segunda-feira, 30 de março de 2020

Coronavírus, crise capitalista e o princípio do declínio do império norte-americano



A crise da saúde pública desencadeadas pelo novo coronavírus e a sua cobertura midiática coloca uma série de desafios e dilemas para os trabalhadores conscientes e a “esquerda”. Neste momento difícil, devemos ser o mais racional possível, evitando os impulsos passionais, que nunca são bons conselheiros. Dado o caos de “informações”, é fundamental, então, analisar toda a situação, não isolando partes, e estabelecer hipóteses de trabalho.
        A dimensão que o problema do coronavírus tomou, bem como o destaque dado pela mídia comercial e os governos devem nos acender um alerta, sobretudo porque eles criam uma cortina de fumaça sobre o aprofundamento da crise econômica em curso. A presente crise, que explodiu a partir da brutal queda do preço do barril do petróleo e se alastrou por todas as bolsas de valores ao redor do mundo, é a continuidade da crise econômica de 2008 que, não apenas não se resolveu, como se aprofundou. Alguns analistas e jornalistas afirmam que ela se converterá numa grande depressão muito mais profunda que todas que conhecemos e será longa. O seu principal sintoma é o esgotamento da hegemonia norte-americana sobre o mercado mundial e a ascensão do bloco liderado pela China, que se arvora como substituta dos EUA ao posto.
         A enxurrada de informações não tem sido saudável, uma vez que muitas delas são conflitantes e o seu objetivo provavelmente seja esconder a grave crise econômica que já é visível, prendendo a atenção no frenesi de pânico e confusão gerado pela pandemia de coronavírus. Este cenário é bastante propício para o aprofundamento de projetos neoliberais que, aproveitando-se desta desorientação generalizada, podem ser implementados através da doutrina do choque desenvolvida pela Escola de Chicago e muito bem descrita pela ativista canadense Naomi Klein[i]. Tais projetos já estão sendo vendidos como a “solução da crise”. Por isso, é tarefa dos trabalhadores conscientes fazer uma triagem deste turbilhão de informações que recebemos pela grande mídia e que circula nas redes sociais para costurarmos algumas conclusões corajosas. A crise capitalista traz o caos e a guerra, mas pode trazer também a edificação de movimentos de resistências ao sistema e de sua superação rumo ao socialismo.

I – Crise capitalista, coronavírus e a luta pela hegemonia mundial
         Frente ao “pibinho” apresentado pelo governo Bolsonaro no início de março, o “nosso” Chicago boy (na verdade, Chicago's dirty old man) Paulo Guedes, afirmou categoricamente ao Jornal Nacional que a “economia estava começando a melhorar, mas veio o coronavírus e estragou tudo”. Ele não é o único a usar esta artimanha. Toda a grande mídia comercial tenta atribuir a crise econômica, a queda do preço do petróleo, a alta do dólar, a quebradeira nas bolsas de valores e, sobretudo, as “generosas” injeções de dinheiro público na economia privada, como um problema estritamente relacionado à “crise” do coronavírus.
         Isto não é verdade! O coronavírus certamente intensificará a crise capitalista, mas não é a sua causa central. Como já foi dito, os problemas de capital fictício e desregulamentação dos mercados financeiros, bem como a queda tendencial da taxa de lucros, que desencadearam a crise de 2008, se intensificaram em 2020. O princípio desta “nova” crise econômica foi a ofensiva russa para desarticular o mercado de petróleo – que, como sabemos, é a principal comodity energética, fundamental tanto para os EUA quanto para a China.
         Após as sanções do imperialismo norte-americano à Rússia em 2014, como parte dos seus esforços para vencer a guerra na Síria, o governo Putin inicia um movimento de diversificação da economia nacional, superando a monocultura de óleo e gás. Partindo da compreensão de que os norte-americanos estavam muito confortáveis com a situação do mercado de petróleo, inclusive vendendo barris de petróleo e gás de xisto abaixo do valor de mercado para os clientes europeus da Rússia, a OPEP – por orientação de Putin – fecha um acordo para segurar a produção e manter o seu preço baixo, visando um choque com a Arábia Saudita, o principal aliado do imperialismo norte-americano e o país campeão de violação dos “direitos humanos”, sobretudo nos assuntos relacionados às mulheres. Os sauditas, apavorados, tentaram aumentar sua própria produção elevando o ritmo de trabalho e adentrando à exploração das suas reservas estratégicas para vender o máximo de petróleo no menor tempo possível. Com essa ação decidida, feita em conjunto com os grandes trustes russos de petróleo, Putin dá o passo decisivo para controlar o mercado de petróleo mundial[ii], levando a quebradeira generalizada das bolsas na primeira quinzena do mês de março de 2020.
         A Arábia Saudita percebeu que se optasse por seguir produzindo mais do que sua capacidade “normal” para compensar a ação russa, afundaria o preço do barril de petróleo e aumentaria o seu déficit, o que teria consequências ainda piores em todo o restante do mercado mundial e, em especial, sobre a economia estadunidense. Os analistas de mercado do golfo pérsico afirmam que é impossível para a Arábia Saudita aumentar a produção de petróleo mais do que foi feito nesta ocasião.
         No final de 2019, pela primeira vez o estoque total de dinheiro, ouro e outros títulos do Banco da Rússia estavam prestes a superar as reservas da Arábia Saudita, “destacando a vantagem do Kremlin nas negociações entre grandes produtores de petróleo sobre o volume de corte da produção. Enquanto a Arábia Saudita tem drenado suas reservas para cobrir gastos sociais em meio aos baixos preços do petróleo, a Rússia reforçou seu orçamento e está gerando superávits em meio a temores de novas sanções”[iii]. Uma crise econômica e social sem precedentes se abriu na Arábia Saudita, inclusive com possibilidades de uma guerra civil interna.
         O presidente do fundo soberano russo declarou, solenemente, que com as novas reservas de petróleo do país eles poderiam segurar o preço baixo do barril de petróleo em um valor de até 25 dólares durante vários anos, afirmando que possuem grandes reservas financeiras nesta indústria, mesmo que ela perca U$150 milhões por dia[iv]. Este recado, dado claramente para a Arábia Saudita e os EUA, gerou pânico e histeria no mercado internacional. A confiança que é exigida para a hipocrisia do funcionamento dos mercados foi profundamente abalada em todas as bolsas de valores do mundo; desde as mais periféricas – como a Bovespa –, até Wall Street.
         Alguns analistas que acompanham o mercado de energia chegam a afirmar que essa estratégia russa pode durar cerca de dois anos, ou seja, até 2022, o que teria possíveis reflexos sobre as eleições dos EUA. Tudo isso abre um precedente para que parte da produção saudita possa ser vendida em yuan, uma vez que a China – outro parceiro comercial fundamental da Arábia Saudita – deu demonstrações nesse sentido. Isso poderia assinalar o princípio do fim do dólar como moeda hegemônica sobre o mercado mundial. É um processo que certamente levará décadas e não se dará sem crises e contradições, mas podemos perceber os primeiros passos nesse sentido.
Cabe destacar que a Rússia de hoje nada tem a ver com a Rússia revolucionária dos sovietes de 1917-1924. Atualmente ela é governada por uma máfia capitalista que tem pretensões de enriquecimento individual e nacional, bem como de domínio mundial, mas que, por hora, está subordinada ao poderio econômico chinês.
         A ofensiva russa e chinesa sobre o mercado de petróleo e o subsequente pavor das bolsas de valores atenta contra o sistema financeiro, que é totalmente baseado na autocracia do dólar e controlado por Wall Street, obrigando a disputa a se centrar na produção real, comprometendo grande parte da especulação financeira – que foi o mote da crise de 2008. Segundo um famoso especulador: “estamos a caminho da pior crise financeira da nossa vida”[v]. Grande parte das empresas de petróleo e gás de xisto dos EUA estão sustentadas em junk bonds (títulos podres gerados por capital fictício da especulação financeira) e endividadas até a medula. Elas necessitariam do valor do barril de petróleo entre 65 e 70 dólares, como era o preço até o início de março deste ano. Se o barril baixar para o valor de 30 dólares, como ameaça a política econômica russa, elas quebram em sua maioria, levando consigo uma parte importante da economia norte-americana. Vladmir Putin sabe o quão frágil é a indústria norte-americana de petróleo, por isso está apostando alto. Tudo isso é um ataque paralelo e subterrâneo à dolarcracia; feito por um acordo tácito ou aberto com a China.
         A “solução” encontrada pelo governo Trump para fazer frente a essa quebradeira foi a liberação massiva de verbas públicas para subsidiar – principalmente – as empresas petrolíferas, trazendo a tona a total hipocrisia neoliberal de “não intervenção na economia” e, sobretudo, apontando para as futuras “reformas” que deverão ser feitas para manter o Estado como o sustentáculo do lucro privado. Pra conseguir institucionalizar esse roubo do orçamento público precisa vender a ideia de que se trata de “injeção na economia” para que as bolsas tenham uma reação positiva, esquecendo do seu discurso contra o “socialismo” e pela “auto regulação do mercado”. Rompendo todos os recordes do cinismo, Trump passou a sustentar que “é favorável que o Estado assuma a participação em certas empresas”, porém, sustenta que ajudará apenas a indústria aérea, de navios de cruzeiro e a hoteleira[vi], omitindo a petrolífera, que, como vimos, está em apuros. Para isso, o coronavírus caiu como uma cortina de fumaça perfeita.
Frente às generosas injeções de dinheiro público nos mercados, alguns economistas afirmam que as sinalizações dadas por Wall Street são de restrições para o seguimento da festa da especulação financeira, que tende a se restringir, abrindo o caminho para novos “new deals” (leia-se: capitalismo de Estado para salvar a burguesia). Com a crise iminente na indústria petrolífera ianque não restará outro caminho para Trump que não retomar a campanha para desestabilizar e derrubar Maduro na Venezuela com vistas a se apoderar do seu petróleo para fins de especulação de preços.
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O resultado deste avanço da Rússia e da China sobre a cadeia produtiva do petróleo não poderia ser outro: pânico e fechamento das bolsas de valores, alta do dólar e de todos os preços dos gêneros de primeira necessidade, superprodução, recessão e a necessidade de uma contra ofensiva contra China e Rússia. A mando do governo dos EUA, os seus capachos neocoloniais – com o bolsonarismo à frente – vinham trabalhando duro para fazer as “reformas estruturais” (ou ajustes fiscais) que significam o aprofundamento e a radicalização das medidas neoliberais visando garantir a farra da especulação financeira no norte. Foi justamente para isso que tomaram o poder, seja através de golpes de Estado diretos, indiretos, ou de eleições “democráticas” baseadas em espionagem das redes sociais e fake news.
O governo neofascista dos EUA, por sua vez, além de querer suspender impostos sobre a folha de pagamento, o que pode quebrar a previdência do país, dando a desculpa da pandemia e preparando-se para privatizá-la totalmente, injeta no “livre” mercado estadunidense 1,5 trilhão de dólares de dinheiro público[vii] – quase o PIB brasileiro! – para salvar as grandes empresas, agiotas, investidores, repetindo como farsa o que foi feito em 2008. Assim fica fácil empreender!
No Brasil, seguindo os amos do norte, Paulo Guedes injetou no mercado cerca de R$147 bilhões com o discurso de “combater o coronavírus”[viii] e “preservar empregos”. Mas tudo isso não passa de uma cínica justificativa para financiar as grandes empresas e os setores que podem entrar em colapso financeiro. Nem a grande mídia burguesa e a “esquerda” fizeram ligação alguma ou denunciaram a ação governamental como um embuste, uma vez que dias depois, mesmo com os R$147 bilhões, Bolsonaro promulgou o decreto que previa suspensão salarial por 4 meses e mesmo a demissão de trabalhadores. Além disso, segue propondo a redução de 20% no salário dos servidores públicos. E, num pequeno lampejo de honestidade, Guedes reafirma a “importância de reformas estruturantes para que o país passe por situações como a atual, que definiu como um ‘choque transitório’”[ix].
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         Desde a crise de 2008 que a burguesia brasileira, em consonância com a norte-americana, tenta impor “reformas estruturantes” que têm finalidades econômicas bem claras. Se trata, antes de tudo, da busca por um novo funcionamento político e estatal que facilite uma nova forma de acumulação capitalista, muito mais perniciosa que a atual – daí a proposta de fim dos serviços públicos, da previdência, dos direitos trabalhistas, etc., para garantir esses recursos públicos como garantia do lucro privado. Pretende alinhar-se com o imperialismo de Trump para fazer frente ao “imperialismo chinês”. Nesse sentido, a imposição do ajuste fiscal nos países periféricos visa acabar com os resquícios do Estado de “bem estar social” aumentando a exploração sobre os trabalhadores no sentido de possibilitar a mesma taxa de lucro e as mesmas garantias financeiras estatais que caracterizam o atual capitalismo chinês.
         Nesse processo, enfrentam problemas como os entraves políticos levantados pelo Congresso Nacional e parte dos seus deputados, que disputam o orçamento público com o executivo, já que o desmonte do Estado tem reflexos inevitáveis sobre o próprio funcionamento do Congresso; além da contradição flagrante da dependência econômica da China. Tanto Brasil quanto EUA são dependentes do comércio com a China, o que dificulta as relações internacionais ao ponto da adoção de medidas de sabotagem – no caso dos EUA – e de retórica xenofóbica, “contra o comunismo” e o “povo chinês” – no caso do bolsonarismo.

II – Hipóteses sobre a origem do coronavírus e a guerra híbrida pela hegemonia mundial
Existe uma guerra em curso sobre a origem do coronavírus. Tudo isso faz parte da guerra híbrida e de informações entre as potências que disputam a hegemonia sobre o mercado mundial. Os EUA e o governo Bolsonaro acusam a China de disseminar o novo coronavírus. A China, por sua vez, acusa os EUA de o implantar na cidade de Wuhan durante os jogos militares, ocorridos em outubro de 2019. Aí está uma pequena parte do problema.
         Muitos cientistas informaram que o novo coronavírus não foi fabricado artificialmente em laboratório. Compreendem que ele surgiu como o resultado de mutação natural, portanto, sem intervenção humana. Essa visão beneficia a versão dos EUA, uma vez que endossa formalmente a hipótese do surgimento na China.
         Afinal de contas: a quem devemos atribuir a culpa? Ou isso não importaria nada? Partindo do pressuposto que vivemos uma guerra híbrida e comercial, além de que há tempos os EUA vêm procurando desestabilizar a China em episódios recentes, como os protestos por “democracia” em Hong Kong[x] e o incentivo permanente ao separatismo na região de Xinjiang[xi], dentre outros confrontos menores na Organização Mundial do Comércio (OMC) em que a China elevou o tom de voz pela primeira vez contra os EUA[xii], partimos da hipótese de trabalho de que, mesmo que o vírus seja “natural”, ele provavelmente tenha sido introduzido de fora na China[xiii]. É possível deslocá-lo, manipulando-o por laboratório para uma guerra biológica, da qual os EUA são especialistas, e introduzi-lo artificialmente em outras regiões. Segundo Noam Chomsky[xiv] e alguns jornais[xv], o vírus escolhido foi de “baixa intensidade”, que é letal para os idosos; isto é, para todos aqueles que não são mão-de-obra futura, ajudando “na limpa” da previdência dos países.
Segundo estudiosos de geopolítica, como Pepe Escobar (TV 247), existem muitos indícios que não podem ser tratados como “simples coincidência”, haja vista o fato de o vírus atingir o ápice na China, no Irã e no norte da Itália (que estava aderindo ao projeto econômico chinês da rota da seda e claramente se aproximando do governo de Xi Jinping)[xvi]. Uma guerra híbrida e biológica tem, por princípio, esconder e preservar as suas fontes e intenções; daí deriva toda a dificuldade de descobrir os verdadeiros culpados. No entanto, dentro dessa hipótese, o feitiço tem se virado contra o feiticeiro. A tentativa norte-americana de sabotar a China está se voltando contra os EUA e os seus aliados ocidentais, incapazes de planejar a economia para conter o vírus e reféns do colapso dos seus sistemas públicos de saúde, o resultado de anos de aplicação das políticas neoliberais. Este verdadeiro crime contra a humanidade certamente custará inúmeras vidas inocentes, sacrificadas em nome da ganância capitalista e da luta contra a decadência de um império, que ao ir para buraco tenta arrasar tudo o que pode.
         Saber o responsável pela disseminação é importante, pois se confirmada esta hipótese de introdução do vírus na China de fora, trata-se de outra intervenção criminosa (da qual os EUA já deram provas em Hiroshima, Nagasaki, no Vietnã, no Iraque e em muitos outros lugares) que precisa ser denunciada visando responsabilização e punição. De toda forma, mesmo que esta hipótese esteja errada e o vírus seja nativo da China, o fato é que ele vem sendo utilizado pelos EUA e as suas semicolônias ocidentais nesta disputa global dentro da perspectiva já indicada pela doutrina do choque desenvolvida por Milton Friedman e a Escola de Chicago, além de criar uma comoção de ódio e repúdio xenofóbico à China por ter sido “o seu berço”.
Assim sendo, temos que avaliar suas consequências nesta perspectiva, já que podemos perceber a clara tentativa de vincular a crise econômica ao coronavírus, bem como uma série de medidas econômicas que vem sendo propostas e já estão sendo adotadas pelo governo brasileiro e vários outros ao redor do mundo, como injeção de dinheiro público na iniciativa privada, redução de salário, demissão, etc., acelerando o processo de retirada de direitos trabalhistas bem aos moldes do almejado por Paulo Guedes[xvii], o fiel capacho da Escola de Chicago.

III – As contradições da atual “luta” contra a pandemia
Temos visto que quem questiona determinadas ações da “luta” contra o coronavírus é automaticamente taxado de irresponsável porque estaria menosprezando a pandemia. Caímos, assim, numa dicotomia. O vírus existe e é uma ameaça. As medidas preventivas são importantes, embora devamos ter a cabeça no lugar para não exagerarmos demasiadamente este problema em detrimento de outros. É exatamente isso que vem acontecendo. As exigências da quarentena e do combate ao vírus, na maioria das vezes, são dissociadas da estrutura econômica.
Ora, aqui há uma contradição flagrante sobre a ameaça do novo coronavírus. Se não devemos medir esforços no seu combate – como propõe a grande mídia comercial, a maioria dos governos e centenas de vozes –, a estrutura econômica precisa ser inevitavelmente questionada, já que é dela que resultam problemas no sistema de saúde pública, na falta de leitos e da tecnologia necessária ao tratamento do coronavírus, bem como no corte do orçamento das pesquisas científicas – o resultado inevitável do neoliberalismo! Isto quase nunca é lembrado pela maioria dos governos e da grande mídia e, portanto, se torna uma hipocrisia flagrante. A tapeação tem sido a seguinte: todos nós nos esforçamos, inclusive abrindo mão de salários e direitos, enquanto os bancos, o sistema financeiro, os monopólios e o agronegócio seguem intactos, lucrando como nunca e não abrindo mão uma vírgula dos seus interesses e privilégios econômicos.
         Mesmo muitos dos cientistas, ativistas, pessoas comuns e até organizações de “esquerda” que nos dão conselhos e vídeo-aulas pela internet, exigem que a quarentena e o combate ao vírus sejam tratados como prioridade absoluta, mas, na maioria das vezes, ignoram os cortes orçamentários, as privatizações e a destruição dos serviços públicos, como se a prioridade neste combate fosse apenas tarefa individual de cada um, preservando uma mudança na estrutura social e no nosso estilo de vida e consumo. Se há poucos leitos para receber pacientes com coronavírus, cai de maduro que se deve lutar abertamente por aumentá-los; e isso nos joga, inevitavelmente, contra a dívida pública e a PEC do fim do mundo; em suma: contra a estrutura econômica. Porém, vemos os governos e a grande mídia irem no sentido de restringir ainda mais direitos trabalhistas e de garantir quase a totalidade das verbas públicas para o setor privado.
         Por outro lado, se nos atentamos à doutrina do choque desenvolvida pela Escola de Chicago, algumas coisas tendem a se esclarecer um pouco mais.

IV – Coronavírus, doutrina do choque, “uberização” do mercado de trabalho e paralisia da luta de classes
         Como já foi dito, mesmo partindo da hipótese de trabalho que o coronavírus tenha sido usado como arma de guerra biológica pelos EUA, as conclusões que seguem a partir daqui independem da sua origem. O fato concreto e visível à luz do dia é o uso político e econômico que estão fazendo dele; o que não é menos criminoso do que uma possível introdução artificial do vírus na China. Cabe, então, estudar o que é e como funciona a doutrina do choque (ou o capitalismo de desastre, como chamam atualmente) desenvolvida por Milton Friedman e seus comparsas da Escola de Chicago.
         É sabido por todos que esta Escola desenvolveu as nefastas políticas públicas neoliberais que estão sendo aplicadas catastroficamente em todos os países do mundo desde meados de 1970, com o aumento avassalador da pobreza e da miséria. O principal laboratório foi o Chile de Pinochet, que nos traz hoje os protestos massivos como repúdio completo de tais políticas econômicas. No Brasil não foi diferente. A política de destruição dos serviços públicos, de ausência de investimento social, de falta de leitos nos hospitais no nosso SUS ou da inexistência de um sistema público de saúde, como nos EUA, são reflexos inevitáveis do neoliberalismo.
Discordamos da visão de que o neoliberalismo seria apenas uma política econômica possível dentro do capitalismo, podendo partidos reformistas e social-democratas aplicarem outra caso eleitos. O neoliberalismo é a forma concreta que adquiriu o capitalismo seguindo suas tendências centrífugas inatas no período de sua decadência histórica[xviii]; isto é, durante o seu período imperialista, que reflete a lei da queda tendencial da taxa de lucros, ele obriga os seus monopólios, trustes e bancos a se servir da quase totalidade dos recursos do Estado. Daí resultam as privatizações, o câmbio flutuante, a desregulamentação do mercado, etc.
         Compreendendo o caráter impopular de tais medidas, Milton Friedman e outros canalhas da Escola de Chicago desenvolveram a doutrina do choque para conseguir aplicar seus planos de rapina. Vários foram os seus laboratórios, desde ações militares conscientes, como as intervenções no Chile, na restauração capitalista da União Soviética, no Afeganistão, no Iraque; até os desastres naturais, como o caso do furacão Katrina nos EUA e o tsunami na Indonésia. A ativista canadense Naomi Klein foi pioneira em desmascarar este método nefasto que custou tantas vidas humanas e serviu tão bem para aplicar projetos neoliberais.
         Analisando o caso do furacão Katrina, ela nos diz que: “quando ele golpeou New Orleans em agosto de 2005, o que tinha acontecido no Iraque se repetiu ali; não depois de uma guerra, mas depois de um grande desastre natural. Milton Friedman morreu em 2006. A sua última recomendação de políticas públicas foi dada em um artigo escrito para o Wall Street Journal três meses depois do Katrina, onde ele escreveu: ‘a maioria das escolas de New Orleans estão em ruínas, bem como a casa dessas crianças que iam a essas escolas. As crianças agora estão distribuídas por todo o país. É uma tragédia, mas também uma oportunidade de reformar radicalmente o sistema educativo’. Ele estava a propor a privatização total do sistema educativo da cidade. Esta foi sua despedida”[xix].
         Os carrascos da Escola de Chicago, após estudar detalhadamente casos de choques psicológicos intensos financiados por experiências militares, bem como a psicologia de massas, partem do pressuposto que quando algo de ruim acontece, como uma calamidade pública, por exemplo, somos acometidos por uma espécie de privação sensorial que nos leva a uma monotonia extrema, o que causa perda da capacidade crítica, de ação e o nosso pensamento fica menos claro. Em casos mais extremos ocorre mesmo o recuo da personalidade.
A doutrina do choque necessita de “crises”, reais ou criadas, de “estados de emergência”; enfim, de choques, para tornar as políticas neoliberais aparentemente impossíveis de serem aceitas numa “política inevitável”[xx]. Milton Friedman entendeu a utilidade da crise para aplicação de planos impopulares. Uma população acometida por um estado de choque e semiparalisada é uma presa fácil para a imposição de um programa típico dos nossos “Chicago boys” (um eufemismo muito bonito para canalhas assassinos e ladrões a soldo do grande capital imperialista).
O psicólogo Daniel Goleman alerta para os efeitos da ansiedade e da preocupação, que são o resultado inevitável da utilização midiática do coronavírus: “Quando o medo dispara o cérebro emocional, parte da ansiedade resultante fixa a atenção na ameaça direta, forçando a mente a obcecar-se sobre como tratá-la e a ignorar tudo mais que ocorra naquele momento (...) Quando se deixa uma preocupação repetir-se continuamente, sem que seja contestada, ela adquire poder de persuasão; contestá-la, pensando numa série de pontos de vista igualmente plausíveis, impede que unicamente o pensamento preocupado seja ingenuamente tomado como verdadeiro”[xxi].
Com o atual coronavírus temos visto a intensificação de medidas de “emergência” para conter a crise desencadeada pelo vírus e uma cobertura midiática voltada à obsessão. Para além do grande frenesi social, as medidas políticas aplicadas não são para conter o coronavírus, mas de intensificação do neoliberalismo (se no momento optarem por planos econômicos tipo “new deal”, serão passageiros e prepararão as privatizações futuras). Cabe destacar, por fim, que grande parte dos métodos do neofascismo são tributários da Escola de Chicago – basta lembrar do pinochetismo –, que o engendrou e o dissemina de acordo com os seus interesses em cada região[xxii].
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Por outro lado, impor a “uberização” do trabalho não será uma tarefa simples, daí a necessidade de recorrer ao receituário de Milton Friedman e da sua Escola assassina, que se utiliza do choque, da desgraça, da “emergência”. Daí advém as medidas que o governo Bolsonaro e suas sucursais estaduais vem procurando aplicar a toque de caixa, como, por exemplo, a tentativa de cortar salários por 4 meses[xxiii] (o fato dele ter voltado atrás não significa que desistiu; está testando, quebrando resistências, buscando caminhos – agora perceberam que isso seria catastrófico para o consumo de massas, intensificando a recessão, e propõe uma “renda básica” que é, na verdade, um empréstimo bancário a juros altos). Da mesma forma devemos entender o apelo do jornal O Globo para que “o funcionalismo dê a sua contribuição”[xxiv] no combate ao vírus, argumentando que “a situação de calamidade” tem sido “só dos infectados e dos milhões dos assalariados da iniciativa privada”, já que o setor público “não abre mão de privilégios”. E, no auge da sua hipocrisia desprezível, conclui que “é preciso que o Congresso aprove já a PEC Emergencial, para permitir a correção dessa injustiça, agora devido a uma séria crise humanitária no Brasil”[xxv]. Este “senso de oportunidade” de O Globo não é uma casualidade, mas a sintonia e a encarnação da doutrina do choque dos seus mestres da Escola de Chicago.
         A respeito desta PEC Emergencial (186-2019) podemos ressaltar a clara tentativa do seu relator, o cínico profissional Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), de usar o pretexto do coronavírus para reduzir 25% do salário do funcionalismo público – sem nunca tocar nos bancos, nos oligopólios e no agronegócio – e a tentativa de confundir a discussão, afirmando que se trata não de “cortar gastos”, mas de “injetar dinheiro na economia” para “socorrer quem está desempregado, quem está perdendo emprego, quem está na informalidade, o pequeno”[xxvi]. Socorrer os desempregados e os “pequenos” nunca foi o interesse dessa corja. A sua preocupação é fazer o mesmo que os seus amos do norte estão fazendo: salvar as grandes empresas e as mega corporações com o discurso de “salvar o emprego”.
         À PEC Emergencial se soma a MP 927 que reforça o discurso das medidas para enfrentar o “estado de calamidade pública decorrente do coronavírus”[xxvii]. Esta MP prevê “que o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito” que terá preponderância sobre a lei. Ou seja, a “desculpa” do coronavírus serviu para acelerar uma “reforma estruturante” há muito tempo desejada pela burguesia brasileira. Pra piorar, o ardiloso Estadão parte para manipulação grosseira do senso comum quando afirma que “cortar salário dos servidores públicos bancaria a renda mínima para 55 milhões de pessoas”[xxviii], mas cala completamente sobre quantos mais teriam uma “renda mínima” se deixássemos de bancar a farra dos bancos através da dívida pública e do sistema financeiro, além dos generosos subsídios que garantem o “empreendedorismo” do agronegócio.
Analisando a situação da Itália, a Federação Anarquista de Turim, por exemplo, tem assinalado corretamente que, escondidos sob a desculpa da “contenção do Covid-19, o poder tenta cercear as liberdades e, mesmo que não seja esse o seu objetivo primeiro, faz com que o medo e o pavor incutidos nas populações favoreçam o aparecimento de soluções autoritárias”[xxix]. E, partindo da experiência da caótica situação italiana, alertam que: “A epidemia converte-se numa oportunidade para impor condições de trabalho que permitem às empresas gastar menos e ganhar mais. Os decretos de Conte (primeiro-ministro) prevêem o teletrabalho onde for possível. As empresas aproveitam isto para impô-lo aos empregados. Fica em casa e trabalha na internet. O teletrabalho está regulado por uma lei de 2017 que estabelece que as empresas podem propô-lo, mas não impô-lo, aos empregados. (...) Hoje, depois do decreto do governo de Conte para enfrentar a epidemia do Covid-19, as empresas podem obrigar o teletrabalho sem acordo ou garantias para os trabalhadores que, ainda por cima, devem estar agradecidos pela possibilidade de ficarem em casa. A epidemia, portanto, converte-se num pretexto para a imposição sem resistência de novas formas de exploração”[xxx].
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Em relação aos movimentos sociais vemos a paralisia completa! – inclusive no campo da denúncia sobre as estratégias por trás dos planos de “combate ao coronavírus”. As burocracias sindicais e políticas tornam-se campeãs da “responsabilidade” e do “bom senso” ao mandar os trabalhadores ficarem em casa, desconsiderando o pequeno detalhe de que eles já não as escutam quando convocados a sair às ruas. O PSTU apela para que: “fiquem em casa e protestem das janelas”[xxxi]; a CUT, por sua vez, diz que “todo o dia é dia de fazer barulho contra ele”[xxxii].
         Já no Chile – o catastrófico laboratório das experiências da Escola de Chicago, por anos exaltado pela grande mídia e os seus economistas – vemos o esvaziamento das ruas, onde o governo recebeu “poderes para restringir a liberdade de movimento e garantir o fornecimento de alimentos e serviços básicos”. A própria mídia burguesa reconhece que “é provável que a medida acabe com os protestos remanescentes contra a desigualdade depois que eles foram reativados no início de março, após vários meses turbulentos de manifestações e tumultos no final de 2019”[xxxiii]. E o jornal Estado de Minas, sutilmente, complementa: “os analistas temiam que, em um país tão segregado, medidas que justificassem uma grande crise de saúde não fossem seguidas, ainda mais ordenadas por autoridades em que não confiam”[xxxiv].
         Assim, com tal cobertura midiática, reforçada todos os dias num frenesi sem fim, a paralisia completa das ruas e da luta de classes facilita a abertura de uma avenida para aplicação das tão almejadas medidas de “uberização” da economia[xxxv] e, portanto, das receitas da Escola de Chicago que tendem a reestruturar o capitalismo, nos colocando numa situação de maior exploração e opressão. Não se trata apenas de uma equipe econômica “insana” e da “falta de entendimento” de Bolsonaro e Paulo Guedes, como relativiza a frente dos partidos de oposição “de esquerda” (PT, PSOL, PSB, PCdoB, PCB, PDT) no Congresso Nacional[xxxvi], mas de ações econômicas conscientes, muito bem assessoradas e sabendo exatamente onde quer chegar.

V – As ilusões e a miséria teórica da “esquerda”: o capitalismo vai colapsar?
         Tal como aquele famoso velhinho profético que andava pelas ruas com uma placa dizendo que “o fim está próximo”, a “esquerda” levanta as suas com os mesmos dizeres proféticos: “é o colapso do capitalismo”!
         É difícil prever as consequências da atual crise econômica, principalmente porque apontam que será de longa duração. Porém, devemos lembrar das caras experiências do passado que ensinam que não há situação limite e sem saída para a burguesia. Ela tem utilizado todos os processos de “crise” e “colapso” do sistema em uma forma de reestruturá-lo, transformando a barbárie social em “instituição”. O capitalismo avançado dos países centrais revelou uma grande capacidade de absorver uma série de reivindicações proletárias e utilizá-las como fator de “racionalização” do seu mecanismo econômico, aumentando seu poder alienante. As estruturas produtivas do capitalismo se “autorracionalizaram” nos anos seguintes a 1929, como, aliás, ocorreu em quase todas as suas crises cíclicas anteriores. Desde quando a Internacional Comunista erroneamente declarou que o “capitalismo é incapaz de conter qualquer novo desenvolvimento importante das forças produtivas”[xxxvii] a “esquerda” repete acriticamente tal afirmação descartada pela realidade histórica como um verdadeiro dogma.
         Partir destas premissas, não significa dizer que empresas, monopólios e economias periféricas – como a brasileira – não possam colapsar, gerando uma massa de desempregados; nem que governos não possam cair preservando a estrutura geral do sistema – este é o receio do governo Bolsonaro e uma das razões de sua declaração pública de 24 de março. Os cafeicultores do Brasil e o seu regime político – a República Velha – que o digam. Assim, a atual crise econômica, por mais profunda e longa que seja, não significará uma superação automática do capitalismo. O principal fator que poderia enfrentar a reestruturação do capitalismo e a sua crise ainda continua sendo a consciência e a organização dos trabalhadores, voltadas clara, aberta e corajosamente contra os alicerces do sistema na perspectiva do socialismo. Mas a “esquerda”, em sua maioria, vira as costas para essa tarefa. Se transforma num eco amplificado das políticas da burguesia – inclusive agora com a “crise” do coronavírus.
         Assim como a grande crise de 1929 apresentou-se como possibilidade para uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo – o capitalismo monopolista de Estado[xxxviii] –, a crise de 2008 e a atual colocarão o capitalismo numa fase de exploração ainda maior, abrindo espaço para a “uberização” e a desregulamentação completa das relações de trabalho. A atual “crise” do coronavírus e a sua maneira acrítica de tratá-lo é uma pequena demonstração disso. Exigir “medidas imediatas para a saúde do povo”[xxxix] são importantes, mas não passam de um nível mais elevado de economicismo. Nesta conjuntura não é possível deixar de demonstrar a utilização política e econômica que a burguesia vem fazendo do coronavírus como parte da doutrina do choque e da cortina de fumaça em relação ao salvamento das empresas privadas com dinheiro público visando a reestruturação do sistema. Este é, precisamente, o centro da questão que não podemos ignorar de forma alguma.

VI – As ilusões e a miséria política da “esquerda”: “Fora Bolsonaro” sem correlação de forças serve a quem?
         Os partidos institucionalizados da “esquerda” com maior peso eleitoral – como o PT, o PCdoB/movimento 65, etc. – trabalham dia e noite para desgastar Bolsonaro visando a volta ao poder. Neste processo lutam por preservar todas as instituições e a estrutura econômica do país. Portanto, qualquer análise teórica ou política mais profunda que abale esses alicerces são desprezadas. Fazem o mesmo na maior parte dos sindicatos que dirigem pelo Brasil afora. Assim, não rompem com uma visão social-democrata institucional de um tipo de liberalismo moderado – como se isso, no geral, fosse possível.
         Para Naomi Klein e o The Intercept, por sua vez, que tiveram a brilhante capacidade de desmascarar a doutrina do choque da Escola de Chicago, basta eleger esta social-democracia para, supostamente, aplicar uma política de regulamentação do mercado. Isso se passa desta forma porque para eles o socialismo não é um objetivo. Dentro dessa perspectiva de “esquerda”, se elegermos um governo burguês mais “brando”, por exemplo, o neofascismo e a Escola de Chicago continuarão existindo, livres, leves e soltos, escondidos atrás do direito à “liberdade de expressão”, para seguirem tramando novos e piores golpes. Em suma: não serão detidos e punidos! Ao contrário disso, necessitamos denunciar implacavelmente e extirpar estes males pela raiz.
         Apesar de sua visão social-democrata, Naomi Klein aponta elementos mais progressivos para a atual conjuntura do que a própria “esquerda socialista” quando diz que a doutrina do choque também pode se voltar contra os seus idealizadores, servindo para mobilizar trabalhadores e conscientizá-los dos objetivos por trás dela. Por isso, é lícito perguntar: como a “esquerda” reagirá a essa crise? Saberá ela se utilizar da doutrina do choque para fazer o feitiço virar contra o feiticeiro?
         Muitas organizações e partidos de esquerda tem visto o período da pandemia como a possibilidade de fazer uma “greve geral” (inócua novamente), já que todo mundo está em casa. Outros, como o PCB, veem-na como “uma oportunidade para a defesa intransigente da ditadura dos despossuídos contra o desmando dos grandes proprietários”[xl]. Assim, sustentam que “só um poder baseado na própria iniciativa das massas, e não na legalidade dos políticos burgueses, poderá assegurar o direito dos trabalhadores à quarentena, em detrimento do direito dos burgueses à mais-valia dos trabalhadores”[xli].
         Como construir esse poder hoje se todas essas propostas esbarram na atual situação dos trabalhadores, que estão desorganizados, inconscientes e reféns do medo plantado pela grande mídia, que não é sequer desmascarado, que dirá combatido? Não temos nem resquício de uma direção revolucionária para os trabalhadores e as que se reivindicam enquanto tal, compram todos os embustes dos governos e da grande mídia.
         Assim como não há condições no momento para instaurar uma “ditadura dos oprimidos” ou um “poder popular”, como quer o PCB, mesmo as exigências democráticas mínimas como, por exemplo, não pagamento da dívida pública, mais verbas para o SUS, revogação da PEC do fim do mundo ou taxação das grandes fortunas pressupõe um proletariado organizado e com consciência de classe, fato que hoje não existe. Temos trabalhadores dentro de casa, temerosos e receosos; bombardeados permanentemente pela grande mídia. A ação concreta que a “esquerda” propõe para exigir isso e “ficar em casa” batendo panela da janela. Devemos reconhecer que se trata de um contrassenso flagrante, já que a “esquerda” lança medidas e “programas de emergência”, mas que não possuem lastro na organização real dos trabalhadores. Não significa que não devamos lançar tais reivindicações mínimas, mas ter sempre os pés no chão. O certo seria apresentá-las como propaganda de um programa revolucionário que aponte a organização real dos trabalhadores e a perspectiva do socialismo. Portanto, todas estas reivindicações deveriam ser colocadas no nível da propaganda, apontando a perspectiva e trabalhando duro para a construção de movimentos sociais que transcendam a institucionalidade burguesa.
Ao contrário disso, a “esquerda” reforça indiretamente o discurso midiático e, empolgadas com os gritos das janelas, parte direto para o fim exigindo o “Fora Bolsonaro” sem correlação de forças nas lutas concretas e sem ter a menor perspectiva de um poder alternativo. O resultado são as proliferações de petições online de impeachment já, das quais o PSOL é campeão.
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A quarentena forçada de grande parte da população despertou a série de “protestos de janela” contra o governo Bolsonaro. Se por um lado é muito importante o desgaste do governo e a indignação contra ele, por outro, aponta uma série de limitações. A começar pelo fato de se tratar de um método de protesto típico da classe média, que lembra bastante as vésperas do golpe contra o governo Dilma. A reclusão de grande parte das pessoas dentro de casa acaba levando à busca por uma válvula de escape. Assim, percebendo esta situação, a grande mídia tem dado um relativo destaque para essas manifestações, o que, como sempre, acaba empolgando acriticamente a “esquerda”. Há nela uma forte tendência para se auto iludir, levando-a a iludir a vanguarda dos trabalhadores também[xlii].
         As petições online pelo impeachment de Bolsonaro, além das reportagens especulativas e contraditórias que afirmam a sua possível saída do governo, incendeiam as ilusões da “esquerda”. O próprio Bolsonaro, já se precavendo, alimenta a fantasia de que a “esquerda quer tirá-lo através de um golpe de estado”[xliii], para colocar os seus apoiadores em alerta. A sua declaração pública de 24 de março – uma espécie de reprodução neocolonial do que fala a Casa Branca[xliv] – foi utilizada como cavalo de batalha pelo “responsável” governador de São Paulo, João Dória (PSDB) – que está salivando para tomar o poder federal –, contra o “gabinete do ódio de Brasília”. O proselitismo desprezível de grande parte dos governadores estaduais, apoiadores de ontem do bolsonarismo, não tem outra finalidade que alçarem-se como “alternativa de poder” dentro do campo da direita e do capital. Há uma possibilidade real de que ele caia, não pela mão da luta direta dos trabalhadores e da “esquerda”, mas pela ação parlamentar (sobretudo da direita) ou pela própria queda de Trump nos EUA, que está ficando em maus lençóis e pode ser derrotado nas eleições de novembro; uma vez que é ele quem dá sustentação a Bolsonaro no Brasil. Assim sendo, todo o grito de “Fora Bolsonaro” que esqueça dessa correlação de forças acaba por levar água ao moinho dessa direita, a única que pode capitalizá-lo no momento.
         Os protestos de janela foram parte importante para tirar Dilma do governo, mas indo muito além deles, a direita tinha apoio real, um claro projeto e um aparato de governo alternativo pronto. A “esquerda” que levanta freneticamente o “Fora Bolsonaro” tem? Os trabalhadores estão desorganizados e inconscientes; em sua maioria em casa, com medo das consequências da expansão do vírus ou trabalhando obrigados pela patronal, sem nenhuma política que aponte para a independência de classe. A disputa política real se dá hoje apenas entre os políticos neoliberais (do tipo do PSDB e satélites) e os neofascistas (Bolsonaro e cia). A “esquerda” com maior peso entre os trabalhadores é papagaio de pirata nessa história toda.
Dada a mudança na correlação de forças internacional, talvez haja uma possibilidade remota do PT conseguir capitalizar o desgaste do governo e voltar ao poder – a despeito de todo o desgaste político de que é vítima no atual contexto brasileiro. No caso do PSOL, há apenas o papel de ir desgastando eleitoralmente os governos e reforçar, direta ou indiretamente, as ilusões nas instituições da democracia burguesa.
         Para o PSTU, que é orgulhosamente um dos campeões do “Fora Bolsonaro”: “devemos parar o Brasil para derrubar o vírus, vamos parar tudo (greve geral) e fazer panelaços, buzinaços e formas de mobilização que evitem contágio, exigindo: quarentena social geral, verbas para saúde e pesquisa, distribuição em massa de materiais básicos de proteção à população; estabilidade no emprego e garantia de renda de verdade (e não esse insulto de R$ 200,00) aos trabalhadores sem carteira e desempregados. (...) E fora Bolsonaro e Mourão, e seu projeto de ditadura e semi-escravidão!”[xlv].
         Percebendo a contradição de um projeto tão grandioso e que exige força para ser aplicado, o PSTU tenta emendar para buscar uma proximidade com a realidade: “Mas se devemos fazer um chamado e toda a unidade para lutar, é preciso dizer em alto e bom som, que precisamos construir uma organização revolucionária, e que a classe trabalhadora precisa avançar na sua auto-organização para fazermos uma revolução socialista”[xlvi].
Se não temos tal organização, por acaso o PSTU não estaria tentando “enganar” a realidade? Tudo isso não seria uma repetição dos erros cometidos no Chile, em que se confundem as tarefas e os métodos, colocando os pés pelas mãos e chamando “Fora Piñera” sem ter organizado um poder alternativo[xlvii]?
***
O mesmo erro é repetido pela Intersindical em sua resolução pelo “Fora Bolsonaro” apresentada ao X Congresso do CPERS, ocorrido em 2019. Nela podemos ler que “precisamos de ‘uma trincheira’ que unifique a todos os insatisfeitos e acumule para a mudança da correlação de forças a nossa favor” e conclui dizendo que “o eixo dessa trincheira” deveria ser “a campanha ‘Fora Bolsonaro’”. Reparem a contradição: se precisamos acumular forças para mudarmos a correlação de forças com o governo, como podemos saltar direto para o fim, para o “Fora Bolsonaro”?
A questão aqui é, como já foi dito, que os trabalhadores não estão suficientemente conscientes e nem suficientemente organizados para concretizar uma ação tão decisiva quanto essa. Isso pode ser desconsiderado se consideramos como “vitória” a entrada do Mourão ou de qualquer outro partido de direita ou liberal de “esquerda”, tipo PT; mas não pode ser ignorado por aqueles que querem enfrentar toda a estrutura econômica, a qual não será modificada por uma simples mudança de nome ou de sigla.
Além disso, a maioria dos sindicatos do país está dominada por burocracias sindicais que são incapazes de levar qualquer luta com coerência. Isso deveria ser admitido antes de pensarmos em uma palavra de ordem tão séria para agitação de rua, que só pode ser agitada nas vésperas de um movimento de massas em que os trabalhadores estejam suficientemente organizados para tomar o poder e, que ainda por cima, tenham a perspectiva do socialismo. Uma lógica mais correta nos diria que, como ainda não temos condições de “botá-los todos para fora”, devemos nos centrar nas palavras de ordem de acumulação de forças, de desgaste do governo do ponto de vista revolucionário e não eleitoral; na luta contra a burocracia sindical para destravar os sindicatos e os movimentos sociais; procurar criar pacienciosamente órgãos populares de duplo poder. Não existem atalhos milagrosos e não podemos cair na tentação de colocar a carroça na frente dos bois, pois isso só prolongaria a agonia e os próprios males[xlviii].
Hoje, ignorar a doutrina do choque e o programa da Escola de Chicago, bem como a utilização política do problema do coronavírus dentro desta perspectiva, não apenas não contribui com os trabalhadores na luta pelo socialismo e pelo “Fora Bolsonaro”, como pode ajudá-los a acelerar a aplicação dos seus projetos que preveem as mudanças na economia que criarão a nova acumulação capitalista e sua “nova” escravidão assalariada. De quebra, ainda abrem o caminho para um novo governo de direita, igual ou pior que o bolsonarismo, já que a estrutura econômica em crise não deixará margem política de “democracia” para quem tem que administrar a reestruturação do capitalismo.

VII – O ponto de mutação: a crise deve ser um marco para reorganizarmos todas as nossas forças e renascermos!
         O sistema novamente deu mostras do seu esgotamento em todos os campos: econômico, ecológico, trabalhista, social, cultural, artístico. Esperar que a burguesia e a sua mídia entendam isso é uma utopia reacionária. Elas estão trabalhando dia e noite para reestruturar o sistema sob novas bases que perpetuem a exploração e a opressão, de um lado, e os rendimentos e lucros, de outro. Querem tirar a maior “casquinha” possível da ascensão de um novo imperialismo para continuar enriquecendo.
Trump, tentando “fazer a América grande de novo”, se utilizou de todos os tipos de sabotagem possíveis e imagináveis – inclusive de uma possível guerra biológica. Porém, bastou uma ação decidida da Rússia sobre a cadeia produtiva do petróleo para que recuasse apavorado, preparando um contra-ataque perverso, que pode se servir, inclusive, de armas nucleares[xlix].
A China, por sua vez, se utilizando de métodos de planejamento econômico (herdados do pensamento socialista e possibilitados pela sua grande reserva econômica) conseguiu conter – pelo menos por hora – a pandemia. Fato que não pode ser repetido pelas senis economias ocidentais, tributárias do neoliberalismo e da auto destruição dos seus próprios serviços públicos. Xi Jinping tenta acalmar os investidores de todo mundo na foto em que aparece com a sua máscara de proteção, olhar confiante e cercado por cientistas de todos os lados. A burguesia brasileira e parte da norte-americana rezam em segredo para que a China se recupere o quanto antes, já que todo o ocidente capitalista é dependente da China. A crise atual o demonstra claramente. Ela é o epicentro da maioria das cadeias produtivas do mundo, de todo o tipo de peças e engrenagens básicas que, uma vez paralisadas, paralisam o resto da economia internacional.
Frente aos ataques histéricos de Eduardo Bolsonaro, que tentou difamar a China atribuindo a ela a disseminação do coronavírus, tal como fez o seu amo D. Trump, bastou algumas declarações da embaixada chinesa no Brasil afirmando que as “tentativas de difamar a China serão fracassadas”,[l] para que toda a grande mídia e o próprio Mourão declarassem se tratar de um caso isolado e quase pedissem perdão de joelhos.
Enquanto muitas economias periféricas tendem a colapsar, uma vez que foram paradas pela pandemia – incluso a dos EUA e a do Brasil –, a China se levanta e caminha aberta e decididamente para a liderança do mundo[li]. A crise econômica atual prenuncia o nascimento desta nova hegemonia mundial. Basta saber agora se a China aplicará o seu antigo discurso sedutor de um mundo multipolar ou se ela rasgará a confusa herança teórica de Mao Tsé-Tung, fazendo os trabalhadores do mundo sentirem saudades da hegemonia imperialista norte-americana.
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Desesperados, os governos neoliberais do ocidente usam o Estado descarada e cinicamente para salvar o capital privado. Prometem planos econômicos generosos bem ao estilo do “New Deal” ianque, que tem a finalidade central de manter o consumo de massas para, assim, conter a recessão e tentar salvar o sistema. Alguns governos, como o francês, anunciam tardiamente que “o modelo neoliberal possui falhas”[lii].
Mas o que são esses programas de “ajuda” estatal à economia privada senão a demonstração da falência do capitalismo (e, consequentemente, do neoliberalismo) – que não pode se manter de pé sem a ajuda do inimigo número 1 dos neoliberais – e a premente necessidade do socialismo?
E como reagirá a “esquerda” frente ao inevitável impacto da crise econômica sobre as instituições da democracia burguesa, bem como às possibilidades revolucionárias que se abrirão? Ela irá avançar no sentido do socialismo revolucionário, incentivando o duplo poder, ou ajudará a burguesia na manutenção dessas instituições e da estrutura econômica da qual dependem? Mudará ela sua conduta, suas políticas, suas práticas, seu programa? Tudo indica que não...
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Apesar dos trabalhadores estarem numa condição desfavorável por vários motivos, a crise pode e deve abrir uma importante possibilidade de reorganização e de revisão dos seus métodos de luta, do seu programa, de sua atuação, dos seus valores; em suma: traz a possibilidade de se reorganizar e renascer como uma Fênix. É nisso que devemos apostar. Mas para isso é fundamental rever tudo! Desde o programa, os métodos; até a necessária busca e a escuta entre si e o que há de melhor no povo: rever seus dogmas, seus demônios fascistas internos e, antes de tudo, procurar olhar para o seu espelho profundo.
         Superar esta crise não é uma tarefa meramente de “mudança econômica”, matemática, de números; mas uma mudança de moral, de ética, buscando os melhores exemplos da luta do movimento operário para superá-los; procurando a regeneração e o renascimento político, cultural, muito próximo ao que propôs Fritjof Capra: “a evasão de questões relacionadas com valores levou os economistas a voltar-se para problemas mais fáceis, porém, menos importantes, e a mascarar os conflitos de valores mediante o uso de uma elaborada linguagem técnica”[liii]. Podemos substituir aqui os “economistas” pela “esquerda” em geral.
         Um partido ou uma organização revolucionário de massas não pode surgir ou renascer sem rever os erros do passado, os dogmas, as degenerações. Não pode deixar de levar em conta os avanços científicos, sociais, culturais; tampouco poderá ignorar os assuntos fundamentais da sexualidade humana e os conflitos pessoais interiores, por mais “subjetivos” que sejam. Deverá combater o rebanho humano tanto da sociedade capitalista, quanto dos partidos de “esquerda” e do movimento “socialista”. Todas as autênticas e sinceras organizações revolucionárias e operárias de hoje devem procurar estar conscientes de si, comunicarem-se e, dentro de todo o esforço possível, cooperarem entre si, tal como foi uma vez a Associação Internacional dos Trabalhadores.
         Que os conflitos entre os partidos e organizações proletárias sejam conduzidos exclusivamente pelas armas intelectuais e pela camaradagem, sem o veneno de procedimentos de luta terrorista, de calúnias e de apelos à “peste emocional” de um partido contra os outros. E, por cima de tudo isso, relembrar Che: frente as piores adversidades, trabalhar conscientemente para não perder a sensibilidade humana de perceber o outro, por mais difícil e inédito que isso seja.




REFERÊNCIAS


[ix] Idem.
[xiii] Hipótese compartilhada por vários analistas, incluso Pepe Escobar: https://www.youtube.com/watch?v=hu3_kQdwrxs
[xxi] GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional – a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. Editora objetiva, Rio de Janeiro, 1995 (páginas 78 e 82).
[xxiv] O Globo, de 20 de março de 2020.
[xxv] Idem.
[xxx] Idem.
[xxxvii] CLAUDÍN, Fernando; A crise do movimento comunista. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2013 (páginas 78, 192, 194).
[xxxviii] Idem (página 194).
[xxxix] Ver: https://pcb.org.br/portal2/25144/medidas-imediatas-para-proteger-a-saude-do-povo/ o conteúdo deste artigo do site do PCB se repete praticamente em quase todas as organizações de esquerda.
[xli] Idem.
[xlii] Essa forma de auto ilusão da “esquerda” com o “Fora este ou aquele” foi analisada em detalhes no texto: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/12/o-espontaneismo-na-luta-de-classes-da.html e, também, no balanço do X Congresso do CPERS: http://construcaopelabase.blogspot.com/2019/09/balanco-do-x-congresso-do-cpers.html (item VI).
[xlvi] Idem.
[liii] CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Editora Cultrix, São Paulo, 1982 (página 183).

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