segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A hipocrisia institucional e o petismo

 

Os 13 anos em que o PT esteve à frente do governo federal foram marcados pela conciliação de classes e por uma variante do “reformismo sem reformas”. A concretização de alguns programas sociais e algumas pautas progressivas não podem esconder o fato de que os governos petistas não realizaram nenhuma mudança estrutural no país. O próprio Lula reconhece que “deveria ter feito mais”, por exemplo, na questão da regulamentação da grande mídia, onde não fez absolutamente nada; além de “ter dado lucro recorde aos bancos”, o que ele nunca fez questão de esconder – ao contrário, sempre bateu no peito, orgulhoso, para anunciar aos quatro cantos.

            O fato da frente popular petista ter sido uma contendora das lutas sociais, levando parte do descontentamento popular para o leito morto da institucionalidade burguesa, a não-realização de nenhuma mudança estrutural no Estado e na sociedade brasileira, e a disseminação de inúmeras ilusões eleitorais e pequeno-burguesas, não o torna pior do que o governo Bolsonaro, pois este é a expressão nefasta do movimento neofascista internacional, motivo pelo qual apresenta sem papas na língua pautas extremamente reacionárias e abertamente entreguistas. Mesmo garantindo os interesses estruturais e essenciais da burguesia brasileira, dentre os quais cabe destacar a manutenção da institucionalidade, o PT sofreu o golpe da direita, que não o perdoou e tampouco reconheceu os inestimáveis serviços prestados a ela.

            Este blog assim analisou os motivos subjacentes ao golpe do impeachment em 2016: “a política do PT de programas sociais gera uma disputa com a burguesia imperialista e nacional pelos recursos do Estado. Em épocas de expansão econômica é possível aumentar a trilionária ‘bolsa banqueiro, empresário e do agronegócio’, ao mesmo tempo que se garante a esmola do bolsa família, do ProUni, do Pronatec, etc. Porém, em épocas de crise internacional, através de ‘reformas’, exigem a totalidade desses recursos para contrabalançar a queda tendencial da taxa de lucros. Os governos do PT tentaram investir num desenvolvimentismo a partir das estatais, em particular, da Petrobrás. Adquiriram refinarias para produzir combustível e, assim, garantir uma relativa estabilidade de preços.  Isso bastou para a elite nacional e a sua mídia comercial taxarem o PT de ‘comunista’. Por essas razões, a Petrobrás foi grampeada pelo imperialismo, segundo denúncias de Edward Snowden; e não casualmente foi um dos principais alvos do golpe do impeachment de 2016”[i].

            Porém, ainda que, apesar do golpe de 2016, seja bastante claro para quem tiver olhos pra ver e ouvidos pra ouvir que o petismo cumpriu o triste papel de sustentáculo da ordem burguesa brasileira (fato reconhecido até mesmo pelo guru econômico da ditadura militar, Delfim Netto), se fosse honesto e realmente tivesse uma estratégia de reformas estruturais mínimas, o petismo poderia ter modificado a atuação sindical, por exemplo, se somado às mobilizações de 2013 para tensionar a elite do país à que concedesse tais mudanças mínimas e, sobretudo, poderia ter trabalhado por uma nova forma de funcionamento institucional; mas nem isso o petismo foi capaz de fazer: dançou conforme a música até mesmo nos mínimos detalhes.

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            A esquerda de velho tipo, na qual se inclui principalmente o PT, não destina nenhum espaço no seu programa ao combate à hipocrisia. Vendem a ideia de que basta “mudar o regime de propriedade” ou, pior ainda, “ser eleito” para que a mudança comece a se processar tendo em mãos apenas um programa político formal. A hipocrisia moral, social, institucional se dá nos pequenos detalhes que sustentam decisivamente os grandes alicerces do sistema. Ela possui uma lógica própria que leva ao total divórcio entre a vontade do eleitor e as pressões decisivas e fatais exercidas sobre o eleito, que deve trabalhar inexoravelmente de acordo com essa “lógica própria” – às vezes consciente, outras tantas vezes inconscientemente. Tal hipocrisia não pode ser combatida pelos métodos convencionais da “esquerda” que, ao fim e ao cabo, acabam por reproduzi-los. Pela lógica do seu funcionamento, tal hipocrisia pode formar maiorias silenciosas inconscientes, mas, também, de forma consciente através do utilitarismo e do imediatismo.

            Então, podemos concluir que o PT, além de não realizar nenhuma mudança estrutural no país porque não rompeu com a institucionalidade burguesa, sequer foi capaz de arranhar a sua hipocrisia. Assim sendo, reproduziu e ainda reproduz as suas relações simbólicas de hierarquia e poder, seja à frente do Estado, seja à frente dos sindicatos. Caiu vítima da hipocrisia institucional da qual foi um dos alicerces e baluartes. O PT não apenas não viu e não vê problema nesta hipocrisia institucional – mesmo depois do golpe –, que é escondida e disfarçada por mil “legislações” (geralmente cobradas apenas contra os pobres), protocolos, formalismos paralisadores que tem por finalidade frear a luta dos trabalhadores, mistificar e glorificar a hierarquia de poder da elite nacional, como se tornou beneficiário e promotor “popular” dessa hipocrisia.

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            É consenso entre a “esquerda” de que as relações capitalistas de produção – dentre as quais se encontram a hipocrisia da institucionalidade burguesa – desumanizam o ser humano, fazendo-o regredir à animalidade mais bestial. Por isso os grandes teóricos do pensamento socialista – em especial os marxistas – sempre alertaram que um dos principais objetivos do socialismo e do comunismo era humanizar as relações sociais e elevar todos os seres humanos da condição de animal. Frequentemente o surgimento do comunismo foi condicionado a uma nova conduta humana, com valor transcendental e histórico-universal. No entanto, para atingir objetivos tão grandiosos é necessário, de fato, humanizar o ser humano, combatendo, dentre outros males, a hipocrisia moral, social e institucional; ou seja: de um discurso completamente diferente da prática.

            Assim, “humanizar o ser humano” requer também a superação dos métodos políticos e sindicais da velha esquerda, que são levianos, nervosamente oportunistas, eleitoreiros, sindicais e... hipócritas! Em grande parte das vezes sequer escuta o outro. Está preocupado – ou, melhor, obcecado – em “fazer passar a sua política”, custe o que custar. Ouvir o outro requer, forçosamente, entrar no seu universo para apreendê-lo honestamente; exige, portanto, empatia. O movimentismo doentio e a necessidade de crescer e “agradar” a opinião pública a qualquer preço levam ao fechamento dos ouvidos dos militantes, que tendem a reproduzir ordens de cima e a se fechar à perspectiva dos que estão embaixo.

            Sabemos o quanto é difícil exercer a empatia e ouvir sinceramente o outro, mas este é um exercício imperioso para uma nova esquerda revolucionária. Desenvolver um trabalho de base que leve a escuta como um método muito sério de militância – sobretudo para se chegar a um denominador comum e, se possível, a consensos – é parte fundamental de uma nova prática política. Aí vai uma tentativa de sintetizar tudo isso em uma “palavra de ordem” para uma nova esquerda: saber ouvir e saber criticar, evitando o “demagogismo” basista (espontaneísta); pois saber ouvir não é compactuar com atrasos e posturas equivocadas dos trabalhadores de base, mas saber criticá-las sem impô-las e, principalmente, através do exemplo de uma nova prática, conseguir motivar e embalar as multidões, respeitando seus anseios e dialogando com eles.

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            Se, por um lado, um conselho popular ou de fábrica, um soviete ou mesmo um sindicato só podem ter uma política classista e socialista se tiverem à sua frente um partido revolucionário, que traduza e expresse organizada e concretamente essa consciência de classe; por outro, se não debatermos as questões ligadas à psicologia de massas, a hipocrisia moral/institucional e às responsabilidades sociais que cabem a todo trabalhador e a toda trabalhadora, não teremos socialismo ou comunismo e continuaremos nos voltando para trás, para buscar supostas respostas, já caducas e que apenas aprofundarão o caos e a falta de perspectiva.

            Por isso é importante não ficar esperando a “mudança de propriedade”, o socialismo ou o comunismo para “mudar o ser humano”, já que para atingi-los é condição fundamental começar a trabalhar desde já na nossa auto transformação (da mesma forma que não esperamos a sociedade socialista para começar a lutar contra o machismo, o racismo e a homofobia). As principais sugestões nesse sentido são:

·        Estudar e disseminar as lições da psicologia de massas do fascismo e do capitalismo, visando criar uma nova prática (procurar chegar a consensos de boas propostas classistas e evitar a dicotomização);

·     Humanizar espaços e debates: aprender ouvir e divergir honestamente entre trabalhadores, além de impulsionar onde for possível momentos artísticos de integração que desenvolvam a sensibilidade;

·        Cuidar e combater as dicotomias eternas/cristãs, jogando todo e qualquer mal para “fora de nós” e o reconhecendo apenas no outro. Se autocriticar e rever nossas posições permanentemente[ii];

·        Combater as auto ilusões e buscar ser o mais realista possível, sem abrir mão das nossas bandeiras históricas (tratadas pelos oportunistas incuráveis como “impossíveis” ou “utopias”). Lembrar a essência do leninismo[iii] – isto é, o seu realismo. Pra isso é importante ter noção do nosso tamanho e das nossas forças, além de nos reinventarmos, estudarmos e repensarmo-nos permanentemente.

·        Avaliar e estar atento a todo o tipo de reprodução da hipocrisia moral, institucional e social, sem o quê, é praticamente impossível a criação de novas formas de organizações e relações sociais, mais justas, vivas e humanas.

 


NOTAS
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[i] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/10/a-ditadura-de-bolsonaro-colocara-o.html
[ii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/autocritica.html
[iii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-essencia-do-leninismo.html


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