Enquanto a velha esquerda se aferra à reprodução de ideias e, muitas vezes, de
dogmas, a classe dominante prima pelo
realismo. É claro que ela conta com todo o poder do dinheiro e de modernos
meios de informação e dominação, como a grande mídia, as escolas, universidades
e as atuais igrejas, que moldam o senso comum conforme seus interesses. Tudo
isso pesa de forma determinante, sem sombra de dúvidas. No entanto, a velha
esquerda, ainda que não possua os mesmos meios, abre mão do realismo, se embalando num verbalismo
revolucionário oco, que na maioria das vezes serve para afastar sectariamente pessoas
ao invés de agregar. Isto é, envolve-se em questões secundárias e ignora as
essenciais. Além disso, também faz vistas grossas aos conselhos de Marx e
Engels sobre a necessidade de estar em sintonia com os debates e métodos mais
avançados no campo científico. O resultado não poderia ser outro: colocam a
classe trabalhadora numa dupla desvantagem em relação à burguesia. A primeira é
uma desvantagem histórica (que já foi analisada por este blog[i]);
a segunda é uma opção política, que torna a velha esquerda refém de uma espécie
de miopia voluntária.
A
burguesia não perde tempo e está sempre sintonizada com tudo o que é produzido
e reproduzido pela ciência e tecnologia. Isto explica, por exemplo, a
avassaladora onda neofascista, que se
utiliza de métodos refinados e perigosos de manipulação da psicologia de massas[ii] –
homericamente ignorado pela velha esquerda – nas redes sociais. Esta faz toda
uma discussão mecanicista tacanha e bastante obtusa, que leva sempre a mesmas
conclusões que não nos faz andar um passo sequer. Quando se coloca a questão
sobre “o que é o bolsonarismo?” traz embutida certas limitações e vícios do
pensamento que caem, quase sempre, numa dicotomia platônico-cristã.
Se,
por exemplo, respondemos que o bolsonarismo é uma forma de “fascismo”, logo vem
o discurso obtuso de que, então, vamos incorrer no erro de apoiar
eleitoralmente e politicamente os governos petistas. Ora, camaradas, uma coisa
não necessariamente está ligada à outra. Pode-se caracterizar o bolsonarismo
como uma espécie de fascismo sem
incorrer no erro de apoiar politicamente o petismo ou de qualquer tipo de
frente popular.
O
bolsonarismo é a expressão brasileira do neofascismo,
uma corrente internacional
Criticar
tal conduta da velha esquerda não significa desconsiderar o núcleo racional de
muitos dos seus argumentos, que nos ajudam a delimitar melhor os nossos.
Refiro-me especificamente àqueles que afirmam que o bolsonarismo não rompeu com
a institucionalidade burguesa, mantendo aberto e funcionando o Congresso
Nacional, o STF e outros órgãos da legalidade democrático-burguesa, ainda que
os ameace verbalmente de forma corriqueira. Esse seria o “argumento definitivo”
para não caracterizar o bolsonarismo como “fascista”.
Tanto
neste blog, quanto em outras publicações, falávamos de “fascismo” e de
“ditadura aberta”. Tais afirmações levaram a uma justa ponderação por determinados
setores da esquerda que é necessário esmiuçar melhor agora. Em primeiro lugar é
necessário afirmar, como já disse acertadamente Trotski, que os fenômenos
históricos nunca experimentam uma repetição completa. Isso parece ter sido
esquecido por estes críticos da esquerda, mas nunca o foi por nós, mesmo que
usássemos impropriamente o termo “fascismo”. Por isso foi acrescentado o termo neo, no sentido de chamar a atenção para
esta diferenciação. No entanto, devemos admitir que este cuidado literário só
surgiu plenamente após a apresentação da tese da Construção pela Base ao X Congresso do CPERS[iii],
que procurava descrever o novo
fenômeno.
Nela
podemos ler o seguinte: “O
neofascismo é um movimento criado pelo
imperialismo decadente, os EUA e seus satélites, para a manutenção do seu
domínio mundial e dos seus mercados, ameaçados por China e Rússia. Assume
variadas formas de acordo com os seus interesses geopolíticos. Assemelha-se ao
fascismo clássico pelo terrorismo de Estado ou pelo terrorismo mercenário [seletivo], pela xenofobia, racismo e um
conservadorismo radical. Como todo fascismo, é um movimento antiproletário e
anticomunista. O neofascismo é o
abre-alas da burguesia imperialista, usado quando necessário para concretizar
suas políticas econômicas. Apesar de disseminar ódio, preconceito, fake
news, dando justificativas para guerras,
assassinatos e ditaduras militares, pode conviver com instituições
democrático-burguesas. O bolsonarismo é a aplicação desse neofascismo no Brasil. O seu discurso a favor da
ditadura militar não deixa de conviver com o Congresso Nacional, embora seja
sempre uma possibilidade a nos espreitar. O neofascismo se caracteriza também pela manipulação através da divulgação de fake
news nas redes sociais, cujos assessores
são técnicos utilizados pelo imperialismo. Elas ajudam a espalhar e consolidar
o irracionalismo, uma vez que a hipnose da massa necessita deste controle a
partir do ódio, do sadomasoquismo e do medo. O discurso contra o socialismo e o
comunismo é parte fundamental desta campanha, que tenta lançar um preconceito
prévio entre a população contra estes sistemas econômicos e suas teorias (os
únicos que podem por fim ao caos do esgotamento do capitalismo), ao mesmo tempo
em que classifica qualquer intervenção estatal na economia ou mesmo a
existência de direitos trabalhistas mínimos como ‘comunismo’”.
Este
trecho da tese conclui afirmando que o neofascismo
se utiliza de métodos de manipulação da psicologia de massas, o ódio sádico, o
irracionalismo, suas emoções infantis, o egotismo (que reforça a auto-verdade
ou a pós-verdade[iv]
e o imediatismo); os quais a “esquerda” sequer compreende (e muitas vezes nem
quer), mantendo o seu velho discurso padrão estéril
ou oportunista. Percebe-se que ela não pode abrir mão desse discurso e nem
denunciar as técnicas de manipulação de ódio e das emoções praticadas pelo neofascismo porque, em grande parte,
também as utiliza consciente ou inconscientemente. Parte da tática do neofascismo está baseada em lançar
iscas, dizendo e desdizendo (às vezes decretando e depois revogando) algo
geralmente bizarro para desviar atenção do foco central e trabalhando
conscientemente com a estratégia da confusão. A velha esquerda morde quase
todas estas iscas e isso, naturalmente, se reflete de forma negativa no
movimento dos trabalhadores. O neofascismo
também se aproveita de todas as falhas, da impunidade e do jogo de hipocrisia
das instituições e da legislação da democracia burguesa. Sabe fazer isso muito
bem, vendendo tais práticas como “anti-sistema” e discursando contra o
“politicamente correto”. Muitos trabalhadores julgam que exatamente por isso
Bolsonaro “fala a verdade”, enquanto os demais políticos “não falam o que
realmente pensam”.
É
digno de nota que mesmo quando chamávamos erroneamente o governo Bolsonaro de
“fascista”, utilizávamos frequentemente a famosa citação atribuída a José Saramago (que
teve o mérito de identificar o neofascismo
muito antes de ele surgir efetivamente) para ponderar e exemplificar nossa
posição: “os fascistas do futuro não vão
ter aquele estereótipo de Hitler ou Mussolini. Não vão ter aquele jeito de
militar durão. Vão ser homens falando tudo aquilo que a maioria quer ouvir.
Sobre bondade, família, bons costumes, religião e ética. Nessa hora vai surgir
o novo demônio, e tão poucos vão perceber a história se repetindo”.
Entre
os que não perceberão se encontra, infelizmente, a velha esquerda. Sem
compreender a sutileza dos seus mecanismos de funcionamento não há
possibilidade de combater o neofascismo.
Tampouco reconhecê-lo significa uma adesão automática à base de sustentação do
petismo. Tudo precisa ser analisado concretamente. A grande questão, contudo, é
que a burguesia não é estúpida. Ela
sabe que não pode repetir abertamente
o regime nazi-fascista ou as ditaduras militares latino-americanas – que era
exatamente o que esperava a velha esquerda para poder gritar “isto é
fascismo!”. Tal fascismo está disfarçado com novos métodos que não foram
compreendidos pela velha esquerda, preocupada em encaixar a realidade em suas
teorias pré-prontas. Não queremos dizer com isso que a burguesia não possa
avançar para métodos ditatoriais abertos, mas no momento não está sendo
necessário, uma vez que os regimes neofascistas
de Trump, Bolsonaro et caterva[v],
estão servindo perfeitamente para retirar os poucos direitos existentes,
cercear algumas liberdades sindicais, destruir o “estado de bem estar social” e
aplicar uma “nova economia uberizada”; isto é, está colocando o capitalismo
numa nova fase de acumulação e exploração de forma exitosa[vi].
Além
disso, a principal base de sustentação política do bolsonarismo, o agronegócio,
está tendo todos os seus interesses plenamente atendidos, desde a impunidade
para assassinatos no campo e as queimadas criminosas da Amazônia e do Pantanal,
até a garantia dos bilionários subsídios estatais e políticos à sua produção em
detrimento da indústria nacional e das demais áreas da economia interna.
Atender esses interesses garante a estabilidade política necessária ao
bolsonarismo dentro do difícil quadro conjuntural.
Egos
inflados
Um
dos métodos de angariar apoio do bolsonarismo é insuflar o ego de seus
“apoiadores” naquilo que há de pior, tal como um pai e uma mãe inexperientes
fazem ao mimar exageradamente o ego de uma criança, mesmo depois de grande. Se
basear nas taras, nos ódios, no sadomasoquismo, no sentimento de uma
pseudo-superioridade (“supremacia” branca, machista, homofóbica, religiosa e de
classe) lhe confere certa força entre as camadas médias e grande parte da
classe trabalhadora.
São
justamente estes setores que mais reproduzem a mentalidade e as repressões
resultantes da família patriarcal, onde o homem branco se garante “direitos
históricos” escusos. O bolsonarismo e o neofascismo
se agarram nesses privilégios para tentar preservá-los desesperadamente ao
mesmo tempo em que buscam poupar o capitalismo e o colocar numa nova fase de
exploração e funcionamento. Defender esta estrutura familiar e os seus egos é parte
fundamental desse programa, porque tal estrutura ideológica penetra nas
subjetividades individuais e no inconsciente coletivo, criando um muro de
contenção de hipocrisia e autoritarismo sobre as mentes isoladas. É necessário
assentar golpes de marreta nesse muro, que sai ileso na prática agitativa e
propagandística da velha esquerda (senão reforçado).
O
neofascismo e o seu guru, Steve
Bannon
Como
foi dito, o neofascismo é um
movimento internacional dirigido por Trump e o seu Tea Party, bem como pelo deep
state norte-americano e seus assessores. Cresce no mundo a olhos vistos. Alguns
autores, como Noam Chomsky, já falam em uma “Internacional Reacionária”, que,
além de Trump – o seu chefe – e Bolsonaro – seu capacho –, conta com outros subalternos,
como os “ditadores do Golfo”, Abdel Fatah al Sisie no Egito e Benjamin
Netanyahu em Israel, no Oriente Médio; Narendra Modi, na Índia; e Viktor Orban,
na Europa[vii].
Em alguns lugares, como no leste europeu, toma abertamente um caráter mais
ditatorial, enquanto que em outros, sem fechar efetivamente o regime (porque
julgam não ser necessário e até mesmo desgastante), atacam permanentemente as
instituições democrático-burguesas para jogar o povo contra elas, como se elas
fossem as únicas responsáveis pelas mazelas que resultam do sistema que o neofascismo defende e luta por preservar,
o capitalismo.
Em
todas as suas vertentes, porém, o discurso cultural é praticamente o mesmo:
racismo, misoginia, xenofobia, luta contra o “marxismo cultural” e o “socialismo”.
Reproduz na íntegra o programa da alta cúpula nazista de repressão sexual, o
que é a base do fascínio que exerce sobre amplas massas religiosas, manipuladas
com grande destreza e notável sucesso, enquanto que a velha esquerda olha tudo
estupefata, alheia ou desesperada[viii].
Em todos os casos menosprezam a técnica do inimigo, o que é um erro crasso.
No
entanto, o guru do movimento neofascista
internacional é sem dúvida Steve Bannon – o mesmo que se encontra hoje preso
por fraudes em algumas campanhas, mas não pelos seus verdadeiros crimes. Foi
ele que, com o patrocínio de Trump e cia., lançou as bases do movimento neofascista e coordenou minuciosamente a
manipulação das redes sociais e da psicologia de massas. Eduardo bananinha Bolsonaro, Olavo de Carvalho e
o resto da corja neofascista
brasileira possuem uma linha direta com ele.
Reconhecemos
a dificuldade de caracterizar um movimento que tem como método se camuflar, dar
o tapa e esconder a mão. Por isso, saudamos como positivo o vídeo sobre Steve Bannon
produzido pelo canal do Youtube, Meteoro Brasil, que traz uma confissão
involuntária dele feita em um grampo de uma entrevista informal a um jornalista
italiano que põe termo definitivo à questão. Na Itália, Steve Bannon ajudou a
promover a neofascista Giorgia
Meloni, que pertence aos Irmãos da Itália,
uma organização de caráter ultraconservador. Na referida entrevista, afirma o
seguinte: “Irmãos da Itália é um dos antigos partidos fascistas. É um
partido antigo da direita. Costumava ser fascista. Agora é ‘neo’, ‘neo’.
Lembre-se do teorema de Bannon: dê um rosto razoável para o populismo de
direita e você se elege”[ix].
Quando
foi lembrado pelo jornalista do termo dado por ele aos Irmãos da Itália, negou. O mesmo faz Bolsonaro por aqui, negando
qualquer associação pública com o nazi-fascismo, inclusive demitindo secretário
que repetiu discurso do ministro da propaganda nazista e tentando associar o
nazismo com a esquerda.
Roberto Alvim representando o governo Bolsonaro e Joseph Goebbels representando o nazismo |
Apesar
destas negativas, é visível para quem tiver coragem de concluir o que é
bastante óbvio. A confissão involuntária de Steve Bannon serve apenas para não
deixar margem a qualquer tipo de dúvida. Sem reconhecer a existência do neofascismo e a sutileza dos seus
métodos, será impossível combatê-lo com sucesso.
NOTAS
[ii]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/01/quem-esta-por-tras-de-olavo-de-carvalho.html
[iv]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/05/analise-do-livre-sobre-pos-verdade-e.html
[v] Et caterva é uma expressão em latim
usada de forma pejorativa; significa algo como "e os comparsas". Ex:
o presidente et caterva vão afundar o
país.
[vi]
Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/a-ditadura-de-bolsonaro-colocara-o.html
(neste texto se expressa um dos equívocos que a presente análise sobre o
bolsonarismo tenta apontar: não se trata de uma “ditadura aberta”, tal como foi
a de 1964 ou a nazi-fascista, mas uma nova forma de autoritarismo que visa
colocar a economia brasileira e ocidental numa nova fase de acumulação e
exploração do capitalismo – nesse sentido, o conteúdo do texto deste link
permanece correto, embora com o equívoco de pensar que se trataria de uma
ditadura tradicional).
[vii]
Ver: https://wscom.com.br/noam-chomsky-existe-o-risco-iminente-de-uma-guerra-civil-nos-estados-unidos/#.X24uxK90W-g.whatsapp
[viii]
Ver: http://construcaopelabase.blogspot.com/2020/02/a-repressao-moral-da-sexualidade-e-uma.html
[ix]
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=XCJ-R5jDbic&ab_channel=MeteoroBrasil
a partir dos 6 minutos e 33 segundos.
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