A velha esquerda, ainda presa em uma espécie
de “mente emocional”, julga todas as suas crenças
políticas como absolutamente verdadeiras e as contrapõe a qualquer outra
teoria. Por “crenças políticas” podemos entender os seus arremedos de
“marxismo”, geralmente recebidos de segunda mão e sem nenhuma reflexão séria e profunda.
A militância atual pouco lê sobre marxismo ou sobre qualquer outra coisa; pode
advir daí o seu desdém a todo avanço científico e a sua grosseira tendência de
reproduzir ecos de cima sem maiores críticas. Em suma: as suas “crenças”
refletem um medo congênito e não confesso a novas ideias e práticas.
Tal
conduta é o fim do espírito criador do marxismo, que leva em consideração a
dialética, isto é, o movimento da totalidade e a relação da parte com o todo.
Frente às profundas distorções do “marxismo” feitas pela mídia e a
intelectualidade burguesa, a velha esquerda não pode senão perder-se numa
reafirmação de dogmas e, por isso mesmo, não pode produzir nenhuma análise nova
e viva; que dirá responder às
distorções da mídia?
1.
As dicotomias
Seguidamente
vemos os intelectuais burgueses e pequeno burgueses criticando o marxismo,
dentre outros tópicos, pelo seu aspecto totalizante. Esta tendência totalizadora
de dar “respostas únicas” e “definitivas” sobre todas as outras – uma
influência direta da filosofia clássica alemã, de quem o marxismo é herdeiro –, ainda que muito importante, gera dicotomias que nos levam,
seguidamente, a becos sem saídas. Quanto mais novos e inexperientes são as
organizações de “esquerda” e os militantes formados por elas, maiores são as
dicotomias.
Uma
dicotomia é a divisão de um todo em apenas duas partes. Em outras palavras,
tudo deve pertencer a uma parte ou a outra, sendo elas mutuamente excludentes:
nada pode pertencer simultaneamente a ambas as partes. Isso é uma herança do
pensamento filosófico platônico e cristão, onde uma coisa é totalmente boa ou
totalmente ruim; pertencente a deus ou ao diabo; totalmente “certo” ou
“errado”; sadio ou doentio; e assim por diante. Ainda que tais pensamentos
filosóficos dicotômicos tenham sido importantes para o desenvolvimento
intelectual da humanidade, são visivelmente limitadores e geradores de
contradições das quais precisamos nos livrar agora, uma vez que já atingimos a
compreensão dialética da realidade – ou seja, a compreensão da interpenetração
dos contrários, da transformação do ser no não-ser, e vice-versa; de haver num
mesmo fenômeno elementos positivos e negativos.
Apesar
de já podermos ouvir claramente o canto de cisne das dicotomias
platônico-cristãs no pensamento humano, vemos a velha esquerda se aferrar a
elas de uma forma tanto mais infantil quanto nefasta para aprisionar o ego dos
seus militantes. A sua prática, como não poderia deixar de ser, acaba por
refletir essas compreensões mecanicistas e castradoras, que terminam por ser
apenas uma variante de controle de cima para baixo.
2.
As dicotomias na ciência e na filosofia
A
bem da verdade, não é apenas o marxismo que possui aspectos totalizadores que
se tornam pensamentos auto sabotadores quando manuseadas por mãos
inexperientes. Várias são as teorias e as filosofias que procedem desta forma –
talvez pela influência milenar platônico-cristã. Basta olhar para a história da
filosofia, da psicanálise, da ciência e da arte. Filósofos e pensadores
professam que apenas a aplicação quase
exclusiva de suas teorias ou técnicas podem “curar o mundo”, tal e qual uma
variante de doutrina religiosa. Muitos psicanalistas (de distintas vertentes)
sustentam, por exemplo, que somente a terapia pode “salvar o indivíduo”,
excluindo-se o restante da sociedade. O mesmo vale para propagandistas da
ciência, como Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson.
Para
eles, a ciência seria o norte absoluto, o que leva, por exemplo, a contradições
flagrantes, como o desprezo de Sagan em relação ao método psicanalítico por
este “curar apenas pela fala” e não apostar no “método científico” da química
psiquiátrica. Ou seja, um leve deslize que não apenas trata dogmaticamente o
que é “ciência”, limitando-a, e não reconhecendo a psicanálise como uma
importante ferramenta da própria ciência, como ignora, erroneamente, que as duas
formas sejam necessárias e complementares.
Dentro
do próprio campo psicanalítico também percebe-se tendências à dicotomização, em
grande parte como resultado do mesmo erro de Sagan e Tyson, cometidos, desta
vez, por Freud. Para ele, só o restrito “método científico” conhecido pelo seu
tempo poderia salvar a psicanálise. Então, estabeleceu-se falsas polarizações
com seus discípulos que honestamente buscavam desenvolver os galhos do tronco
que o próprio Freud plantou. Então, logo percebemos que se um psicanalista é
freudiano, ele não pode ser reichiano ou junguiano por trair o “método científico”
do seu fundador; e o mesmo pode ser estendido às demais áreas científicas e
filosóficas. Para que fique claro: uma justa apreciação do fenômeno psicológico
humano certamente exige contrastar e equilibrar as teorias freudianas,
junguianas, reichianas, lacanianas, etc., ainda que devamos reconhecer e
estudar suas diferenças, criticar e depurar seus erros. O mesmo vale para as
tendências marxistas progressistas e para quase todas as demais áreas do
conhecimento.
A
dicotomização absoluta leva ao empobrecimento do pensamento humano e à criação
de gaiolas, que impedem o voo livre do pensamento e do entendimento; como se
nos auto sabotássemos presos na visão da árvore ou de um simples galho desta
árvore, ao invés de percebermos toda a floresta e a ligação do seu bioma com
totalidade da Terra; isto é: rasgamos a big
picture e nos centramos voluntariamente nos pedaços rasgados da small picture.
Isso
não significa ignorar as preciosas contribuições de Sagan, Tyson, Freud ou de
qualquer outro pensador que tenha despendido a vida para contribuir com o
avanço intelectual, filosófico e científico da humanidade. Trata-se, justamente,
de tentar imprimir uma nova dinâmica e um novo método de pensamento já
percebidos e já apontados pelas tendências da evolução intelectual humana. É
precisamente uma conexão crítica que essa
evolução exige no momento. Uma vez que a resolução das necessidades dessa
evolução fossem claramente pensadas e devidamente consideradas, talvez nos
levariam a uma lógica e crítica diferente da que conhecemos. Para Hegel, por
exemplo, o conhecimento do absoluto (ou o mais próximo possível disso,
acrescentamos para contrabalançar o seu ufanismo) pode surgir por meio de uma
síntese da concepção intelectual e da reflexão; ou dito de outra forma: da
síntese e da posterior reflexão de teorias e pontos de vistas contraditórios.
Esta
crítica à dicotomização também não significa cair nos absurdos da pós-verdade,
auto-verdade ou prisões egotistas. Todas as teorias e filosofias devem ser
medidas por suas propostas, pela sua capacidade de relacionar-se com a
realidade concreta e, sobretudo, pela abertura
para a ligação com o restante da
realidade, pois ainda que não haja
verdade eterna, existem verdades inesgotáveis e em permanente transformação
– sobretudo no que diz respeito ao estágio em que se encontra o conhecimento
humano e nas condições construídas por ele para compreendê-las e divulgá-las.
Tudo isso deve ser coroado com a humanização
deste conhecimento – bem ao estilo freiriano,
para citar um exemplo – e, principalmente, o reconhecimento das nossas
limitações. Devemos ter como norte humanizar não apenas as ciências, as
filosofias e a arte, mas as próprias relações humanas, bastante desumanizadas.
3.
Por uma nova abordagem científica, filosófica e humana: desfazer as dicotomias!
Autores
como Fritjof Capra já perceberam e apontaram a necessidade de uma nova forma de
fazer ciência, filosofia e psicologia. A ciência, por exemplo, não pode
desfazer-se em autoproclamações desumanizadas, que leva em consideração apenas
um conhecimento fechado em si mesmo e autoproclamatório – uma espécie de
reprodução moderna dos concílios católicos –, tal como vemos hoje nas
universidades ou nos “especialistas” entrevistados pela grande mídia burguesa.
O
que pode transformar a produção intelectual e cultural humana é o aprimoramento
da junção de todas as teorias, num equilíbrio
harmônico, sabendo filtrar e amalgamar nelas tudo o que há de bom e depurar
o que há de ruim e limitador (aqui não se incluem, é claro, degenerações e
abortos teóricos, que são por demais evidentes). Isso é um exercício permanente
e, provavelmente, sem fim, em que o fundamental é ensinar o ser humano a pensar
e não a reproduzir uma decoreba, tal como funciona nosso sistema de ensino.
Repensar, fundir e/ou equilibrar harmonicamente todas as atuais e futuras
teorias e campos científicos e artísticos que já existem e os que ainda estão
por serem explorados deve ser a nossa “palavra de ordem”, pois é o caminho que pode nos colocar mais próximo
da “verdade” e da realidade.
Se
tudo isso não pode “resolver” os nossos problemas atuais, pelo menos nos deixa
com os pés mais próximos do chão e evita a degeneração em dogmas e tabus, que
engessam, infantilizam e por fim petrificam o pensamento humano.
4. A
dicotomização na política proletária
Como
foi dito no início, a dicotomização se reflete na prática política da velha
esquerda e gera verdadeiras aberrações. Com tais formas de proceder não pode
surgir uma nova prática que responda às necessidades políticas de emancipação
do proletariado, apenas a criação de gaiolas intelectuais que reproduzirão e
criarão engessamentos políticos práticos.
Em
um recente debate online entre
militantes de distintas regiões do Brasil surgiu uma questão interessante sobre
como abordar os trabalhadores ainda influenciados pelo petismo. Como sempre,
houve uma tendência à dicotomização e ao desprezo pela psicologia de massas da
sociedade capitalista.
Uma
companheira do sul colocou a necessidade de sermos cuidadosos no diálogo com os
trabalhadores iludidos que receberam bolsa família ou outro programa social dos
governos petistas; ao que foi respondida por um camarada do nordeste que
afirmou que “temos que ser bruscos” no sentido de finalmente “acordá-lo” de seu
sono letárgico, uma vez que um “diálogo brando” apenas reforçaria a sua
dependência e ilusões no petismo.
A
fala do camarada do nordeste expressa uma forte tendência à dicotomização, em
primeiro lugar, porque a classe trabalhadora é gigantesca e possui várias
estratificações e níveis de consciência, sendo necessário uma série de métodos
e formas de diálogos, desde o “diálogo brando” até o choque de consciência
“brusco”; em segundo lugar, não há porque restringir voluntariamente nossos
movimentos a apenas uma forma, ainda mais em questões secundárias.
Em
síntese: as duas modalidades de “diálogo” são importantes. Devemos cuidar com a
nossa própria autolimitação e sabotagem. Precisaremos das duas formas até mesmo
para um só indivíduo, o que dirá para toda a classe trabalhadora brasileira?
Nessas descobertas não há uma receita de bolo; o caminho se faz ao caminhar e a
sintonia fina é um exercício permanente que devemos nos especializar.
***
Para
que o quadro fique mais rico, caberia acrescentar ainda uma reflexão sobre as
limitações e as tendências à dicotomização na luta feminista, anti-racista e
dos movimentos LGBTTs. Quando estão sob clara influência burguesa, tais
movimentos tendem a pensar que o “seu programa” tal como é apresentado seria a
“salvação da humanidade” (ou, pelo menos, a salvação da parcela da humanidade
que abrangem), criando uma “nova sociedade” por si mesmo, desconsiderando-se
outros fenômenos políticos, econômicos, sociais, etc., geralmente separando-os
da luta por uma outra forma de sociedade; isto é, separando-os da luta pelo
socialismo. Muitos desses movimentos tendem a centrar-se unicamente na visão
errônea e limitada de que “todos os homens, brancos e heterossexuais” são o
problema por si mesmos, ignorando as condições concretas, as suas posições
políticas e, sobretudo, a sua prática...
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