sábado, 5 de agosto de 2023

Os limites do poder


Quando morreu a consciência do povo
falou-se em autoridade do governo
e lealdade dos cidadãos
(Lao Tsé)

            O senso comum das pessoas pensa, com certa razão, que o poder pode solucionar todos os problemas da sociedade. Os marxistas e os leninistas das mais distintas tendências lutam pelo poder, afirmando, também com certa razão, que “fora do poder, tudo é ilusão”, o que corrobora com a ideia geral do senso comum no âmbito da militância.

         Se queremos mudar a sociedade e, sobretudo, conservar essas mudanças, certamente teremos que enfrentar o problema do poder. No entanto, até para que possamos usá-lo da maneira mais eficaz e saudável possível, evitando os erros e os vícios do passado, que ainda sobrevivem dentro da inércia histórica, é importante refletir sobre sua natureza e seus limites.

         Para o comunista, cineasta e pensador italiano, Paolo Pasolini, "estar no poder significa dispor dos instrumentos do poder". Correto. É por isso que a militância socialista luta pelo poder, cuja finalidade é remodelar e reestruturar a sociedade de acordo com novos princípios. Porém, não significa apenas dispor dos instrumentos do poder. Significa, também, enfrentar os problemas e os limites do poder, como, por exemplo, disciplinar a massa, enfrentado-se com o seu senso comum mais atrasado e com a sua ausência de interesse por seus deveres, uma vez que, ultimamente, só tem se lembrado de exigir os direitos.

         Muita gente, dentro e fora da militância de esquerda, pensa que basta chegar ao poder para que a mentalidade e as ações da massa se readequem espontaneamente e “se resolvam por si mesma”, pelo simples fato do surgimento de um “novo poder” – supostamente de caráter proletário. As experiências revolucionárias do século XX não demonstraram isso. Grande parte dos militantes de esquerda insinua, de uma forma ou outra, que pode existir um trabalho de base perfeito, ou a construção de alianças que redundem numa tomada do poder que seja a expressão acabada e universal dos desejos e anseios da massa — como se a massa não fosse contraditória e repleta de problemas internos. Os métodos da “ditadura do proletariado” precisam ponderar onde e quando atuar e intervir, pois a depender de determinados métodos e ações pode dificultar o seu desenvolvimento ou até mesmo jogá-la nos braços da burguesia, uma vez que a sua mentalidade alienada a faz desejar, grande parte do tempo, o mesmo que a classe dominante.

         As camadas mais populares da massa também precisam amadurecer, demonstrando algum tipo de vontade coerente e progressista, por menor que seja, aprendendo a se colocar no lugar do governo para também desenvolver a capacidade de pensar dentro da lógica dos "problemas de poder". Caso contrário, viveremos eternamente como crianças dependentes, que são acostumadas a exigir sem ter em contrapartida algum tipo de dever para com esse poder ou, no mínimo, para com a sociedade.

         Quando o governo tem um caráter de classe — no caso, quando se tratam de governos burgueses — há uma direção política e econômica bem nítida que termina segregando a sociedade e contribuindo para a manutenção da pobreza, mesmo em meio a algum tipo de fartura. No caso de um governo socialista, que pretende mudar o sistema e fazer o oposto, cabe refletirmos sobre os limites do poder.

         Os governos, no geral, não agem no vazio. Escolhem sempre entre alternativas e, portanto, estão submetidos a restrições que são decorrentes, muitas vezes, de escassez de recursos, de valores sociais incompatíveis com certas escolhas, com interesses de outros países e de grupos sociais, de flutuações do nível de atividade econômica mundial, de mudança nos padrões de produção e de avanços tecnológicos, dentre outros.

         A ação de governo (e de poder) consiste, essencialmente, em tomar decisões, em escolher entre alternativas reais, e toda a escolha inevitavelmente cria descontentamento. Mesmo entre a classe trabalhadora, que em razão de inúmeras heranças da sociedade capitalista, pode não entender tais escolhas e até mesmo se colocar politicamente contrários a um possível governo revolucionário em distintas oportunidades. A simples repressão a estes possíveis descontentamentos gera consequências desfavoráveis e danosas — às vezes irreversíveis.

         É necessário educar a mente popular — o senso comum — sobre os problemas do poder. Tratá-lo como mágico ou místico, capaz de resolver todos os problemas com uma varinha de condão, é o que faz com que as pessoas sejam presas fáceis do rebaixado e conveniente discurso político que reduz tudo à corrupção. É muito importante demonstrar que os governos não agem no vazio, mas que existem condições e limites, mesmo para os governos mais bem “equipados” e posicionados.

         A postura infantil só critica, exige tudo e desconsidera todos esses problemas. Ela não pode criar uma massa com uma consciência realista, que seja base de apoio e sustentação de uma profunda mudança social, como um governo socialista, por exemplo. É muito importante levar tudo isso em consideração para podermos desenvolver um novo trabalho político e social de base que seja correspondente aos limites reais do poder, para que este não seja mais uma fonte de ilusões, nem de espera por “soluções milagrosas”.


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