domingo, 4 de abril de 2021

Como o economicismo se manifesta hoje?

Notas sobre as formas de consciência da classe trabalhadora brasileira moderna

            Qual militante dos dias de hoje não ouviu argumentos de intelectuais burgueses que tentam classificar as reivindicações históricas da classe trabalhadora e a própria teoria marxista como algo “ultrapassado” e “sem valor”? Infelizmente uma grande parcela de suas organizações e da própria classe trabalhadora sucumbe a este tipo de pensamento por medo de enfrentá-lo, já que não possui nenhum argumento que posso responder a este tipo de “crítica”.

         É certo que o marxismo tem limitações e, obviamente, cometeu equívocos. Refletiu, historicamente, a classe operária do seu tempo, embora sua teoria busque expressar um valor histórico-universal. Do século XIX aos dias de hoje muitas coisas se processaram e se modificaram no seio da classe trabalhadora e fora dela. No entanto, apesar disso, insisto que uma teoria baseada no materialismo dialético não pode tornar-se velha, uma vez que reconhece o devir como sua espinha dorsal. As muitas lacunas que possui necessitam, como os seus fundadores apontaram, ser preenchidas com o avanço científico, cultural, social.

         É sabido que Marx e Engels sempre recomendaram o atento acompanhamento da evolução científica de cada época. Desgraçadamente, a “esquerda” atual chafurda na teoria marxista como evangélicos ortodoxos chafurdam nos dogmas da “exatidão” da Bíblia. Terminam por reproduzir aquilo que há muito tempo Nietzsche já havia zombado dos “socialistas” como a renúncia à realidade concreta em nome de um “paraíso vindouro” totalmente abstrato, que nega os elementos da vida sob o nosso nariz (é comum ouvirmos: “quando estivermos no socialismo”; “quando as massas explodirem em luta”; isto é, sempre uma espera de algo vindouro numa expectativa muito semelhante à cristã).

         Assim, as tendências reais não apenas se perdem completamente como se enredam em compreensões marcadas por um espírito sectário e dogmatizante, embaladas num verbalismo revolucionário que dissimula a perda de noção da realidade. A burguesia, seguindo o faro comercial, e a maioria dos seus teóricos, ao contrário da “esquerda”, se caracterizam por um realismo maquiavélico, seja de forma soft através da indústria cultural, seja de forma hard a partir dos seus noticiários militantes, revistas, periódicos, sites, jornais, etc.

         Não há revolução ou mudança social que não tenha como tarefa central cortar os fios de manipulação ideológica dos teóricos burgueses (incluso todos aqueles que na “esquerda” os reproduzem) e retome o contato escrupuloso com a realidade. Esta é a principal lição do leninismo, esquecida por grande parte da militância de esquerda que o reproduz como dogma.

         As notas que seguem tem a finalidade de examinar a consciência atual da classe trabalhadora brasileira, partindo de um microcosmo. Elas foram coletadas a partir de uma experiência com um grupo de trabalhadoras terceirizadas do serviço público estadual. A ideia motivadora delas é tentar estabelecer relações de similaridade e diferenças entre a antiga classe trabalhadora europeia do século XIX e XX – isto é, a classe trabalhadora tomada como exemplo por Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo e repetida acriticamente pela maior parte dos “marxistas” da atualidade – e a classe trabalhadora brasileira do início do século XXI.

 

a.

         O economicismo e o espontaneísmo são tendências e desvios identificados na luta da classe trabalhadora por Lenin no livro Que fazer?, de 1902, e reproduzidos – em grande parte – acriticamente pela “esquerda” desde aquela época. Em síntese, trata-se de manter a luta proletária dentro dos estritos limites das reivindicações econômicas (melhores salários, condições de trabalho, garantia do emprego, etc.) que são totalmente aceitáveis pelo capitalismo (e contornáveis por ele). Segundo Engels, “não são os baixos salários, mas o salário em si mesmo que constitui o mal fundamental do sistema”[i]. Isto é: o mal a ser combatido é o sistema de exploração do trabalho assalariado pelo capital em si, não os seus desdobramentos.

         Na época de Lenin, os socialistas de caráter reformista (em especial, os mencheviques e os social-revolucionários russos) pretendiam manter as reivindicações econômicas da classe operária estritamente nos limites aceitos pelo sistema, sem “misturá-la” com reivindicações de cunho político. Isto é: queda da monarquia, mudar o regime político instituído, questionar o sistema econômico vigente; enfim, procurar uma saída que fosse capaz de dar uma perspectiva de poder para a classe trabalhadora (note-se bem: eles faziam isso, em sua maioria, vendendo tal prática como o principal caminho para o socialismo e a revolução).

         Segundo Lenin, isso seria cultuar o espontâneo, uma vez que a classe trabalhadora poderia, por si mesma, chegar às reivindicações econômicas (mais simples e evidentes), mas não às reivindicações socialistas, que, sendo mais complexas e exigentes, poderiam abrir a perspectiva de poder. Dito de outra forma: na prática espontaneísta a consciência proletária ficaria restrita à uma consciência sindicalista, estreita e limitada; sem permitir que floresça uma consciência de classe que colocaria, de fato, fim a sua exploração enquanto classe e acabaria com as absurdas desigualdades sociais que conhecemos, abrindo o caminho para o socialismo.

 

b.

         Atualmente o economicismo e o espontaneísmo assumiram distintas formas, mais de acordo com a atual luta de classes e com as readaptações produtivas do capitalismo após suas diversas crises. Algumas das formas atuais do economicismo e do espontaneísmo são: o imediatismo da classe trabalhadora nas suas distintas categorias[ii]; o “fora Bolsonaro” (ou qualquer outro “fora este ou aquele”) sem correlação de forças e sem uma alternativa concreta de poder[iii], demonstrando um radicalismo estéril e desesperado, servindo apenas para consumir energia e gerar ilusões; a agitação e a prática de “greve geral” de demonstração, sem nenhuma interferência real sobre os locais de trabalho[iv], que serve apenas para “pressionar” deputados e governos com finalidades eleitorais; o identitarismo sem delimitação de classe, portanto, policlassista[v]; além de qualquer greve ou movimento social que se mantenham nos seus estreitos limites corporativos (o que acontece na maioria esmagadora das greves atuais dirigidas pelas burocracias sindicais).

         Portanto, não possui exatamente as mesmas características da época de Lenin, que se definiam por não associar as lutas econômicas com a luta política. Os agrupamentos políticos russos daquele período histórico julgavam suficiente a manutenção da agitação, da propaganda e da prática voltados exclusivamente às lutas econômicas e sindicais, para quem “o movimento seria tudo” e o “objetivo final nada”. Tal concepção esquemática, ligada ao pensamento do dirigente da social-democracia alemã, Edward Berstein, foi magistralmente desmascarada por Rosa Luxemburgo em seu livro Reforma ou revolução?, de 1899. De lá para cá, a maioria da “esquerda” – incluso Lula, como veremos – julgam-se livres desta concepção economicista antiga, já criticada e desmascarada por Lenin e Rosa Luxemburgo.

         Hoje qualquer partido ou organização política de “esquerda” dirá se tratar de um absurdo ignorar a luta política, separando-a da luta econômica. Portanto, se dirão em sintonia com Lenin ao combater o economicismo e o espontaneísmo no livro Que fazer?. Contudo, o economicismo também mudou de forma, não se restringindo apenas às antigas formas descritas por Lenin de um sindicalismo estreito, ainda que grande parte da “esquerda” pratique tal sindicalismo estreito sem o admitir. Muitos sindicalistas atuais afirmam que estão sintonizados com as demandas das lutas políticas (sobretudo as parlamentares). A partir daí, associam a “pressão parlamentar” de sindicatos sobre os deputados como “luta política”, ao mesmo tempo em que aceitam todo o restante da estrutura social. Ou seja, tal tipo de “luta política” não apenas é aceitável por parte do sistema, como lhe ajuda a vender uma imagem de “democrático”, uma vez que tolera tais tipos de manifestações que, sabemos, não mudam nada (ou quase nada).

         Assim, os pontos essenciais do economicismo e do espontaneísmo atuais estão naqueles métodos de luta e teorias que não vão além daquilo que é tolerável e aceitável para a burguesia; além de não terem coerência nem implicações concretas sobre as bases do seu sistema de exploração – e que, por isso mesmo, não criam nenhuma perspectiva de independência de classe e de poder proletário. Mais do que ninguém, a burguesia percebe nitidamente tais tendências e sabe influir sobre elas muito mais do que a “esquerda”, que se julga esperta e preparada, quando na realidade é tacanha, obtusa e/ou oportunista.

 

c.

         Há, contudo, semelhanças entre o espontaneísmo antigo e o atual. Ouve-se, frequentemente, que “basta uma categoria estar em greve para que ela compreenda o papel da burocracia sindical e das perversidades do poder político e econômico do sistema”. Tudo isso, evidentemente, aconteceria de forma automática a partir das palavrinhas “basta estar”.

         Não “basta estar” em greve. É necessário um amplo trabalho de formação teórica e política, feito no obscurantismo desesperador da vida cotidiana, que vá acompanhando a lenta evolução desta categoria. É justamente aí que começam os nossos problemas, porque as organizações de “esquerda” não querem enfrentar este trabalho doloroso. Pensam que a mobilização espontânea como uma greve, por exemplo, por mais importante que seja, tenha poderes miraculosos.

         Não, camaradas! Nada substitui o trabalho de formiguinha cotidiano com uma política correta e paciente que enfrente, sobretudo, as relações hipócritas. Talvez tenha sido por isso que Engels escreveu: “Existe uma guerra social aberta e que, se a burguesia tem todo o interesse em conduzi-la hipocritamente, sob o manto da paz e até da filantropia, aos operários só pode favorecer a revelação das relações hipócritas, só pode favorecer a destruição dessa hipocrisia”[vi].

         Tais relações são produzidas inevitavelmente pelo modo de vida burguês, que necessita reforçar as ilusões nas aparências da vida cotidiana, criando um véu de oficialidade acima de qualquer legislação; mas, infelizmente, elas também se espraiam e criam raízes na classe operária[vii]. Centrar fogo para destruir esta hipocrisia cotidiana é parte fundamental e indispensável da luta, pois é o seu primeiro muro de contenção e um dos mais poderosos. Por isso, qualquer luta sindical, política ou mesmo teórica que não combata a hipocrisia cotidiana que se disfarça e se espalha de mil formas diferentes e que tem papel importante na manutenção do sistema é também, de certa forma, um tipo de “economicismo”. Tais relações hipócritas, que se enraízam na psique coletiva, dificultam decisivamente – dentre outros fatores – o surgimento de seres humanos novos.

 

d.

         No meio de janeiro de 2021 ocorreu um protesto espontâneo organizado por trabalhadoras terceirizadas da educação pública estadual de Gravataí, que não recebiam há pelo menos 3 meses e não tinham a menor perspectiva de receber se não tomassem alguma atitude. O atraso do pagamento de salário tem se tornado uma realidade de diversas categorias brasileiras. O referido protesto foi convocado para um local no centro de Gravataí, em frente à sede da empresa WD limpeza[viii], que supostamente deveria prestar serviços de limpeza e manutenção de escolas públicas para a secretaria de educação do Estado. Poucas pessoas se fizeram presentes no protesto, dado que foi convocado precária e espontaneamente por trabalhadoras que não possuíam nenhuma tradição sindical (sem falar de todos os problemas referentes ao descrédito em relação aos sindicatos).

         O CPERS, os movimentos sociais, partidos e organizações de “esquerda” não se envolveram em absolutamente nada, deixando as trabalhadoras terceirizadas largadas à própria sorte. Apenas uma dupla de militantes foi prestar solidariedade e tentar ajudar de alguma forma. Naquele momento, esta era a única luta real em curso na categoria, ainda que limitada e pequena. São estes momentos não percebidos pela “esquerda”, acostumada a olhar apenas para os eventos grandes, imponentes e que lhe deem algum retorno político fácil (sobretudo a partir do seu culto e da sua bajulação dos presentes), que faz com que as grandes possibilidades morram no nascedouro.

         Quando a dupla de militantes chegou ao protesto, que, pelo visto, não esperava mais ninguém, encontrou cerca de 13 pessoas: 12 mulheres e 1 homem. Eram todas funcionárias terceirizadas de Gravataí, embora a WD limpeza atendesse outras cidades, como Porto Alegre, Canoas, Alvorada e Viamão. O protesto ocorrido em meio à pandemia bateu cabeça no início, pois não sabia exatamente o que fazer. De fato, pouco se parecia com um protesto, embora todas elas estivessem aparentemente decididas a arrancar o salário à força.

         Inicialmente se pensou em formar uma comissão para ir até a porta da empresa, que fica dentro de um edifício comercial, com várias lojas e departamentos. As 13 pessoas, mais os militantes, adentraram o saguão do prédio e solicitaram conversar com representantes da empresa. O porteiro, temendo um tumulto maior, solicitou que apenas duas ou três pessoas ficassem no recinto, mas o restante do pessoal se negou a sair, tensionando os representantes a descer.

         Um pouco depois finalmente desceram os 2 representantes da empresa para “dialogar” com as manifestantes. Foi-lhes prometido que o salário entraria nas suas contas até às 10h daquela manhã (eram por volta das 9h30min) e pediram que se retirassem. Todas elas, indignadas, falaram que não iriam arredar pé dali sem que o salário de fato tivesse entrado. Se denunciou publicamente que as trabalhadoras sequer tinham recebido o contrato de trabalho, por isso os representantes da empresa imprimiram na hora alguns papéis e levaram para que elas assinassem em plena rua. Muitas se negaram a assinar. Os dois militantes se propuseram a fazer cartazes com as reivindicações para dar uma cara de protesto àquela manifestação, chamaram mais ativistas, sindicatos e ajudaram divulgando nas redes sociais. O relógio bateu 10h e o salário não entrou. A indignação aumentou. As denúncias dos militantes surtiram algum efeito, pois na sequência chegou um repórter da mídia local para registrar o protesto, o que aumentou a pequena pressão sobre a WD limpeza.

         As manifestantes decidiram se sentar no chão, com os cartazes e com a firme intenção de demonstrar que não iriam sair dali. Os representantes da empresa ficaram nitidamente constrangidos. Palavras de ordem nos cartazes denunciavam a ligação da empresa com o governo Eduardo Leite (PSDB), que tornava-se cúmplice do calote. Um pouco mais tarde percebemos que houve algum erro quando parte das manifestantes foi conferir se o salário havia entrado nas suas contas através do aplicativo de celular. Notou-se que umas tinham recebido e outras não – ainda que apenas aquelas pessoas que se fizeram presentes na manifestação tinham recebido, enquanto que o restante do contingente de trabalhadores da empresa que não compareceram não recebeu um tostão sequer. Os ânimos se acirraram e uma das principais lideranças da manifestação ameaçou a empresa afirmando que iriam voltar lá todos os dias para infernizá-la.

         Um pouco depois outra manifestante indicou o link correto do aplicativo do banco para conferir o recebimento do salário. Perceberam que, de fato, o dinheiro havia entrado para todas as presentes, embora sem o vale-refeição e o acréscimo da insalubridade. Haviam recebido por volta de R$400 a menos do que deveriam receber de acordo com o prometido. A mais indignada entre trabalhadoras prometeu convocar um “grande ato” para a manhã seguinte e pediu aos militantes que ajudassem a organizar, inclusive criando um grupo de whatsapp para mobilizar mais colegas. Quando se deram conta, o protesto, que já era pequeno, ficou ainda menor. Algumas presentes – dentre as quais o único homem –, ao perceberem que já haviam recebido o salário (com o logro de R$400), simplesmente foram embora sem falar nada.

 

e.

         Dois dias após o grupo de whatsapp ter sido criado e tentado organizar uma nova manifestação na frente da empresa, um grande esforço militante foi realizado para construir essa mobilização a pedido de algumas das trabalhadoras terceirizadas. Os dois militantes transformaram-se em sete, levando junto consigo uma caixa de som de um dos núcleos do CPERS de Porto Alegre. Contudo, ao chegarem no local no horário combinado, apenas uma manifestante compareceu. Nenhuma outra sequer deu alguma justificativa para as ausências.

         Muitas explicações foram “dadas” pelos militantes envolvidos para tentar descrever o fenômeno, dentre as quais, aquelas que reforçavam a ideia de que o aumento da organização através dos militantes “profissionais” as fez recuar. A estas se somaram outras, mais plausíveis, de que houve um possível aumento da pressão da empresa que assustou as trabalhadoras. Ainda que possa ter havido algum erro de precipitação por parte dos militantes, não se pode dourar a pílula: aqui temos um caso bastante específico de culto ao espontâneo, em que as causas não foram procuradas no atual nível de consciência da classe trabalhadora brasileira, mas na suposta “interferência” dos militantes “de fora”. Quando nos decidimos a enfrentar uma injustiça promovida por alguma empresa capitalista o que se pode esperar senão o aumento da pressão ameaçadora contra quem se levanta contra ela, além da necessidade de se aumentar a organização? Renunciar a isso é o mesmo que renunciar à luta.

         Podemos concluir deste episódio que, infelizmente, a consciência de classe despencou para níveis desesperadoramente baixos, fazendo as trabalhadoras descambarem para as mais estreitas formas de imediatismo e auto alienação. Para isso concorreram fatores subjetivos e objetivos.

         Entre os primeiros podemos listar a ausência de uma organização revolucionária e sindical que consiga inspirar confiança no movimento da classe trabalhadora. É, de certa forma, reflexo da crise de confiança e de direção política que permeia toda a nossa sociedade. A perspectiva socialista sofreu um duro golpe com as sucessivas traições a ela: desde o stalinismo na extinta União Soviética, até o oportunismo descarado dos partidos reformistas atuais, dentre os quais, se encontra a triste experiência com o PT (além é claro, da prática economicista e espontaneísta da maioria das organizações da “esquerda” brasileira). Dentro dos fatores subjetivos ainda temos o grave problema da ausência de políticas que levem em consideração a psicologia de massas da classe trabalhadora no sentido de combater o seu espírito de rebanho[ix].

         Do ponto de vista objetivo, certamente pesam as alterações dos modos de vida e de consumo do atual capitalismo, comparativamente ao capitalismo do século XIX e início do século XX na Europa, bem como a pobreza teórica da agitação e da propaganda da “esquerda”, que não apenas não ataca seus alicerces, como os ajuda a se renovar. Analisaremos a seguir estas questões.

 

f.

         Grande parte da “esquerda” idolatra uma classe trabalhadora que não existe na realidade, apenas em tese. No mais das vezes, ao bajulá-la, cultiva o que há de pior nela. Isso não significa desconhecer os seus sacrifícios reais quando ocorrem em determinados contextos históricos de ascenso revolucionário, mas não podemos idealizá-la sob pena de criarmos uma prisão mental que não encontra paralelo na realidade. Esta tem sido a regra, infelizmente.

         A classe trabalhadora real, apesar de concentrar potencial transformador desde que livre das ilusões e do egoísmo que impede o surgimento da consciência de classe, “elegeu” Bolsonaro no Brasil e prefere ir tocando sua vida, num imediatismo bárbaro, diferente do que era obrigada a fazer pelas circunstâncias do século XIX e XX. Um contingente imenso de pessoas compõe o que compreendemos como classe trabalhadora, mas elas não tomaram forma como classe para si, pois não há sentimentos compartilhados, vontade comum, valores interligados, nem solidariedade. E não se trata de reconhecer que “nos momentos de calmaria” a classe trabalhadora é assim, porque temos visto que nos momentos de acirramento da luta de classes não tem desenvolvido relações que apontem para a solidariedade de classe (alguns militantes prontamente dirão: é falta do partido revolucionário; o que é correto, embora não explique tudo).

         Por que isso ocorre? Difícil responder com certeza, mas um dos elementos é, sem dúvida, o papel conciliador e oportunista cumprido pela “esquerda”, que trabalha conciliando os valores da burguesia com os da classe trabalhadora. Outras possibilidades de respostas encontram-se nas modificações ocorridas no seio da classe trabalhadora e no próprio capitalismo, que vai incorporando demandas e reivindicações dos setores populares, possuindo uma elástica capacidade de reciclagem que a “esquerda” não percebe, não consegue ou não quer perceber.

         Compare-se as condições de trabalho, de habitação, de consumo e de vida da classe trabalhadora da época de Marx, Engels, Lenin, Trotski e Rosa Luxemburgo com a classe trabalhadora brasileira moderna, por exemplo, e se perceberá que, por mais saqueado que seja o nosso país e o próprio proletariado, os níveis de hoje são um pouco melhor do que antes. Reconhecer isso não significa, evidentemente, optar pelo caminho reformista, mas, sim, perceber que precisamos, também, reciclar nossa agitação e propaganda constantemente; além de fazer um balanço duro da nossa atuação enquanto esquerda classista do quanto cumprimos e do quanto deixamos de cumprir.

         Isso implica, forçosamente, reconhecer que receber o salário miserável de um trabalho terceirizado no Estado (atrasado e descontado) leva uma trabalhadora e um trabalhador a abandonar o coletivo para “colocar sua vida em ordem” (... por alguns dias a mais). O economicismo é tão estreito e rasteiro que uma quantia baixa de dinheiro acalma e faz um trabalhador retroceder. Mesmo R$100 hoje possui um certo poder de compra que não existia para a classe trabalhadora antiga, que ao receber o salário, não podia satisfazer, no geral, as demandas mensais ou semanais da sua família. E nem podia, uma vez que quando se recebia o salário, o poder de compra era baixo em razão dos diversos problemas de abastecimento e transporte, ainda que estes viessem avançando. Contudo, as precárias condições de vida da classe trabalhadora, que literalmente passava fome caso não recebesse o salário (e às vezes até recebendo), encontrava eco direto nas manifestações concretas de ações que se traduziam em solidariedade na busca desesperada de uma solução conjunta, seja uma barricada de rua, seja uma ocupação, seja um comitê militar de resistência a uma invasão, etc. No passado recente, haviam poucas alternativas à solidariedade baseada no coletivo.

         Um trabalhador desse período histórico, mobilizado e em luta, dificilmente agiria como agiram parte das trabalhadoras terceirizadas que, ao receberem parte do seu salário, simplesmente viraram as costas e foram embora, parcialmente satisfeitas com a medíocre possibilidade de comprar o que necessitavam (isto é: sacrificaram o futuro em nome de um presente precário, com medo, talvez, de ter que olhar de frente a real possibilidade de voltar para ali no mês seguinte). Existiam no passado, evidentemente, manifestações de alienação e descomprometimento com a luta, mas eram superados por explosões populares livres de uma grande mídia com um poder manipulatório tão grande, além das atuais condições de espionagem via redes sociais e da enorme influência econômica que possui hoje; sem mencionar as técnicas de manipulação da psicologia de massas, feita cirurgicamente pela indústria cultural, pelo reformismo e por neofascistas como Trump, Bolsonaro, Steve Bannon e Olavo de Carvalho.

         Em contrapartida, segundo o economista Ladislau Dowbor, antigamente “a apropriação do excedente era por meio dos salários baixos, da mais-valia. Hoje é pelo endividamento das pessoas, pelas taxas de juros, pelos dividendos abusivos em cima de aplicações financeiras, pelo endividamento dos governos, de maneira geral, e o conjunto das cobranças sobre direitos, no caso das patentes etc.”[x]. Isso não explica tudo, é claro, mas ajuda a compreender, em parte, a atuação das trabalhadoras terceirizadas. Um crédito supostamente facilitado através dos cartões de bancos impõem certos mecanismos de controle e dão acesso pontual e parcial à bens de consumo que no passado eram muito mais restritos.

         Algumas organizações políticas e intelectuais se rendem a este estado de coisas, que julgam insuperável. Com a desculpa de se “adaptar” a estas condições, rebaixam sua política e seu programa irremediavelmente (o PT é o exemplo mais elucidativo, mas não é o único). Aqui não se trata disso, mas de tentar encontrar, de fato, um caminho que leve tudo isso em consideração. E encontrar esse caminho não pode significar repetir fórmulas, discursos e palavras de ordem mirabolantes sem lastro na realidade[xi], mas de procurar um fio condutor de uma ideia-força que dê o pontapé inicial para uma nova prática, capaz de galvanizar e ir desmascarando os interesses burgueses que se estendem pela classe trabalhadora e que são sentidos como “se fossem seus”. Que tenha a capacidade de, pelo menos, manter o diálogo com o dia-a-dia da classe trabalhadora e de desmascarar, permanentemente, a grande mídia, as igrejas exploradoras, o véu de hipocrisia do cotidiano, etc. Falar é fácil, sabemos; executar cotidianamente estas tarefas é muito mais difícil. Contudo, o primeiro passo é tomar conhecimento do problema; e o segundo, querer enfrentá-lo.

 

g.

         As constatações feitas até aqui são duras, embora precisem ser ditas, uma vez que a “esquerda”, no geral, faz vistas grossas para rever sua prática e sua teoria. Aqui não se trata de desconsiderar totalmente ou de abafar autoritariamente as manifestações espontâneas da classe trabalhadora, mas de saber perceber suas limitações e tendências, procurando formas inteligentes, renovadoras e de diálogo para que avancem. Nada disso é feito. Sequer existe essa preocupação por entre a “esquerda”, marcada por um oportunismo descarado, que leva o culto do espontâneo à condição inconsciente de dogma.

         Uma das grandes questões daqui para frente é saber como casar a direção política das massas com o seu espontaneísmo, sem adestrá-lo ou oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás da própria cauda; ou o que é pior: canalizado pela burguesia! Uma grande parcela de militantes da “esquerda” tem jogado toda a tradição do movimento operário fora, classificando-o, erroneamente, de autoritário por se propor a ser uma direção. Tais influências – da parte ruim do anarquismo – expressas por um espontaneísmo bárbaro, não deixará de cobrar seu preço no próximo período. Se não o cobrar desde já!

         Uma vanguarda que pretende organizar o partido revolucionário não pode jamais idealizar as massas. Precisa trabalhar sobre ela tal como ela é[xii]. Isso não significa capitular pra nenhum dos dois erros centrais: nem para o seu espontaneísmo, condenando as principais formas de organização política – como o partido revolucionário; nem agir como se a vanguarda pudesse substituir as massas, ignorando e patrolando totalmente as ações espontâneas da classe trabalhadora que são progressivas.

         Contudo, vemos nitidamente que hoje, cada vez mais, faltam ações espontâneas da classe trabalhadora que apontem tendências políticas, tal como o proletariado russo apontou para os sovietes entre 1905 e 1917. Tudo isso faz aumentar a importância do elemento consciente.

 

h.

         No dia 10 de março Lula discursou no sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista sobre a anulação dos processos judiciais contra ele. Logo no início, fez uma breve menção ao fato de que quando era operário terminou por entender as limitações da luta sindical – que, segundo expressou, sequer são capazes de impedir a debandada da GM e da Ford do país após sugarem impiedosamente a classe trabalhadora –; a partir daí, teve que “avançar” para a luta política, fundando um partido e entrando também na “luta política”.

         Com isso, Lula quis dar uma breve “aula” sobre como ser contra o “economicismo”. Na realidade, a “aula” foi sobre como não devemos entender o economicismo. A despeito de ser uma piada mórbida, dado que a CUT e o PT praticam o economicismo mais rasteiro e estreito nas bases sindicais que controlam, a prática de Lula demonstra como a “esquerda” no geral pensa estar além do economicismo, quando, na realidade, o cultiva sob novos disfarces. Para Lula, estar num partido político e ter uma vida de eleitor na democracia burguesa, respeitando todos os procedimentos burocráticos do parlamento, da justiça, da grande mídia burguesa – em síntese, do establishment – é superar o economicismo, não importando qual política se defenda.

         O economicismo moderno também participa da política, mas sem criar nenhum problema para a institucionalidade burguesa e a sua ordem. Quando Lenin apontou o problema no Que fazer? estava querendo dizer que o economicismo é uma forma de desviar a luta da classe trabalhadora – e, portanto, sua atenção e energia – para a sustentação direta ou indireta da ordem capitalista. Na prática, o economicismo não questiona a doença, mas apenas os sintomas; defende a luta econômica e sindical, mas jamais o choque com os alicerces do sistema que geram as demandas levantadas na luta econômica e sindical.

         Desde a época de Lenin o economicismo e o espontaneísmo mudaram muitas vezes de forma. Como Lula tentou demonstrar em seu discurso, hoje a “esquerda” compreende a importância da luta política, mas a essência do economicismo (qual seja: a contenção das lutas dentro dos marcos do sistema, mantendo os trabalhadores inconscientes e subordinados às direções burguesas) não foi superada, tendo apenas um upgrade; isto é: uma atualização das suas manifestações essenciais. Dito de outra forma: para que o economicismo pudesse continuar tendo efeito paralisador e alienador sobre a classe trabalhadora, deixando-a a mercê de direções burguesas, precisava se apresentar sob novas formas.

         Portanto, a simples participação na política burguesa não supera automaticamente o economicismo. Ao contrário: reforça posturas e práticas economicistas e espontaneístas disfarçando-se de “leninista”. Toda a prática e o discurso petista e lulista demonstram como o economicismo se refinou para continuar cumprindo a mesma finalidade que cumpria em 1902. Os níveis baixíssimos de consciência das trabalhadoras terceirizadas de Gravataí também não deixam dúvidas quanto a existência e a não-superação do problema.

 

i.

         Para além dos problemas na consciência imediata e histórica da classe trabalhadora atual, pesa a profunda crise de direção que vivemos. Isso significa, na prática, o acovardamento e aburguesamento da maioria das organizações da “esquerda”, direta ou indiretamente. Isto é: a sua adaptação às relações hipócritas da sociedade burguesa! Tudo isso aumenta o fardo dos setores conscientes da classe trabalhadora e o espírito de rebanho na massa em geral, que ainda não conseguiram encontrar uma ponte entre si, sobretudo em razão da defasagem histórica da agitação e propaganda (dentre outros problemas).

         A visão de mundo da direita (isto é, da burguesia) reinam absolutas entre a classe trabalhadora. Dentro destes campos não existe nenhuma ameaça real ao sistema. Pelo contrário: tudo o reforça e não há feição alguma por parte da “esquerda” para mudar seus rumos, seu discurso e sua prática, apesar das inúmeras rupturas que ocorrem no seu seio. Rompem com as organizações majoritárias para cair no mesmo ramerrão doutrinário, que reproduz a mesma prática limitadora.

         Revisar esta propaganda e esta prática é um necessário primeiro passo. Deve-se partir das tristes constatações feitas acima acerca dos baixos níveis de consciência imediata da classe trabalhadora, bem como das manobras da “esquerda” para se vender como “anti-economicistas”. No geral, a “esquerda” não renova a teoria a partir da realidade prática, mas reproduz dogmas e frases prontas para consumo intelectual da vanguarda, sem quase nenhuma ameaça para a burguesia. Esta, por sua vez, dá gargalhadas e sente-se como naqueles versos de Brecht: “a injustiça avança hoje a passos firmes; os tiranos fazem planos para dez mil anos”.

         Entre os oportunistas, quem exige uma prática mais coerente e firme, pautada pela independência de classe, é tachado de “esquerdista”, terminando por ser ridicularizado e ter o microfone negado ou cortado. Quem entre a minoritária esquerda revolucionária questiona determinados dogmas e tacanhices é imediatamente tachado de oportunista ou de estar “abandonando princípios marxistas”. Não temos um caminho do meio entre esses dois extremos que tanto mal tem feito para a luta independente da classe trabalhadora.

         Já é hora de procurá-lo. Certamente um caminho novo causa medo e receio, mas é necessário. Ele não significa o abandono das boas conclusões e práticas dos cerca de 200 anos de movimento proletário. Ao contrário: para fazer jus à dialética, temos que saber criticar o que há de ruim em algo e conservar o que há de bom – tal como Marx e Engels fizeram em sua crítica à dialética hegeliana. Deve-se admitir, forçosamente, que na busca por este novo caminho é inevitável cometermos erros, mas a correção de uma posição justa nasce, exatamente, dos erros dessa busca – desde que se tenha honestidade em admiti-los. É deste procedimento ético, confrontado com a dura realidade que a classe trabalhadora brasileira se encontra hoje, que seguem as próximas conclusões.

 

j.

         Um dos problemas centrais do Brasil, não estudado e não combatido pela “esquerda”, é a estreita aliança entre a burguesia e a classe média, que de uma forma ou outra se arrasta desde o período colonial-escravocrata. Esta aliança é um dos principais alicerces do regime republicano brasileiro nas suas diferentes fases históricas, sobretudo a partir da “República Nova” inaugurada em 1988. A sociedade brasileira, fundada sobre relações de produção escravocratas, tem como forma de funcionamento esta afinidade estreita entre a elite e a classe média, que vive com as sobras da exploração da elite dirigente, mas julga-se superior à “ralé” e serve como um muro de contenção para o apartheid social em nosso país.

         Atualmente, desempenha um papel ainda mais central, pois dado o seu caráter intelectualizado, é uma espécie de agente infiltrada no seio da classe trabalhadora, cuja influência coloniza corações e mentes dos explorados nos mais distintos níveis. Como uma das principais fontes disseminadoras do discurso neoliberal, meritocrático de self-made man, serve de aríete, abre-alas, aos interesses da burguesia. Assim como a classe média quer se tornar elite burguesa, a classe trabalhadora – sobretudo os seus extratos mais miseráveis, a chamada ralé brasileira, que trabalha para a classe média em empregos miseráveis e quase sem nenhum direito trabalhista – orbita a classe média querendo se tornar parte dela também. Os marqueteiros do PT e da grande mídia exploraram essas ilusões como ninguém ao longo dos governos Lula (2003-2010).

         Aliás, a frente popular petista se baseou exatamente nessa aliança entre a elite, a classe média e a colonização que ambas fazem da mentalidade da classe trabalhadora. Portanto, deu liga e “legitimidade” para o regime social existente, bem como para a sua doutrinação “democrática”. A ruptura se deu exatamente com o golpe de 2016, quando importantes setores da burguesia e da classe média quiseram expulsar o PT deste pacto de poder social para conseguir arrochar livremente as condições de vida do povo e saquear à vontade os recursos do Estado, sem ter que dar nenhuma “bolsa-migalha”.

 

k.

         Não precisamos ser sociólogos, economistas ou antropólogos pra percebermos que a mentalidade meritocrática e dos anseios de se tornar classe média estão impregnados na classe trabalhadora atual. Grande parte da sua inércia espontaneísta e imediatista provêm daí. Esta mentalidade de classe média (e, às vezes, até mesmo burguesa) coloniza a maior parte do proletariado brasileiro. Parte desta colonização intelectual é a chave de sustentação do regime político capitalista no Brasil, por isso deve ser conscientemente enfrentada. E não se trata apenas do desejo econômico e social de se tornar classe média, mas de reproduzir os preconceitos e ódio de classe contra si próprio[xiii]. Tal mentalidade ajuda a naturalizar e obscurecer o processo de saque das riquezas do país pelo mercado e pelo sistema financeiro internacional (que, por sua vez, alimenta ideologicamente esta mentalidade).

         Os partidos de “esquerda” institucionalizados e grande parte das organizações “operárias” do nosso país reproduzem acriticamente os sentimentos e mentalidades da classe média – consciente ou inconscientemente. A partir deste espontaneísmo mais rasteiro, julgam estar “dialogando com os interesses da classe trabalhadora”, quando, na verdade, estão reforçando os piores desvios e alimentando os monstros que nos devorarão no futuro; além de reforçar as próprias bases do alicerce do regime político burguês.

         Não teremos mudanças sociais no Brasil sem combater conscientemente e destruir a aliança histórica entre a burguesia e a classe média em todos os seus efeitos sociais (sobretudo naqueles que têm consequências colonizatórias na mentalidade da classe trabalhadora e dentro da própria “esquerda”).

 

l.

         A mentalidade social brasileira – desde a classe média até os extratos mais baixos da classe trabalhadora – está colonizada pelo imaginário neoliberal, que sustenta que tudo que provém do Estado é ruim, corrupto e atrasado; e tudo o que provém do mercado e da iniciativa privada é bom, idôneo e eficiente. Ou seja, o Estado (que foi o único promotor de políticas públicas populares voltadas às classes mais baixas da sociedade) é demonizado em nome da transferência dos seus recursos para o mercado visando a privatização total e irrestrita. Além disso, tentam reduzir todos os problemas sociais à corrupção na política, que existiria apenas no Estado e na política, nunca no mercado[xiv]. Tal imaginário é reforçado 24h por dia, 365 dias por ano, direta ou indiretamente, aberta ou disfarçadamente, pela grande mídia e seus noticiários militantes do neoliberalismo. À política oficial (e mais tristemente, aos papagaios da “esquerda oficial”), cabe ser o eco desta visão para poder se inserir na institucionalidade reconhecida e no seu establishment.

         É exatamente o empresariado que corrompe os políticos para aplicar políticas em seu nome; mas o primeiro fica completamente invisível. Já é hora de colocar abaixo esta máscara, superando o discurso simplista de que a “corrupção é a resultante do capitalismo” – é preciso denunciar onde e quando o mercado age no sentido de corromper a política e o Estado. Isso não significa, evidentemente, que se desconsidere aqui a corrupção na política. Ela existe e é nefasta. Contudo ela é a resultante da corrupção maior e legalizada, que é a influência do mercado, do sistema financeiro, dos oligopólios e monopólios sobre os políticos, o Estado e suas instituições.

         A grande mídia transita por uma grande avenida sem nenhum tipo sério de resistência ideológica a esta dicotomização absurda do Estado como encarnação de tudo o que é ruim e ineficaz e do mercado como tudo o que há de bom e de eficiente. É daí que provém a forte adesão ao pensamento de que hoje somos “empresários de nós mesmos” e que esta é a única saída. O papel da “esquerda” frente a esta campanha ideológica ininterrupta e não combatida é bizarro, refém do velho método 8 ou 80! A sua ala reformista e adaptada (tipo PT, PCdoB e setores do PSOL) é papagaio desta campanha, senão sua promotora indireta; a suposta “ala revolucionária” (tipo setores do PSOL, PSTU, PCB, PCO e organizações menores) não se esforça por desmascarar o imaginário neoliberal seriamente porque isso seria, segundo sua lógica tacanha, “fazer apologia do capitalismo”, já que teríamos que defender um “Estado regulador” e, portanto, “capitalista”.

         Contudo, há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã “política revolucionária”! A maior parte da classe trabalhadora não consegue acompanhar este salto de uma ponta a outra, sendo necessário, infelizmente, demonstrar a importância do Estado no combate ao mercado e, principalmente, que existem coisas igualmente ruins e boas tanto no Estado quanto no mercado (que deve ser regulamentado pelo primeiro)[xv].

         Como a “esquerda reformista” capitula e reproduz o discurso da direita neoliberal, de uma forma ou de outra, e a “esquerda revolucionária” não suja as suas mãos límpidas e sacrossantas com um discurso “tão rebaixado como este”, a grande mídia, a elite e a classe média surfam nesta onda que se transforma num tsunami para a colonização do pensamento da classe trabalhadora. Não lhe resta muitas alternativas, senão reproduzi-lo, de uma forma ou de outra.

         Isso não significa que devemos abdicar de levantar e debater o programa avançado do socialismo com a classe trabalhadora. Significa, apenas, que devemos dar uma atenção especial à principal artimanha ideológica – não combatida – da burguesia e da grande mídia. Bater nesse discurso sem piedade, demonstrando toda a sua falácia, é um dos principais meios de minar a aliança ideológica, política e social da elite burguesa com a classe média brasileira. Uma das principais tarefas teóricas da esquerda revolucionária é reduzir a pó esta falácia, numa grande campanha de agitação e propaganda. Sem isso, continuaremos a correr atrás do próprio rabo, deixando o caminho livre para a burguesia, sua mídia e a classe média enrolarem, seduzirem e minarem a consciência da classe trabalhadora. Parte fundamental da sua consciência economicista e espontânea é constituída por esta mentalidade neoliberal de que tudo o que é bom economicamente se concentra no mercado e no setor privado; e tudo o que é ruim e corrupto, no Estado e na política.

 

m.

         A vanguarda da “esquerda revolucionária” atual desconhece caminhos intermediários: age tacanhamente num “tudo ou nada” que, por ser muito raso, significa apenas “nada”. Quando falamos dos problemas relacionados à regulamentação do mercado, por exemplo, ela se adianta e diz que isso é impossível de se fazer no capitalismo e pensa, no alto da sua ingenuidade, resolver o assunto da melhor maneira. Em alguns momentos, como esse, as simplificações ideológicas se tornam inoperantes.

         Tal compreensão pode ser justa, se vier acompanhada de uma reflexão e de uma prática que trabalhe duro para superar o capitalismo – o que pressupõe necessariamente uma rigorosa autocrítica –, ou pode ser completamente equivocada se significar uma forma de omissão de suas tarefas atuais (como essa, em particular, de desfazer a falsa polarização política e ideológica de mercado-bom e Estado-ruim-corrupto). É necessário “sujar as mãos”, ir até o fundo, entrar na discussão atual da grande mídia, da elite com a classe média, para disputar consciências e narrativas. Fato que foi definitivamente ignorado pela “esquerda” revolucionária atual, que prefere reafirmar dogmas vazios nos seus guetos.

         Essa necessária mudança de postura vai apontar para uma nova agitação e propaganda, inevitavelmente. Nesse sentido, repensar toda a nossa atuação prática e teórica é vital. Assim como uma construtora precisa aplainar o terreno criando as bases do alicerce para a construção de uma casa, necessitamos combater determinadas formas de consciência que são como um solo erodido, incapaz de sustentar qualquer tipo de construção. Isso quer dizer que para combatermos o economicismo e o espontaneísmo com sucesso, necessitamos remover as ervas daninhas e aplainar o terreno combatendo o referido imaginário neoliberal propagado pela grande mídia que coloniza quase que integralmente a mentalidade da classe trabalhadora e abre todas as portas para os diversos tipos de imediatismos.

 

n.

         Isaac Deutscher, na sua reconhecida biografia de Trotski, levanta uma questão fundamental que deve ser levada em consideração muito seriamente pela atual “esquerda revolucionária” no sentido de romper a sua bolha voluntária.

         Ele aponta que os bolcheviques não estavam preparados para o fato de a classe trabalhadora russa deixar de lhes apoiar: “Já consideravam como certo que a maioria da classe operária, tendo apoiado o partido bolchevique na revolução, continuaria a apoiá-lo sem oscilação até que tivesse realizado todo o programa do socialismo. Por mais ingênua que fosse, tal suposição nascia da noção de que o socialismo era a ideia proletária por excelência e que o proletariado, tendo aderido a ela, não a abandonaria. Tal noção estava subjacente no raciocínio de todas as escolas europeias de pensamento socialista. Na vasta literatura política produzida por elas, a questão do que deveriam fazer os socialistas no poder, se perdessem a confiança dos trabalhadores, não chegou sequer a ser examinada. Jamais ocorreu aos marxistas pensar se seria possível ou admissível tentar estabelecer o socialismo a despeito da vontade da classe operária. Simplesmente julgavam que tal vontade existiria sempre”[xvi].

         A experiência da revolução russa nos deixou inestimáveis lições, como essa. O partido bolchevique, mesmo liderando a revolução de outubro de 1917, perdeu a confiança da classe trabalhadora no decurso dos acontecimentos (sobretudo em relação ao desgaste inevitável da guerra civil). Para contornar este problema, intensificou a repressão e os mecanismos de controle, o que facilitou e ajudou, em certa medida, a ascensão do stalinismo. Para a maior parte da intelectualidade desta “esquerda revolucionária”, tais problemas são sequer pensados e admitidos. Partem do pressuposto de que são a expressão pura dos interesses da classe trabalhadora e que jamais poderão entrar em contradição com ela.

         Isso não é apenas um erro, como uma superestimação de si mesmos, que os impedem de ver as oscilações, os meandros e os problemas da consciência da classe trabalhadora; impedindo-os, da mesma forma, de intervir nessa consciência. Assim, a confusão e o caos de economicismos, espontaneísmos e imediatismos levam a que ela nem sequer se coloque problemas relacionados ao socialismo, uma vez que nem mesmo as questões mais básicas e cotidianas de sua vida são colocadas em pauta de forma correta pela vanguarda (leia-se bem: aquelas questões que a grande mídia coloca como se fossem do povo trabalhador e este as compra!).

 

o.

         A conclusão que se chega com estas notas é a necessidade de renovarmos o arsenal teórico, propagandístico e prático da “esquerda”, encarando a realidade cotidiana da classe trabalhadora, tanto para o que tem de bom, quanto para o que tem de ruim. Não se pode idealizá-la, tal como a criação de um novo “santo” ou “deus”, que teria a solução milagrosa para tudo, bastando apoiá-la em qualquer circunstância (ou esperando um “despertar” que nunca vem). A militância revolucionária precisa se atentar para as formas, o método e o conteúdo do que precisa ser debatido com a classe trabalhadora, levando em consideração, precisamente, os seus atrasos mais escabrosos.

         Não! Tais atrasos não serão corrigidos espontaneamente por um ascenso qualquer. Tampouco há antídoto para eles sem uma intervenção consciente sobre todos os problemas descritos aqui. Se precisamos de uma esquerda revolucionária forte, que faça um trabalho sério e conjunto a nível nacional para superar estes problemas – fato inexistente hoje, o que torna, por enquanto, uma tarefa sem solução –, o primeiro passo para se achar alguma solução é começar a constatar estes problemas e levá-los decididamente em consideração, sem minimizá-los ou ignorá-los. Ações que, infelizmente, tem sido a prática de quase toda a “esquerda” brasileira até hoje.

 

Referências


[vi] ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Boitempo Editorial, São Paulo, 2010 (página 248).

[viii] Os nomes e os locais são fictícios para preservar a real identidade dos envolvidos.

[xvi] DEUTSCHER, Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2005 (página 602).

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