domingo, 22 de setembro de 2019

Introdução à discussão sobre fascismo e uma crítica a Reich

O trabalho a seguir é uma crítica às posições de Reich sobre o fascismo, as quais, após a sua vitória na Alemanha, sofreram radical transformação. A sua postura revolucionária inicial evoluiu para uma interpretação psicologista delirante. Uma vez que esse Reich obsessivo estava sendo resgatado, resolvemos alertar para esse equívoco, valendo-nos dele mesmo. Não tivemos sucesso. A defesa dessas posições reacionárias continuou, caracterizando não mais um engano, mas um oportunismo. Queremos apenas melhor caracterizar o absurdo dessas posições.

Reich foi decisivamente abalado pela ascensão do fascismo, concomitante à consolidação do stalinismo. Alemão e membro do Partido Comunista, foi perseguido por ambos, e mais tarde, refugiado nos EUA, pelo mackartismo americano. Dominado pela obsessão, abandonou a sua interpretação revolucionária expressa no seu livro Materialismo Dialético e Psicanálise (1929), onde defende que a psicologia é uma ciência auxiliar da sociologia: “a psicanálise só se interessa pelo psiquismo das massas na medida em que nelas surgem fenômenos individuais (o problema do chefe, por exemplo); na medida em que, pelo conhecimento do indivíduo, ela pode explicar as manifestações da almas das massas”. Rompendo radicalmente consigo mesmo, passa a adotar uma visão psicologista, evoluindo para uma interpretação biológica do comportamento, como se a espécie humana se assemelhasse a uma colméia de abelhas.

No Prefácio à 3ª edição em língua inglesa, corrigida e aumentada, de 1942, confessa a sua mudança radical: “Minha revisão da segunda edição, reflete a revolução ocorrida no meu pensamento”; “por volta de 1930, eu desconhecia as relações naturais que se estabelecem entre os trabalhadores, na democracia do trabalho”; “os conceitos partidários do marxismo usados neste livro tiveram que ser riscados e substituídos por novos conceitos”; “o abismo que separa a visão puramente econômica da visão biossociológica é intransponível. À teoria do ‘homem de classe’ opunha-se a natureza irracional da sociedade animal do homem”; “a psicologia marxista, desconhecendo a psicologia de massas, opôs o burguês ao proletário. Isso é psicologicamente errado”; “a sociologia e a psicologia adquiriram, assim, uma sólida base biológica (grifo meu), o que não pode deixar de exercer influência sobre o pensamento”; “tudo o que é autenticamente revolucionário, toda a arte e a ciência, provém do cerne biológico (idem) natural do homem”.
 
Abundam as contradições, que não vamos analisar. A psicologia, de ciência auxiliar da sociologia, passa a explicar o fascismo: “o fascismo não é mais do que a expressão politicamente organizada da estrutura do caráter do homem médio ...”. “... as massas humanas, depois de séculos de opressão, são absolutamente incapazes de liberdade”; “em suma, atribuímos às massas humanas toda a responsabilidade por todos os processos sociais”; “...na base do fascismo está a irresponsabilidade das massas humanas de todos os países, nações, raças, etc.”; “tudo o que acontece na vida social é determinado, ativa ou passivamente, pela estrutura das massas humanas”. A isso chama de “peste emocional”.   Para ele, “o objetivo da sociologia deixou de ser, de modo geral, a economia, para se concentrar na estrutura (psicológica) das massas humanas”. Isso quer dizer que não só o fascismo se explica pela psicologia, mas a própria sociologia vira um apêndice da psicologia.
 
Sobre a revolução russa, inicialmente, admite que “a eliminação do analfabetismo e a transformação de um país agrícola em um país industrializado são, certamente, feitos importantíssimos ...”.  No entanto, considera que “o irracionalismo das massas” explicaria “primeiro a paralisação e depois a degeneração autoritária do processo revolucionário, a princípio, tão promissor”. Toda a culpa recairia sobre as massas: “seria absurdo atribuir a culpa a Stálin ou a qualquer outro”; “aprendemos, pelo exemplo do aparelho de Estado russo, que ele se tornou necessário, e não foi difícil compreender que, apesar de todo o seu irracionalismo, cumpriu uma função racional de congregar e dirigir a comunidade russa”; “elas e só elas são responsáveis”; “não se pode censurar o governo soviético por ter voltado aos métodos de controle autoritário e moralista: ele teve de fazê-lo para não por em perigo o resto”. Ao culpar as massas e absolver Stálin, assume uma postura reacionária.
 
A psicologia das massas é um elemento real, que não se pode ignorar, definidos por Reich com muita propriedade: “Hitler insistiu incansavelmente que devemos nos dirigir às massas não com argumentos, provas e conhecimentos, mas por meio de sentimentos e crenças”; “a massa de indivíduos apolíticos, ..., facilmente se deixa seduzir pelo discurso místico de um nacional-socialista”; “mas ser apolítico não é, como se acredita, um comportamento de passividade, mas sim um comportamento ativo, uma defesa contra a consciência das responsabilidades sociais”; “o indivíduo volta para ele (para o fascista) toda a sua atenção, não porque o programa fascista lhe diga mais que o programa revolucionário, mas porque a entrega ao furer e à sua ideologia lhe proporciona um alívio momentâneo da sua permanente tensão interior”.  O erro crasso consiste em considerar a psicologia um fator determinante sobre as condições sociais. Ao contrário, ela é uma função da realidade social. Os elementos psicológicos são historicamente determinados pela vida social, e não o contrário.
 
Não é verdade que o fascismo esteja em cada um de nós e que o mesmo seja culpa das massas, muito menos que as mesmas sejam “incapazes de liberdade”. Esse determinismo reacionário, a ser verdadeiro, tornaria inexplicável a luta de classes, as revoluções e insurreições. Pode-se afirmar que todas as tentativas de socialismo terminaram sistematicamente derrotadas. Mas Reich transforma essas derrotas em algo inevitável. Mas não é assim. Elas têm causas perfeitamente identificáveis e não são inevitáveis, e a culpa não recai sobre as massas. As condições da sua vitória podem ser perfeitamente estabelecidas. 
     
A submissão das massas ao chefe tem causas histórias para além da psicologia e não acontece em quaisquer circunstâncias. Determiná-las é uma tarefa da sociologia política e apenas secundariamente da psicologia. Não haveria fascismo sem a traição da social-democracia e do stalinismo. O fascismo é um fenômeno de massas, principalmente, das classes médias desesperadas, em momentos de derrota, quando essas se colocam a serviço do capital financeiro, que lhes oferece, em troca da submissão, a escravização de outros povos. As classes médias são mais suscetíveis à psicologia individual, e não podem ter um programa próprio para a sociedade. Só lhes resta seguir à burguesia ou ao proletariado. Por ser um movimento imperialista, não pode existir fascismo tupiniquim. O que vemos é um neo-fascismo a serviço do imperialismo hegemônico, que nada pode oferecer às massas. É o último recurso da grande burguesia contra o socialismo. Não é o seu regime predileto. Somente nessas circunstâncias, grandes massas de classe média, e parte do proletariado, entregam a sua alma ao um furer salvador. A psicologia das massas é apenas um dos fatores, secundário, que se soma aos fatores sociais determinantes.
   
Reich, após substituir a sociologia política na explicação da sociedade pela psicologia, desbanca a própria psicologia em nome de uma interpretação biológica: “as massas humanas, ..., tornaram-se biologicamente rígidas e incapazes de liberdade ...”; “as guerras são motivadas biologicamente”; “a mentalidade escrava está profundamente enraizada no próprio corpo, tornou-se uma segunda natureza,...”.

Esse mesmo impressionismo o levou também à idealização dos Estados Unidos: “nessa época (1934) eu não tinha conhecimento de que se desenvolvera nos Estados Unidos uma atitude nova quanto à economia sexual, que viria a facilitar mais tarde a aceitação da economia sexual”; “só assim se compreende que, até o momento deste trabalho, não se tenha podido desenvolver nos Estados Unidos nenhum aparelho de Estado totalitário, enquanto, na Europa, todas as revoluções trouxeram invariavelmente consigo novas formas de despotismo ...”; “os fundadores da revolução americana tiveram de construir a sua democracia em terreno estrangeiro e em bases inteiramente novas, a partir do nada”; “... nos Estados Unidos, as tentativas de preservar os velhos ideais democráticos e os esforços com vistas a desenvolver a verdadeira autogestão foram muito mais vigorosos do que em qualquer outro país”. Por ironia da história, foi o macartismo americano que o perseguiu e matou, porque não poderia tolerar a sua revolucionária “economia sexual”. E a suposta autogestão americana é a mesma que escravizava dezenas de países sob uma fachada democrática. 

O fascismo segundo Reich e Trotsky
Reich contra Reich:
No momento em que o neo-fascismo cresce em todo o mundo, assumindo diversas roupagens, a discussão do seu significado volta à ordem do dia. Surge quem defenda a visão psicológica de Wilhelme Reich, segundo a qual, o fascismo seria fruto da “peste emocional”, conseqüência da “estrutura do caráter das massas”. Queremos discutir o real papel da psicologia de massas comparado ao da luta de classes, e a relação entre o fascismo do século XX e o neo-fascismo atual. Defendemos que o fascismo é um fenômeno social, que se vale, em certas circunstâncias, como fator secundário, da psicologia das massas. Em 1929, Reich publicou Materialismo Dialético e Psicanálise, no qual demonstra a compatibilidade entre a dialética e a psicanálise e onde defende que a psicologia é uma ciência auxiliar da sociologia. Mais tarde, após a vitória de Hitler, rompendo consigo próprio, adotou uma compreensão psicologista, inclusive, biologista do fascismo.  
     
A sua teoria da sexualidade escandalizou o mundo burguês, inclusive, a burocracia stalinista. Como conseqüência, foi expulso da Sociedade Psicanalítica, do Partido Comunista, perseguido pelo nazismo e pelo macarthismo americano. Posteriormente, como conseqüência talvez dessa perseguição, veio a manifestar uma tendência obsessiva.  No seu livro Psicologia de Massas do Fascismo, versão profundamente alterada de 1942, o fascismo passa a ser explicado exclusivamente pela “estrutura do caráter das massas”, que seria uma formação psicológica obra do patriarcalismo milenar. Ao contrapor o Reich dos primeiros tempos ao Reich obsessivo, rendemos homenagens ao Reich revolucionário, o cientista da sexualidade humana. No prefácio a esse livro, Psicologia de Massas do Fascismo, rompe com o marxismo: rejeita os conceitos de comunista, socialista, dialética, luta de classes e toda a sociologia marxista, passando a defender o psicologismo e o apoliticismo. 

Inicialmente, no Materialismo Dialético e Psicanálise (1929), defendia que a “psicanálise só se interessa pelo psiquismo das massas na medida em que nelas surgem fenômenos individuais (o problema do chefe, por exemplo); na medida em que, pelo conhecimento do indivíduo, ela pode explicar as manifestações da alma das massas, tais como o medo, o pânico, a obediência, etc. Mas parece que fenômenos da consciência de classes lhe são dificilmente acessível; e os problemas tais como o movimento de massas, a política, a greve, que são do domínio da sociologia, escapam ao método psicanalítico. Ela não pode, portanto, substituir a sociologia, nem sequer extrair de si própria uma doutrina sociológica. No entanto, pode desempenhar, relativamente à sociologia, o papel de ciência auxiliar ...” . Já em 1934, no texto A Aplicação da Psicanálise à Pesquisa Histórica, abre exceções a esse método, afirmando “ter finalmente encontrado uma formulação provisória que tentava dar, na sociologia, um lugar à psicanálise”, passando a explicar a formação das ideologias pela psicanálise e, posteriormente, termina por explicar o fascismo pela psicologia. A psicanálise pode apenas explicar os aspectos irracionais da psicologia de massas. E mesmo essa irracionalidade não é uma fatalidade, define apenas tendências. A psicologia humana é essencialmente dialética, uma luta entre tendências antagônicas: “os traços de caráter podem, em determinados conflitos, transformar-se no seu direto contrário”; “o ódio pode significar amor e vice-versa” (1). Para Freud, os instintos humanos são ambivalentes, admitem diversas possibilidades.  
 
Não se pode explicar o fascismo, exclusivamente e nem principalmente, por essa irracionalidade, embora não se possa, também, desconhecer a importância dela para a sua vitória: “o contágio místico é o pré-requisito psicológico mais importante para a absorção da ideologia fascista pelas massas”; “certas palavras são usadas como um fetiche (comunista, bolchevique, vermelho)”; o fascismo “apela para o conteúdo emocional do misticismo”; “na psicologia de massas o furer nacionalista é a personificação da nação”; “ele atrai todas as atitudes emocionais que foram, num dado momento, devidas ao pai, severo, protetor e poderoso”; “é a necessidade das massas de proteção” (2). Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud afirma que as massas desorganizadas assemelham-se à primitiva horda. Suas características são muito semelhantes ao antes descrito: influenciável, crédula, intolerante, impulsiva, irracional, não precisa de lógica, entrega-se a instintos: “o que ela exige dos seus heróis é força, inclusive, violência”; “ela quer ser dominada, oprimida e temer seus senhores”; “com razão e argumentos não se pode lutar contra certas palavras e fórmulas”; “elas exigem ilusões”; “não podem viver sem chefe ...”. 
 
Segundo Trotsky, “a pequena burguesia necessita de uma instância superior, acima da nação e da história, que a proteja contra a competição, a inflação, a crise ...”; “Hitler é a sombra mitológica da própria pequena burguesia ...”; “o medo animal à igualdade, a hostilidade invejosa a quem tem uma casa ou um automóvel, a fábula da raça superior, a esperança no renascimento colonial; o delírio do nacionalismo”; “os mitos e as manias ainda estão enraizados nas massas, apesar dos avanços tecnológicos. Que reserva inesgotável de trevas,  ignorância e selvagismo! A desesperança as pôs de  pé e o fascismo lhes deu uma bandeira”; “o pequeno burguês crê que o fascismo  usará a força para fazer justiça” (3); “sem a compreensão dessa psicologia das massas, ..., é impossível elaborar uma política revolucionária” (4). A psicologia explica o fanatismo, a submissão, o ódio e as ilusões irracionais, que o fascismo soube explorar muito bem. Mas as razões profundas do fascismo não estão na “estrutura do caráter” das massas, mas na luta de classes. O desenvolvimento psicológico depende do social; “as disposição e as pulsões humanas são formas vazias prontas a receber conteúdos sociais, ...” (5). Com a vitória do fascismo, Reich transformou essa psicologia no elemento preponderante. Na verdade, a psicologia apenas adaptou-se à sociedade de classes baseada na exploração e na repressão.  E, uma vez criada, a psicologia também influencia a realidade social, mas não adquire independência em relação a ela. São os interesses de classe que explicam a sociedade e o fascismo. 

O modo de vida social é profundamente conservador, reflete os costumes e a ideologia social dominante, que legitima a repressão e a exploração. O indivíduo, politicamente inconsciente, sente-se isolado, desamparado. Essa alienação, impotência e os medos inconscientes, são a causa do apoliticismo geral. Mas a despolitização é só um aspecto do problema. Não existe solução individual. Apenas, a organização coletiva pode oferecer uma perspectiva. Embora conservadoras, as massas são forçadas a sair da sua letargia em momentos excepcionais, como as guerras e as crises, e podem assumir tanto posição reacionária como revolucionária, dependendo da conjuntura, da organização e das suas direções. 
   
As classes médias são heterogêneas, sentem-se beneficiárias do capitalismo. Normalmente, identificam-se com a burguesia, aspiram à ascensão social e tem medo de perder o seu status. Não podem oferecer uma alternativa própria à sociedade, porque não têm coesão e não participam da produção. Seguem à burguesia, mas, em certos momentos, também podem seguir o proletariado, se este demonstra a sua força. As crises sociais, a fraqueza do proletariado e a impotência da pequena burguesia, são fatores que favorecem o seu apoio ao fascismo. Este é psicologicamente sedutor, apela aos seus instintos irracionais, lhe vende ilusões e lhe exime de responsabilidade.
 
O proletariado difere-se da pequena burguesia: é mais numeroso, participa da produção, está concentrado em grandes fábricas, é mais homogêneo, o seu trabalho está socializado e as suas lutas atingem o coração do capitalismo, a produção. É alienado apenas dos frutos desse trabalho. A sua situação lhe confere um caráter objetivamente revolucionário, embora seja subjetivamente alienado, fato que o torna apenas mais receptivo à organização, ás lutas e à propaganda socialista, que são tarefas políticas. Em certas circunstâncias, também, pode ser recrutado pelo fascismo. Disso, não se deduz a afirmação de Reich de que as “massas são incapazes de liberdade”. Não existe essa fatalidade. A Comuna de Paris, as três revoluções russas (1905, fevereiro e outubro de 1917), a revolução alemã de 1918, que criou Conselhos Operários, a revolução chinesa, entre outras tantas, demonstram o contrário, mesmo que todas essas revoluções a curto ou longo prazo tenham terminado derrotadas. Mas essas derrotas não eram inevitáveis. É preciso compreendê-las.

Atualmente, essas condições sociais sob o capitalismo sofreram grandes alterações, algumas favorecem a luta do proletariado, outras à dificultam.  Com a automatização, o contingente do proletariado industrial foi reduzido, mas cresce no oriente (China, Índia, etc.), que se transformou na fábrica do mundo. E cresce também o setor assalariado de serviços e o lumpesinato. A monopolização da economia, que concentra capitais gigantescos, em grande parte ociosos, torna mais difíceis as lutas sindicais. Ao mesmo tempo, é mais premente a expropriação desse capital parasita. A restauração do capitalismo na ex-URSS e na China, pelas mãos da própria burocracia, representou profunda derrota do proletariado internacional, equivalente à derrota sofrida com a vitória do fascismo. A sua organização foi virtualmente destruída. Seus partidos transformaram-se em agencias do capital e os sindicatos apelegaram-se. Disso se conclui apenas que é preciso recomeçar. Mas as derrotas não duram para sempre, como não durou o fascismo. O socialismo não é inevitável. A luta de classes abre sempre duas possibilidades, a vitória da burguesia ou do proletariado. A humanidade encontra-se diante da famosa alternativa de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. O fascismo é uma das faces dessa barbárie, que se soma à miséria social.
   
O fascismo é uma confluência de múltiplos fatores, (objetivos, subjetivos e psicológicos): a degeneração do capitalismo, a luta inter-imperialista, uma grande crise social, o medo ao comunismo (representado pela então URSS), o desamparo da pequena burguesia e os seus medos conscientes e inconscientes. É uma manifestação típica da decadência do capitalismo na época de domínio dos monopólios. Nem sempre a pequena burguesia atuou como instrumento do capital, muito menos do fascismo: “Já ficou demonstrado, pela experiência da Comuna de Paris ....  e, depois dela, pela experiência da revolução de outubro, ..., que a aliança entre a grande burguesia e a pequena burguesia não é indissolúvel” (6). A próspera Alemanha chegou tarde à divisão do mercado mundial, e a derrota na primeira guerra a jogou em profunda crise social.  O nazismo representou o desespero das classes médias diante dessa crise, uma reação contra as condições do tratado de Versalhes e o desejo de revanche da burguesia alemã.

A vitória nazista, também, não teria acontecido sem a traição do Partido Socialista, que apoiou a primeira guerra, e do Partido Comunista, que frustrou o desejo de unidade do proletariado, dividido entre esses dois partidos, com a sua política ultimatista e divisionista, que caracterizava a social-democracia de social-fascista. A Alemanha, que sucumbiu ao nazismo, foi também o berço do maior movimento socialista da história. Os operários alemães haviam derrubado a monarquia e criado os Conselhos Operários. A política burguesa do PS impediu a tomada do poder por esses Conselhos e o sectarismo do PC pavimentou o caminho para Hitler.  

O neofascismo e o terrorismo neofascista
O neo-fascismo brota em todos os lugares. Pouco tem a ver com o     fascismo do século XX. O conceito de fascismo “tem um caráter de generalização. Os fenômenos históricos nunca experimentam uma repetição completa” (7). O neo-fascismo, embora tenha semelhanças com o fascismo, difere dele em aspectos importantes. O fascismo foi um movimento espontâneo e plebeu das classes médias, posto a serviço de uma potência em ascensão, a Alemanha e, secundariamente, a Itália, contra o perigo da revolução proletária, vitoriosa na URSS. Em geral, o neo-fascismo é um movimento criado pelo imperialismo decadente, os EUA e seus satélites, para a manutenção do seu domínio mundial e dos seus mercados, ameaçados por novas potências emergentes, principalmente, a China e, em segundo plano, a Rússia. Assume variadas formas, de acordo com os seus interesses geopolíticos. Assemelha-se ao fascismo pelo terrorismo de Estado ou pelo terrorismo mercenário, pela xenofobia e racismo (no caso, os imigrantes). Como todo fascismo, é um movimento anti-proletário, embora o proletariado venha de profunda derrota. Apesar das semelhanças, as diferenças são mais importantes.  

O neo-fascismo é um método acessório do imperialismo, usado na exata medida das suas necessidades. Tanto o fascismo clássico, como o neo-fascismo atual, nunca foram a forma de governo preferida da burguesia. Esta se valeu de Hitler e Mussolini como último recurso contra o perigo socialista. Atualmente, esse perigo foi postergado com a restauração do capitalismo na URSS e na China. O neo-fascismo tem sido uma espécie de navio quebra-gelo, que abre caminho para a democracia burguesa, mesmo que esta seja, cada vez mais, uma casca sem conteúdo, mas menos traumática, que dá mais estabilidade aos negócios capitalistas. Vejam o nazi-sionismo: é semelhante ao nazismo pelo racismo e xenofobia; um se diz ariano, o outro adota o conceito de “povo eleito”, os judeus; usa de métodos fascistas contra os palestinos, confinados em gigantescos campos de concentração (Cisjordânia e Gaza). Diferente do fascismo, é um Estado teocrático, dando poderes de Estado, nas questões da família, aos fundamentalistas judeus e financiando as suas colônias em territórios palestinos. Mas, internamente, mantém um regime parlamentar, aparentemente democrático. Algo semelhante ao que acontece na Ucrânia. Os EUA e a Europa armaram as bandas neo-fascistas do Setor Direito para depor o governo pró-russo. Mas o golpe não implantou um governo fascista, mas uma democracia parlamentar de fachada, mantendo o neo-fascismo com participação limitada, a espera de novas ordens. “A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido gosta de arrancar um dente” (8). 

O terrorismo neo-fascista (Talibã, Al Qaeda, Estado Islâmico e tantos outros) são grupos mercenários recrutados e armados pelo imperialismo. A xenofobia e o terrorismo os assemelham ao fascismo. Mas, diferentemente dele, são grupos religiosos fundamentalistas.  O talibã foi criado pelos EUA para se opor à intervenção soviética na Afeganistão. Posteriormente, fugiu do controle e voltou-se contra o seu criador. Os demais têm sido usados para preparar a intervenção imperialista em países estratégicos, barrando a expansão chinesa e russa, seus gasodutos, e desestabilizando os governos caídos em desgraça, através do método conhecido como “caos construtivo”. São usados como amigos, para desestabilizar esses governos, e como inimigos, para justificar a intervenção direta. O seu recrutamento pelos serviços secretos se nutre, em grande parte, da colônia de exilados na Europa, exatamente fruto desse terrorismo. É financiado pelos petrodólares da Arábia Saudita, Catar, etc, ou diretamente pelo imperialismo. Como pano de fundo, encontra-se a cultura fundamentalista, que tem sido financiada há um século pelos mesmos patrocinadores, que criaram inicialmente a Irmandade Muçulmana, para se contrapor ao nacionalismo árabe de Nasser e à influência soviética. Dessa forma, o pan-arabismo e a maioria dos estados laicos foram destruídos. A função do neo-fascismo é pontual, não a criação de estados fascistas.

O neo-fascismo cresce também como partidos políticos na Europa. O principal deles é a Frente Nacional francesa. O anti-comunismo é substituído pela xenofobia contra os imigrantes e contra os muçulmanos, em geral. Alimenta-se, como o fascismo, da crise social, do desespero das classes médias e de setores da própria classe operária, traída pelas suas direções. É mais um partido da ordem parlamentar burguesa, com a qual não pode romper, porque não teria apoio da sua burguesia, e disputa o poder contra todos os partidos burgueses. E, também, não pode questionar a supremacia da Alemanha, porque a França é um imperialismo de terceira categoria e a sua burguesia contenta-se com o seu lugar subalterno. Fora a demagogia xenófoba e nacionalista, nada tem a oferecer ao povo francês. Vimos que os demais partidos neo-fascistas europeus também se adaptam ao regime parlamentar, embora façam demagogia contra o liberalismo político, mas apoiando as ditas reformas liberais.
 
Na América Latina, o neo-fascismo desempenha esse mesmo papel acessório. No Brasil, a candidatura Bolsonaro cresceu além da conta, inclusive, para o gosto da própria burguesia. Beneficiou-se do golpe contra o PT e a candidatura Lula. Para viabilizar a sua candidatura, Bolsonaro teve que viajar aos Estados Unidos e bater continência à sua bandeira. A sua vitória eleitoral é muito improvável. E caso venha a acontecer, não implantará uma ditadura neo-fascista, embora possa fazer estragos. Seria um governo frágil, refém da direita parlamentar. Apesar de todo o alarido pró-golpe militar, essa não é a alternativa preferencial, nem do exército, nem da burguesia. 

O neo-fascismo, nas suas mais variadas formas, é como o “rex”, que o imperialismo mantém na coleira e lhe dá maior ou menor autonomia, de acordo com as suas necessidades. Entretanto, mesmo não sendo a alternativa preferencial de governo da burguesia, não podemos subestimar a sua importância e o serviço sujo que presta ao capital.  O terrorismo neo-fascista deve ser respondido à altura, com  os seus mesmos métodos e através de uma frente única dos trabalhadores. Não com métodos legalistas, como faz o PT, mas com os métodos da luta de classes. 
                                                                         
João de Barro



Citações:
1) Reich, Materialismo Dialético e Psicanálise
2) Reich, Psicologia de Massas do Fascismo
3) Trotsky, O fascismo (coletânea).
4) Trotsky, Aonde Vai a França
5) Reich, Materialismo Dialético e Psicanálise
6) Trotsky, Revolução e Contra Revolução
7) Idem, idem
8) Idem, idem.

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