cumprido pelos sistemas econômicos – e, em particular, pelo capitalismo. Não podemos mais dissociar desenvolvimento econômico dos impactos causados sobre a “humanidade” das outras pessoas – principalmente daquelas que estão bem embaixo da pirâmide social – e sobre a própria natureza.

O liberalismo econômico e a elite brasileira
Se a defesa da propriedade privada foi progressiva na época de John Locke, sendo parte fundamental da luta contra o absolutismo monárquico feudal; se tornou extremamente reacionária na atualidade, dadas as transformações operadas no capitalismo. Nas condições de hoje, defender a propriedade dos meios de produção não passa de uma forma desavergonhada de sustentar os privilégios do imperialismo capitalista e dos seus monopólios (este tipo de propriedade condena todas as demais, além de condenar milhares de pessoas a não ter nenhum tipo de propriedade). Há pelo menos 1 século que a propriedade privada se transformou em propriedade monopolista, levando ao surgimento do imperialismo. Isto liquidou qualquer tipo de “livre mercado”, “livre iniciativa” ou livre comércio (basta ver a atual guerra comercial entre os EUA e a China). O empreendedorismo não é mais possível. Ele só pode existir em setores muito limitados e secundários; portanto, sem importância e capacidade para cuidar do “bem público”, como apostava Locke no século XVII. Pelo contrário: hoje tende a incentivar o pior tipo de individualismo.

Alguns exemplos dos "liberais" da atualidade...
Eduardo Bolsonaro (PSL), Kim Kataguiri (MBL-Democratas) e Marco Feliciano (PSC). 
Engels escreveu, certa vez, que a Inglaterra foi coberta “por uma excelente rede de estradas, obra da indústria privada, como quase tudo neste país, porque o Estado pouco ou nada fez nesse domínio”[xvi]. Tal como a norte-americana, a burguesia britânica não tinha apenas um projeto de nação, mas de dominação mundial. Assim, cumpriu um papel de desenvolver o próprio empreendedorismo com estes objetivos. O Estado “pouco ou nada fez” para o desenvolvimento estrutural do país. Ao contrário do Brasil, onde o Estado teve papel determinante, inclusive para o surgimento de indústrias básicas. A direita brasileira esconde-se atrás de um discurso liberal, mas sabota o mínimo desenvolvimento nacional e não tem nenhum projeto de nação que não seja se subordinar ao imperialismo como periferia no mercado mundial. Está satisfeita com a sua condição de produtora de comodities e matérias-primas. Trabalha febrilmente pela total desindustrialização do país e pela entrega de seus recursos naturais. Não possui nenhuma política protecionista visando o bem da economia nacional e das condições de vida do povo (ao contrário, só defende o que diz respeito a sua própria produção). Usa o orçamento federal como moeda de troca com o sistema financeiro, endividando-se eternamente através da dívida pública e sabotando qualquer tipo de desenvolvimento social e econômico do país. Compromete, portanto, a soberania nacional. Aliás, não tem o menor interesse nisso.
No campo intelectual, tecnológico e científico, os “liberais” da direita brasileira são o exato oposto de John Locke, que teve papel fundamental no desenvolvimento do iluminismo contra o obscurantismo medieval e místico representado pelo absolutismo monárquico. Sua obra Ensaio sobre o entendimento humano marcou a filosofia moderna e inaugurou o campo filosófico que conhecemos como empirismo. Estava em sintonia com as necessidades históricas do desenvolvimento do capitalismo e o projeto nacional e global da Inglaterra. Na contramão disso está a burguesia brasileira e os seus “liberais” de direita que, bebendo na fonte dos intelectuais e políticos conservadores norte-americanos, professam abertamente valores anti-iluministas, anti-científicos e declaradamente religiosos e místicos, como, por exemplo, a defesa nefasta do “terra planismo”, anti-darwinismo e outras preciosidades do gênero. Defende o fim do Estado laico e a subordinação da educação e da cultura à religião evangélica, acabando com qualquer tipo de tolerância religiosa.
O liberalismo burguês clássico reconhece a importância das liberdades individuais (religiosa, sexual, artística, política e intelectual). Os “liberais” da direita brasileira atacam todas as liberdades individuais: interferem na religião e na opção sexual das pessoas, professando valores retrógrados e de violência. Misturam conceitos que para o liberalismo clássico seriam inaceitáveis. Defender o liberalismo econômico deveria estar em sintonia com a defesa das liberdades individuais. Como a direita brasileira está totalmente comprometida com o capitalismo monopolista, que demonstra claramente o esgotamento do sistema e compromete todos os recursos do nosso país para “ajudá-lo” a superar sua crise, o seu “liberalismo” só pode agir desta forma, rasgando e enlameando tudo o que a burguesia liberal inglesa e francesa conquistaram no tempo de sua ascensão histórica, substituindo estas conquistas por uma adesão não declarada a todas as posições do absolutismo monárquico medieval.
Desta forma, consegue criar um dique de contenção para manter os seus privilégios dentro de um capitalismo em crise histórica. Nem mesmo as instituições da democracia burguesa são capazes de garantir o mínimo de democracia, se convertendo escancaradamente em balcões de negócios da pior estirpe, trabalhando no sentido que Locke condenava como a forma errada de funcionamento do poder legislativo: suas “leis devem ter o único fim do bem do povo, excluindo todos os demais”[xvii]. Há muito tempo que os parlamentos se tornaram legisladores em causa própria, o que inclui legislar em defesa da propriedade monopolista do imperialismo e das classes altas – os seus financiadores de campanha – contra o “bem do povo”. O “bolo” da economia “cresce”, mas é solapado pela “mão invisível” do sistema financeiro e da propriedade monopolista do imperialismo.
         É por tudo isso que o liberalismo econômico foi superado pela história. Os “liberais” da atualidade (Bolsonaro, PSL, PSDB, Partido Novo, MBL, et caterva) desmoronam junto com qualquer resquício de liberalismo, a despeito dos discursos inflamados. Todas as suas conquistas importantes só podem ser mantidas em uma sociedade livre, justa e igualitária; em síntese: em uma sociedade que avance para o socialismo; isto é, que institua a propriedade social dos meios de produção de riqueza. Esta é, atualmente, a única forma possível de garantir o “bem do povo” – expressão que está definitivamente fora do vocabulário dos “liberais” brasileiros.

A individualidade se transforma em individualismo egocêntrico
         As importantes noções desenvolvidas a partir do liberalismo econômico, como as demandas de respeito às individualidades, degeneraram se transformando em algo profundamente reacionário: o individualismo. Há muito tempo que o capitalismo tornou-se disseminador do pior tipo de individualismo, levando a um “salve-se quem puder” e sepultando definitivamente qualquer ganho popular do “crescimento do bolo” a partir do egoísmo e das supostas “vantagens dos interesses econômicos particulares”, como apregoava Adam Smith.
         Temos visto o crescimento desenfreado de diversas formas de narcisismos, hedonismos e egotismos. O mercado joga o tempo todo com as emoções infantis e egocêntricas do individuo médio comum. Faz confundir a pior forma de infantilismo egocêntrico com liberalismo econômico (poucos indivíduos deste campo fogem a regra). Como vimos, os princípios do liberalismo são bem diversos do que a direita brasileira sustenta.
         Isso explica, em parte, os motivos que levam os representantes da classe média e da direita a se exaltarem em todas as discussões políticas e econômicas; a misturarem questões pessoais, desejos e afetos com fatos, necessidades e problemas reais. As noções religiosas e místicas pessoais são confundidas com questões políticas e econômicas. O que está escondido no fundo disso é o medo da classe média perder seus pequenos privilégios e diluir-se no meio do povo trabalhador, bem como desejos sexuais reprimidos pelo moralismo exacerbado. Os “liberais” da direita e a grande mídia burguesa sabem muito bem utilizar estes medos, manipulando-os como ninguém. A erudição das classes altas brasileiras tem servido para reforçar estes sentimentos e justificar os seus privilégios: é, portanto, uma erudição medrosa e desonesta! Por isso está desprovido de finalidades populares, incentivando o academicismo estéril nas universidades. O “conhecimento” deste tipo serve apenas para a autoproteção individual e não para o crescimento do país.

A Revolução Permanente e o liberalismo clássico
         A burguesia brasileira se formou à sombra da burguesia imperialista. É por natureza covarde e dependente: isso explica o porquê do Brasil ser o que é e a sua compreensão oportunista do que significa “liberalismo”. Mistura elementos místicos e anti-iluministas na sua compreensão do que é capitalismo e desenvolvimento econômico. Não é sábio fazer o que faz a maior parte da “esquerda” brasileira: jogar o pensamento liberal clássico no lixo como se fosse algo desprovido de valor, justamente porque é professado distorcidamente pelos “liberais” brasileiros.
Na sua luta pela revolução socialista, os trabalhadores conscientes precisam acertar contas com o falso liberalismo econômico da direita brasileira e saber incorporar as boas contribuições filosóficas do passado não apenas para desmascarar os parasitas e aproveitadores atuais, mas para poder incorporá-lo no programa político e econômico de superação do capitalismo com vistas à construção do verdadeiro socialismo. Isto também faz parte das tarefas postas pela teoria da Revolução Permanente de superação das tarefas burguesas não realizadas pelas elites dos países semicoloniais.
 Mais do que isso: há que se desenvolver um método de independência individual dentro da massa trabalhadora, sem o quê, qualquer defesa de autodeterminação popular é apenas letra morta. O empreendedorismo individualista-burguês do passado precisa se transformar em empreendedorismo socialista, baseado na coletividade. Na dialética “indivíduo-massa” precisamos desenvolver uma forma de levar em consideração a individualidade saudável (não o individualismo-burguês) dentro da massa. Nesse sentido, a crítica e a incorporação dialética dos pontos positivos do liberalismo clássico são imprescindíveis.


Referências

[i] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo.
[ii] Idem.
[iii] Idem.
[iv] Idem.
[v] Idem.
[vi] Idem (grifos meus – EC).
[vii] Idem.
[viii] Idem (grifos meus – EC).
[ix] Idem (grifos meus – EC).
[x] LENIN, Vladmir Ilitch. Como iludir o povo com slogans de liberdade e igualdade.
[xi] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista.
[xii] TROTSKY, Leon. Stálin – uma análise do homem e de sua influência (no apêndice: O termidor francês).
[xiii] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra.
[xiv] SMITH, Adam. A riqueza das nações.
[xv] Idem.
[xvi] ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.
[xvii] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo.

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