quarta-feira, 10 de março de 2021

Que “nova normalidade” a grande mídia e o sistema pretendem introduzir em nossas vidas?

Pandemia em Japeri-RJ

O CPERS, as organizações de “esquerda” e a maioria esmagadora do movimento sindical do país procura atacar os governos que querem forçar a volta às aulas nas escolas públicas e privadas. Pensam que sua agitação e propaganda desgastam a imagem e o projeto dos governadores e de Bolsonaro. Contudo, a despeito desses delírios de grandeza e do real desgaste do governo Bolsonaro (ex-PSL, mas ainda sem partido), que é fruto de vários fatores – sobretudo da sua própria política –, os governadores estaduais, com Eduardo Leite (PSDB e comparsas) à frente, contam com a blindagem e o apoio da grande mídia, vendidos como “responsáveis” e “corretos”. Pouco ou quase nada a propaganda da “esquerda” e dos sindicatos atinge tais governos. Tudo já está no cálculo político dos seus marqueteiros e assessores.

Enquanto CPERS e alguns movimentos chamam o governo Leite de genocida, a grande mídia dá todo o destaque para as suas medidas de “proteção e segurança”, o vendendo como “responsável” e “corajoso”. Em relação à mudança de horário da final da Copa do Brasil em Porto Alegre, por exemplo, o Diário Gaúcho (secundado pela Rede Globo durante a transmissão) afirmou se tratar de uma medida sensata do governador, além de uma série de citações dele e de “especialistas” exaltando seu empenho no combate à pandemia. Na ZH de 5 de março, podemos ler que “para especialistas da área de saúde consultados por GZH, a afirmação de Leite é corajosa e crucial para tentar conter o forte avanço do coronavírus no território gaúcho”. E toda a sua cobertura “jornalística” está repleta de trechos como esse, embasados por “especialistas” muito bem selecionados. Como sabemos, os jornais da RBS e da Rede Globo atingem muito mais gente do que a agitação da “esquerda” e do CPERS. Eles estão sempre na frente e já sabem contar com o seu atraso (sem falar nas posições abertamente oportunistas, legalistas, conformistas do CPERS e da “esquerda”).

Assim sendo, governo Leite, Dória e grande parte dos governos estaduais estão tranquilos. Mesmo com a atuação macabra e desastrosa, embora premeditada, do governo Bolsonaro em vários campos, estão conseguindo, pouco a pouco, criar a “nova normalidade”, que é a economia “uberizada”, sem direitos trabalhistas, enquanto preservam a estrutura estatal que garante o lucro recorde para o sistema financeiro e o mercado.

 

O terrorismo psicológico e a utilização da pandemia para retirar direitos

O Diário Gaúcho de 27 e 28 de fevereiro difunde que “os lojistas de Porto Alegre podem suspender o contrato de trabalho dos funcionários enquanto o comércio ficar fechado pela determinação do governo do Estado. Durante o período, o empresário pagará  50% do salário”. E a reportagem conclui, escondendo-se atrás da fala de um advogado, que “o lojista pode reduzir a jornada e o salário dos funcionários de 20% até 40%”. Com a desculpa da pandemia, a burguesia não está apenas retirando direitos, mas diminuindo drasticamente o poder de compra e as condições de vida da classe trabalhadora. Ainda que a pandemia seja uma ameaça, ela conseguiria hoje uma desculpa melhor?

A ZH de 5 de março, por sua vez, estampa em sua capa: “Piratini manterá bandeira preta e empresários pedem compensação” e, também escondendo-se atrás das declarações do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, expõe sua real posição ao dizer, junto com ele, que “considera legítima as reclamações dos empresários, mas diz que a abertura das atividades, em meio ao crescimento exponencial de casos e mortes, com o sistema hospitalar em colapso, não salva a economia”. Ora, o que a salvaria então? É evidente que as medidas e “reformas” para a retirada de direitos no sentido da uberização são vendidas como a salvação! Isso não está explícito na mesma reportagem, mas na lógica de todo o restante dos jornais do grupo RBS/Rede Globo e dos seus noticiários militantes.

O funcionalismo público e o magistério estadual e municipal, em particular, não podem ignorar esta realidade na sua agitação e propaganda sob pena de cair no mais estreito e vergonhoso corporativismo. Precisam arrojar as suas próprias reivindicações e palavras de ordem e parar de morder todas as iscas feitas pelos governos e pela grande mídia. Já foi alertado, embora com poucos interessados nesse debate, que “temos visto que quem questiona determinadas ações da 'luta' contra o coronavírus é automaticamente taxado de irresponsável porque estaria menosprezando a pandemia. Caímos, assim, numa dicotomia. O vírus existe e é uma ameaça. As medidas preventivas são importantes, embora devamos ter a cabeça no lugar para não exagerarmos demasiadamente este problema em detrimento de outros. É exatamente isso que vem acontecendo. As exigências da quarentena e do combate ao vírus, na maioria das vezes, são dissociadas da estrutura econômica. Ora, aqui há uma contradição flagrante sobre a ameaça do novo coronavírus. Se não devemos medir esforços no seu combate – como propõe a grande mídia comercial, a maioria dos governos e centenas de vozes –, a estrutura econômica precisa ser inevitavelmente questionada, já que é dela que resultam problemas no sistema de saúde pública, na falta de leitos e da tecnologia necessária ao tratamento do coronavírus, bem como no corte do orçamento das pesquisas científicas – o resultado inevitável do neoliberalismo! Isto quase nunca é lembrado pela maioria dos governos e da grande mídia e, portanto, se torna uma hipocrisia flagrante. A tapeação tem sido a seguinte: todos nós nos esforçamos, inclusive abrindo mão de salários e direitos, enquanto os bancos, o sistema financeiro, os monopólios e o agronegócio seguem intactos, lucrando como nunca e não abrindo mão uma vírgula dos seus interesses e privilégios econômicos. Mesmo muitos dos cientistas, ativistas, pessoas comuns e até organizações de 'esquerda' que nos dão conselhos e vídeo-aulas pela internet, exigem que a quarentena e o combate ao vírus sejam tratados como prioridade absoluta, mas, na maioria das vezes, ignoram os cortes orçamentários, as privatizações e a destruição dos serviços públicos, como se a prioridade neste combate fosse apenas tarefa individual de cada um, preservando uma mudança na estrutura social e no nosso estilo de vida e consumo. Se há poucos leitos para receber pacientes com coronavírus, cai de maduro que se deve lutar abertamente por aumentá-los; e isso nos joga, inevitavelmente, contra a dívida pública e a PEC do fim do mundo; em suma: contra a estrutura econômica. Porém, vemos os governos e a grande mídia irem no sentido de restringir ainda mais direitos trabalhistas e de garantir quase a totalidade das verbas públicas para o setor privado”[i].

Percebendo o exagero, a grande mídia não poupa esforços em apostar tudo no terrorismo psicológico, como o já referido Diário Gaúcho fez ao alardear que o “RS bate recorde de pacientes em UTIs. (...) A taxa de recuperação atual das pessoas internadas em UTIs é de 25% no Rio Grande do Sul. Isso quer dizer que, estatisticamente, a cada quatro pessoas contaminadas que precisam de internação em UTI, três delas não vão sobreviver”. Engraçado é o fato de que calcular as estatísticas vale para reforçar certas ideias chaves da grande mídia e pra outras, sobretudo no campo econômico, de cortes na saúde e educação públicas, o mesmo não acontece. Já a rádio CBN veiculou a notícia de que o humorista da “praça é nossa” teria morrido de covid-19 por complicações cardíacas. Nesse caso, cai de maduro a contradição, repetida por muitas outras rádios e empresas da grande mídia.

         Além disso, segundo a psicóloga e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés, “a imagem brutal é um velho recurso para fazer com que o self emotivo preste atenção a uma mensagem muito séria”[ii]. Algo parecido já foi dito há quase um ano sobre esta utilização emotiva do senso comum: “O psicólogo Daniel Goleman alerta para os efeitos da ansiedade e da preocupação, que são o resultado inevitável da utilização midiática do coronavírus: ‘Quando o medo dispara o cérebro emocional, parte da ansiedade resultante fixa a atenção na ameaça direta, forçando a mente a obcecar-se sobre como tratá-la e a ignorar tudo mais que ocorra naquele momento (...) Quando se deixa uma preocupação repetir-se continuamente, sem que seja contestada, ela adquire poder de persuasão; contestá-la, pensando numa série de pontos de vista igualmente plausíveis, impede que unicamente o pensamento preocupado seja ingenuamente tomado como verdadeiro’”[iii].

         Ironicamente, o único que observa o terrorismo midiático é o bolsonarismo, com finalidades completamente diferentes, evidentemente. Uma das características do neofascismo é partir de um ponto da realidade para distorcê-lo e utilizá-lo para os seus próprios fins escusos[iv]. Trump comprou uma briga com a imprensa comercial dos EUA para fingir-se como “antissistema”, tal como o seu vassalo faz no Brasil. Os fins econômicos do bolsonarismo e da grande mídia são os mesmos – nesse ponto são aliados tácitos –, embora um setor importante da burguesia (e da própria grande mídia) já deu sinal verde para descartar o neofascista, tal como foi feito nos EUA com Trump em favor de Biden, fingindo um descontentamento com suas posições medievais.

A “esquerda”, os movimentos sociais e o CPERS não tem a menor preocupação em relação ao terrorismo psicológico da grande mídia sobre a pandemia. Dão de presente esta bandeira ao bolsonarismo, que a usa como lhe convém. Esta é, precisamente, a base da engenharia política de manipulação do momento para retirar direitos e criar as condições para reciclar o sistema. É por isso que, querendo evitar ser taxada de “negacionista” ou “bolsonarista”, estes setores deixam a grande mídia de lombo liso e totalmente livre para seguir manipulando a realidade a seu bel prazer.

 

O que significa exigir lockdown dos atuais governos nessa conjuntura?

         A “esquerda” repete literalmente as reivindicações de parte da direita da forma mais acrítica possível: “vacina já!” e “lockdown”. Quais são as consequências dessas palavras de ordem? Ora, o fortalecimento do bloco burguês, quer queiramos ou não. Quando se exige “vacina já!” sem acrescentar nenhuma preocupação sobre como colocar isso em prática, estamos na cauda do cometa puxado por Dória em São Paulo, lhe dando força e apoio político indireto (ou mesmo direto). Nenhuma denúncia sobre a utilização demagógica e eleitoral de Dória e dos demais governadores sobre este tema, por exemplo (desgraçadamente apenas o bolsonarismo cumpre esse papel, pela direita!); nenhuma palavra sobre a quebra das patentes da fórmula da vacina, criando um correlato do software livre no campo da saúde pública, visando uma construção realmente coletiva no combate à pandemia. Nada! Apenas a reprodução do que vem de cima como solução milagrosa para uma pandemia que, como podemos ver, será espremida como uma laranja pela grande mídia para extrair-lhe até a última gota de suco.

         Já a palavra de ordem de “lockdown” é mais rebaixada e rastejante do que a outra. A primeira questão que devemos nos perguntar é: a classe trabalhadora (ou mesmo uma categoria profissional, como o magistério público) tem condições de impor e organizar um lockdown na nossa sociedade? Se estivermos com os pés no chão, a resposta será: não! Então estamos propondo para quem impor e organizar um lockdown? Ora, só pode ser para o governo Bolsonaro e os governos estaduais, pois são os únicos que possuem poder real para concretizar tal reivindicação hoje.

         Uma coisa é exigir o não retorno presencial das aulas ou de outra atividade profissional, por exemplo, outra, bem diferente, é exigir lockdown, que significa restrição do direito de ir e vir e, de certa forma, uma imposição de “prisão domiciliar”. Assim sendo, estamos exigindo dos governos tal como um condenado exigindo ao seu carrasco: aperte a corda bem firme em volta do meu pescoço! Isto é, a renúncia voluntária a possíveis manifestações, que deverão ser canceladas ou condenadas, não pela polícia, mas pelas próprias pessoas comuns, que as verão, erroneamente, como uma afronta. Já para as burocracias sindicais isso é um verdadeiro presente com lacinhos vermelhos, visto que ela vive de quarentena, mesmo sem pandemia.

Pandemia em São Paulo

Como a “esquerda” apoia a aplicação da “nova economia” e da “nova normalidade”?

Em síntese, podemos dizer que não apenas no caso do lockdown, mas no da vacina e no que tange a toda a problemática da pandemia, a “esquerda”, suas organizações, movimentos e sindicatos, no geral, ajudam direta ou indiretamente a burguesia na aplicação de sua “nova economia” uberizada e, portanto, na naturalização de uma “nova normalidade” (baseada na velha exploração, requentada e refinada).

No caso da educação pública, enquanto a “esquerda” se aferra ao não retorno presencial como única bandeira, está dando a chance por diversos meios do governo reforçar o nó da corda em volta do nosso pescoço. Se os governos ainda não aplicaram plenamente a EaD na escola pública foi porque as condições da maioria das comunidades escolares é de extrema pobreza. No entanto, certamente estão trabalhando dia e noite para criar e justificar tais planos, a começar pelo preenchimento de notas e de avaliações pelo sistema via internet, o que vai aumentar o trabalho dos educadores, sem aumentar o seu salário ou melhorar suas condições profissionais. Ao contrário: vão aumentar o controle e economizar com mão-de-obra barata.

Ao invés de remar na direção contrária dos interesses da “nova normalidade”, a “esquerda” no geral, e o CPERS em particular, como sempre, boiam no fluxo do senso comum. Não são capazes de articular uma única palavra de enfrentamento ao capital frente à pandemia; nem sequer desmascara a utilização descarada que ele faz da pandemia em benefício próprio. Por exemplo: se os governos estaduais querem retornar às aulas presenciais, então que se exija o menor número de alunos por sala de aula, aumentando a necessidade de admissão de mais educadores e de reabertura de escolas fechadas, transformando isso numa grande campanha popular, que busque dialogar com amplos setores sociais que necessitam da escola pública. Mas não! Vemos o mesmo discurso medroso cultivado cuidadosamente pela grande mídia em conluio aberto ou disfarçado com os governos estaduais (às vezes até mesmo contra as bizarrices do governo federal).

Em síntese, procurar formas de demonstrar a inconsistência das políticas e a manipulação em benefício próprio de todos os governos, seja o federal ou os estaduais, não significa que a pandemia não exista ou que não seja importante contê-la, mas sim, denunciar em alto e bom som a utilização que fazem dela, em conluio com a grande mídia. Isso pode parecer uma teoria da conspiração, mas quando tomamos conhecimento da doutrina do choque (ou do capitalismo de desastre) desenvolvida pela Escola de Chicago[v], então as coisas parecem menos opacas e mais nítidas.

A doutrina do choque necessita de “crises”, reais ou inventadas, de “estados de emergência”; enfim, de choques, para tornar as políticas neoliberais aparentemente impossíveis de serem aceitas numa “política inevitável”. Milton Friedman – o principal chefe da Escola de Chicago – entendeu perfeitamente a utilidade da crise para aplicação de planos impopulares. Uma população acometida por um estado de choque e semiparalisada é uma presa fácil para a imposição de um programa típico dos “Chicago boys”. A grande mídia e as posições do governo Bolsonaro exploram e garantem o estado de choque; os governos estaduais se apressam a impor o programa (isto é: apressam-se em passar a boiada, para usar uma expressão célebre e conhecida de todo mundo). Nesse sentido, será dado ênfase midiática à quantas cepas e variantes se fizerem necessárias – até que toda a boiada tenha passado!

A “esquerda” por sua vez, fala em crise do capitalismo bem aos moldes de como o stalinismo as compreendia: isto é, algo que, por si só, messianicamente, vai acabar com o capitalismo. Se justificam nos textos dizendo que não se trata disso, mas, na prática, é exatamente assim que agem; sobretudo repetindo as velhas fórmulas e expressões grandiloquentes caducas ou semicaducas. A crise do capitalismo não significa a quebra da economia (pode ser no caso de uma república de bananas, como o Brasil, mas muito dificilmente do sistema como um todo). Ao contrário: significa a criação de uma nova forma de acumulação de capital e de funcionamento. Se tivermos um pouquinho de boa vontade, levantando o véu do medo e do estado de choque, perceberemos que o sistema está nitidamente se utilizando da pandemia para se “reinventar”. E o resultado final dessa “reinvenção” será, precisamente, a “nova normalidade”.

Não é necessário dizer quem vai pagar a conta disso tudo. E o pior (como sempre!), com a conivência da “esquerda” e dos sindicatos...





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