Na
década de 1970 foi escrito o célebre livro Para
ler o Pato Donald. Passados mais de 40 anos, é necessário atualizar esse
importante “guia de comunicação de massa e colonialismo” e redigir o “para ver as séries da Netflix”. Antes de tudo é preciso perguntar o que é a Netflix? É uma empresa global, servidora
de filmes e séries de televisão via streaming,
com mais de 90 milhões de assinantes e fundada em 1997 nos EUA. Cabe destacar
que Streaming é uma tecnologia que
envia informações multimídia através da transferência de dados, utilizando
redes de computadores, especialmente a Internet, e foi criada para tornar as
conexões mais rápidas. Filha da indústria cultural de massas estadunidense, tal
como a Disney e o cinema hollywoodiano, a Netflix
vem ganhando cada vez mais influência e assinantes no Brasil e no mundo.
Dada a infinidade de opções de filmes,
desenhos e séries, é difícil apontar a sua doutrinação política; porém, ela
existe e atua. Tal como o Pato Donald e a Disney, o faz de forma muito sutil e,
na maioria das vezes, imperceptível. Cabe observar, em primeiro lugar, a
veiculação das suas produções políticas, como The Last Czars (Os últimos czares) e Trotsky, uma vez que no seu cardápio existe uma grande quantidade
de filmes e séries que podemos classificar como “neutros”. Estes, na verdade,
abrem o caminho para as séries doutrinadoras (embora muitas delas não sejam
exatamente “neutras”, como veremos).
Os últimos czares e a
retomada da “guerra fria cultural”
A produção da série Os últimos czares (original da Netflix) é um primor de inovação:
excelente fotografia, cenário e figurino; mistura o conto de fadas de uma família
real com cenas históricas e depoimentos de historiadores. Intercala os seus
comentários com a dramatização dos momentos decisivos que levaram à queda da
dinastia Romanov. Foi uma série criada por um estúdio que tem como objetivo
trazer um novo gênero de televisão (o “megadoc”) que combina cinematografia
épica, drama e ação com documentário. Mas tudo isso, aparentemente neutro e
inocente, nos reserva uma sutil doutrinação contra o “comunismo”, imperceptível
a um espectador desatento. Tal como o método utilizado pela Disney, esta forma
de doutrinação penetra e conforma o imaginário da plateia sem que esta tenha a
menor ideia disso.
Grande parte das “críticas” (se é que podem
ser chamadas assim) veiculadas pela mídia comercial e na internet abordam
elementos superficiais ou secundários. Por exemplo: falam que há um erro em que
no ano de 1905 aparece o mausoléu de Lenin na Praça Vermelha, quando ele teria
sido construído apenas em 1924. Por mais que isso seja um erro cinematográfico
de edição, montagem e atenção, não se aprofunda nos impactos ideológicos da
série. Outras críticas superficiais podem ser encontradas no debate sobre a
pronúncia dos atores, que seria britânica e não russa, e outras “questões relevantes”
desta ordem.
A subjacente campanha para cultuar
a monarquia e transformar os bolcheviques em “assassinos”
A série Os
últimos czares foi montada com a finalidade de glorificar a monarquia e
condenar seus “assassinos”, os bolcheviques. Entra como um elo perfeito na
atual campanha imperialista – desencadeada em todos os países, mas em especial
no Brasil – de disseminação de preconceitos anticomunistas. O seu método é
baixo e vil: trata-se da utilização do sentimentalismo infantil e do raciocínio a-histórico da mentalidade
mediana, igualando a repressão e os assassinatos da classe dominante para a
manutenção do seu poder, com a violência da classe oprimida por sua libertação,
como se fossem a mesma coisa e tivessem o mesmo peso.
Os seis episódios da série são maquiavelicamente
construídos, distribuindo a sua doutrinação de forma sutilmente parcelada,
dando ênfase e pesos diferentes para a construção da narrativa, embora caminhe
firme para o seu gran finale. Os 4
primeiros episódios abordam a influência de Grigori Rasputin sobre a Czarina, mas
já inserindo flashbacks do “assassinato
bárbaro” da pura e ingênua família Romanov, cujo Czar “trabalhou duro e
seriamente para dar o seu melhor ao povo russo”; preparando, assim, o lado
emocional do espectador para despejar o conteúdo ideológico. Como grande parte
da população é criada ouvindo os contos de fadas e, portanto, idolatrando e
amando as famílias monárquicas, reis, rainhas, príncipes e princesas, esta
emoção infantil cumprirá um papel determinante na sua visão sobre toda a trama.
A arte do cinema, assim como a do teatro,
está baseada na dramaticidade das cenas e dos atos. As partes mais
teatralizadas e demoradas, com ênfase no sofrimento, nos gestos, nas emoções e
na trilha sonora, são as da execução do Czar e da sua família; portanto,
cumprem papel decisivo. Toda a construção do drama culmina neste momento e o
prepara. Em contraposição, os massacres protagonizados pelo Czar contra o povo,
tal como o Domingo Sangrento e o envio de centenas de milhares de pessoas para o
front, nas guerras contra o Japão em
1904 e na 1ª Guerra Mundial de 1914, ou mesmo para a Sibéria e o cadafalso nas
grandes cidades, são tratadas en passant,
quase como fatos banais e corriqueiros.
Ou seja, a ênfase é dada à ação dos
bolcheviques, e não às medidas autoritárias seculares da monarquia, incluso
condenações e execuções, que tanto sofrimento e opressão causaram ao povo russo
(o que seria a única forma de esclarecer os motivos desta “ação”). A concepção
dos autores da série é, portanto, a mesma que a da monarquia e a de Stalin,
para quem a morte de milhares é apenas estatística.
Isso fica evidente na frase lapidar do depoimento de um dos historiadores: “em toda história é difícil imaginar um ato
tão bárbaro quanto o massacre caótico da família imperial”.
Como historiadores burgueses, a sua
preocupação é reconstruir os fatos pela ótica estreita dos Romanov. Partindo
deste ponto de vista, eles revalorizam os rituais, a concepção de mundo dos
russos, a guerra e a revolução. Demonstram os malefícios de alguns conselheiros
do Czar, que retardaram ou sabotaram a abertura política da Rússia para o
parlamentarismo burguês. O misticismo medieval de Rasputin seria a má
influência que aceleraria as intrigas de bastidores contra os ministros
burgueses, como Stolipyn, selando o destino da monarquia. Ou seja, as
preferências da Czarina e a sua influência pessoal sobre o Czar (além dos
problemas com outros ministros e conselheiros) teriam preponderância sobre a
crise histórica da instituição monárquica da Rússia, bem como o seu papel
periférico na Europa e no mercado mundial. Assim, ignoram toda a marcha do
desenvolvimento do capitalismo na Rússia e, sobretudo, a formação histórica de
sua burguesia.
Quando estes historiadores abordam o papel
dos bolcheviques e de Lenin durante a revolução, torna-se patente o caráter de
doutrinação anticomunista da série. Intercalado com estes depoimentos, aparecem
cenas em que os operários bolcheviques dos primeiros anos da revolução são
igualados estética e ideologicamente aos agentes stalinistas (prática
recorrente da ideologia burguesa, já desmascarada inúmeras vezes pelos setores
mais conscientes da “esquerda” e dos trabalhadores). O depoimento dos
historiadores imputa a Lenin preocupações que ele não possuía sobre popularidade
ou impopularidade, típicas dos políticos burgueses. Lenin jamais trabalhou ou
pensou desta forma. Para confirmar isso, basta ler qualquer um de seus livros. Contando
com a ignorância do público a respeito destes “detalhes”, os “nossos”
historiadores afirmam que “Lenin achava
que executar a família imperial seria uma jogada muito impopular e ruim para
ele”. E mais adiante, se referindo à guerra civil: “A situação dos bolcheviques era muito frágil”, por isso “foram requisitar comida aos fazendeiros, o
que se tornou muito impopular”.
Lenin nunca esteve preocupado com dividendos
eleitorais, pesquisas de intenções de voto ou acordos de bastidores. Mas com a
consolidação de uma revolução que teve caráter histórico-universal. Ficou
célebre uma de suas frases, que é completamente ignorada por estes “historiadores”,
mas que esclarece ao mesmo tempo em que desmascara este tipo de historiografia:
“uma revolução, uma revolução real,
profunda, do povo, para usar a expressão de Marx, é o processo incrivelmente
complicado e penoso de morte de uma velha ordem social e o nascimento de uma
nova, o ajustamento das vidas de dezenas de milhares de pessoas. Uma revolução
é a mais aguda, mais furiosa e desesperada luta de classes e guerra civil.
Nenhuma grande revolução da história escapou da guerra civil. Se não houvesse
circunstâncias excepcionalmente complicadas, não haveria revolução. Quem teme os lobos, não vai à floresta”[i].
A série e os seus historiadores a soldo da Netflix
simplesmente apagam este processo
incrivelmente complicado e penoso de morte de uma velha ordem social e o
nascimento de uma nova, escondendo tudo atrás de sofismas, abstrações e
“índoles pessoais” boas ou más, tal como os contos de fadas da Disney.
A situação frágil dos
bolcheviques e a guerra civil
Os eufemismos da série sustentam que “a situação dos bolcheviques era muito
frágil” em 1918. Como bons oportunistas, estes historiadores fatiam a
realidade para conseguir desconectá-la e, assim, reafirmar suas ideias e sua
concepção de mundo. Por exemplo, falam de “situação frágil” em um momento e sobre
“a fome gerada pelo governo bolchevique” em outro, mas não associam esta
situação claramente à guerra civil desencadeada pelos exércitos imperialistas que
invadiram a Rússia. Tampouco dão a verdadeira ênfase dramática exigida pelo
contexto histórico (ao contrário: esta ênfase existe apenas no fuzilamento da
família real). Como seria, então, essa “situação frágil”?
Os bolcheviques se encontravam à frente
de um Estado operário recém fundado,
repleto de contradições e dividido entre 5 formas de economia, com instituições
políticas totalmente novas e nunca utilizadas, saído de uma guerra mundial
contra a vontade dos seus aliados de ontem, cercado de inimigos militares,
dentre os quais o que viria a se tornar o nazi-fascismo. Somava-se a isso um
baixíssimo nível cultural de um país recém liberto de uma monarquia semi-feudal, com inúmera tradições
burocráticas e medievais. Ao peso do boicote do imperialismo no mercado
mundial, se somou a derrota dos processos revolucionários na Europa (Alemanha,
Hungria, dentre outros) e a invasão dos 14 exércitos imperialistas que
desencadearam uma furiosa guerra civil que matou a melhor parcela da vanguarda
operária que estava a frente dos sovietes e do partido bolchevique, deixando-os
restritos à Moscou. Tudo isso aprofundou a fome que já vinha do rescaldo da 1ª
Guerra Mundial e forçou às expropriações dos camponeses ricos.
Saber destes fatos não impediu que os
historiadores da série continuassem caluniando os bolcheviques e distorcessem
vergonhosamente a história, não devendo nada aos “historiadores” stalinistas: “Lenin e os bolcheviques assinaram o Tratado
de Brest-Litovski, o que fez perder grande parte dos territórios da Rússia. E
Lenin começa a perder apoio por ter traído a Rússia”. Ora, caros amigos,
este tratado selou a saída definitiva da Rússia da Guerra Mundial. Era uma das
principais exigências dos operários e dos camponeses, sem o quê, certamente os
bolcheviques não teriam ganho a influência decisiva para se pôr à frente do
processo revolucionário de 1917. Por certo as negociações não saíram conforme o
ideal, como querem aqueles que pensam que a história se faz por encomenda, havendo
chantagens e pressões das potências mundiais. Além disso, houve a política proposta
por Lenin, que ficou conhecida como autodeterminação dos povos. Ela dava aos
antigos países dominados pela Rússia o direito de decidir se seguiriam fazendo
parte desta “união”. Muitos a abandonaram. Outros não. Cabe relembrar que o
regime instituído por Stalin revogou esta política de autodeterminação através
das práticas autoritárias que conhecemos.
Ao contrário do que nos querem fazer
crer os historiadores a soldo da Netflix,
o Tratado de Brest-Litovski, apesar
de suas limitações, não foi uma traição, mas uma reafirmação do compromisso
assumido com os trabalhadores e com as bandeiras da revolução levantadas pelos
sovietes. Esse tratado, inclusive, acelerou o fim da 1ª Guerra Mundial, que era
caracterizada por Lenin como uma guerra
imperialista. Sendo coerente com essa corajosa caracterização, ele lutou
contra ela até o seu fim. A burguesia russa e mundial, por sua vez, venderam a
ideia da saída da guerra, da desanexação e da perda de territórios como uma
traição à Rússia. E é justamente para estes últimos que os historiadores da
série oferecem os seus serviços.
Sobre a execução da família
real e a criminalização histórica dos bolcheviques
Dentro desta lógica nefasta, que ignora
o contexto e os interesses de classe dos trabalhadores, os historiadores da Netflix sustentam que “os bolcheviques anunciaram a execução de
Nicolau III, mas não disseram nada sobre a sua família. Eles achavam que seria
um desastre para as relações públicas admitir o assassinato de crianças
inocentes. Então, eles intencionalmente mistificaram a história”.
Nestes trechos existem mais venenos
ideológicos do que supõe a nossa vã ingenuidade. Faz parte de toda a engenharia
reacionária montada cuidadosamente pelos “nossos” historiadores e os editores
da série para condenar os oprimidos por vencerem, associando, de quebra, os
bolcheviques sob Lenin e Trotsky (que praticamente não é citado durante a
série, embora os historiadores recorram seguidamente a várias informações e
conceitos formulados por ele, mas sem admitir, obviamente) com as falsificações
históricas do stalinismo. Querem relacionar, portanto, a formação do stalinismo
com esta ação realizada pelos autênticos bolcheviques em meio às difíceis
condições de uma guerra civil.
Nós, ao contrário dos historiadores
burgueses, devemos olhar os fatos históricos com um óculos e uma escala que
seja adequada aos interesses dos esfomeados, miseráveis e oprimidos deste
mundo. Dizer que “seria um desastre para
as relações públicas”, desconsiderando o contexto histórico de uma guerra
civil que arrasou a Rússia, matou mais da metade da vanguarda revolucionária e
condenou o governo bolchevique a um cruel isolamento internacional, não é
apenas um disparate de historiadores com mentalidades anestesiadas pelas
formalidades do dinheiro e do poder burguês, mas uma piada macabra contra
aqueles que lutaram e morreram em uma guerra de libertação.
***
No último episódio ainda somos brindados com
a construção de uma narrativa que tenta manipular o lado emocional do
espectador, demonstrando que os malvados bolcheviques não perdoaram nem mesmo
as pobres criancinhas. Ela se baseia na necessidade ideológica de criar
cortinas de fumaça para poder atacar a justeza de uma guerra revolucionária que
não pode ser atacada, senão distorcendo a realidade e recorrendo à métodos
ardilosos, tais como fez a elite brasileira com o seu mito de que “comunista
come criancinha” e de que a “Rússia era um país satânico”. Imbuídos deste
espírito, os “nossos” historiadores dão o seguinte depoimento: “todos tinham esperança de que as crianças
pelo menos sobreviveriam de alguma forma. Era inimaginável que algo acontecesse
a elas”.
Seria apenas ignorância destes nobres historiadores
de que as crianças de uma família real são a continuidade hereditária da
monarquia? Que o Exército Branco estava atrás de qualquer representante da
família Romanov capaz de poder restaurar o poder imperial e subir ao trono?
Sim; eles sabem de tudo isso, mas assim como querem demonstrar a “desumanidade
dos bandidos bolcheviques” a partir da encenação do terrível tratamento dado à
família real, querem induzir a ideia de que eles atacarão toda e qualquer
criança, afinal de contas, não foram sequer capazes de perdoar as criancinhas
da realeza.
Fariam estes historiadores os mesmos
comentários e julgamentos morais sobre o guilhotinamento da família real
francesa pelos jacobinos em 1793 e a morte dos seus filhos nos calabouços?
O fuzilamento deles e o nosso!
Vejamos, por outro lado, o que Trotsky
escreveu sobre o fuzilamento do Czar: este caso “se desenvolveu durante um período extremamente crítico da guerra
civil, quando eu passava quase todo o meu tempo no front (...) Numa de minhas breves passagens por Moscou
eu fiz notar de passagem no Politburô que, dada a péssima situação do Ural,
conviria acelerar o processo do Czar. Eu propus um debate judiciário público,
que deveria expor o quadro de todo o reino (política camponesa, operária,
nacional, cultural, as duas guerras, etc.). O rádio deveria transmitir para
todo o país o desenvolvimento do processo. Lenin emitiu a opinião de que seria
ótimo se fosse possível. Porém, o tempo poderia ser escasso. Não houve debate,
pois eu não insisti mais na minha proposta, absorvido que estava por outros
afazeres. (...) Minha segunda visita
a Moscou ocorreu quando Ekaterinburg já tinha caído. Batendo papo com Sverdlov,
eu lhe perguntei de passagem: onde está o Czar? Acabou-se, respondeu ele: –
todos? Perguntei, aparentemente com um tom espantado. – Todos, respondeu
Sverdlov, e daí? Ele esperava minha reação, eu nada respondi. – E quem decidiu?
Perguntei. – Fomos nós aqui que decidimos. Lenin considerava que não se podia
deixar uma bandeira viva, sobretudo nas difíceis condições atuais... Eu não fiz
mais perguntas e coloquei uma pedra sobre o assunto. De fato, a decisão era não
apenas conveniente, mas indispensável. A ferocidade dessa justiça sumária
mostrava a todos que conduziríamos a luta impiedosamente, sem nada que nos
detivesse. A execução da família imperial era necessária não apenas para
assustar, estupidificar, privar de espírito ao inimigo, mas também para sacudir
os nossos, mostrar-lhes que não há retirada possível, que o que os esperava era
a vitória total ou a derrota total. Nos meios intelectuais do partido, é
plausível que tenha havido dúvidas e receios. Mas as massas dos trabalhadores e dos soldados não tiveram um minuto de
dúvida: eles não teriam entendido, nem admitido nenhuma outra decisão. Era
esse tipo de coisa que Lenin sentia bem: a capacidade de pensar e sentir pelas
massas e com as massas lhe era própria no mais alto nível, sobretudo nos grandes
redemoinhos políticos”[ii].
No seu panfleto intitulado A moral deles e a nossa, Trotsky combate
o sentimentalismo pequeno-burguês que iguala a violência dos opressores a dos
oprimidos, condenando, assim, a emancipação dos últimos. Segundo ele: “Não vamos insistir sobre o fato de que o
decreto de 1919, muito provavelmente, não fez fuzilar nenhum dos parentes dos
oficiais, cujas traições nos custavam inúmeras vidas e ameaçavam sufocar a
revolução. No fundo, não é disso que se trata. Se a revolução não tivesse
manifestado, desde o começo, uma inútil generosidade, milhares de vidas teriam
sido poupadas em seguida. Seja como for, assumo inteira responsabilidade pelo
decreto de 1919. Foi uma medida necessária na luta contra os opressores. Esse
decreto, como toda a guerra civil, que bem se poderia chamar com razão uma
‘barbaridade revoltante’, não tem outra justificação histórica que o objetivo
da luta”[iii].
E conclui: “A importância de Abrahan Lincoln consiste no fato de que, para
alcançar o grande fim histórico exigido pelo desenvolvimento do jovem povo
americano, não recuou diante das medidas mais rigorosas, quando foram
necessárias. A questão não é sequer saber quais dos beligerantes que infligiram
ou padeceram as perdas mais graves. A história tem medidas diversas para as
crueldades dos nortistas e sulistas na Guerra da Secessão. Que os miseráveis
eunucos não nos venham dizer que o escravagista que com mentira e violência
agrilhoa um escravo, está, diante da moral, no mesmo plano que o escravo que
com a mentira e a violência quebra seus grilhões!”[iv].
Cabe destacar, entretanto, que os fuzilamentos
ocorridos durante o período de dominação stalinista, principalmente os conhecidos
como Processos de Moscou, nada tem a
ver com os fuzilamentos da guerra civil, ocorridos sob um dos momentos mais
críticos de todo o processo revolucionário. Além de serem baseados em
flagrantes fraudes judiciais, os Processos de Moscou ocorreram na década de
1930, quando a guerra civil já tinha acabado e a situação revolucionária se
estabilizado.
A Netflix e a sua nova “guerra fria cultural”
Muitos outros desmascaramentos históricos
poderiam ser feitos, mas estes são suficientes por hora. Os últimos czares entra como parte nesta campanha de calúnia e
difamação contra o comunismo. Enquanto a Netflix
tenta humanizar o rosto dos czares, desumaniza a figura de Trotsky com a sua
série sobre o revolucionário russo, idealizada pelo canal de TV de Vladmir
Putin, um conhecido ex-agente stalinista. Este é, basicamente, o programa
político e os objetivos culturais da Netflix.
A nova “guerra fria cultural” se expressa, inclusive, em séries de
entretenimento banais, como a terceira temporada de Stranger Things, que resgata a luta entre norte-americanos e russos
na chamada “guerra fria”. Nesse caso, as críticas ao “socialismo” soviético são
muito sutis e imperceptíveis. Há um resgate da prática hollywoodiana de tratar
os russos, chineses e vietnamitas como os inimigos a serem combatidos. Estes
Estados Operários não existem mais, mas o espectro
do comunismo precisa ser combatido de qualquer forma para que os
trabalhadores não voltem os seus olhos para ele.
“Há
um porém”, nos dirão algumas vozes apegadas à superficialidade
formalista – tão comum nos dias de hoje – e desconsiderando o seu conteúdo real:
“existem seriados que são de esquerda na Netflix”. Por certo existem filmes,
documentários e séries com tendências
de esquerda, tais como Privacidade
hackeada, Democracia em vertigem,
Snowden – herói ou traidor?, dentre
outros. Porém, o perfil destas produções cinematográficas, ainda que sejam
muito importantes, não ultrapassa o nível de uma esquerda reformista,
social-democrata, petista, do tipo de “esquerda” que existe no Partido Democrata dos EUA; portanto, de
uma “esquerda” totalmente aceitável à burguesia. Em outras palavras: a
virulência dos ataques dessa doutrinação de direita fazem estragos ideológicos
sem precedentes, ao passo que estas “produções de esquerda” sequer chegam aos
pés da destruição proporcionada pelas produções de direita. Em suma: os
bolcheviques, como a ala mais radical da esquerda, não tem voz nem “direito de
resposta” em redes como a Netflix;
apenas ataques sutis, encarniçados e ininterruptos.
A queda do muro de Berlim e
o fim das utopias
A intelectualidade burguesa,
apoiando-se no sentimentalismo pequeno-burguês, quer tornar um dogma aquele
jargão de que a experiência com o “socialismo soviético” e a sua posterior
“queda”, em 1991, representou o fim das
utopias. Devemos nos conformar com a mediocridade do real e, é claro, com a
nossa condição na sociedade capitalista, pautada pela exploração de classe e a
sua miséria reinante. No capítulo final de Os
últimos czares aparece, como não poderia deixar de ser, a cena do muro de
Berlim sendo derrubado e os restos mortais dos czares recebendo, enfim, o seu
“tratamento merecido”. A conclusão implícita é: a revolução não compensa!
Conforme-se!
Para os trabalhadores conscientes, as
experiências revolucionárias do século 20 não significam o “fim das utopias”,
mas severas lições que devem ser refletidas, compreendidas e incorporadas. Com
elas apenas nos tornamos mais sóbrios e mais conscientes das nossas limitações
humanas em um processo revolucionário. A necessidade de superarmos a sociedade
capitalista continua. As explosões populares espontâneas em vários países no
início deste século 21 não deixam dúvida quanto a isso. Se compreendermos as
lições do século 20 e conseguirmos trabalhar conscientemente pela superação do
burocratismo, então, estarão colocadas as condições para superarmos os erros do
passado e avançarmos para uma sociedade socialista. Não uma sociedade utópica e
perfeita, mas uma possível e equilibrada, que seja capaz de superar o capital e
de garantir o mínimo de condições para uma vida digna e feliz de todos os seus
membros.
Condições estas que o
capitalismo é incapaz de criar. Por isso precisa de uma indústria cultural
ativa para dissimular, distorcer, mentir e pintar um mundo cor de rosa,
transformando vilões em heróis e perpetuando o inferno da escravidão
assalariada como natural, sagrada e, até mesmo, desejável.
[i] LENIN, Vladmir Illich. Para a tomada do poder, volume
II.
[ii] TROTSKY, Leon. Diário do Exílio, escrito do dia 9 de
abril de 1935.
[iii] TROTSKY, Leon. A moral deles e a nossa. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/moral/cap02.htm#cap12
A História é o principal alvo da direita.Nao existe direita sem falsificação da História.Nunca conheci direitista que não falsificasse a História.
ResponderExcluirIsso é uma verdade!
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