Os 13 anos em que o PT esteve à frente do
governo federal foram marcados pela conciliação de classes e por uma variante
do “reformismo sem reformas”. A concretização de alguns programas sociais e
algumas pautas progressivas não podem esconder o fato de que os governos
petistas não realizaram nenhuma mudança estrutural no país. O próprio Lula
reconhece que “deveria ter feito mais”, por exemplo, na questão da
regulamentação da grande mídia, onde não fez absolutamente nada; além de “ter
dado lucro recorde aos bancos”, o que ele nunca fez questão de esconder – ao
contrário, sempre bateu no peito, orgulhoso, para anunciar aos quatro cantos.
O
fato da frente popular petista ter sido uma contendora das lutas sociais,
levando parte do descontentamento popular para o leito morto da
institucionalidade burguesa, a não-realização de nenhuma mudança estrutural no
Estado e na sociedade brasileira, e a disseminação de inúmeras ilusões
eleitorais e pequeno-burguesas, não o torna pior do que o governo Bolsonaro,
pois este é a expressão nefasta do movimento neofascista internacional, motivo pelo qual apresenta sem papas na
língua pautas extremamente reacionárias e abertamente entreguistas. Mesmo
garantindo os interesses estruturais e essenciais da burguesia brasileira,
dentre os quais cabe destacar a manutenção da institucionalidade, o PT sofreu o
golpe da direita, que não o perdoou e tampouco reconheceu os inestimáveis
serviços prestados a ela.
Este
blog assim analisou os motivos subjacentes ao golpe do impeachment em 2016: “a
política do PT de programas sociais gera uma disputa com a burguesia
imperialista e nacional pelos recursos do Estado. Em épocas de expansão
econômica é possível aumentar a trilionária ‘bolsa banqueiro, empresário e do
agronegócio’, ao mesmo tempo que se garante a esmola do bolsa família, do
ProUni, do Pronatec, etc. Porém, em épocas de crise internacional, através de
‘reformas’, exigem a totalidade desses recursos para contrabalançar a queda
tendencial da taxa de lucros. Os governos do PT tentaram investir num
desenvolvimentismo a partir das estatais, em particular, da Petrobrás.
Adquiriram refinarias para produzir combustível e, assim, garantir uma relativa
estabilidade de preços. Isso bastou para
a elite nacional e a sua mídia comercial taxarem o PT de ‘comunista’. Por essas
razões, a Petrobrás foi grampeada pelo imperialismo, segundo denúncias de
Edward Snowden; e não casualmente foi um dos principais alvos do golpe do
impeachment de 2016”[i].
Porém,
ainda que, apesar do golpe de 2016, seja bastante claro para quem tiver olhos
pra ver e ouvidos pra ouvir que o petismo cumpriu o triste papel de
sustentáculo da ordem burguesa brasileira (fato reconhecido até mesmo pelo guru
econômico da ditadura militar, Delfim Netto), se fosse honesto e realmente
tivesse uma estratégia de reformas estruturais mínimas, o petismo poderia ter
modificado a atuação sindical, por exemplo, se somado às mobilizações de 2013
para tensionar a elite do país à que concedesse tais mudanças mínimas e,
sobretudo, poderia ter trabalhado por uma nova forma de funcionamento
institucional; mas nem isso o petismo foi capaz de fazer: dançou conforme a
música até mesmo nos mínimos detalhes.
***
A
esquerda de velho tipo, na qual se inclui principalmente o PT, não destina
nenhum espaço no seu programa ao combate à hipocrisia. Vendem a ideia de que
basta “mudar o regime de propriedade” ou, pior ainda, “ser eleito” para que a
mudança comece a se processar tendo em mãos apenas um programa político formal.
A hipocrisia moral, social, institucional se dá nos pequenos detalhes que
sustentam decisivamente os grandes alicerces do sistema. Ela possui uma lógica
própria que leva ao total divórcio entre a vontade do eleitor e as pressões
decisivas e fatais exercidas sobre o eleito, que deve trabalhar inexoravelmente
de acordo com essa “lógica própria” – às vezes consciente, outras tantas vezes
inconscientemente. Tal hipocrisia não pode ser combatida pelos métodos
convencionais da “esquerda” que, ao fim e ao cabo, acabam por reproduzi-los.
Pela lógica do seu funcionamento, tal hipocrisia pode formar maiorias
silenciosas inconscientes, mas, também, de forma consciente através do
utilitarismo e do imediatismo.
Então,
podemos concluir que o PT, além de não realizar nenhuma mudança estrutural no
país porque não rompeu com a institucionalidade burguesa, sequer foi capaz de arranhar
a sua hipocrisia. Assim sendo, reproduziu e ainda reproduz as suas relações
simbólicas de hierarquia e poder, seja à frente do Estado, seja à frente dos
sindicatos. Caiu vítima da hipocrisia institucional da qual foi um dos
alicerces e baluartes. O PT não apenas não viu e não vê problema nesta
hipocrisia institucional – mesmo depois do golpe –, que é escondida e
disfarçada por mil “legislações” (geralmente cobradas apenas contra os pobres),
protocolos, formalismos paralisadores que tem por finalidade frear a luta dos
trabalhadores, mistificar e glorificar a hierarquia de poder da elite nacional,
como se tornou beneficiário e promotor “popular” dessa hipocrisia.
***
É
consenso entre a “esquerda” de que as relações capitalistas de produção –
dentre as quais se encontram a hipocrisia da institucionalidade burguesa –
desumanizam o ser humano, fazendo-o regredir à animalidade mais bestial. Por
isso os grandes teóricos do pensamento socialista – em especial os marxistas –
sempre alertaram que um dos principais objetivos do socialismo e do comunismo
era humanizar as relações sociais e elevar todos os seres humanos da condição
de animal. Frequentemente o surgimento do comunismo foi condicionado a uma nova
conduta humana, com valor transcendental e histórico-universal. No entanto,
para atingir objetivos tão grandiosos é necessário, de fato, humanizar o ser
humano, combatendo, dentre outros males, a hipocrisia moral, social e institucional;
ou seja: de um discurso completamente diferente da prática.
Assim,
“humanizar o ser humano” requer também a superação dos métodos políticos e
sindicais da velha esquerda, que são levianos, nervosamente oportunistas,
eleitoreiros, sindicais e... hipócritas!
Em grande parte das vezes sequer escuta o
outro. Está preocupado – ou, melhor, obcecado – em “fazer passar a sua
política”, custe o que custar. Ouvir o outro requer, forçosamente, entrar no
seu universo para apreendê-lo honestamente; exige, portanto, empatia. O movimentismo doentio e a
necessidade de crescer e “agradar” a opinião pública a qualquer preço levam ao
fechamento dos ouvidos dos militantes, que tendem a reproduzir ordens de cima e
a se fechar à perspectiva dos que estão embaixo.
Sabemos
o quanto é difícil exercer a empatia e ouvir sinceramente o outro, mas este é
um exercício imperioso para uma nova esquerda revolucionária. Desenvolver um
trabalho de base que leve a escuta como um método muito sério de militância –
sobretudo para se chegar a um denominador comum e, se possível, a consensos – é
parte fundamental de uma nova prática política. Aí vai uma tentativa de
sintetizar tudo isso em uma “palavra de ordem” para uma nova esquerda: saber
ouvir e saber criticar, evitando o “demagogismo” basista (espontaneísta); pois
saber ouvir não é compactuar com atrasos e posturas equivocadas dos
trabalhadores de base, mas saber
criticá-las sem impô-las e, principalmente, através do exemplo de uma nova
prática, conseguir motivar e embalar as multidões, respeitando seus anseios e
dialogando com eles.
***
Se,
por um lado, um conselho popular ou de fábrica, um soviete ou mesmo um sindicato só podem ter uma política classista e
socialista se tiverem à sua frente um partido revolucionário, que traduza e
expresse organizada e concretamente essa consciência de classe; por outro, se
não debatermos as questões ligadas à psicologia de massas, a hipocrisia
moral/institucional e às responsabilidades sociais que cabem a todo trabalhador
e a toda trabalhadora, não teremos socialismo ou comunismo e continuaremos nos
voltando para trás, para buscar supostas respostas, já caducas e que apenas
aprofundarão o caos e a falta de perspectiva.
Por
isso é importante não ficar esperando a “mudança de propriedade”, o socialismo
ou o comunismo para “mudar o ser humano”, já que para atingi-los é condição
fundamental começar a trabalhar desde já na nossa auto transformação (da mesma
forma que não esperamos a sociedade socialista para começar a lutar contra o
machismo, o racismo e a homofobia). As principais sugestões nesse sentido são:
·
Estudar e disseminar as lições da psicologia
de massas do fascismo e do capitalismo, visando criar uma nova prática
(procurar chegar a consensos de boas propostas classistas e evitar a dicotomização);
· Humanizar espaços e debates: aprender ouvir e
divergir honestamente entre trabalhadores, além de impulsionar onde for
possível momentos artísticos de integração que desenvolvam a sensibilidade;
·
Cuidar e combater as dicotomias eternas/cristãs,
jogando todo e qualquer mal para “fora de nós” e o reconhecendo apenas no
outro. Se autocriticar e rever nossas posições permanentemente[ii];
·
Combater as auto ilusões e buscar ser o mais
realista possível, sem abrir mão das nossas bandeiras históricas (tratadas
pelos oportunistas incuráveis como “impossíveis” ou “utopias”). Lembrar a
essência do leninismo[iii] – isto é, o seu
realismo. Pra isso é importante ter noção do nosso tamanho e das nossas forças,
além de nos reinventarmos, estudarmos e repensarmo-nos permanentemente.
·
Avaliar e estar atento a todo o tipo de
reprodução da hipocrisia moral, institucional e social, sem o quê, é
praticamente impossível a criação de novas formas de organizações e relações
sociais, mais justas, vivas e
humanas.
NOTAS
__________________
[ii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/autocritica.html
[iii] Ver: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/a-essencia-do-leninismo.html
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