Antes
da pandemia, diziam aos quatro cantos os jornais e telejornais da grande mídia
que vivíamos no Brasil e no RS uma “crise financeira”. Veio, então, a pandemia.
Em julho de 2020, sem perder tempo, o garoto propaganda dos governos do PSDB,
Luciano Huck, anunciou solenemente que ela “veio
para acelerar a digitalização da educação”[i].
Na sequência, em agosto de 2020, o
responsável pelo setor de informática da SEDUC-RS afirma, em um áudio vazado,
que tinha sido incumbido pelo então secretário da educação, Faisal Karam, “de preparar o aluno da escola pública
estadual para a nova economia”, complementando que “o plano para trazer o aluno para esta nova economia deve ser acelerado
e colocado de pé o quanto antes”[ii].
Mas que “nova economia” é essa?
Ora, pra quem ainda não entendeu,
trata-se da economia uberizada,
baseada em serviços – sobretudo virtuais, tipo Amazon, iFood, Uber, EaD –, de capital financeiro improdutivo, embora extremamente
lucrativo para uma ínfima minoria.
Segundo Ladislau Dowbor, “há um endividamento generalizado dos países, dado o poder de grandes
corporações — não mais General Motors, General Eletric, por exemplo — como
Google, Amazon, Facebook, Microsoft e Apple. Ou seja, de um lado, sistemas que
controlam a informação e o conhecimento servem de base para nossa própria
comunicação. Do outro lado, como o dinheiro hoje é imaterial, também é uma
unidade de informação, que navega nas ondas eletromagnéticas, gerando o High
Frequency Trading em escala mundial, dando aos grandes bancos e investidores
institucionais poder financeiro sobre os governos, as empresas produtivas, as
finanças das famílias”[iii].
Ficamos sabendo que durante a pandemia,
“casualmente”, os bilionários deste setor – dentre outros – ficaram U$ 5
trilhões mais ricos[iv].
Isso, no entanto, parece não indignar muito as pessoas e a “esquerda”, nem lhes
levantar maiores dúvidas.
Governadores dos Estados e google: uma história de amor sem crises
financeiras!
A vice-presidente de Joe Biden, Kamala
Harris – talvez a maior expoente do identitarismo
burguês em voga –, tem ligação direta com as corporações big tech (google, Amazon, facebook, Microsoft, etc.)[v]. Para todos estes atores a
pandemia surge como um “presente dos céus”! Com o topo do mundo dominado pelas big tech, basta realinhar as neocolônias.
Eis que surge, então, como um “raio em céu sereno”, a plataforma google sala de aula para “salvar” a educação pública! Convênios foram fechados com esta megacorporação em 19 estados brasileiros. A seguir, governadores como Eduardo Leite e João Dória passaram a ser vendidos pela grande mídia como responsáveis gestores da crise durante a pandemia[vi] – como se fossem uma suposta alternativa a Bolsonaro –, quando, na realidade, estavam vendendo barato a educação púbica a estas corporações. É aí que entram também as “consultorias” de Luciano Huck e da Fundação Lemann, interessadíssimos em abocanhar os recursos da educação pública.
O
referido responsável pelo setor de informática da SEDUC-RS relativiza tais
falcatruas sustentando que “não há nenhum
centavo de dinheiro público” para as plataformas do google[vii].
O que ele não diz é que as “novas tecnologias” – tipo google, facebook, whatsapp e outros – usam a sua
“gratuidade” para acessar a intimidade dos usuários, não apenas para moldar a
opinião pública, mas também para obter informações de mercado privilegiadas[viii]. Deste controle
econômico e de informação via redes sociais para o controle político-pedagógico
da educação pública é um passo.
Além disso, os 50 mil chrome books fornecidos pelo governo
Leite ao magistério público estadual numa parceria entre google e samsung, chegam
a marca dos R$ 80 milhões[ix] – sem contar o restante
que não entra na prestação de contas pública. Em São Paulo, Dória “ofereceu” R$
2 mil para que educadores pudessem “comprar
computadores novos”[x]. O governo do Estado do
Espírito Santo, por sua vez, repetiu[xi] o que fez Eduardo Leite
no RS, doando dinheiro público para megacorporações privadas sem nenhuma
contrapartida, como a quebra de patentes das tecnologias “adquiridas”, por
exemplo[xii].
A crise financeira é, como sempre,
apenas para o funcionalismo público e o setor estatal, mas nunca para o mercado
e as grandes corporações. Qual será o retorno para os Estados brasileiros nisso
tudo senão mais dependência financeira, tecnológica e política?
A justiça burguesa e o
governo Leite: outra história de amor!
Durante as greves do magistério contra o
pacote de retirada de direitos e no episódio da demissão das educadoras
contratadas em licença saúde, o governo Leite e sua justiça foram impiedosos[xiii]. Em uma rapidez
espantosa acabaram sentenciando e condenando a nossa categoria, sem nenhuma
chance de recurso: salários cortados e descontados, apesar das aulas
recuperadas; demissão ilegal de educadoras contratadas em licença saúde sem
readmissão.
No caso do retorno às aulas presenciais,
mesmo que em alguns estados já tenha ocorrido, não vemos a mesma gana, nem as
mesmas manobras da justiça e do governo. Leite, apesar de recorrer na justiça
contra a decisão[xiv],
parece não ter a mesma pressa e nem as mesmas articulações político-judiciais
que marcaram a sua cruzada contra o direito de greve e as demissões das
trabalhadoras precarizadas. Tal "benevolência súbita" também se reflete no não desconto dos salários e sequer em ameaças nesse sentido para o retorno presencial.
Este impasse denota que a atitude do
governo Leite desta vez é marcada pelo conflito de projetos, já que, pelo
menos, as duas posições lhe são favoráveis em parte, assim como lhe prejudicam
em parte. Por exemplo: o governo quer o retorno presencial porque isso dialoga
com setores empresariais locais e com famílias que não tem com quem deixar os
filhos durante o expediente. Por outro lado, na medida em que as aulas presenciais
não voltam, o governo vai aplicando seu projeto de ensino à distância,
implantando mecanismos de controle através das plataformas google sala de aula, Educar-RS, etc.; e criando as condições para a
“nova economia”. Basta dizer que por anos a SEDUC tentou impor as chamadas
online, sem muito sucesso, apesar do assédio moral sobre algumas escolas. Agora
a chamada online e toda a estrutura do ensino remoto é uma realidade em todas as escolas!
O governo tira partido deste “conflito”
de projetos, enquanto que a “esquerda” e o movimento sindical não querem
perceber o que está em jogo. Neste contexto complexo, devemos desconfiar,
inclusive, das decisões judiciais supostamente “contrárias” ao governo Leite. A
justiça, os governos tucanos e o mercado se entendem tacitamente: basta um
olhar!
O fundamental nesta conjuntura,
portanto, é desmascarar a utilização política da pandemia para acelerar a
aplicação dos projetos da “nova economia”. A “esquerda” e o movimento sindical
só gritam por “vacina já”, ecoando os governos estaduais e a mídia burguesa. Por
mais importante que isso seja, se não sublinharmos e colocarmos corajosamente em primeiro plano a
utilização política da pandemia, terminamos por liquidar a independência de
classe, nos tornando a retaguarda de um dos blocos burgueses em luta.
A crise política e a
inoperância do CPERS
Frente a esta realidade cruel, o CPERS
está paralisado e semi-morto. Os áudios do Conselho Geral demonstram a crise na
qual está enredado. Toda a preocupação da direção central concentra-se em
estancar a sangria política do seu racha – a chapa “Muda CPERS”, que pretende concorrer
para a direção central; enquanto que a outra oposição – “Novo Rumo” – não levanta
nenhuma das questões abordadas anteriormente sobre os problemas do ensino
híbrido e da utilização da pandemia contra a classe trabalhadora.
Apesar do Sineta de fevereiro de 2021 denunciar corretamente que o “ensino híbrido acirra desigualdades e
prepara terreno para demissões e privatizações”, reforçando que “o governo se vale da situação emergencial
para implantar um projeto político-pedagógico gestado por fundações
empresariais interessadas no orçamento público”; e que o “setor pedagógico da SEDUC não está a
serviço dos interesses da comunidade escolar; [mas] atua por procuração de agentes privados”[xv], isso não se traduz na
política concreta da direção central e de nenhuma das correntes majoritárias do
CPERS.
Toda a justeza desse artigo do Sineta se
esvai com as decisões tomadas no Conselho Geral de 5 de março de 2021. O seu
primeiro ponto de encaminhamento diz: “Manter
o trabalho/ensino remoto como solução de compromisso para enfrentar o quadro
pandêmico e pedagógico”. Assim, uma análise que poderia servir para a
construção de uma política correta, morre no nascedouro porque é vítima de uma
contradição flagrante. Ao que tudo indica, houve unanimidade entre todas as
forças do CPERS nessa proposta que praticamente rasga o que foi escrito no
Sineta e reforça, quer se queira ou não, a política das big tech.
Não basta dizer que se é contra o “projeto político gestado por fundações
empresariais”. Isso precisa transparecer nas declarações escritas, mas,
sobretudo, na prática sindical de enfrentamento a este projeto. Nenhum setor do
CPERS parece querer perceber tais contradições, que certamente teriam
implicações sobre a política levantada até aqui quase que unanimemente. Além
disso, todas as suas propostas de mobilização versam sobre “luta virtual” ou carreatas.
Presente maior para as big tech e a Fundação Lemann não poderia haver. Quando sairmos da
pandemia, provavelmente estaremos numa nova “normalidade” marcada por um regime
de trabalho mais precarizado, com toda a boiada “já passada para o outro lado”.
Para este novo cenário, infelizmente a “esquerda” e o movimento sindical terão
sido peça chave.
[i]
Ver: https://revistaforum.com.br/politica/video-huck-diz-que-pandemia-veio-para-acelerar-digitalizacao-da-educacao/
[ii]
Ver: https://construcaopelabase.blogspot.com/2020/08/as-reprovacoes-em-periodo-de-pandemia.html
[iii]
Ver: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dowbor-o-capitalismo-se-desloca-e-abre-nova-disputa/
[iv]
Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/04/06/mesmo-com-a-pandemia-da-covid-19-bilionarios-ficaram-us-5-trilhoes-mais-ricos
; https://www.istoedinheiro.com.br/mesmo-na-pandemia-bilionarios-aumentam-fortuna-em-31/
[v]
Ver: https://www.nytimes.com/2020/08/20/technology/kamala-harris-ties-to-big-tech.html
; https://propmark.com.br/digital/big-techs-mostram-otimismo-com-o-governo-de-biden/
[vi]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/03/que-nova-normalidade-grande-midia-e-o.html
[vii]
Ver: https://construcaopelabase.blogspot.com/2020/08/as-reprovacoes-em-periodo-de-pandemia.html
[viii]
Ver: https://extra.globo.com/economia/emprego/servidor-publico/professores-suspeitam-que-aplicativos-de-ensino-do-estado-do-municipio-vazam-dados-24964381.html?utm_source=WhatsApp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar
[ix]
Ver: https://agenciagbc.com/2020/11/27/no-final-do-ano-eduardo-leite-entrega-50-mil-computadores-aos-professores-do-estado/#:~:text=Segundo%20Leite%2C%20s%C3%A3o%2050%20mil,que%20vai%20auxiliar%20os%20professores
; https://br.financas.yahoo.com/noticias/chromebooks-e-tablets-registram-forte-180000633.html
[x]
Ver: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/11/governo-doria-oferece-r-2000-para-professor-comprar-computador-novo-mas-nao-garante-reembolso.shtml
[xi]
Ver: https://www.agazeta.com.br/es/cotidiano/governo-entregara-notebooks-para-alunos-e-professores-de-escolas-do-es-0221
[xii]
Ver como funciona na economia chinesa a relação entre megacorporações e o
Estado no último tópico do texto que segue: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/01/a-etica-confucionista-e-o-espirito-do.html
[xiii]
Ver: https://construcaopelabase.blogspot.com/2020/02/sobre-esperar-resultados-diferentes.html
; https://construcaopelabase.blogspot.com/2020/09/quanto-custa-ilusao-na-justica-burguesa.html
; https://construcaopelabase.blogspot.com/2019/05/governo-leite-demite-contratados-em.html
[xiv] Ver: https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/mantida-a-suspensao-das-aulas-presenciais-no-estado/
; https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2021/03/governo-do-rs-recorre-ao-stf-para-liberar-aulas-presenciais-ckluaaq4500050198agtzxjox.html
[xv] Sineta – jornal oficial do CPERS (gestão 2017-2021), fevereiro de 2021 – página 7.
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