domingo, 15 de março de 2020

Exploração eterna de um povo sem lembrança

Nazistas queimando livros: o 3º Reich queria apagar a memória teórica e histórica humana


Povos e governos nunca aprenderam 
coisa alguma com a história:
cada tempo é demasiado individual para isso.
(Hegel em “Lições sobre a filosofia da história”).

Montaigne dizia que na ordem das relações humanas
a realidade conta pouco.
Nos apegamos a ficções.
Preferimos a ilusão prazerosa ao desgosto da pálida realidade.
(Christian Dunker em “Reinvenção da intimidade”).

A espécie humana busca explicação para todo o tipo de fenômeno que desperta sua curiosidade ou coloca dilemas pela sobrevivência, indo desde a origem da vida, o desvendamento do cosmos e da natureza, com todos os seus mistérios; até os fatos históricos aparentemente fortuitos e sem conexão. A História e o seu ensino escolar tentam dar uma explicação para a evolução da humanidade, tanto para o seu surgimento, quanto para os dias de hoje. Como não poderia deixar de ser, nos deparamos com muitas lacunas nestas explicações, porém, a base central delas permanece fundamental: a experiência humana, passada de geração para geração.
Não haveria nenhum tipo de progresso se cada nova geração tivesse que descobrir o fogo ou inventar a roda. A base da evolução humana provém exatamente dessa capacidade da geração antiga passar sua experiência condensada em forma de teoria à nova. No entanto, existem vários problemas neste processo, como o fato de percebermos certos defeitos e insuficiências teóricas, além de uma tendência irracional dos seres humanos persistirem no erro, muitas vezes não querendo ver a realidade e não possuindo aquela qualidade que Freud recomendava aos psicanalistas no congresso internacional de 1911: “aprendam a suportar a verdade”.
Portanto, não basta compreender a importância da experiência e da sua transmissão de geração para a geração, há que se voltar os olhos para a negação de grande parte das pessoas em querer enxergar a dureza desta experiência e desta evolução, procurando, ao invés disso, um consolo. Daí provém inúmeras ilusões místicas e religiosas que ajudam os seres humanos a suportarem a realidade ao invés de entendê-la para modificá-la. No campo político isso se torna uma tragédia, pois é um prato cheio para cairmos na lábia de um líder populista ou messiânico (seja ele “democrático” ou neofascista). Translademos essas ilusões para o campo sindical e então a tragédia se transformará em apatia e numa máquina de gerar ilusões que cobrará um preço alto demais para os trabalhadores. Seu fardo será redobrado.
As sociedades de classe, por outro lado, não se sustentariam 1 dia se este problema não existisse. Sistemas como o escravismo e o feudalismo não o conheceram profundamente porque não necessitavam dele. A visão mística da maior parte das suas populações realizava por si mesma este trabalho de freio da luta de classes. A História e a “ciência” eram conhecidas e estudadas por poucos. No capitalismo, contudo, tornou-se questão de vida ou morte para a burguesia, que criou uma indústria cultural e de jornalismo fake para disseminar a dúvida, a paralisia e o niilismo. A questão é que grande parte da “esquerda” e dos seus movimentos sociais não olham este problema de frente, para pensá-lo, repensá-lo e buscar soluções. Ao contrário: em alguns casos, chega a reforçá-lo.

A negação das experiências e o sistema de crenças individuais[i]
         Muitas pessoas que vivem nos estreitos limites do senso comum pensam que debater ou “gostar” de política é “chato” e uma “opção individual”. Não a enxergam como uma necessidade, como se pudéssemos prescindir de debatê-la e de olhá-la de frente. As conclusões mais duras de cada experiência política deveriam ser assimilada pelos trabalhadores e passadas adiante afim de evitar sua repetição. Esta é a base de todo o movimento operário internacional e uma das principais preocupações da teoria marxista. Porém, isso também é visto por muitos como algo “chato”, “aborrecedor”, que deveria ficar a cargo dos políticos profissionais e dos sindicalistas.
         As duras experiências históricas e políticas, quando analisadas e assimiladas, podem entrar em conflito direto com o sistema de crenças individuais se ameaçam a visão de mundo ideológica ou os interesses econômicos que geram estabilidade individual (mesmo que pouca e restrita). Assim, há uma forte tendência individual a negar fatos dolorosos das experiências passadas, abrindo espaço para repetição de armadilhas. A burguesia e a sua mídia mercenária já compreenderam como funcionam estas ilusões e sabem manejá-las muito bem.
Nos períodos eleitorais (sejam na sociedade, nos sindicatos ou em qualquer outro órgão) a negação da realidade e das experiências passadas serve para renovar as ilusões e repetir derrotas. A memória apagada voluntária e convenientemente tende a preservar nosso sistema de crenças e a nos possibilitar uma estabilidade emocional. Tudo isso ocorre, na maioria das vezes, inconscientemente. Em outras tantas ocasiões, não! Assim, o indivíduo acaba jogando a culpa da sua má sorte sobre as pessoas do seu entorno, no destino ou em “forças ocultas”. Aí entra um prato cheio para a exploração das igrejas evangélicas, que atribuem tudo a forças demoníacas e não às ações executadas pelo sistema econômico vigente de uma classe em detrimento de outra. Esse sentimento é amplamente explorado, por exemplo, no fenômeno da fogueira santa da Igreja Universal do Reino de Deus. Sem ele, talvez a própria fogueira santa nem conseguisse existir.
Certamente existem silêncios e receios de muitos trabalhadores que não são necessariamente uma amnésia voluntária. Eles guardam, a ferro e fogo, na memória, muitas experiências ruins do passado, mas são coagidos a ignorá-las ou aceitá-las pelo sistema ditatorial dos locais de trabalho – onde o patrão, o governo, os gerentes e capatazes exercem livremente o seu absolutismo totalitário – por medo de cair no desemprego e na miséria. Excetuando estas hipóteses, voltamos para os casos em que a zona de conforto e um oportunismo intrínseco a nós tende a levar à conciliação e à aceitação. Por isso existe um esquecimento conveniente e um fechar de olhos forçado para certas experiências que nos exigem condutas que não estamos dispostos a dar naquele momento.
Vejamos um exemplo do movimento sindical. As greves tendem a cometer os mesmos erros de sempre e só são deflagrados quando chegam num limite. Muitos erros evitáveis são repetidos porque examinar a experiência do passado é doloroso e, também, na maioria das vezes exige uma mudança de postura. Aceitar um suposto caminho mais fácil – que pode ser simplesmente repetir o que já foi feito – reforça ilusões e crenças que contribuem momentaneamente com a estabilidade emocional que nos faz seguir adiante. Porém, não tarda para na primeira esquina sofrermos uma nova desilusão.
Seguidamente as superstições religiosas e místicas entram em conflito consciente ou inconscientemente com as caras experiências políticas do passado. Quem vence este duelo? Evidentemente aqueles que nos dão a resposta fácil e cômoda, de que forças do além virão em nosso auxílio sem que precisemos dispender muita energia. Grande parte das “maiorias” eleitorais e sindicais de hoje são conquistadas com este tipo de arrebanhamento. Uma estratégia política e sindical que pretenda falar em nome dos trabalhadores, mas não se baseie nas experiências históricas dos movimentos da classe explorada, e sim em preceitos religiosos e místicos, não são apenas promotores de novas derrotas, mas incentivam verdadeiros suicídios coletivos.
Muitos líderes políticos e sindicais, obviamente, reforçam essas ilusões com o claro objetivo de manter sua influência política e ideológica sobre uma massa de trabalhadores. Esta massa, tal como uma criança (mimada), também aceita tais ilusões “convenientes”, uma vez que lhe exigirá o mínimo esforço político e, inclusive, de mudança de postura, tal como apontou Freud desnudando a moral dupla. Por exemplo: uma coisa é a corrupção dos outros, outra é a que a gente comete. Uma coisa é os outros levando vantagem, a outra é a vantagem que nós levamos[ii]. Estes “imperativos éticos”, por menores que sejam se comparados com a corrupção e a vantagem dos políticos burgueses e dos grandes capitalistas, precisam ser debatidos com os trabalhadores para lhes imputar suas devidas responsabilidades sociais.
Uma dessas responsabilidades é a necessidade de levar em consideração as caras experiências do passado que verteram muito sangue e muitas lágrimas.

Os partidários do partido revolucionário e os partidários do antipartidarismo; ou: como a ingenuidade se deixa manipular pela maldade!
         Naqueles que possuem um sistema de crenças religioso ou místico percebe-se uma tendência a apoiar aquilo que gostaria que fosse verdade (podemos condescender que no campo político também desenvolvem-se nos militantes certas tendências de sistemas de crenças fechados que podem se converter em dogmas nefastos). Nestes casos, agem os afetos, que caminham no sentido do seu sistema de crença pré-estabelecido. Estas mentes não gostam de explicações singelas e dolorosamente reais; preferem algo fantástico, surreal e místico pelas sensações que causam no cérebro e no sistema nervoso de quem crê. A divisão psíquica do indivíduo descrita pelo psicanalista Christian Dunker serve perfeitamente para ilustrar essa afirmação: muitas pessoas sabem que agem de forma errada, mas continuam agindo como se não soubessem. Segundo Dunker, isso é o “retrato de como o saber é impotente diante do gozo”[iii].
         Percebemos também que muitas pessoas que atribuem todos os problemas políticos à existência de partidos e de “interesses partidários”, ignoram o debate teórico do movimento operário que acumulou e condensou grandes experiências do passado. Por exemplo: ao mesmo tempo em que condenam a existência de partido, não percebe que muitas vezes a direção de um sindicato é dominada por militantes de partidos que, apenas por dizerem priorizar o sindicato e não o seu partido – como se isso fosse, no geral, possível –, recebem toda a confiança destas mesmas pessoas, que lhe depositam os votos e as ilusões. O mesmo vale para um candidato em eleições que, apesar de se candidatar por um partido, diz-se “acima do partido”; aí as pessoas acreditam estar votando apenas “num amigo, parente” ou “num conhecido” que, apesar de estar em um partido, supostamente “seria diferente dele”. Em compensação, quando se deparam com militantes ligados à organizações revolucionárias, que falam abertamente possuir um programa político ou um “partido revolucionário” (pelo menos a intenção de construir um), estas pessoas são as primeiras a semear a dúvida e a desconfiança, muitas vezes virando as costas a quem lhe diz a verdade abertamente.
Por isso, podemos concluir que uma calúnia tem mais força que uma denúncia coerente, baseada na experiência histórica e concreta. A mente comum, crente e iludida, tende a cultuar a maldade não assumida e a condenar a verdade aberta. A maldade aberta não gera dúvida sobre as suas ações; já a verdade baseada na bondade e na clareza de ações, muitas vezes, sim. Lamentavelmente os trabalhadores não são educados para o debate questionador de uma comunidade científica sadia, mas são levados a acreditar em todo o tipo de embuste místico, religioso e político, guiados pelas ilusões plantadas pelos governos, igrejas e a mídia comercial. Assim, ficamos refém de dogmas e não de um debate livre capaz de despertar o que há de melhor em nós.
Como se tudo isso não bastasse, há o problema da coragem de se olhar a realidade de frente. O que hoje é apresentado como “debates chatos” sobre política é, na verdade, medo e receio de tirar conclusões óbvias de premissas dadas há muito tempo. Vivemos tempos tristes, em que procuramos “esquecer” verdades e experiências sociais dolorosas para beber na embriaguez das ilusões[iv]. Começa, então, uma busca desenfreada por passatempos vulgares, intriguinhas, fofocas, consolos, etc. Não que não se possa ter passatempos individuais ou desabafos com amigos para distensionar o estresse pessoal, mas para tudo há um limite e, em nenhum caso, ele pode se tornar uma desculpa para nos eximir de participar dos assuntos políticos e sociais. Inconscientemente se buscam “líderes” que reforcem estas ilusões para evitar que tenhamos que entrar em contato com estes sofrimentos ocasionados pelo contato com a dura realidade ou pelas experiências do passado que trazem cobranças inevitáveis das nossas responsabilidades sociais.
Tratar os trabalhadores como adultos passíveis de serem responsabilizados pelas suas falhas nestas responsabilidades passa a ser muito importante. Isso tudo não significa ignorar os problemas de burocratização sindical e política, bem como de repressão policial e estatal a que eles estão sujeitos, mas lembrá-los de que, apesar de tudo, possuem determinadas responsabilidades. Enquanto a esquerda for tolerante com a “falta de memória” seletiva do povo, a sua exploração estará assegurada pela eternidade.


NOTAS

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