Notas sobre as formas de consciência da classe trabalhadora brasileira moderna
Qual militante dos dias de hoje não
ouviu argumentos de intelectuais burgueses que tentam classificar as
reivindicações históricas da classe trabalhadora e a própria teoria marxista
como algo “ultrapassado” e “sem valor”? Infelizmente uma grande parcela de suas
organizações e da própria classe trabalhadora sucumbe a este tipo de pensamento
por medo de enfrentá-lo, já que não possui nenhum argumento que posso responder
a este tipo de “crítica”.
É certo que o marxismo tem limitações
e, obviamente, cometeu equívocos. Refletiu, historicamente, a classe operária
do seu tempo, embora sua teoria busque expressar um valor histórico-universal.
Do século XIX aos dias de hoje muitas coisas se processaram e se modificaram no
seio da classe trabalhadora e fora dela. No entanto, apesar disso, insisto que
uma teoria baseada no materialismo dialético não pode
tornar-se velha, uma vez que reconhece o devir
como sua espinha dorsal. As muitas lacunas que possui necessitam, como os seus
fundadores apontaram, ser preenchidas com o avanço científico, cultural, social.
É sabido que Marx e Engels sempre
recomendaram o atento acompanhamento da evolução científica de cada época.
Desgraçadamente, a “esquerda” atual chafurda na teoria marxista como
evangélicos ortodoxos chafurdam nos dogmas da “exatidão” da Bíblia. Terminam
por reproduzir aquilo que há muito tempo Nietzsche já havia zombado dos
“socialistas” como a renúncia à realidade concreta em nome de um “paraíso
vindouro” totalmente abstrato, que nega os elementos da vida sob o nosso nariz
(é comum ouvirmos: “quando estivermos no socialismo”; “quando as massas
explodirem em luta”; isto é, sempre uma espera de algo vindouro numa
expectativa muito semelhante à cristã).
Assim, as tendências reais não apenas
se perdem completamente como se enredam em compreensões marcadas por um
espírito sectário e dogmatizante, embaladas num verbalismo revolucionário que dissimula
a perda de noção da realidade. A burguesia, seguindo o faro comercial, e a
maioria dos seus teóricos, ao contrário da “esquerda”, se caracterizam por um
realismo maquiavélico, seja de forma soft
através da indústria cultural, seja
de forma hard a partir dos seus
noticiários militantes, revistas, periódicos, sites, jornais, etc.
Não há revolução ou mudança social que
não tenha como tarefa central cortar
os fios de manipulação ideológica dos teóricos burgueses (incluso todos aqueles
que na “esquerda” os reproduzem) e retome o contato escrupuloso com a
realidade. Esta é a principal lição do leninismo,
esquecida por grande parte da militância de esquerda que o reproduz como dogma.
As notas que seguem tem a finalidade de
examinar a consciência atual da classe trabalhadora brasileira, partindo de um
microcosmo. Elas foram coletadas a partir de uma experiência com um grupo de trabalhadoras terceirizadas do serviço
público estadual. A ideia motivadora delas é tentar estabelecer relações de
similaridade e diferenças entre a antiga classe trabalhadora europeia do século
XIX e XX – isto é, a classe trabalhadora tomada como exemplo por Marx, Engels,
Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo e repetida acriticamente pela maior parte dos
“marxistas” da atualidade – e a classe trabalhadora brasileira do início do
século XXI.
a.
O economicismo
e o espontaneísmo são tendências e
desvios identificados na luta da classe trabalhadora por Lenin no livro Que fazer?, de 1902, e reproduzidos – em
grande parte – acriticamente pela “esquerda” desde aquela época. Em síntese,
trata-se de manter a luta proletária dentro dos estritos limites das
reivindicações econômicas (melhores salários, condições de trabalho, garantia
do emprego, etc.) que são totalmente aceitáveis pelo capitalismo (e
contornáveis por ele). Segundo Engels, “não
são os baixos salários, mas o salário em si mesmo que constitui o mal
fundamental do sistema”[i].
Isto é: o mal a ser combatido é o sistema de exploração do trabalho assalariado
pelo capital em si, não os seus
desdobramentos.
Na época de Lenin, os socialistas de
caráter reformista (em especial, os mencheviques e os social-revolucionários
russos) pretendiam manter as reivindicações econômicas da classe operária
estritamente nos limites aceitos pelo sistema, sem “misturá-la” com reivindicações
de cunho político. Isto é: queda da monarquia, mudar o regime político
instituído, questionar o sistema econômico vigente; enfim, procurar uma saída
que fosse capaz de dar uma perspectiva de poder para a classe trabalhadora
(note-se bem: eles faziam isso, em sua maioria, vendendo tal prática como o principal caminho para o socialismo e a revolução).
Segundo Lenin, isso seria cultuar o espontâneo, uma vez que a
classe trabalhadora poderia, por si mesma, chegar às reivindicações econômicas (mais
simples e evidentes), mas não às reivindicações socialistas, que, sendo mais
complexas e exigentes, poderiam abrir a perspectiva de poder. Dito de outra
forma: na prática espontaneísta a consciência proletária ficaria restrita à uma
consciência sindicalista, estreita e limitada; sem permitir que floresça uma
consciência de classe que colocaria, de fato, fim a sua exploração enquanto
classe e acabaria com as absurdas desigualdades sociais que conhecemos, abrindo
o caminho para o socialismo.
b.
Atualmente o economicismo e o espontaneísmo
assumiram distintas formas, mais de acordo com a atual luta de classes e com as
readaptações produtivas do
capitalismo após suas diversas crises. Algumas das formas atuais do
economicismo e do espontaneísmo são: o imediatismo
da classe trabalhadora nas suas distintas categorias[ii];
o “fora Bolsonaro” (ou qualquer outro
“fora este ou aquele”) sem correlação
de forças e sem uma alternativa concreta de poder[iii],
demonstrando um radicalismo estéril e desesperado, servindo apenas para
consumir energia e gerar ilusões; a agitação e a prática de “greve geral” de demonstração, sem nenhuma interferência real sobre os locais de
trabalho[iv],
que serve apenas para “pressionar” deputados e governos com finalidades
eleitorais; o identitarismo sem
delimitação de classe, portanto, policlassista[v];
além de qualquer greve ou movimento social que se mantenham nos seus estreitos limites
corporativos (o que acontece na maioria esmagadora das greves atuais
dirigidas pelas burocracias sindicais).
Portanto, não possui exatamente as mesmas
características da época de Lenin, que se definiam por não associar as lutas
econômicas com a luta política. Os agrupamentos políticos russos daquele
período histórico julgavam suficiente a manutenção da agitação, da propaganda e
da prática voltados exclusivamente às lutas econômicas e sindicais, para quem
“o movimento seria tudo” e o “objetivo final nada”. Tal concepção esquemática,
ligada ao pensamento do dirigente da social-democracia alemã, Edward Berstein,
foi magistralmente desmascarada por Rosa Luxemburgo em seu livro Reforma ou revolução?, de 1899. De lá
para cá, a maioria da “esquerda” – incluso Lula, como veremos – julgam-se livres
desta concepção economicista antiga, já criticada e desmascarada por Lenin e
Rosa Luxemburgo.
Hoje qualquer partido ou organização
política de “esquerda” dirá se tratar de um absurdo ignorar a luta política,
separando-a da luta econômica. Portanto, se dirão em sintonia com Lenin ao
combater o economicismo e o espontaneísmo no livro Que fazer?. Contudo, o economicismo também mudou de forma, não se
restringindo apenas às antigas formas descritas por Lenin de um sindicalismo
estreito, ainda que grande parte da “esquerda” pratique tal sindicalismo
estreito sem o admitir. Muitos sindicalistas atuais afirmam que estão
sintonizados com as demandas das lutas políticas (sobretudo as parlamentares).
A partir daí, associam a “pressão parlamentar” de sindicatos sobre os deputados
como “luta política”, ao mesmo tempo em que aceitam todo o restante da
estrutura social. Ou seja, tal tipo de “luta política” não apenas é aceitável
por parte do sistema, como lhe ajuda a vender uma imagem de “democrático”, uma
vez que tolera tais tipos de manifestações que, sabemos, não mudam nada (ou
quase nada).
Assim, os pontos essenciais do
economicismo e do espontaneísmo atuais estão naqueles métodos de luta e teorias
que não vão além daquilo que é tolerável e aceitável para a burguesia; além de
não terem coerência nem implicações concretas sobre as bases do seu sistema de
exploração – e que, por isso mesmo, não criam nenhuma perspectiva de
independência de classe e de poder proletário. Mais do que ninguém, a burguesia
percebe nitidamente tais tendências e sabe influir sobre elas muito mais do que
a “esquerda”, que se julga esperta e preparada, quando na realidade é tacanha,
obtusa e/ou oportunista.
c.
Há, contudo, semelhanças entre o
espontaneísmo antigo e o atual. Ouve-se, frequentemente, que “basta uma
categoria estar em greve para que ela compreenda o papel da burocracia sindical
e das perversidades do poder político e econômico do sistema”. Tudo isso,
evidentemente, aconteceria de forma automática a partir das palavrinhas “basta
estar”.
Não “basta estar” em greve. É
necessário um amplo trabalho de formação teórica e política, feito no
obscurantismo desesperador da vida cotidiana, que vá acompanhando a lenta
evolução desta categoria. É justamente aí que começam os nossos problemas,
porque as organizações de “esquerda” não querem enfrentar este trabalho
doloroso. Pensam que a mobilização espontânea como uma greve, por exemplo, por
mais importante que seja, tenha poderes miraculosos.
Não, camaradas! Nada substitui o
trabalho de formiguinha cotidiano com uma política correta e paciente que
enfrente, sobretudo, as relações hipócritas. Talvez tenha sido por isso que Engels
escreveu: “Existe uma guerra social
aberta e que, se a burguesia tem todo o interesse em conduzi-la hipocritamente,
sob o manto da paz e até da filantropia, aos operários só pode favorecer a
revelação das relações hipócritas, só pode favorecer a destruição dessa
hipocrisia”[vi].
Tais relações são produzidas
inevitavelmente pelo modo de vida burguês, que necessita reforçar as ilusões
nas aparências da vida cotidiana, criando um véu de oficialidade acima de
qualquer legislação; mas, infelizmente, elas também se espraiam e criam raízes
na classe operária[vii].
Centrar fogo para destruir esta hipocrisia cotidiana é parte fundamental e
indispensável da luta, pois é o seu primeiro muro de contenção e um dos mais
poderosos. Por isso, qualquer luta sindical, política ou mesmo teórica que não
combata a hipocrisia cotidiana que se disfarça e se espalha de mil formas
diferentes e que tem papel importante na manutenção do sistema é também, de
certa forma, um tipo de “economicismo”. Tais relações hipócritas, que se
enraízam na psique coletiva, dificultam decisivamente – dentre outros fatores –
o surgimento de seres humanos novos.
d.
No meio de janeiro de 2021 ocorreu um
protesto espontâneo organizado por
trabalhadoras terceirizadas da educação pública estadual de Gravataí, que não
recebiam há pelo menos 3 meses e não tinham a menor perspectiva de receber se
não tomassem alguma atitude. O atraso do pagamento de salário tem se tornado
uma realidade de diversas categorias brasileiras. O referido protesto foi
convocado para um local no centro de Gravataí, em frente à sede da empresa WD limpeza[viii],
que supostamente deveria prestar serviços de limpeza e manutenção de escolas
públicas para a secretaria de educação do Estado. Poucas pessoas se fizeram
presentes no protesto, dado que foi convocado precária e espontaneamente por
trabalhadoras que não possuíam nenhuma tradição sindical (sem falar de todos os
problemas referentes ao descrédito em relação aos sindicatos).
O CPERS, os movimentos sociais, partidos
e organizações de “esquerda” não se envolveram em absolutamente nada, deixando
as trabalhadoras terceirizadas largadas à própria sorte. Apenas uma dupla de
militantes foi prestar solidariedade e tentar ajudar de alguma forma. Naquele
momento, esta era a única luta real em curso na categoria, ainda que limitada e
pequena. São estes momentos não percebidos pela “esquerda”, acostumada a olhar
apenas para os eventos grandes, imponentes e que lhe deem algum retorno
político fácil (sobretudo a partir do seu culto e da sua bajulação dos
presentes), que faz com que as grandes possibilidades morram no nascedouro.
Quando a dupla de militantes chegou ao
protesto, que, pelo visto, não esperava mais ninguém, encontrou cerca de 13
pessoas: 12 mulheres e 1 homem. Eram todas funcionárias terceirizadas de
Gravataí, embora a WD limpeza atendesse
outras cidades, como Porto Alegre, Canoas, Alvorada e Viamão. O protesto
ocorrido em meio à pandemia bateu cabeça no início, pois não sabia exatamente o
que fazer. De fato, pouco se parecia com um protesto, embora todas elas
estivessem aparentemente decididas a arrancar o salário à força.
Inicialmente se pensou em formar uma
comissão para ir até a porta da empresa, que fica dentro de um edifício
comercial, com várias lojas e departamentos. As 13 pessoas, mais os militantes,
adentraram o saguão do prédio e solicitaram conversar com representantes da
empresa. O porteiro, temendo um tumulto maior, solicitou que apenas duas ou três
pessoas ficassem no recinto, mas o restante do pessoal se negou a sair,
tensionando os representantes a descer.
Um pouco depois finalmente desceram os
2 representantes da empresa para “dialogar” com as manifestantes. Foi-lhes
prometido que o salário entraria nas suas contas até às 10h daquela manhã (eram
por volta das 9h30min) e pediram que se retirassem. Todas elas, indignadas,
falaram que não iriam arredar pé dali sem que o salário de fato tivesse
entrado. Se denunciou publicamente que as trabalhadoras sequer tinham recebido
o contrato de trabalho, por isso os representantes da empresa imprimiram na hora
alguns papéis e levaram para que elas assinassem em plena rua. Muitas se negaram
a assinar. Os dois militantes se propuseram a fazer cartazes com as
reivindicações para dar uma cara de protesto àquela manifestação, chamaram mais
ativistas, sindicatos e ajudaram divulgando nas redes sociais. O relógio bateu
10h e o salário não entrou. A indignação aumentou. As denúncias dos militantes
surtiram algum efeito, pois na sequência chegou um repórter da mídia local para
registrar o protesto, o que aumentou a pequena pressão sobre a WD limpeza.
As manifestantes decidiram se sentar no
chão, com os cartazes e com a firme intenção de demonstrar que não iriam sair
dali. Os representantes da empresa ficaram nitidamente constrangidos. Palavras
de ordem nos cartazes denunciavam a ligação da empresa com o governo Eduardo
Leite (PSDB), que tornava-se cúmplice do calote. Um pouco mais tarde percebemos
que houve algum erro quando parte das manifestantes foi conferir se o salário
havia entrado nas suas contas através do aplicativo de celular. Notou-se que
umas tinham recebido e outras não – ainda que apenas aquelas pessoas que se
fizeram presentes na manifestação tinham recebido, enquanto que o restante do
contingente de trabalhadores da empresa que não compareceram não recebeu um
tostão sequer. Os ânimos se acirraram e uma das principais lideranças da
manifestação ameaçou a empresa afirmando que iriam voltar lá todos os dias para
infernizá-la.
Um pouco depois outra manifestante
indicou o link correto do aplicativo do banco para conferir o recebimento do
salário. Perceberam que, de fato, o dinheiro havia entrado para todas as
presentes, embora sem o vale-refeição e o acréscimo da insalubridade. Haviam
recebido por volta de R$400 a menos do que deveriam receber de acordo com o prometido.
A mais indignada entre trabalhadoras prometeu convocar um “grande ato” para a
manhã seguinte e pediu aos militantes que ajudassem a organizar, inclusive
criando um grupo de whatsapp para mobilizar
mais colegas. Quando se deram conta, o protesto, que já era pequeno, ficou
ainda menor. Algumas presentes – dentre as quais o único homem –, ao perceberem
que já haviam recebido o salário (com o logro de R$400), simplesmente foram
embora sem falar nada.
e.
Dois dias após o grupo de whatsapp ter sido criado e tentado
organizar uma nova manifestação na frente da empresa, um grande esforço
militante foi realizado para construir essa mobilização a pedido de algumas das
trabalhadoras terceirizadas. Os dois militantes transformaram-se em sete, levando
junto consigo uma caixa de som de um dos núcleos do CPERS de Porto Alegre.
Contudo, ao chegarem no local no horário combinado, apenas uma manifestante
compareceu. Nenhuma outra sequer deu alguma justificativa para as ausências.
Muitas explicações foram “dadas” pelos
militantes envolvidos para tentar descrever o fenômeno, dentre as quais,
aquelas que reforçavam a ideia de que o aumento da organização através dos
militantes “profissionais” as fez recuar. A estas se somaram outras, mais
plausíveis, de que houve um possível aumento da pressão da empresa que assustou
as trabalhadoras. Ainda que possa ter havido algum erro de precipitação por
parte dos militantes, não se pode dourar a pílula: aqui temos um caso bastante
específico de culto ao espontâneo, em que as causas não foram procuradas no
atual nível de consciência da classe trabalhadora brasileira, mas na suposta
“interferência” dos militantes “de fora”. Quando nos decidimos a enfrentar uma
injustiça promovida por alguma empresa capitalista o que se pode esperar senão
o aumento da pressão ameaçadora contra quem se levanta contra ela, além da
necessidade de se aumentar a organização? Renunciar a isso é o mesmo que
renunciar à luta.
Podemos concluir deste episódio que,
infelizmente, a consciência de classe despencou para níveis desesperadoramente
baixos, fazendo as trabalhadoras descambarem para as mais estreitas formas de imediatismo e auto alienação. Para isso concorreram fatores subjetivos e
objetivos.
Entre os primeiros podemos listar a
ausência de uma organização revolucionária e sindical que consiga inspirar
confiança no movimento da classe trabalhadora. É, de certa forma, reflexo da
crise de confiança e de direção política que permeia toda a nossa sociedade. A
perspectiva socialista sofreu um duro golpe com as sucessivas traições a ela:
desde o stalinismo na extinta União Soviética, até o oportunismo descarado dos
partidos reformistas atuais, dentre os quais, se encontra a triste experiência com
o PT (além é claro, da prática economicista e espontaneísta da maioria das
organizações da “esquerda” brasileira). Dentro dos fatores subjetivos ainda
temos o grave problema da ausência de políticas que levem em consideração a psicologia de massas da classe
trabalhadora no sentido de combater o seu espírito
de rebanho[ix].
Do ponto de vista objetivo, certamente
pesam as alterações dos modos de vida e de consumo do atual capitalismo,
comparativamente ao capitalismo do século XIX e início do século XX na Europa,
bem como a pobreza teórica da agitação e da propaganda da “esquerda”, que não
apenas não ataca seus alicerces, como os ajuda a se renovar. Analisaremos a
seguir estas questões.
f.
Grande parte da “esquerda” idolatra uma
classe trabalhadora que não existe na realidade, apenas em tese. No mais das
vezes, ao bajulá-la, cultiva o que há de pior nela. Isso não significa
desconhecer os seus sacrifícios reais quando ocorrem em determinados contextos
históricos de ascenso revolucionário, mas não podemos idealizá-la sob pena de
criarmos uma prisão mental que não encontra paralelo na realidade. Esta tem
sido a regra, infelizmente.
A classe trabalhadora real, apesar de
concentrar potencial transformador desde que livre das ilusões e do egoísmo que
impede o surgimento da consciência de classe, “elegeu” Bolsonaro no Brasil e
prefere ir tocando sua vida, num imediatismo bárbaro, diferente do que era
obrigada a fazer pelas circunstâncias do século XIX e XX. Um contingente imenso
de pessoas compõe o que compreendemos como classe trabalhadora, mas elas não
tomaram forma como classe para si,
pois não há sentimentos compartilhados, vontade comum, valores interligados,
nem solidariedade. E não se trata de reconhecer que “nos momentos de calmaria”
a classe trabalhadora é assim, porque temos visto que nos momentos de
acirramento da luta de classes não tem desenvolvido relações que apontem para a
solidariedade de classe (alguns militantes prontamente dirão: é falta do
partido revolucionário; o que é correto, embora não explique tudo).
Por que isso ocorre? Difícil responder
com certeza, mas um dos elementos é, sem dúvida, o papel conciliador e
oportunista cumprido pela “esquerda”, que trabalha conciliando os valores da
burguesia com os da classe trabalhadora. Outras possibilidades de respostas
encontram-se nas modificações ocorridas no seio da classe trabalhadora e no
próprio capitalismo, que vai incorporando demandas e reivindicações dos setores
populares, possuindo uma elástica capacidade de reciclagem que a “esquerda” não
percebe, não consegue ou não quer perceber.
Compare-se as condições de trabalho, de
habitação, de consumo e de vida da classe trabalhadora da época de Marx,
Engels, Lenin, Trotski e Rosa Luxemburgo com a classe trabalhadora brasileira moderna,
por exemplo, e se perceberá que, por mais saqueado que seja o nosso país e o
próprio proletariado, os níveis de hoje são um pouco melhor do que antes.
Reconhecer isso não significa, evidentemente, optar pelo caminho reformista,
mas, sim, perceber que precisamos, também, reciclar nossa agitação e propaganda
constantemente; além de fazer um balanço duro da nossa atuação enquanto
esquerda classista do quanto cumprimos e do quanto deixamos de cumprir.
Isso implica, forçosamente, reconhecer
que receber o salário miserável de um trabalho terceirizado no Estado (atrasado
e descontado) leva uma trabalhadora e um trabalhador a abandonar o coletivo
para “colocar sua vida em ordem” (... por alguns dias a mais). O economicismo é
tão estreito e rasteiro que uma quantia baixa de dinheiro acalma e faz um
trabalhador retroceder. Mesmo R$100 hoje possui um certo poder de compra que
não existia para a classe trabalhadora antiga, que ao receber o salário, não
podia satisfazer, no geral, as
demandas mensais ou semanais da sua família. E nem podia, uma vez que quando se
recebia o salário, o poder de compra era baixo em razão dos diversos problemas
de abastecimento e transporte, ainda que estes viessem avançando. Contudo, as
precárias condições de vida da classe trabalhadora, que literalmente passava fome caso não recebesse o salário (e às vezes
até recebendo), encontrava eco direto nas manifestações concretas de ações que se
traduziam em solidariedade na busca desesperada de uma solução conjunta, seja
uma barricada de rua, seja uma ocupação, seja um comitê militar de resistência a
uma invasão, etc. No passado recente, haviam poucas alternativas à
solidariedade baseada no coletivo.
Um trabalhador desse período histórico,
mobilizado e em luta, dificilmente agiria como agiram parte das trabalhadoras
terceirizadas que, ao receberem parte do seu salário, simplesmente viraram as
costas e foram embora, parcialmente satisfeitas com a medíocre possibilidade de
comprar o que necessitavam (isto é: sacrificaram o futuro em nome de um presente
precário, com medo, talvez, de ter que olhar de frente a real possibilidade de
voltar para ali no mês seguinte). Existiam no passado, evidentemente,
manifestações de alienação e descomprometimento com a luta, mas eram superados
por explosões populares livres de uma grande mídia com um poder manipulatório
tão grande, além das atuais condições de espionagem via redes sociais e da
enorme influência econômica que possui hoje; sem mencionar as técnicas de
manipulação da psicologia de massas,
feita cirurgicamente pela indústria
cultural, pelo reformismo e por neofascistas
como Trump, Bolsonaro, Steve Bannon e Olavo de Carvalho.
Em contrapartida, segundo o economista
Ladislau Dowbor, antigamente “a
apropriação do excedente era por meio dos salários baixos, da mais-valia. Hoje
é pelo endividamento das pessoas, pelas taxas de juros, pelos dividendos
abusivos em cima de aplicações financeiras, pelo endividamento dos governos, de
maneira geral, e o conjunto das cobranças sobre direitos, no caso das patentes
etc.”[x]. Isso
não explica tudo, é claro, mas ajuda a compreender, em parte, a atuação das
trabalhadoras terceirizadas. Um crédito supostamente facilitado através dos
cartões de bancos impõem certos mecanismos de controle e dão acesso pontual e
parcial à bens de consumo que no passado eram muito mais restritos.
Algumas organizações políticas e
intelectuais se rendem a este estado de coisas, que julgam insuperável. Com a
desculpa de se “adaptar” a estas condições, rebaixam sua política e seu
programa irremediavelmente (o PT é o exemplo mais elucidativo, mas não é o
único). Aqui não se trata disso, mas de tentar
encontrar, de fato, um caminho que leve tudo isso em consideração. E encontrar
esse caminho não pode significar repetir fórmulas, discursos e palavras de
ordem mirabolantes sem lastro na realidade[xi],
mas de procurar um fio condutor de uma ideia-força que dê o pontapé inicial
para uma nova prática, capaz de galvanizar e ir desmascarando os interesses
burgueses que se estendem pela classe trabalhadora e que são sentidos como “se
fossem seus”. Que tenha a capacidade de, pelo menos, manter o diálogo com o
dia-a-dia da classe trabalhadora e de desmascarar, permanentemente, a grande
mídia, as igrejas exploradoras, o véu de hipocrisia do cotidiano, etc. Falar é
fácil, sabemos; executar cotidianamente estas tarefas é muito mais difícil.
Contudo, o primeiro passo é tomar conhecimento do problema; e o segundo, querer
enfrentá-lo.
g.
As constatações feitas até aqui são
duras, embora precisem ser ditas, uma vez que a “esquerda”, no geral, faz
vistas grossas para rever sua prática e sua teoria. Aqui não se trata de
desconsiderar totalmente ou de abafar autoritariamente as manifestações espontâneas
da classe trabalhadora, mas de saber perceber suas limitações e tendências, procurando
formas inteligentes, renovadoras e de diálogo para que avancem. Nada disso é
feito. Sequer existe essa preocupação por entre a “esquerda”, marcada por um
oportunismo descarado, que leva o culto
do espontâneo à condição inconsciente de dogma.
Uma das grandes questões daqui para
frente é saber como casar a direção política das massas com o seu
espontaneísmo, sem adestrá-lo ou oprimi-lo, porém, sem deixá-lo correndo atrás
da própria cauda; ou o que é pior: canalizado pela burguesia! Uma grande
parcela de militantes da “esquerda” tem jogado toda a tradição do movimento operário fora, classificando-o, erroneamente, de autoritário por se propor a
ser uma direção. Tais influências – da
parte ruim do anarquismo – expressas por um espontaneísmo bárbaro, não deixará
de cobrar seu preço no próximo período. Se não o cobrar desde já!
Uma vanguarda que pretende organizar o
partido revolucionário não pode jamais idealizar as massas. Precisa trabalhar
sobre ela tal como ela é[xii].
Isso não significa capitular pra nenhum dos dois erros centrais: nem para o seu
espontaneísmo, condenando as principais formas de organização política – como o
partido revolucionário; nem agir como se a vanguarda pudesse substituir as
massas, ignorando e patrolando totalmente as ações espontâneas da classe
trabalhadora que são progressivas.
Contudo, vemos nitidamente que hoje,
cada vez mais, faltam ações espontâneas da classe trabalhadora que apontem tendências
políticas, tal como o proletariado russo apontou para os sovietes entre 1905 e 1917. Tudo isso faz aumentar a importância do
elemento consciente.
h.
No dia 10 de março Lula discursou no
sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista sobre a anulação dos processos
judiciais contra ele. Logo no início, fez uma breve menção ao fato de que
quando era operário terminou por entender as limitações da luta sindical – que,
segundo expressou, sequer são capazes de impedir a debandada da GM e da Ford do
país após sugarem impiedosamente a classe trabalhadora –; a partir daí, teve
que “avançar” para a luta política, fundando um partido e entrando também na
“luta política”.
Com isso, Lula quis dar uma breve
“aula” sobre como ser contra o “economicismo”. Na realidade, a “aula” foi sobre
como não devemos entender o economicismo.
A despeito de ser uma piada mórbida, dado que a CUT e o PT praticam o
economicismo mais rasteiro e estreito nas bases sindicais que controlam, a
prática de Lula demonstra como a “esquerda” no geral pensa estar além do
economicismo, quando, na realidade, o cultiva sob novos disfarces. Para Lula,
estar num partido político e ter uma vida de eleitor na democracia burguesa,
respeitando todos os procedimentos burocráticos do parlamento, da justiça, da
grande mídia burguesa – em síntese, do establishment
– é superar o economicismo, não importando qual política se defenda.
O economicismo moderno também participa
da política, mas sem criar nenhum problema para a institucionalidade burguesa e
a sua ordem. Quando Lenin apontou o problema no Que fazer? estava querendo dizer que o economicismo é uma forma de
desviar a luta da classe trabalhadora – e, portanto, sua atenção e energia –
para a sustentação direta ou indireta da ordem capitalista. Na prática, o
economicismo não questiona a doença, mas apenas os sintomas; defende a luta
econômica e sindical, mas jamais o choque com os alicerces do sistema que geram
as demandas levantadas na luta econômica e sindical.
Desde a época de Lenin o economicismo e
o espontaneísmo mudaram muitas vezes de forma. Como Lula tentou demonstrar em
seu discurso, hoje a “esquerda” compreende a importância da luta política, mas
a essência do economicismo (qual
seja: a contenção das lutas dentro dos marcos do sistema, mantendo os
trabalhadores inconscientes e subordinados às direções burguesas) não foi superada, tendo apenas um upgrade; isto é: uma atualização das suas manifestações
essenciais. Dito de outra forma: para que o economicismo pudesse continuar
tendo efeito paralisador e alienador sobre a classe trabalhadora, deixando-a a
mercê de direções burguesas, precisava se apresentar sob novas formas.
Portanto, a simples participação na
política burguesa não supera automaticamente o economicismo. Ao contrário:
reforça posturas e práticas economicistas e espontaneístas disfarçando-se de
“leninista”. Toda a prática e o discurso petista e lulista demonstram como o
economicismo se refinou para continuar cumprindo a mesma finalidade que cumpria
em 1902. Os níveis baixíssimos de consciência das trabalhadoras terceirizadas de
Gravataí também não deixam dúvidas quanto a existência e a não-superação do
problema.
i.
Para além dos problemas na consciência
imediata e histórica da classe trabalhadora atual, pesa a profunda crise de
direção que vivemos. Isso significa, na prática, o acovardamento e
aburguesamento da maioria das organizações da “esquerda”, direta ou
indiretamente. Isto é: a sua adaptação às relações hipócritas da sociedade
burguesa! Tudo isso aumenta o fardo dos setores conscientes da classe
trabalhadora e o espírito de rebanho
na massa em geral, que ainda não conseguiram encontrar uma ponte entre si,
sobretudo em razão da defasagem histórica da agitação e propaganda (dentre
outros problemas).
A visão de mundo da direita (isto é, da
burguesia) reinam absolutas entre a classe trabalhadora. Dentro destes campos
não existe nenhuma ameaça real ao sistema. Pelo contrário: tudo o reforça e não
há feição alguma por parte da “esquerda” para mudar seus rumos, seu discurso e
sua prática, apesar das inúmeras rupturas que ocorrem no seu seio. Rompem com
as organizações majoritárias para cair no mesmo ramerrão doutrinário, que
reproduz a mesma prática limitadora.
Revisar esta propaganda e esta prática
é um necessário primeiro passo.
Deve-se partir das tristes constatações feitas acima acerca dos baixos níveis
de consciência imediata da classe trabalhadora, bem como das manobras da
“esquerda” para se vender como “anti-economicistas”. No geral, a “esquerda” não
renova a teoria a partir da realidade prática, mas reproduz dogmas e frases
prontas para consumo intelectual da vanguarda, sem quase nenhuma ameaça para a
burguesia. Esta, por sua vez, dá gargalhadas e sente-se como naqueles versos de
Brecht: “a injustiça avança hoje a passos
firmes; os tiranos fazem planos para dez mil anos”.
Entre os oportunistas, quem exige uma
prática mais coerente e firme, pautada pela independência de classe, é tachado
de “esquerdista”, terminando por ser ridicularizado e ter o microfone negado ou
cortado. Quem entre a minoritária esquerda revolucionária questiona
determinados dogmas e tacanhices é imediatamente tachado de oportunista ou de
estar “abandonando princípios marxistas”. Não temos um caminho do meio entre esses dois extremos que tanto mal tem feito
para a luta independente da classe trabalhadora.
Já é hora de procurá-lo. Certamente um
caminho novo causa medo e receio, mas é necessário. Ele não significa o
abandono das boas conclusões e práticas dos cerca de 200 anos de movimento
proletário. Ao contrário: para fazer jus à dialética, temos que saber criticar
o que há de ruim em algo e conservar o que há de bom – tal como Marx e Engels
fizeram em sua crítica à dialética hegeliana. Deve-se admitir, forçosamente,
que na busca por este novo caminho é inevitável cometermos erros, mas a
correção de uma posição justa nasce, exatamente, dos erros dessa busca – desde
que se tenha honestidade em admiti-los. É deste procedimento ético, confrontado
com a dura realidade que a classe trabalhadora brasileira se encontra hoje, que
seguem as próximas conclusões.
j.
Um dos problemas centrais do Brasil, não
estudado e não combatido pela “esquerda”, é a estreita aliança entre a
burguesia e a classe média, que de uma forma ou outra se arrasta desde o
período colonial-escravocrata. Esta aliança é um dos principais alicerces do
regime republicano brasileiro nas suas diferentes fases históricas, sobretudo a
partir da “República Nova” inaugurada em 1988. A sociedade brasileira, fundada
sobre relações de produção escravocratas, tem como forma de funcionamento esta afinidade
estreita entre a elite e a classe média, que vive com as sobras da exploração
da elite dirigente, mas julga-se superior à “ralé” e serve como um muro de
contenção para o apartheid social em
nosso país.
Atualmente, desempenha um papel ainda
mais central, pois dado o seu caráter intelectualizado, é uma espécie de agente
infiltrada no seio da classe trabalhadora, cuja influência coloniza corações e
mentes dos explorados nos mais distintos níveis. Como uma das principais fontes
disseminadoras do discurso neoliberal, meritocrático
de self-made man, serve de aríete, abre-alas, aos interesses da
burguesia. Assim como a classe média quer se tornar elite burguesa, a classe
trabalhadora – sobretudo os seus extratos mais miseráveis, a chamada ralé brasileira, que trabalha para a
classe média em empregos miseráveis e quase sem nenhum direito trabalhista – orbita
a classe média querendo se tornar parte dela também. Os marqueteiros do PT e da
grande mídia exploraram essas ilusões como ninguém ao longo dos governos Lula
(2003-2010).
Aliás, a frente popular petista se
baseou exatamente nessa aliança entre a elite, a classe média e a colonização que
ambas fazem da mentalidade da classe trabalhadora. Portanto, deu liga e
“legitimidade” para o regime social existente, bem como para a sua doutrinação
“democrática”. A ruptura se deu exatamente com o golpe de 2016, quando
importantes setores da burguesia e da classe média quiseram expulsar o PT deste
pacto de poder social para conseguir arrochar
livremente as condições de vida do povo e saquear à vontade os recursos do
Estado, sem ter que dar nenhuma “bolsa-migalha”.
k.
Não precisamos ser sociólogos,
economistas ou antropólogos pra percebermos que a mentalidade meritocrática e dos
anseios de se tornar classe média
estão impregnados na classe trabalhadora atual. Grande parte da sua inércia
espontaneísta e imediatista provêm daí. Esta mentalidade de classe média (e, às
vezes, até mesmo burguesa) coloniza a maior parte do proletariado brasileiro.
Parte desta colonização intelectual é a chave de sustentação do regime político
capitalista no Brasil, por isso deve ser conscientemente enfrentada. E não se
trata apenas do desejo econômico e social de se tornar classe média, mas de
reproduzir os preconceitos e ódio de classe contra si próprio[xiii].
Tal mentalidade ajuda a naturalizar e obscurecer o processo de saque das
riquezas do país pelo mercado e pelo sistema financeiro internacional (que, por
sua vez, alimenta ideologicamente esta mentalidade).
Os partidos de “esquerda”
institucionalizados e grande parte das organizações “operárias” do nosso país reproduzem acriticamente os sentimentos
e mentalidades da classe média – consciente ou inconscientemente. A partir
deste espontaneísmo mais rasteiro, julgam estar “dialogando com os interesses
da classe trabalhadora”, quando, na verdade, estão reforçando os piores desvios
e alimentando os monstros que nos devorarão no futuro; além de reforçar as
próprias bases do alicerce do regime político burguês.
Não teremos mudanças sociais no Brasil
sem combater conscientemente e destruir a aliança histórica entre a burguesia e
a classe média em todos os seus efeitos sociais (sobretudo naqueles que têm
consequências colonizatórias na mentalidade da classe trabalhadora e dentro da
própria “esquerda”).
l.
A mentalidade social brasileira – desde
a classe média até os extratos mais baixos da classe trabalhadora – está
colonizada pelo imaginário neoliberal, que sustenta que tudo que provém do
Estado é ruim, corrupto e atrasado; e tudo o que provém do mercado e da
iniciativa privada é bom, idôneo e eficiente. Ou seja, o Estado (que foi o
único promotor de políticas públicas populares voltadas às classes mais baixas
da sociedade) é demonizado em nome da transferência dos seus recursos para o
mercado visando a privatização total e irrestrita. Além disso, tentam reduzir
todos os problemas sociais à corrupção na política, que existiria apenas no
Estado e na política, nunca no mercado[xiv].
Tal imaginário é reforçado 24h por dia, 365 dias por ano, direta ou
indiretamente, aberta ou disfarçadamente, pela grande mídia e seus noticiários
militantes do neoliberalismo. À política oficial (e mais tristemente, aos
papagaios da “esquerda oficial”), cabe ser o eco desta visão para poder se
inserir na institucionalidade reconhecida e no seu establishment.
É exatamente o empresariado que
corrompe os políticos para aplicar políticas em seu nome; mas o primeiro fica
completamente invisível. Já é hora de colocar abaixo esta máscara, superando o
discurso simplista de que a “corrupção é a resultante do capitalismo” – é
preciso denunciar onde e quando o mercado age no sentido de corromper a
política e o Estado. Isso não significa, evidentemente, que se desconsidere
aqui a corrupção na política. Ela existe e é nefasta. Contudo ela é a
resultante da corrupção maior e legalizada, que é a influência do mercado, do
sistema financeiro, dos oligopólios e monopólios sobre os políticos, o Estado e
suas instituições.
A grande mídia transita por uma grande
avenida sem nenhum tipo sério de resistência ideológica a esta dicotomização
absurda do Estado como encarnação de tudo o que é ruim e ineficaz e do mercado
como tudo o que há de bom e de eficiente. É daí que provém a forte adesão ao
pensamento de que hoje somos “empresários de nós mesmos” e que esta é a única
saída. O papel da “esquerda” frente a esta campanha ideológica ininterrupta e
não combatida é bizarro, refém do velho método 8 ou 80! A sua ala reformista e
adaptada (tipo PT, PCdoB e setores do PSOL) é papagaio desta campanha, senão
sua promotora indireta; a suposta “ala revolucionária” (tipo setores do PSOL,
PSTU, PCB, PCO e organizações menores) não se esforça por desmascarar o
imaginário neoliberal seriamente porque isso seria, segundo sua lógica tacanha,
“fazer apologia do capitalismo”, já que teríamos que defender um “Estado regulador”
e, portanto, “capitalista”.
Contudo, há mais mistérios entre o céu
e a terra do que sonha a nossa vã “política revolucionária”! A maior parte da
classe trabalhadora não consegue acompanhar este salto de uma ponta a outra,
sendo necessário, infelizmente, demonstrar a importância do Estado no combate
ao mercado e, principalmente, que existem coisas igualmente ruins e boas tanto
no Estado quanto no mercado (que deve ser regulamentado pelo primeiro)[xv].
Como a “esquerda reformista” capitula e
reproduz o discurso da direita neoliberal, de uma forma ou de outra, e a
“esquerda revolucionária” não suja as suas mãos límpidas e sacrossantas com um
discurso “tão rebaixado como este”, a grande mídia, a elite e a classe média
surfam nesta onda que se transforma num tsunami para a colonização do
pensamento da classe trabalhadora. Não lhe resta muitas alternativas, senão reproduzi-lo,
de uma forma ou de outra.
Isso não significa que devemos abdicar
de levantar e debater o programa avançado do socialismo com a classe
trabalhadora. Significa, apenas, que devemos dar uma atenção especial à
principal artimanha ideológica – não combatida – da burguesia e da grande
mídia. Bater nesse discurso sem piedade, demonstrando toda a sua falácia, é um
dos principais meios de minar a aliança ideológica, política e social da elite
burguesa com a classe média brasileira. Uma das principais tarefas teóricas da
esquerda revolucionária é reduzir a pó esta falácia, numa grande campanha de
agitação e propaganda. Sem isso, continuaremos a correr atrás do próprio rabo,
deixando o caminho livre para a burguesia, sua mídia e a classe média
enrolarem, seduzirem e minarem a consciência da classe trabalhadora. Parte fundamental
da sua consciência economicista e espontânea é constituída por esta mentalidade
neoliberal de que tudo o que é bom economicamente se concentra no mercado e no
setor privado; e tudo o que é ruim e corrupto, no Estado e na política.
m.
A vanguarda da “esquerda
revolucionária” atual desconhece caminhos intermediários: age tacanhamente num
“tudo ou nada” que, por ser muito raso, significa apenas “nada”. Quando falamos
dos problemas relacionados à regulamentação do mercado, por exemplo, ela se
adianta e diz que isso é impossível de se fazer no capitalismo e pensa, no alto
da sua ingenuidade, resolver o assunto da melhor maneira. Em alguns momentos,
como esse, as simplificações ideológicas se tornam inoperantes.
Tal compreensão pode ser justa, se vier
acompanhada de uma reflexão e de uma prática que trabalhe duro para superar o
capitalismo – o que pressupõe necessariamente uma rigorosa autocrítica –, ou
pode ser completamente equivocada se significar uma forma de omissão de suas
tarefas atuais (como essa, em particular, de desfazer a falsa polarização política
e ideológica de mercado-bom e Estado-ruim-corrupto). É necessário “sujar as
mãos”, ir até o fundo, entrar na discussão atual da grande mídia, da elite com
a classe média, para disputar consciências e narrativas. Fato que foi
definitivamente ignorado pela “esquerda” revolucionária atual, que prefere
reafirmar dogmas vazios nos seus guetos.
Essa necessária mudança de postura vai
apontar para uma nova agitação e propaganda, inevitavelmente. Nesse sentido,
repensar toda a nossa atuação prática e teórica é vital. Assim como uma
construtora precisa aplainar o terreno criando as bases do alicerce para a
construção de uma casa, necessitamos combater determinadas formas de
consciência que são como um solo erodido, incapaz de sustentar qualquer tipo de
construção. Isso quer dizer que para combatermos o economicismo e o
espontaneísmo com sucesso, necessitamos remover as ervas daninhas e aplainar o
terreno combatendo o referido imaginário
neoliberal propagado pela grande mídia que coloniza quase que integralmente
a mentalidade da classe trabalhadora e abre todas as portas para os diversos
tipos de imediatismos.
n.
Isaac Deutscher, na sua reconhecida
biografia de Trotski, levanta uma questão fundamental que deve ser levada em
consideração muito seriamente pela atual “esquerda revolucionária” no sentido de
romper a sua bolha voluntária.
Ele aponta que os bolcheviques não
estavam preparados para o fato de a classe trabalhadora russa deixar de lhes
apoiar: “Já consideravam como certo que a
maioria da classe operária, tendo apoiado o partido bolchevique na revolução,
continuaria a apoiá-lo sem oscilação até que tivesse realizado todo o programa
do socialismo. Por mais ingênua que fosse, tal suposição nascia da noção de que
o socialismo era a ideia proletária por excelência e que o proletariado, tendo
aderido a ela, não a abandonaria. Tal noção estava subjacente no raciocínio de
todas as escolas europeias de pensamento socialista. Na vasta literatura
política produzida por elas, a questão do que deveriam fazer os socialistas no
poder, se perdessem a confiança dos trabalhadores, não chegou sequer a ser
examinada. Jamais ocorreu aos marxistas pensar se seria possível ou admissível
tentar estabelecer o socialismo a despeito da vontade da classe operária.
Simplesmente julgavam que tal vontade existiria sempre”[xvi].
A experiência da revolução russa nos
deixou inestimáveis lições, como essa. O partido bolchevique, mesmo
liderando a revolução de outubro de 1917, perdeu a confiança da classe
trabalhadora no decurso dos acontecimentos (sobretudo em relação ao desgaste
inevitável da guerra civil). Para contornar este problema, intensificou a
repressão e os mecanismos de controle, o que facilitou e ajudou, em certa medida, a ascensão do
stalinismo. Para a maior parte da intelectualidade desta “esquerda
revolucionária”, tais problemas são sequer pensados e admitidos. Partem do
pressuposto de que são a expressão pura dos interesses da classe trabalhadora e
que jamais poderão entrar em contradição com ela.
Isso não é apenas um erro, como uma
superestimação de si mesmos, que os impedem de ver as oscilações, os meandros e
os problemas da consciência da classe trabalhadora; impedindo-os, da mesma
forma, de intervir nessa consciência. Assim, a confusão e o caos de
economicismos, espontaneísmos e imediatismos levam a que ela nem sequer se
coloque problemas relacionados ao socialismo, uma vez que nem mesmo as questões
mais básicas e cotidianas de sua vida são colocadas em pauta de forma correta
pela vanguarda (leia-se bem: aquelas questões que a grande mídia coloca como se
fossem do povo trabalhador e este as compra!).
o.
A conclusão que se chega com estas
notas é a necessidade de renovarmos o arsenal teórico, propagandístico e
prático da “esquerda”, encarando a realidade cotidiana da classe trabalhadora,
tanto para o que tem de bom, quanto para o que tem de ruim. Não se pode
idealizá-la, tal como a criação de um novo “santo” ou “deus”, que teria a
solução milagrosa para tudo, bastando apoiá-la em qualquer circunstância (ou
esperando um “despertar” que nunca vem). A militância revolucionária precisa se
atentar para as formas, o método e o conteúdo do que precisa ser debatido com a
classe trabalhadora, levando em consideração, precisamente, os seus atrasos
mais escabrosos.
Não!
Tais atrasos não serão corrigidos
espontaneamente por um ascenso qualquer. Tampouco há antídoto para eles sem
uma intervenção consciente sobre todos os problemas descritos aqui. Se
precisamos de uma esquerda revolucionária forte, que faça um trabalho sério e conjunto a nível
nacional para superar estes problemas – fato inexistente hoje, o que torna, por
enquanto, uma tarefa sem solução –, o primeiro passo para se achar alguma
solução é começar a constatar estes problemas e levá-los decididamente em
consideração, sem minimizá-los ou ignorá-los. Ações que, infelizmente, tem sido
a prática de quase toda a “esquerda” brasileira até hoje.
Referências
[i]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/12/o-espontaneismo-na-luta-de-classes-da.html
[ii]
Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2017/12/o-imediatismo-e-luta-da-nossa-categoria.html
[iii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/sobre-palavra-de-ordem-fora-bolsonaro.html
[v]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/os-meritos-e-os-perigos-do-identitarismo.html
[vi] ENGELS,
Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Boitempo Editorial,
São Paulo, 2010 (página 248).
[viii]
Os nomes e os locais são fictícios para preservar a real identidade dos
envolvidos.
[x] Ver:
https://outraspalavras.net/outrasmidias/dowbor-o-capitalismo-se-desloca-e-abre-nova-disputa/
[xiii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/10/bolsonaro-e-o-apoio-do-povo.html
e http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/12/o-irracionalismo-das-massas.html
[xiv]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/06/corrupcao-legal-e-corrupcao-ilegal.html
[xv]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html
[xvi] DEUTSCHER,
Isaac. Trotski – o profeta armado – 1879-1921. Editora Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, 2005 (página 602).
Nenhum comentário:
Postar um comentário