terça-feira, 20 de outubro de 2020

Por um justo equilíbrio entre todas as teorias científicas progressistas: abaixo as dicotomias!


“Conheça todas as teorias, 
domine todas as técnicas, 
mas ao tocar uma alma humana, 
seja apenas outra alma humana”. 
Carl G. Jung

A velha esquerda, ainda presa em uma espécie de “mente emocional”, julga todas as suas crenças políticas como absolutamente verdadeiras e as contrapõe a qualquer outra teoria. Por “crenças políticas” podemos entender os seus arremedos de “marxismo”, geralmente recebidos de segunda mão e sem nenhuma reflexão séria e profunda. A militância atual pouco lê sobre marxismo ou sobre qualquer outra coisa; pode advir daí o seu desdém a todo avanço científico e a sua grosseira tendência de reproduzir ecos de cima sem maiores críticas. Em suma: as suas “crenças” refletem um medo congênito e não confesso a novas ideias e práticas.

            Tal conduta é o fim do espírito criador do marxismo, que leva em consideração a dialética, isto é, o movimento da totalidade e a relação da parte com o todo. Frente às profundas distorções do “marxismo” feitas pela mídia e a intelectualidade burguesa, a velha esquerda não pode senão perder-se numa reafirmação de dogmas e, por isso mesmo, não pode produzir nenhuma análise nova e viva; que dirá responder às distorções da mídia?

 

1. As dicotomias

            Seguidamente vemos os intelectuais burgueses e pequeno burgueses criticando o marxismo, dentre outros tópicos, pelo seu aspecto totalizante. Esta tendência totalizadora de dar “respostas únicas” e “definitivas” sobre todas as outras – uma influência direta da filosofia clássica alemã, de quem o marxismo é herdeiro –, ainda que muito importante, gera dicotomias que nos levam, seguidamente, a becos sem saídas. Quanto mais novos e inexperientes são as organizações de “esquerda” e os militantes formados por elas, maiores são as dicotomias.

            Uma dicotomia é a divisão de um todo em apenas duas partes. Em outras palavras, tudo deve pertencer a uma parte ou a outra, sendo elas mutuamente excludentes: nada pode pertencer simultaneamente a ambas as partes. Isso é uma herança do pensamento filosófico platônico e cristão, onde uma coisa é totalmente boa ou totalmente ruim; pertencente a deus ou ao diabo; totalmente “certo” ou “errado”; sadio ou doentio; e assim por diante. Ainda que tais pensamentos filosóficos dicotômicos tenham sido importantes para o desenvolvimento intelectual da humanidade, são visivelmente limitadores e geradores de contradições das quais precisamos nos livrar agora, uma vez que já atingimos a compreensão dialética da realidade – ou seja, a compreensão da interpenetração dos contrários, da transformação do ser no não-ser, e vice-versa; de haver num mesmo fenômeno elementos positivos e negativos.

            Apesar de já podermos ouvir claramente o canto de cisne das dicotomias platônico-cristãs no pensamento humano, vemos a velha esquerda se aferrar a elas de uma forma tanto mais infantil quanto nefasta para aprisionar o ego dos seus militantes. A sua prática, como não poderia deixar de ser, acaba por refletir essas compreensões mecanicistas e castradoras, que terminam por ser apenas uma variante de controle de cima para baixo.

 

2. As dicotomias na ciência e na filosofia

            A bem da verdade, não é apenas o marxismo que possui aspectos totalizadores que se tornam pensamentos auto sabotadores quando manuseadas por mãos inexperientes. Várias são as teorias e as filosofias que procedem desta forma – talvez pela influência milenar platônico-cristã. Basta olhar para a história da filosofia, da psicanálise, da ciência e da arte. Filósofos e pensadores professam que apenas a aplicação quase exclusiva de suas teorias ou técnicas podem “curar o mundo”, tal e qual uma variante de doutrina religiosa. Muitos psicanalistas (de distintas vertentes) sustentam, por exemplo, que somente a terapia pode “salvar o indivíduo”, excluindo-se o restante da sociedade. O mesmo vale para propagandistas da ciência, como Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson.

            Para eles, a ciência seria o norte absoluto, o que leva, por exemplo, a contradições flagrantes, como o desprezo de Sagan em relação ao método psicanalítico por este “curar apenas pela fala” e não apostar no “método científico” da química psiquiátrica. Ou seja, um leve deslize que não apenas trata dogmaticamente o que é “ciência”, limitando-a, e não reconhecendo a psicanálise como uma importante ferramenta da própria ciência, como ignora, erroneamente, que as duas formas sejam necessárias e complementares.

            Dentro do próprio campo psicanalítico também percebe-se tendências à dicotomização, em grande parte como resultado do mesmo erro de Sagan e Tyson, cometidos, desta vez, por Freud. Para ele, só o restrito “método científico” conhecido pelo seu tempo poderia salvar a psicanálise. Então, estabeleceu-se falsas polarizações com seus discípulos que honestamente buscavam desenvolver os galhos do tronco que o próprio Freud plantou. Então, logo percebemos que se um psicanalista é freudiano, ele não pode ser reichiano ou junguiano por trair o “método científico” do seu fundador; e o mesmo pode ser estendido às demais áreas científicas e filosóficas. Para que fique claro: uma justa apreciação do fenômeno psicológico humano certamente exige contrastar e equilibrar as teorias freudianas, junguianas, reichianas, lacanianas, etc., ainda que devamos reconhecer e estudar suas diferenças, criticar e depurar seus erros. O mesmo vale para as tendências marxistas progressistas e para quase todas as demais áreas do conhecimento.

            A dicotomização absoluta leva ao empobrecimento do pensamento humano e à criação de gaiolas, que impedem o voo livre do pensamento e do entendimento; como se nos auto sabotássemos presos na visão da árvore ou de um simples galho desta árvore, ao invés de percebermos toda a floresta e a ligação do seu bioma com totalidade da Terra; isto é: rasgamos a big picture e nos centramos voluntariamente nos pedaços rasgados da small picture.

            Isso não significa ignorar as preciosas contribuições de Sagan, Tyson, Freud ou de qualquer outro pensador que tenha despendido a vida para contribuir com o avanço intelectual, filosófico e científico da humanidade. Trata-se, justamente, de tentar imprimir uma nova dinâmica e um novo método de pensamento já percebidos e já apontados pelas tendências da evolução intelectual humana. É precisamente uma conexão crítica que essa evolução exige no momento. Uma vez que a resolução das necessidades dessa evolução fossem claramente pensadas e devidamente consideradas, talvez nos levariam a uma lógica e crítica diferente da que conhecemos. Para Hegel, por exemplo, o conhecimento do absoluto (ou o mais próximo possível disso, acrescentamos para contrabalançar o seu ufanismo) pode surgir por meio de uma síntese da concepção intelectual e da reflexão; ou dito de outra forma: da síntese e da posterior reflexão de teorias e pontos de vistas contraditórios.

            Esta crítica à dicotomização também não significa cair nos absurdos da pós-verdade, auto-verdade ou prisões egotistas. Todas as teorias e filosofias devem ser medidas por suas propostas, pela sua capacidade de relacionar-se com a realidade concreta e, sobretudo, pela abertura para a ligação com o restante da realidade, pois ainda que não haja verdade eterna, existem verdades inesgotáveis e em permanente transformação – sobretudo no que diz respeito ao estágio em que se encontra o conhecimento humano e nas condições construídas por ele para compreendê-las e divulgá-las. Tudo isso deve ser coroado com a humanização deste conhecimento – bem ao estilo freiriano, para citar um exemplo – e, principalmente, o reconhecimento das nossas limitações. Devemos ter como norte humanizar não apenas as ciências, as filosofias e a arte, mas as próprias relações humanas, bastante desumanizadas.

 

3. Por uma nova abordagem científica, filosófica e humana: desfazer as dicotomias!

            Autores como Fritjof Capra já perceberam e apontaram a necessidade de uma nova forma de fazer ciência, filosofia e psicologia. A ciência, por exemplo, não pode desfazer-se em autoproclamações desumanizadas, que leva em consideração apenas um conhecimento fechado em si mesmo e autoproclamatório – uma espécie de reprodução moderna dos concílios católicos –, tal como vemos hoje nas universidades ou nos “especialistas” entrevistados pela grande mídia burguesa.

            O que pode transformar a produção intelectual e cultural humana é o aprimoramento da junção de todas as teorias, num equilíbrio harmônico, sabendo filtrar e amalgamar nelas tudo o que há de bom e depurar o que há de ruim e limitador (aqui não se incluem, é claro, degenerações e abortos teóricos, que são por demais evidentes). Isso é um exercício permanente e, provavelmente, sem fim, em que o fundamental é ensinar o ser humano a pensar e não a reproduzir uma decoreba, tal como funciona nosso sistema de ensino. Repensar, fundir e/ou equilibrar harmonicamente todas as atuais e futuras teorias e campos científicos e artísticos que já existem e os que ainda estão por serem explorados deve ser a nossa “palavra de ordem”, pois é o caminho que pode nos colocar mais próximo da “verdade” e da realidade.

            Se tudo isso não pode “resolver” os nossos problemas atuais, pelo menos nos deixa com os pés mais próximos do chão e evita a degeneração em dogmas e tabus, que engessam, infantilizam e por fim petrificam o pensamento humano.

 

4. A dicotomização na política proletária

            Como foi dito no início, a dicotomização se reflete na prática política da velha esquerda e gera verdadeiras aberrações. Com tais formas de proceder não pode surgir uma nova prática que responda às necessidades políticas de emancipação do proletariado, apenas a criação de gaiolas intelectuais que reproduzirão e criarão engessamentos políticos práticos.

            Em um recente debate online entre militantes de distintas regiões do Brasil surgiu uma questão interessante sobre como abordar os trabalhadores ainda influenciados pelo petismo. Como sempre, houve uma tendência à dicotomização e ao desprezo pela psicologia de massas da sociedade capitalista.

            Uma companheira do sul colocou a necessidade de sermos cuidadosos no diálogo com os trabalhadores iludidos que receberam bolsa família ou outro programa social dos governos petistas; ao que foi respondida por um camarada do nordeste que afirmou que “temos que ser bruscos” no sentido de finalmente “acordá-lo” de seu sono letárgico, uma vez que um “diálogo brando” apenas reforçaria a sua dependência e ilusões no petismo.

            A fala do camarada do nordeste expressa uma forte tendência à dicotomização, em primeiro lugar, porque a classe trabalhadora é gigantesca e possui várias estratificações e níveis de consciência, sendo necessário uma série de métodos e formas de diálogos, desde o “diálogo brando” até o choque de consciência “brusco”; em segundo lugar, não há porque restringir voluntariamente nossos movimentos a apenas uma forma, ainda mais em questões secundárias.

            Em síntese: as duas modalidades de “diálogo” são importantes. Devemos cuidar com a nossa própria autolimitação e sabotagem. Precisaremos das duas formas até mesmo para um só indivíduo, o que dirá para toda a classe trabalhadora brasileira? Nessas descobertas não há uma receita de bolo; o caminho se faz ao caminhar e a sintonia fina é um exercício permanente que devemos nos especializar.

***

            Para que o quadro fique mais rico, caberia acrescentar ainda uma reflexão sobre as limitações e as tendências à dicotomização na luta feminista, anti-racista e dos movimentos LGBTTs. Quando estão sob clara influência burguesa, tais movimentos tendem a pensar que o “seu programa” tal como é apresentado seria a “salvação da humanidade” (ou, pelo menos, a salvação da parcela da humanidade que abrangem), criando uma “nova sociedade” por si mesmo, desconsiderando-se outros fenômenos políticos, econômicos, sociais, etc., geralmente separando-os da luta por uma outra forma de sociedade; isto é, separando-os da luta pelo socialismo. Muitos desses movimentos tendem a centrar-se unicamente na visão errônea e limitada de que “todos os homens, brancos e heterossexuais” são o problema por si mesmos, ignorando as condições concretas, as suas posições políticas e, sobretudo, a sua prática...

           


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