terça-feira, 6 de outubro de 2020

O que é o bolsonarismo?

 

Enquanto a velha esquerda se aferra à reprodução de ideias e, muitas vezes, de dogmas, a classe dominante prima pelo realismo. É claro que ela conta com todo o poder do dinheiro e de modernos meios de informação e dominação, como a grande mídia, as escolas, universidades e as atuais igrejas, que moldam o senso comum conforme seus interesses. Tudo isso pesa de forma determinante, sem sombra de dúvidas. No entanto, a velha esquerda, ainda que não possua os mesmos meios, abre mão do realismo, se embalando num verbalismo revolucionário oco, que na maioria das vezes serve para afastar sectariamente pessoas ao invés de agregar. Isto é, envolve-se em questões secundárias e ignora as essenciais. Além disso, também faz vistas grossas aos conselhos de Marx e Engels sobre a necessidade de estar em sintonia com os debates e métodos mais avançados no campo científico. O resultado não poderia ser outro: colocam a classe trabalhadora numa dupla desvantagem em relação à burguesia. A primeira é uma desvantagem histórica (que já foi analisada por este blog[i]); a segunda é uma opção política, que torna a velha esquerda refém de uma espécie de miopia voluntária.

            A burguesia não perde tempo e está sempre sintonizada com tudo o que é produzido e reproduzido pela ciência e tecnologia. Isto explica, por exemplo, a avassaladora onda neofascista, que se utiliza de métodos refinados e perigosos de manipulação da psicologia de massas[ii] – homericamente ignorado pela velha esquerda – nas redes sociais. Esta faz toda uma discussão mecanicista tacanha e bastante obtusa, que leva sempre a mesmas conclusões que não nos faz andar um passo sequer. Quando se coloca a questão sobre “o que é o bolsonarismo?” traz embutida certas limitações e vícios do pensamento que caem, quase sempre, numa dicotomia platônico-cristã.

            Se, por exemplo, respondemos que o bolsonarismo é uma forma de “fascismo”, logo vem o discurso obtuso de que, então, vamos incorrer no erro de apoiar eleitoralmente e politicamente os governos petistas. Ora, camaradas, uma coisa não necessariamente está ligada à outra. Pode-se caracterizar o bolsonarismo como uma espécie de fascismo sem incorrer no erro de apoiar politicamente o petismo ou de qualquer tipo de frente popular.

 

O bolsonarismo é a expressão brasileira do neofascismo, uma corrente internacional

            Criticar tal conduta da velha esquerda não significa desconsiderar o núcleo racional de muitos dos seus argumentos, que nos ajudam a delimitar melhor os nossos. Refiro-me especificamente àqueles que afirmam que o bolsonarismo não rompeu com a institucionalidade burguesa, mantendo aberto e funcionando o Congresso Nacional, o STF e outros órgãos da legalidade democrático-burguesa, ainda que os ameace verbalmente de forma corriqueira. Esse seria o “argumento definitivo” para não caracterizar o bolsonarismo como “fascista”.

            Tanto neste blog, quanto em outras publicações, falávamos de “fascismo” e de “ditadura aberta”. Tais afirmações levaram a uma justa ponderação por determinados setores da esquerda que é necessário esmiuçar melhor agora. Em primeiro lugar é necessário afirmar, como já disse acertadamente Trotski, que os fenômenos históricos nunca experimentam uma repetição completa. Isso parece ter sido esquecido por estes críticos da esquerda, mas nunca o foi por nós, mesmo que usássemos impropriamente o termo “fascismo”. Por isso foi acrescentado o termo neo, no sentido de chamar a atenção para esta diferenciação. No entanto, devemos admitir que este cuidado literário só surgiu plenamente após a apresentação da tese da Construção pela Base ao X Congresso do CPERS[iii], que procurava descrever o novo fenômeno.

            Nela podemos ler o seguinte: “O neofascismo é um movimento criado pelo imperialismo decadente, os EUA e seus satélites, para a manutenção do seu domínio mundial e dos seus mercados, ameaçados por China e Rússia. Assume variadas formas de acordo com os seus interesses geopolíticos. Assemelha-se ao fascismo clássico pelo terrorismo de Estado ou pelo terrorismo mercenário [seletivo], pela xenofobia, racismo e um conservadorismo radical. Como todo fascismo, é um movimento antiproletário e anticomunista. O neofascismo é o abre-alas da burguesia imperialista, usado quando necessário para concretizar suas políticas econômicas. Apesar de disseminar ódio, preconceito, fake news, dando justificativas para guerras, assassinatos e ditaduras militares, pode conviver com instituições democrático-burguesas. O bolsonarismo é a aplicação desse neofascismo no Brasil. O seu discurso a favor da ditadura militar não deixa de conviver com o Congresso Nacional, embora seja sempre uma possibilidade a nos espreitar. O neofascismo se caracteriza também pela manipulação através da divulgação de fake news nas redes sociais, cujos assessores são técnicos utilizados pelo imperialismo. Elas ajudam a espalhar e consolidar o irracionalismo, uma vez que a hipnose da massa necessita deste controle a partir do ódio, do sadomasoquismo e do medo. O discurso contra o socialismo e o comunismo é parte fundamental desta campanha, que tenta lançar um preconceito prévio entre a população contra estes sistemas econômicos e suas teorias (os únicos que podem por fim ao caos do esgotamento do capitalismo), ao mesmo tempo em que classifica qualquer intervenção estatal na economia ou mesmo a existência de direitos trabalhistas mínimos como ‘comunismo’”.

            Este trecho da tese conclui afirmando que o neofascismo se utiliza de métodos de manipulação da psicologia de massas, o ódio sádico, o irracionalismo, suas emoções infantis, o egotismo (que reforça a auto-verdade ou a pós-verdade[iv] e o imediatismo); os quais a “esquerda” sequer compreende (e muitas vezes nem quer), mantendo o seu velho discurso padrão estéril ou oportunista. Percebe-se que ela não pode abrir mão desse discurso e nem denunciar as técnicas de manipulação de ódio e das emoções praticadas pelo neofascismo porque, em grande parte, também as utiliza consciente ou inconscientemente. Parte da tática do neofascismo está baseada em lançar iscas, dizendo e desdizendo (às vezes decretando e depois revogando) algo geralmente bizarro para desviar atenção do foco central e trabalhando conscientemente com a estratégia da confusão. A velha esquerda morde quase todas estas iscas e isso, naturalmente, se reflete de forma negativa no movimento dos trabalhadores. O neofascismo também se aproveita de todas as falhas, da impunidade e do jogo de hipocrisia das instituições e da legislação da democracia burguesa. Sabe fazer isso muito bem, vendendo tais práticas como “anti-sistema” e discursando contra o “politicamente correto”. Muitos trabalhadores julgam que exatamente por isso Bolsonaro “fala a verdade”, enquanto os demais políticos “não falam o que realmente pensam”.

            É digno de nota que mesmo quando chamávamos erroneamente o governo Bolsonaro de “fascista”, utilizávamos frequentemente a famosa citação atribuída a José Saramago (que teve o mérito de identificar o neofascismo muito antes de ele surgir efetivamente) para ponderar e exemplificar nossa posição: “os fascistas do futuro não vão ter aquele estereótipo de Hitler ou Mussolini. Não vão ter aquele jeito de militar durão. Vão ser homens falando tudo aquilo que a maioria quer ouvir. Sobre bondade, família, bons costumes, religião e ética. Nessa hora vai surgir o novo demônio, e tão poucos vão perceber a história se repetindo”.

            Entre os que não perceberão se encontra, infelizmente, a velha esquerda. Sem compreender a sutileza dos seus mecanismos de funcionamento não há possibilidade de combater o neofascismo. Tampouco reconhecê-lo significa uma adesão automática à base de sustentação do petismo. Tudo precisa ser analisado concretamente. A grande questão, contudo, é que a burguesia não é estúpida. Ela sabe que não pode repetir abertamente o regime nazi-fascista ou as ditaduras militares latino-americanas – que era exatamente o que esperava a velha esquerda para poder gritar “isto é fascismo!”. Tal fascismo está disfarçado com novos métodos que não foram compreendidos pela velha esquerda, preocupada em encaixar a realidade em suas teorias pré-prontas. Não queremos dizer com isso que a burguesia não possa avançar para métodos ditatoriais abertos, mas no momento não está sendo necessário, uma vez que os regimes neofascistas de Trump, Bolsonaro et caterva[v], estão servindo perfeitamente para retirar os poucos direitos existentes, cercear algumas liberdades sindicais, destruir o “estado de bem estar social” e aplicar uma “nova economia uberizada”; isto é, está colocando o capitalismo numa nova fase de acumulação e exploração de forma exitosa[vi].

            Além disso, a principal base de sustentação política do bolsonarismo, o agronegócio, está tendo todos os seus interesses plenamente atendidos, desde a impunidade para assassinatos no campo e as queimadas criminosas da Amazônia e do Pantanal, até a garantia dos bilionários subsídios estatais e políticos à sua produção em detrimento da indústria nacional e das demais áreas da economia interna. Atender esses interesses garante a estabilidade política necessária ao bolsonarismo dentro do difícil quadro conjuntural.

 

Egos inflados

            Um dos métodos de angariar apoio do bolsonarismo é insuflar o ego de seus “apoiadores” naquilo que há de pior, tal como um pai e uma mãe inexperientes fazem ao mimar exageradamente o ego de uma criança, mesmo depois de grande. Se basear nas taras, nos ódios, no sadomasoquismo, no sentimento de uma pseudo-superioridade (“supremacia” branca, machista, homofóbica, religiosa e de classe) lhe confere certa força entre as camadas médias e grande parte da classe trabalhadora.

            São justamente estes setores que mais reproduzem a mentalidade e as repressões resultantes da família patriarcal, onde o homem branco se garante “direitos históricos” escusos. O bolsonarismo e o neofascismo se agarram nesses privilégios para tentar preservá-los desesperadamente ao mesmo tempo em que buscam poupar o capitalismo e o colocar numa nova fase de exploração e funcionamento. Defender esta estrutura familiar e os seus egos é parte fundamental desse programa, porque tal estrutura ideológica penetra nas subjetividades individuais e no inconsciente coletivo, criando um muro de contenção de hipocrisia e autoritarismo sobre as mentes isoladas. É necessário assentar golpes de marreta nesse muro, que sai ileso na prática agitativa e propagandística da velha esquerda (senão reforçado).

 

O neofascismo e o seu guru, Steve Bannon

            Como foi dito, o neofascismo é um movimento internacional dirigido por Trump e o seu Tea Party, bem como pelo deep state norte-americano e seus assessores. Cresce no mundo a olhos vistos. Alguns autores, como Noam Chomsky, já falam em uma “Internacional Reacionária”, que, além de Trump – o seu chefe – e Bolsonaro – seu capacho –, conta com outros subalternos, como os “ditadores do Golfo”, Abdel Fatah al Sisie no Egito e Benjamin Netanyahu em Israel, no Oriente Médio; Narendra Modi, na Índia; e Viktor Orban, na Europa[vii]. Em alguns lugares, como no leste europeu, toma abertamente um caráter mais ditatorial, enquanto que em outros, sem fechar efetivamente o regime (porque julgam não ser necessário e até mesmo desgastante), atacam permanentemente as instituições democrático-burguesas para jogar o povo contra elas, como se elas fossem as únicas responsáveis pelas mazelas que resultam do sistema que o neofascismo defende e luta por preservar, o capitalismo.

            Em todas as suas vertentes, porém, o discurso cultural é praticamente o mesmo: racismo, misoginia, xenofobia, luta contra o “marxismo cultural” e o “socialismo”. Reproduz na íntegra o programa da alta cúpula nazista de repressão sexual, o que é a base do fascínio que exerce sobre amplas massas religiosas, manipuladas com grande destreza e notável sucesso, enquanto que a velha esquerda olha tudo estupefata, alheia ou desesperada[viii]. Em todos os casos menosprezam a técnica do inimigo, o que é um erro crasso.

            No entanto, o guru do movimento neofascista internacional é sem dúvida Steve Bannon – o mesmo que se encontra hoje preso por fraudes em algumas campanhas, mas não pelos seus verdadeiros crimes. Foi ele que, com o patrocínio de Trump e cia., lançou as bases do movimento neofascista e coordenou minuciosamente a manipulação das redes sociais e da psicologia de massas. Eduardo bananinha Bolsonaro, Olavo de Carvalho e o resto da corja neofascista brasileira possuem uma linha direta com ele.

            Reconhecemos a dificuldade de caracterizar um movimento que tem como método se camuflar, dar o tapa e esconder a mão. Por isso, saudamos como positivo o vídeo sobre Steve Bannon produzido pelo canal do Youtube, Meteoro Brasil, que traz uma confissão involuntária dele feita em um grampo de uma entrevista informal a um jornalista italiano que põe termo definitivo à questão. Na Itália, Steve Bannon ajudou a promover a neofascista Giorgia Meloni, que pertence aos Irmãos da Itália, uma organização de caráter ultraconservador. Na referida entrevista, afirma o seguinte: Irmãos da Itália é um dos antigos partidos fascistas. É um partido antigo da direita. Costumava ser fascista. Agora é ‘neo’, ‘neo’. Lembre-se do teorema de Bannon: dê um rosto razoável para o populismo de direita e você se elege”[ix].

            Quando foi lembrado pelo jornalista do termo dado por ele aos Irmãos da Itália, negou. O mesmo faz Bolsonaro por aqui, negando qualquer associação pública com o nazi-fascismo, inclusive demitindo secretário que repetiu discurso do ministro da propaganda nazista e tentando associar o nazismo com a esquerda.

Roberto Alvim representando o governo Bolsonaro e Joseph Goebbels representando o nazismo

          Apesar destas negativas, é visível para quem tiver coragem de concluir o que é bastante óbvio. A confissão involuntária de Steve Bannon serve apenas para não deixar margem a qualquer tipo de dúvida. Sem reconhecer a existência do neofascismo e a sutileza dos seus métodos, será impossível combatê-lo com sucesso.

 

NOTAS


[v] Et caterva é uma expressão em latim usada de forma pejorativa; significa algo como "e os comparsas". Ex: o presidente et caterva vão afundar o país.

[vi] Ver:  http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/a-ditadura-de-bolsonaro-colocara-o.html (neste texto se expressa um dos equívocos que a presente análise sobre o bolsonarismo tenta apontar: não se trata de uma “ditadura aberta”, tal como foi a de 1964 ou a nazi-fascista, mas uma nova forma de autoritarismo que visa colocar a economia brasileira e ocidental numa nova fase de acumulação e exploração do capitalismo – nesse sentido, o conteúdo do texto deste link permanece correto, embora com o equívoco de pensar que se trataria de uma ditadura tradicional).

[ix] Ver:  https://www.youtube.com/watch?v=XCJ-R5jDbic&ab_channel=MeteoroBrasil a partir dos 6 minutos e 33 segundos.

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