sábado, 3 de agosto de 2019

A nova guerra fria cultural e a sutil doutrinação da Netflix


Na década de 1970 foi escrito o célebre livro Para ler o Pato Donald. Passados mais de 40 anos, é necessário atualizar esse importante “guia de comunicação de massa e colonialismo” e redigir  o “para ver as séries da Netflix”. Antes de tudo é preciso perguntar o que é a Netflix? É uma empresa global, servidora de filmes e séries de televisão via streaming, com mais de 90 milhões de assinantes e fundada em 1997 nos EUA. Cabe destacar que Streaming é uma tecnologia que envia informações multimídia através da transferência de dados, utilizando redes de computadores, especialmente a Internet, e foi criada para tornar as conexões mais rápidas. Filha da indústria cultural de massas estadunidense, tal como a Disney e o cinema hollywoodiano, a Netflix vem ganhando cada vez mais influência e assinantes no Brasil e no mundo.
         Dada a infinidade de opções de filmes, desenhos e séries, é difícil apontar a sua doutrinação política; porém, ela existe e atua. Tal como o Pato Donald e a Disney, o faz de forma muito sutil e, na maioria das vezes, imperceptível. Cabe observar, em primeiro lugar, a veiculação das suas produções políticas, como The Last Czars (Os últimos czares) e Trotsky, uma vez que no seu cardápio existe uma grande quantidade de filmes e séries que podemos classificar como “neutros”. Estes, na verdade, abrem o caminho para as séries doutrinadoras (embora muitas delas não sejam exatamente “neutras”, como veremos).

Os últimos czares e a retomada da “guerra fria cultural”
         A produção da série Os últimos czares (original da Netflix) é um primor de inovação: excelente fotografia, cenário e figurino; mistura o conto de fadas de uma família real com cenas históricas e depoimentos de historiadores. Intercala os seus comentários com a dramatização dos momentos decisivos que levaram à queda da dinastia Romanov. Foi uma série criada por um estúdio que tem como objetivo trazer um novo gênero de televisão (o “megadoc”) que combina cinematografia épica, drama e ação com documentário. Mas tudo isso, aparentemente neutro e inocente, nos reserva uma sutil doutrinação contra o “comunismo”, imperceptível a um espectador desatento. Tal como o método utilizado pela Disney, esta forma de doutrinação penetra e conforma o imaginário da plateia sem que esta tenha a menor ideia disso.
Grande parte das “críticas” (se é que podem ser chamadas assim) veiculadas pela mídia comercial e na internet abordam elementos superficiais ou secundários. Por exemplo: falam que há um erro em que no ano de 1905 aparece o mausoléu de Lenin na Praça Vermelha, quando ele teria sido construído apenas em 1924. Por mais que isso seja um erro cinematográfico de edição, montagem e atenção, não se aprofunda nos impactos ideológicos da série. Outras críticas superficiais podem ser encontradas no debate sobre a pronúncia dos atores, que seria britânica e não russa, e outras “questões relevantes” desta ordem.

A subjacente campanha para cultuar a monarquia e transformar os bolcheviques em “assassinos”
A série Os últimos czares foi montada com a finalidade de glorificar a monarquia e condenar seus “assassinos”, os bolcheviques. Entra como um elo perfeito na atual campanha imperialista – desencadeada em todos os países, mas em especial no Brasil – de disseminação de preconceitos anticomunistas. O seu método é baixo e vil: trata-se da utilização do sentimentalismo infantil e do raciocínio a-histórico da mentalidade mediana, igualando a repressão e os assassinatos da classe dominante para a manutenção do seu poder, com a violência da classe oprimida por sua libertação, como se fossem a mesma coisa e tivessem o mesmo peso.
Os seis episódios da série são maquiavelicamente construídos, distribuindo a sua doutrinação de forma sutilmente parcelada, dando ênfase e pesos diferentes para a construção da narrativa, embora caminhe firme para o seu gran finale. Os 4 primeiros episódios abordam a influência de Grigori Rasputin sobre a Czarina, mas já inserindo flashbacks do “assassinato bárbaro” da pura e ingênua família Romanov, cujo Czar “trabalhou duro e seriamente para dar o seu melhor ao povo russo”; preparando, assim, o lado emocional do espectador para despejar o conteúdo ideológico. Como grande parte da população é criada ouvindo os contos de fadas e, portanto, idolatrando e amando as famílias monárquicas, reis, rainhas, príncipes e princesas, esta emoção infantil cumprirá um papel determinante na sua visão sobre toda a trama.
A arte do cinema, assim como a do teatro, está baseada na dramaticidade das cenas e dos atos. As partes mais teatralizadas e demoradas, com ênfase no sofrimento, nos gestos, nas emoções e na trilha sonora, são as da execução do Czar e da sua família; portanto, cumprem papel decisivo. Toda a construção do drama culmina neste momento e o prepara. Em contraposição, os massacres protagonizados pelo Czar contra o povo, tal como o Domingo Sangrento e o envio de centenas de milhares de pessoas para o front, nas guerras contra o Japão em 1904 e na 1ª Guerra Mundial de 1914, ou mesmo para a Sibéria e o cadafalso nas grandes cidades, são tratadas en passant, quase como fatos banais e corriqueiros.
Ou seja, a ênfase é dada à ação dos bolcheviques, e não às medidas autoritárias seculares da monarquia, incluso condenações e execuções, que tanto sofrimento e opressão causaram ao povo russo (o que seria a única forma de esclarecer os motivos desta “ação”). A concepção dos autores da série é, portanto, a mesma que a da monarquia e a de Stalin, para quem a morte de milhares é apenas estatística. Isso fica evidente na frase lapidar do depoimento de um dos historiadores: “em toda história é difícil imaginar um ato tão bárbaro quanto o massacre caótico da família imperial”.
Como historiadores burgueses, a sua preocupação é reconstruir os fatos pela ótica estreita dos Romanov. Partindo deste ponto de vista, eles revalorizam os rituais, a concepção de mundo dos russos, a guerra e a revolução. Demonstram os malefícios de alguns conselheiros do Czar, que retardaram ou sabotaram a abertura política da Rússia para o parlamentarismo burguês. O misticismo medieval de Rasputin seria a má influência que aceleraria as intrigas de bastidores contra os ministros burgueses, como Stolipyn, selando o destino da monarquia. Ou seja, as preferências da Czarina e a sua influência pessoal sobre o Czar (além dos problemas com outros ministros e conselheiros) teriam preponderância sobre a crise histórica da instituição monárquica da Rússia, bem como o seu papel periférico na Europa e no mercado mundial. Assim, ignoram toda a marcha do desenvolvimento do capitalismo na Rússia e, sobretudo, a formação histórica de sua burguesia.
Quando estes historiadores abordam o papel dos bolcheviques e de Lenin durante a revolução, torna-se patente o caráter de doutrinação anticomunista da série. Intercalado com estes depoimentos, aparecem cenas em que os operários bolcheviques dos primeiros anos da revolução são igualados estética e ideologicamente aos agentes stalinistas (prática recorrente da ideologia burguesa, já desmascarada inúmeras vezes pelos setores mais conscientes da “esquerda” e dos trabalhadores). O depoimento dos historiadores imputa a Lenin preocupações que ele não possuía sobre popularidade ou impopularidade, típicas dos políticos burgueses. Lenin jamais trabalhou ou pensou desta forma. Para confirmar isso, basta ler qualquer um de seus livros. Contando com a ignorância do público a respeito destes “detalhes”, os “nossos” historiadores afirmam que “Lenin achava que executar a família imperial seria uma jogada muito impopular e ruim para ele”. E mais adiante, se referindo à guerra civil: “A situação dos bolcheviques era muito frágil”, por isso “foram requisitar comida aos fazendeiros, o que se tornou muito impopular”.
Lenin nunca esteve preocupado com dividendos eleitorais, pesquisas de intenções de voto ou acordos de bastidores. Mas com a consolidação de uma revolução que teve caráter histórico-universal. Ficou célebre uma de suas frases, que é completamente ignorada por estes “historiadores”, mas que esclarece ao mesmo tempo em que desmascara este tipo de historiografia: “uma revolução, uma revolução real, profunda, do povo, para usar a expressão de Marx, é o processo incrivelmente complicado e penoso de morte de uma velha ordem social e o nascimento de uma nova, o ajustamento das vidas de dezenas de milhares de pessoas. Uma revolução é a mais aguda, mais furiosa e desesperada luta de classes e guerra civil. Nenhuma grande revolução da história escapou da guerra civil. Se não houvesse circunstâncias excepcionalmente complicadas, não haveria revolução. Quem teme os lobos, não vai à floresta[i]. A série e os seus historiadores a soldo da Netflix simplesmente apagam este processo incrivelmente complicado e penoso de morte de uma velha ordem social e o nascimento de uma nova, escondendo tudo atrás de sofismas, abstrações e “índoles pessoais” boas ou más, tal como os contos de fadas da Disney.



A situação frágil dos bolcheviques e a guerra civil
         Os eufemismos da série sustentam que “a situação dos bolcheviques era muito frágil” em 1918. Como bons oportunistas, estes historiadores fatiam a realidade para conseguir desconectá-la e, assim, reafirmar suas ideias e sua concepção de mundo. Por exemplo, falam de “situação frágil” em um momento e sobre “a fome gerada pelo governo bolchevique” em outro, mas não associam esta situação claramente à guerra civil desencadeada pelos exércitos imperialistas que invadiram a Rússia. Tampouco dão a verdadeira ênfase dramática exigida pelo contexto histórico (ao contrário: esta ênfase existe apenas no fuzilamento da família real). Como seria, então, essa “situação frágil”?
         Os bolcheviques se encontravam à frente de um Estado operário recém fundado, repleto de contradições e dividido entre 5 formas de economia, com instituições políticas totalmente novas e nunca utilizadas, saído de uma guerra mundial contra a vontade dos seus aliados de ontem, cercado de inimigos militares, dentre os quais o que viria a se tornar o nazi-fascismo. Somava-se a isso um baixíssimo nível cultural de um país recém liberto de uma monarquia semi-feudal, com inúmera tradições burocráticas e medievais. Ao peso do boicote do imperialismo no mercado mundial, se somou a derrota dos processos revolucionários na Europa (Alemanha, Hungria, dentre outros) e a invasão dos 14 exércitos imperialistas que desencadearam uma furiosa guerra civil que matou a melhor parcela da vanguarda operária que estava a frente dos sovietes e do partido bolchevique, deixando-os restritos à Moscou. Tudo isso aprofundou a fome que já vinha do rescaldo da 1ª Guerra Mundial e forçou às expropriações dos camponeses ricos.
         Saber destes fatos não impediu que os historiadores da série continuassem caluniando os bolcheviques e distorcessem vergonhosamente a história, não devendo nada aos “historiadores” stalinistas: “Lenin e os bolcheviques assinaram o Tratado de Brest-Litovski, o que fez perder grande parte dos territórios da Rússia. E Lenin começa a perder apoio por ter traído a Rússia”. Ora, caros amigos, este tratado selou a saída definitiva da Rússia da Guerra Mundial. Era uma das principais exigências dos operários e dos camponeses, sem o quê, certamente os bolcheviques não teriam ganho a influência decisiva para se pôr à frente do processo revolucionário de 1917. Por certo as negociações não saíram conforme o ideal, como querem aqueles que pensam que a história se faz por encomenda, havendo chantagens e pressões das potências mundiais. Além disso, houve a política proposta por Lenin, que ficou conhecida como autodeterminação dos povos. Ela dava aos antigos países dominados pela Rússia o direito de decidir se seguiriam fazendo parte desta “união”. Muitos a abandonaram. Outros não. Cabe relembrar que o regime instituído por Stalin revogou esta política de autodeterminação através das práticas autoritárias que conhecemos.
         Ao contrário do que nos querem fazer crer os historiadores a soldo da Netflix, o Tratado de Brest-Litovski, apesar de suas limitações, não foi uma traição, mas uma reafirmação do compromisso assumido com os trabalhadores e com as bandeiras da revolução levantadas pelos sovietes. Esse tratado, inclusive, acelerou o fim da 1ª Guerra Mundial, que era caracterizada por Lenin como uma guerra imperialista. Sendo coerente com essa corajosa caracterização, ele lutou contra ela até o seu fim. A burguesia russa e mundial, por sua vez, venderam a ideia da saída da guerra, da desanexação e da perda de territórios como uma traição à Rússia. E é justamente para estes últimos que os historiadores da série oferecem os seus serviços.

Sobre a execução da família real e a criminalização histórica dos bolcheviques
         Dentro desta lógica nefasta, que ignora o contexto e os interesses de classe dos trabalhadores, os historiadores da Netflix sustentam que “os bolcheviques anunciaram a execução de Nicolau III, mas não disseram nada sobre a sua família. Eles achavam que seria um desastre para as relações públicas admitir o assassinato de crianças inocentes. Então, eles intencionalmente mistificaram a história”.
Nestes trechos existem mais venenos ideológicos do que supõe a nossa vã ingenuidade. Faz parte de toda a engenharia reacionária montada cuidadosamente pelos “nossos” historiadores e os editores da série para condenar os oprimidos por vencerem, associando, de quebra, os bolcheviques sob Lenin e Trotsky (que praticamente não é citado durante a série, embora os historiadores recorram seguidamente a várias informações e conceitos formulados por ele, mas sem admitir, obviamente) com as falsificações históricas do stalinismo. Querem relacionar, portanto, a formação do stalinismo com esta ação realizada pelos autênticos bolcheviques em meio às difíceis condições de uma guerra civil.
Nós, ao contrário dos historiadores burgueses, devemos olhar os fatos históricos com um óculos e uma escala que seja adequada aos interesses dos esfomeados, miseráveis e oprimidos deste mundo. Dizer que “seria um desastre para as relações públicas”, desconsiderando o contexto histórico de uma guerra civil que arrasou a Rússia, matou mais da metade da vanguarda revolucionária e condenou o governo bolchevique a um cruel isolamento internacional, não é apenas um disparate de historiadores com mentalidades anestesiadas pelas formalidades do dinheiro e do poder burguês, mas uma piada macabra contra aqueles que lutaram e morreram em uma guerra de libertação.
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No último episódio ainda somos brindados com a construção de uma narrativa que tenta manipular o lado emocional do espectador, demonstrando que os malvados bolcheviques não perdoaram nem mesmo as pobres criancinhas. Ela se baseia na necessidade ideológica de criar cortinas de fumaça para poder atacar a justeza de uma guerra revolucionária que não pode ser atacada, senão distorcendo a realidade e recorrendo à métodos ardilosos, tais como fez a elite brasileira com o seu mito de que “comunista come criancinha” e de que a “Rússia era um país satânico”. Imbuídos deste espírito, os “nossos” historiadores dão o seguinte depoimento: “todos tinham esperança de que as crianças pelo menos sobreviveriam de alguma forma. Era inimaginável que algo acontecesse a elas”.
Seria apenas ignorância destes nobres historiadores de que as crianças de uma família real são a continuidade hereditária da monarquia? Que o Exército Branco estava atrás de qualquer representante da família Romanov capaz de poder restaurar o poder imperial e subir ao trono? Sim; eles sabem de tudo isso, mas assim como querem demonstrar a “desumanidade dos bandidos bolcheviques” a partir da encenação do terrível tratamento dado à família real, querem induzir a ideia de que eles atacarão toda e qualquer criança, afinal de contas, não foram sequer capazes de perdoar as criancinhas da realeza.
Fariam estes historiadores os mesmos comentários e julgamentos morais sobre o guilhotinamento da família real francesa pelos jacobinos em 1793 e a morte dos seus filhos nos calabouços?

O fuzilamento deles e o nosso!
Vejamos, por outro lado, o que Trotsky escreveu sobre o fuzilamento do Czar: este caso “se desenvolveu durante um período extremamente crítico da guerra civil, quando eu passava quase todo o meu tempo no front (...) Numa de minhas breves passagens por Moscou eu fiz notar de passagem no Politburô que, dada a péssima situação do Ural, conviria acelerar o processo do Czar. Eu propus um debate judiciário público, que deveria expor o quadro de todo o reino (política camponesa, operária, nacional, cultural, as duas guerras, etc.). O rádio deveria transmitir para todo o país o desenvolvimento do processo. Lenin emitiu a opinião de que seria ótimo se fosse possível. Porém, o tempo poderia ser escasso. Não houve debate, pois eu não insisti mais na minha proposta, absorvido que estava por outros afazeres. (...) Minha segunda visita a Moscou ocorreu quando Ekaterinburg já tinha caído. Batendo papo com Sverdlov, eu lhe perguntei de passagem: onde está o Czar? Acabou-se, respondeu ele: – todos? Perguntei, aparentemente com um tom espantado. – Todos, respondeu Sverdlov, e daí? Ele esperava minha reação, eu nada respondi. – E quem decidiu? Perguntei. – Fomos nós aqui que decidimos. Lenin considerava que não se podia deixar uma bandeira viva, sobretudo nas difíceis condições atuais... Eu não fiz mais perguntas e coloquei uma pedra sobre o assunto. De fato, a decisão era não apenas conveniente, mas indispensável. A ferocidade dessa justiça sumária mostrava a todos que conduziríamos a luta impiedosamente, sem nada que nos detivesse. A execução da família imperial era necessária não apenas para assustar, estupidificar, privar de espírito ao inimigo, mas também para sacudir os nossos, mostrar-lhes que não há retirada possível, que o que os esperava era a vitória total ou a derrota total. Nos meios intelectuais do partido, é plausível que tenha havido dúvidas e receios. Mas as massas dos trabalhadores e dos soldados não tiveram um minuto de dúvida: eles não teriam entendido, nem admitido nenhuma outra decisão. Era esse tipo de coisa que Lenin sentia bem: a capacidade de pensar e sentir pelas massas e com as massas lhe era própria no mais alto nível, sobretudo nos grandes redemoinhos políticos”[ii].
No seu panfleto intitulado A moral deles e a nossa, Trotsky combate o sentimentalismo pequeno-burguês que iguala a violência dos opressores a dos oprimidos, condenando, assim, a emancipação dos últimos. Segundo ele: “Não vamos insistir sobre o fato de que o decreto de 1919, muito provavelmente, não fez fuzilar nenhum dos parentes dos oficiais, cujas traições nos custavam inúmeras vidas e ameaçavam sufocar a revolução. No fundo, não é disso que se trata. Se a revolução não tivesse manifestado, desde o começo, uma inútil generosidade, milhares de vidas teriam sido poupadas em seguida. Seja como for, assumo inteira responsabilidade pelo decreto de 1919. Foi uma medida necessária na luta contra os opressores. Esse decreto, como toda a guerra civil, que bem se poderia chamar com razão uma ‘barbaridade revoltante’, não tem outra justificação histórica que o objetivo da luta”[iii].
E conclui: “A importância de Abrahan Lincoln consiste no fato de que, para alcançar o grande fim histórico exigido pelo desenvolvimento do jovem povo americano, não recuou diante das medidas mais rigorosas, quando foram necessárias. A questão não é sequer saber quais dos beligerantes que infligiram ou padeceram as perdas mais graves. A história tem medidas diversas para as crueldades dos nortistas e sulistas na Guerra da Secessão. Que os miseráveis eunucos não nos venham dizer que o escravagista que com mentira e violência agrilhoa um escravo, está, diante da moral, no mesmo plano que o escravo que com a mentira e a violência quebra seus grilhões!”[iv].
Cabe destacar, entretanto, que os fuzilamentos ocorridos durante o período de dominação stalinista, principalmente os conhecidos como Processos de Moscou, nada tem a ver com os fuzilamentos da guerra civil, ocorridos sob um dos momentos mais críticos de todo o processo revolucionário. Além de serem baseados em flagrantes fraudes judiciais, os Processos de Moscou ocorreram na década de 1930, quando a guerra civil já tinha acabado e a situação revolucionária se estabilizado.

A Netflix e a sua nova “guerra fria cultural”
Muitos outros desmascaramentos históricos poderiam ser feitos, mas estes são suficientes por hora. Os últimos czares entra como parte nesta campanha de calúnia e difamação contra o comunismo. Enquanto a Netflix tenta humanizar o rosto dos czares, desumaniza a figura de Trotsky com a sua série sobre o revolucionário russo, idealizada pelo canal de TV de Vladmir Putin, um conhecido ex-agente stalinista. Este é, basicamente, o programa político e os objetivos culturais da Netflix. A nova “guerra fria cultural” se expressa, inclusive, em séries de entretenimento banais, como a terceira temporada de Stranger Things, que resgata a luta entre norte-americanos e russos na chamada “guerra fria”. Nesse caso, as críticas ao “socialismo” soviético são muito sutis e imperceptíveis. Há um resgate da prática hollywoodiana de tratar os russos, chineses e vietnamitas como os inimigos a serem combatidos. Estes Estados Operários não existem mais, mas o espectro do comunismo precisa ser combatido de qualquer forma para que os trabalhadores não voltem os seus olhos para ele.
“Há um porém”, nos dirão algumas vozes apegadas à superficialidade formalista – tão comum nos dias de hoje – e desconsiderando o seu conteúdo real: “existem seriados que são de esquerda na Netflix. Por certo existem filmes, documentários e séries com tendências de esquerda, tais como Privacidade hackeada, Democracia em vertigem, Snowden – herói ou traidor?, dentre outros. Porém, o perfil destas produções cinematográficas, ainda que sejam muito importantes, não ultrapassa o nível de uma esquerda reformista, social-democrata, petista, do tipo de “esquerda” que existe no Partido Democrata dos EUA; portanto, de uma “esquerda” totalmente aceitável à burguesia. Em outras palavras: a virulência dos ataques dessa doutrinação de direita fazem estragos ideológicos sem precedentes, ao passo que estas “produções de esquerda” sequer chegam aos pés da destruição proporcionada pelas produções de direita. Em suma: os bolcheviques, como a ala mais radical da esquerda, não tem voz nem “direito de resposta” em redes como a Netflix; apenas ataques sutis, encarniçados e ininterruptos.

A queda do muro de Berlim e o fim das utopias
         A intelectualidade burguesa, apoiando-se no sentimentalismo pequeno-burguês, quer tornar um dogma aquele jargão de que a experiência com o “socialismo soviético” e a sua posterior “queda”, em 1991, representou o fim das utopias. Devemos nos conformar com a mediocridade do real e, é claro, com a nossa condição na sociedade capitalista, pautada pela exploração de classe e a sua miséria reinante. No capítulo final de Os últimos czares aparece, como não poderia deixar de ser, a cena do muro de Berlim sendo derrubado e os restos mortais dos czares recebendo, enfim, o seu “tratamento merecido”. A conclusão implícita é: a revolução não compensa! Conforme-se!
         Para os trabalhadores conscientes, as experiências revolucionárias do século 20 não significam o “fim das utopias”, mas severas lições que devem ser refletidas, compreendidas e incorporadas. Com elas apenas nos tornamos mais sóbrios e mais conscientes das nossas limitações humanas em um processo revolucionário. A necessidade de superarmos a sociedade capitalista continua. As explosões populares espontâneas em vários países no início deste século 21 não deixam dúvida quanto a isso. Se compreendermos as lições do século 20 e conseguirmos trabalhar conscientemente pela superação do burocratismo, então, estarão colocadas as condições para superarmos os erros do passado e avançarmos para uma sociedade socialista. Não uma sociedade utópica e perfeita, mas uma possível e equilibrada, que seja capaz de superar o capital e de garantir o mínimo de condições para uma vida digna e feliz de todos os seus membros.
Condições estas que o capitalismo é incapaz de criar. Por isso precisa de uma indústria cultural ativa para dissimular, distorcer, mentir e pintar um mundo cor de rosa, transformando vilões em heróis e perpetuando o inferno da escravidão assalariada como natural, sagrada e, até mesmo, desejável.



 Referências Bibliográficas


[i] LENIN, Vladmir Illich. Para a tomada do poder, volume II.
[ii] TROTSKY, Leon. Diário do Exílio, escrito do dia 9 de abril de 1935.
[iii] TROTSKY, Leon. A moral deles e a nossa. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1936/moral/cap02.htm#cap12
[iv] Idem.

2 comentários:

  1. A História é o principal alvo da direita.Nao existe direita sem falsificação da História.Nunca conheci direitista que não falsificasse a História.

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