quarta-feira, 1 de maio de 2019

Análise do livre sobre “Pós-verdade e fake news”, do jornalista britânico Matthew D’ancona


À companheira Mariana Veloso:
O livro que tu me emprestou é bastante interessante e atual, embora com uma visão burguesa do autor, conforme vocês já tinham me alertado. Essa visão é um limitador, ainda que não o impeça de dar boas contribuições.
Dentre essas eu chamaria a atenção para a vinculação que ele faz entre a eleição de Trump nos EUA e o Brexit na Inglaterra, demonstrando que são duas faces de um mesmo fenômeno. Seriam parte daquilo que chamamos de "neofascismo", embora o autor não chegue nem perto da utilização desse termo. Ambas campanhas estão se baseando nas fake news e na utilização do emocional da população. Um dos pontos altos do livro é exatamente esse, a demonstração de como a "verdade sai e a emoção entra". Ou seja, como tem sido comum a utilização da emoção das pessoas como forma de manipulação política. Nesse sentido casa muito bem com o que será apresentado em a psicologia de massas do fascismo de Wilhelm Reich. Hoje, essa psicologia conta com o apoio importantíssimo da internet e das redes sociais, o que é satisfatoriamente observado no livro.
Uma grande conclusão do autor, que pode ser comparada ao que dirá Reich sobre o fascismo alemão, é que "Trump não recorreu a dados verificáveis, mas a ressentimentos e medos; aquilo que os gurus de negócios chamam de 'marketing da inadequação'". Assim, conseguiram manipular a população, não sem o apoio de espionagem das redes sociais através de marketeiros, como Steve Bannon, para conseguir construir esta nefasta obra de ódio. Na verdade esta "manipulação" é parcial. A psicologia de massas nos diz que uma parte dela é fruto da aceitação passiva das próprias pessoas, como o autor reconhece: "o que acontece de novo não é a desonestidade e a falsidade dos políticos, mas a resposta do público em relação a isso". Frente a crise e ao desespero, os trabalhadores e o povo em geral não avançaram um milimetro em direção à esquerda, mas abraçaram o primeiro charlatão que se vendeu como "solução", seja Trump nos EUA, Bolsonaro aqui ou o Brexit na Inglaterra.
A "teoria da conspiração" é amplamente utilizada por estes "ideólogos", que sabem bem manipulá-la. Há nos seres humanos uma propensão a crer nisso, no sentido de fugir de suas responsabilidades sociais e a preferência por "acreditar" em uma grande conspiração de seres malignos, sejam eles quem for. Há certa correspondência disso com a crise dos sindicatos. Parte da base da nossa categoria (o magistério estadual), por exemplo, prefere atribuir todos os problemas dos sindicatos à participação dos partidos na sua direção. Assim, fazem como o avestruz, enfiando a cabeça na terra e tudo estaria resolvido ("me chamem só quando isso acabar", sem apontar pra sua própria responsabilidade nisso; ou seja, acreditar em conspirações secretas é um tanto conveniente para eles). É certo que os partidos burgueses e reformistas destroem os sindicatos, mas isso não explica tudo e tampouco resolve o problema ao se ignorar os sindicatos virando as costas. As conspirações secretas seriam forças ocultas e místicas contra as quais "não se pode fazer nada".
Outro ponto importante tocado pelo autor, e que tem parentesco com o debate do neofascismo, é o forte antiintelectualismo, ou seja: a negação dos fatos, das evidências e, em última análise, da própria ciência. Esta é uma característica presente tanto em Trump, Bolsonaro, Olavo de Carvalho, quanto no discurso dos ideólogos do Brexit. Porém, o autor atribui o pós-modernismo – que ele insinua servir de base a esse antiintelectualismo – à esquerda. Ou seja: a esquerda teria desencadeado o pós-modernismo, o que é um absurdo gritante e uma distorção. Todos nós sabemos que foi a burguesia e seus elementos de direita nas universidades, na mídia, etc., que sustentaram o pós-modernismo, que nega a matéria, a existência das classes, a relatividade da verdade. É o pós-modernismo a base da "auto-verdade" e a da "pós-verdade", se é que podemos sustentar esse termo estranho, que ignora toda a base material e econômica da sociedade.
Aqui o autor começa as suas distorções, porque é, como se disse no início, um autor burguês. Além de igualar "marxismo e o fascismo" (tal como faz Bolsonaro por outros meios), desenvolve um longo tratado contra as "ditaduras socialistas" (que sabemos bem se tratar do stalinismo). Eis um ponto alto de suas preocupações: ao combater as supostas "pós-verdades", quer evitar que se descambe para um caminho anti capitalista e socialista. Ele cuida isso com muito esmero. Não faz qualquer vinculação entre a "pós-verdade" e a decadência do capitalismo. É claro, como autor burguês não pode se denunciar a si mesmo, mas, justamente por isso, é como se faltasse um grande pedaço da realidade, como se a mutilasse e a tentasse preservar de alguma forma. Assim, não é capaz de tirar as maiores conclusões: a sua "luta contra a pós-verdade" é incoerente, inconsequente e, por que não, insossa? 
O que vivemos, na minha opinião, é que a suposta "pós-verdade", fake news, antiintelectualismo, etc, é a expressão no mundo das ideias (ou superestrutura no linguajar marxista) da decadência econômica, social e política do capitalismo. Não é possível sustentar tamanhas distorções sociais, visíveis a olho nu, com mendigos, prostitutas, assaltantes, mortos-de-fome de todas as espécies, de um lado; e milionários, bilionários, ricos e indiferentes, do outro; sem apelar para a negação cabal da realidade. Tudo isso são consequências do pós-modernismo desenfreado ensinado nas universidades, impresso pelas grandes editoras e divulgados na grande mídia. Matthew D'ancona, como jornalista burguês que é, jamais vai admitir isso, recorrendo à "pós-verdade" que critica. Prefere criticar o marxismo, igualá-lo ao fascismo, atacar as "ditaduras comunistas", do que reconhecer um fato tão elementar; qual seja: que a decadência do capitalismo acirrou a disseminação da "pós-verdade" e das fake news, que já existiam na grande mídia comercial, nas universidades burguesas, nas grandes editoras, mas que estava relativamente restritas e controladas. Ou seja, o feitiço virou contra o feiticeiro: as ideologias burguesas tão utilizadas nos períodos "democráticos", agora estão sendo levadas às últimas consequências pelo neofascismo, o que se volta, inclusive, contra setores da mídia comercial, das universidades e dos próprios partidos burgueses.
Apesar dessas falhas que, na minha opinião, comprometem toda a obra, há uma parte que afirma que pra combatermos e superarmos a narrativa da "pós-verdade", precisamos nos adaptar "com disciplina rígida às circunstâncias em que nos encontramos. Isso é menos óbvio do que parece. Há um instinto poderoso para restabelecer aquilo que é perdido ou foi posto em risco, para reafirmar o status quo anterior". Pode parecer singelo e dúbio, mas se manter firmes frente a essa campanha enlouquecedora de mentiras de todos lados (principalmente do governo) é a nossa principal tarefa, não ceder, não desistir, não enfiar a cabeça na terra como o avestruz. A esquerda e os sindicatos não cumprem essa tarefa mínima. Os ativistas destes setores se entregam ou conciliam na primeira dificuldade. E é sabendo dessa resistência gelatinosa que a direita e muitos dos seus ideólogos avançam. A nossa resistência ao fascismo hoje, mais que militar, é moral, intelectual, emocional. Esta singela conclusão é de grande valia!
É evidente que uma das conclusões que salta aos olhos é a necessidade de se lutar contra o capitalismo, fato que está definitivamente fora das pretensões do D'ancona; e, no que depender dele, será combatido. Outra conclusão importante, que não é tirada pelo nosso autor, destituído de qualidades socialistas, é que se a "pós-verdade" sempre existiu de uma forma ou de outra, bem como as fake news, então o que resta é a evidência de que se trata principalmente de "manipulação dos sentimentos e das emoções" como forma de dominação de classe. Isso está em perfeita sintonia com muitas das conclusões de Wilhelm Reich acerca da psicologia de massas do fascismo. E as emoções, que se constituem numa grande porta aberta para a dominação e a manipulação de classe, nos aponta a necessidade de desenvolver técnicas de luta e de denúncia contra isso.
Esta "grande conclusão", contudo, ainda não tem resposta. Esperamos que se possa debater entre a esquerda brasileira como superar este problema. Penso que qualquer coisa muito distante disso nos faz andar em círculos e "brincar" de guerra civil espanhola.
Sem mais, desculpe pelo texto longo, espero que tenha ajudado de alguma forma.

Saudações revolucionárias e antifascistas!
Eduardo Cambará

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