Nazistas queimando livros: o 3º Reich queria apagar a memória teórica e histórica humana |
Povos e governos nunca aprenderam
coisa alguma com a história:
cada tempo é demasiado individual para isso.
(Hegel em “Lições sobre a filosofia da história”).
Montaigne dizia que na ordem das relações humanas
a realidade conta pouco.
Nos apegamos a ficções.
Preferimos a ilusão prazerosa ao desgosto da pálida
realidade.
(Christian Dunker em
“Reinvenção da intimidade”).
A espécie
humana busca explicação para todo o tipo de fenômeno que desperta sua
curiosidade ou coloca dilemas pela sobrevivência, indo desde a origem da vida,
o desvendamento do cosmos e da natureza, com todos os seus mistérios; até os
fatos históricos aparentemente fortuitos e sem conexão. A História e o seu
ensino escolar tentam dar uma explicação para a evolução da humanidade, tanto
para o seu surgimento, quanto para os dias de hoje. Como não poderia deixar de
ser, nos deparamos com muitas lacunas nestas explicações, porém, a base central
delas permanece fundamental: a experiência
humana, passada de geração para geração.
Não
haveria nenhum tipo de progresso se cada nova geração tivesse que descobrir o
fogo ou inventar a roda. A base da evolução humana provém exatamente dessa
capacidade da geração antiga passar sua experiência condensada em forma de
teoria à nova. No entanto, existem vários problemas neste processo, como o fato
de percebermos certos defeitos e insuficiências teóricas, além de uma tendência
irracional dos seres humanos persistirem no erro, muitas vezes não querendo ver
a realidade e não possuindo aquela qualidade que Freud recomendava aos
psicanalistas no congresso internacional de 1911: “aprendam a suportar a verdade”.
Portanto,
não basta compreender a importância da experiência e da sua transmissão de
geração para a geração, há que se voltar os olhos para a negação de grande
parte das pessoas em querer enxergar a dureza desta experiência e desta evolução,
procurando, ao invés disso, um consolo.
Daí provém inúmeras ilusões místicas e religiosas que ajudam os seres humanos a
suportarem a realidade ao invés de entendê-la para modificá-la. No campo
político isso se torna uma tragédia, pois é um prato cheio para cairmos na
lábia de um líder populista ou messiânico (seja ele “democrático” ou neofascista). Translademos essas ilusões
para o campo sindical e então a tragédia se transformará em apatia e numa
máquina de gerar ilusões que cobrará um preço alto demais para os
trabalhadores. Seu fardo será redobrado.
As
sociedades de classe, por outro lado, não se sustentariam 1 dia se este
problema não existisse. Sistemas como o escravismo e o feudalismo não o
conheceram profundamente porque não necessitavam dele. A visão mística da maior
parte das suas populações realizava por si mesma este trabalho de freio da luta
de classes. A História e a “ciência” eram conhecidas e estudadas por poucos. No
capitalismo, contudo, tornou-se questão de vida ou morte para a burguesia, que
criou uma indústria cultural e de jornalismo fake para disseminar a dúvida, a paralisia e o niilismo. A questão
é que grande parte da “esquerda” e dos seus movimentos sociais não olham este
problema de frente, para pensá-lo, repensá-lo e buscar soluções. Ao contrário:
em alguns casos, chega a reforçá-lo.
Muitas
pessoas que vivem nos estreitos limites do senso comum pensam que debater ou
“gostar” de política é “chato” e uma “opção individual”. Não a enxergam como
uma necessidade, como se pudéssemos prescindir de debatê-la e de olhá-la de
frente. As conclusões mais duras de cada experiência política deveriam ser
assimilada pelos trabalhadores e passadas adiante afim de evitar sua repetição.
Esta é a base de todo o movimento operário internacional e uma das principais
preocupações da teoria marxista. Porém, isso também é visto por muitos como
algo “chato”, “aborrecedor”, que deveria ficar a cargo dos políticos
profissionais e dos sindicalistas.
As
duras experiências históricas e políticas, quando analisadas e assimiladas,
podem entrar em conflito direto com o sistema de crenças individuais se ameaçam
a visão de mundo ideológica ou os interesses econômicos que geram estabilidade
individual (mesmo que pouca e restrita). Assim, há uma forte tendência
individual a negar fatos dolorosos das experiências passadas, abrindo espaço
para repetição de armadilhas. A burguesia e a sua mídia mercenária já
compreenderam como funcionam estas ilusões e sabem manejá-las muito bem.
Nos
períodos eleitorais (sejam na sociedade, nos sindicatos ou em qualquer outro
órgão) a negação da realidade e das experiências passadas serve para renovar as
ilusões e repetir derrotas. A memória apagada voluntária e convenientemente
tende a preservar nosso sistema de crenças e a nos possibilitar uma
estabilidade emocional. Tudo isso ocorre, na maioria das vezes,
inconscientemente. Em outras tantas ocasiões, não! Assim, o indivíduo acaba
jogando a culpa da sua má sorte sobre as pessoas do seu entorno, no destino ou
em “forças ocultas”. Aí entra um prato cheio para a exploração das igrejas
evangélicas, que atribuem tudo a forças demoníacas e não às ações executadas
pelo sistema econômico vigente de uma classe em detrimento de outra. Esse
sentimento é amplamente explorado, por exemplo, no fenômeno da fogueira santa
da Igreja Universal do Reino de Deus. Sem ele, talvez a própria fogueira santa
nem conseguisse existir.
Certamente
existem silêncios e receios de muitos trabalhadores que não são necessariamente
uma amnésia voluntária. Eles guardam, a ferro e fogo, na memória, muitas
experiências ruins do passado, mas são coagidos a ignorá-las ou aceitá-las pelo
sistema ditatorial dos locais de trabalho – onde o patrão, o governo, os
gerentes e capatazes exercem livremente o seu absolutismo totalitário – por
medo de cair no desemprego e na miséria. Excetuando estas hipóteses, voltamos
para os casos em que a zona de conforto e um oportunismo intrínseco a nós tende
a levar à conciliação e à aceitação. Por isso existe um esquecimento
conveniente e um fechar de olhos forçado para certas experiências que nos
exigem condutas que não estamos dispostos a dar naquele momento.
Vejamos
um exemplo do movimento sindical. As greves tendem a cometer os mesmos erros de
sempre e só são deflagrados quando chegam num limite. Muitos erros evitáveis
são repetidos porque examinar a experiência do passado é doloroso e, também, na
maioria das vezes exige uma mudança de postura. Aceitar um suposto caminho mais
fácil – que pode ser simplesmente repetir o que já foi feito – reforça ilusões
e crenças que contribuem momentaneamente com a estabilidade emocional que nos
faz seguir adiante. Porém, não tarda para na primeira esquina sofrermos uma
nova desilusão.
Seguidamente
as superstições religiosas e místicas entram em conflito consciente ou
inconscientemente com as caras experiências políticas do passado. Quem vence
este duelo? Evidentemente aqueles que nos dão a resposta fácil e cômoda, de que
forças do além virão em nosso auxílio sem que precisemos dispender muita
energia. Grande parte das “maiorias” eleitorais e sindicais de hoje são
conquistadas com este tipo de arrebanhamento. Uma estratégia política e
sindical que pretenda falar em nome dos trabalhadores, mas não se baseie nas experiências históricas
dos movimentos da classe explorada, e sim em preceitos religiosos e místicos,
não são apenas promotores de novas derrotas, mas incentivam verdadeiros
suicídios coletivos.
Muitos
líderes políticos e sindicais, obviamente, reforçam essas ilusões com o claro
objetivo de manter sua influência política e ideológica sobre uma massa de
trabalhadores. Esta massa, tal como uma criança (mimada), também aceita tais
ilusões “convenientes”, uma vez que lhe exigirá o mínimo esforço político e,
inclusive, de mudança de postura, tal como apontou Freud desnudando a moral
dupla. Por exemplo: uma coisa é a corrupção dos outros, outra é a que a gente comete.
Uma coisa é os outros levando vantagem, a outra é a vantagem que nós levamos[ii].
Estes “imperativos éticos”, por menores que sejam se comparados com a corrupção
e a vantagem dos políticos burgueses e dos grandes capitalistas, precisam ser
debatidos com os trabalhadores para lhes imputar suas devidas responsabilidades sociais.
Uma
dessas responsabilidades é a necessidade de levar em consideração as caras
experiências do passado que verteram muito sangue e muitas lágrimas.
Os
partidários do partido revolucionário e os partidários do antipartidarismo; ou:
como a ingenuidade se deixa manipular pela maldade!
Naqueles
que possuem um sistema de crenças religioso ou místico percebe-se uma tendência
a apoiar aquilo que gostaria que fosse verdade (podemos condescender que no
campo político também desenvolvem-se nos militantes certas tendências de
sistemas de crenças fechados que podem se converter em dogmas nefastos). Nestes
casos, agem os afetos, que caminham no sentido do seu sistema de crença pré-estabelecido.
Estas mentes não gostam de explicações singelas e dolorosamente reais; preferem algo fantástico, surreal e místico
pelas sensações que causam no cérebro e no sistema nervoso de quem crê. A
divisão psíquica do indivíduo descrita pelo psicanalista Christian Dunker serve
perfeitamente para ilustrar essa afirmação: muitas pessoas sabem que agem de
forma errada, mas continuam agindo como se não soubessem. Segundo Dunker, isso
é o “retrato de como o saber é impotente diante do gozo”[iii].
Percebemos
também que muitas pessoas que atribuem todos os problemas políticos à
existência de partidos e de “interesses partidários”, ignoram o debate teórico
do movimento operário que acumulou e condensou grandes experiências do passado.
Por exemplo: ao mesmo tempo em que condenam a existência de partido, não
percebe que muitas vezes a direção de um sindicato é dominada por militantes de
partidos que, apenas por dizerem priorizar o sindicato e não o seu partido –
como se isso fosse, no geral, possível –, recebem toda a confiança destas
mesmas pessoas, que lhe depositam os votos e as ilusões. O mesmo vale para um
candidato em eleições que, apesar de se candidatar por um partido, diz-se
“acima do partido”; aí as pessoas acreditam estar votando apenas “num amigo,
parente” ou “num conhecido” que, apesar de estar em um partido, supostamente “seria
diferente dele”. Em compensação, quando se deparam com militantes ligados à organizações
revolucionárias, que falam abertamente possuir um programa político ou um
“partido revolucionário” (pelo menos a intenção de construir um), estas pessoas
são as primeiras a semear a dúvida e a desconfiança, muitas vezes virando as
costas a quem lhe diz a verdade abertamente.
Por isso,
podemos concluir que uma calúnia tem mais força que uma denúncia coerente,
baseada na experiência histórica e concreta. A mente comum, crente e iludida,
tende a cultuar a maldade não assumida e a condenar a verdade aberta. A maldade
aberta não gera dúvida sobre as suas ações; já a verdade baseada na bondade e
na clareza de ações, muitas vezes, sim. Lamentavelmente os trabalhadores não
são educados para o debate questionador de uma comunidade científica sadia, mas são levados a acreditar em todo o
tipo de embuste místico, religioso e político, guiados pelas ilusões plantadas
pelos governos, igrejas e a mídia comercial. Assim, ficamos refém de dogmas e
não de um debate livre capaz de despertar o que há de melhor em nós.
Como se tudo
isso não bastasse, há o problema da coragem de se olhar a realidade de frente.
O que hoje é apresentado como “debates chatos” sobre política é, na verdade,
medo e receio de tirar conclusões óbvias de premissas dadas há muito tempo.
Vivemos tempos tristes, em que procuramos “esquecer” verdades e experiências
sociais dolorosas para beber na embriaguez das ilusões[iv].
Começa, então, uma busca desenfreada por passatempos vulgares, intriguinhas,
fofocas, consolos, etc. Não que não se possa ter passatempos individuais ou
desabafos com amigos para distensionar o estresse pessoal, mas para tudo há um
limite e, em nenhum caso, ele pode se tornar uma desculpa para nos eximir de
participar dos assuntos políticos e sociais. Inconscientemente se buscam
“líderes” que reforcem estas ilusões para evitar que tenhamos que entrar em
contato com estes sofrimentos ocasionados pelo contato com a dura realidade ou pelas
experiências do passado que trazem cobranças inevitáveis das nossas responsabilidades sociais.
Tratar os
trabalhadores como adultos passíveis de serem responsabilizados pelas suas
falhas nestas responsabilidades passa
a ser muito importante. Isso tudo não significa ignorar os problemas de
burocratização sindical e política, bem como de repressão policial e estatal a
que eles estão sujeitos, mas lembrá-los de que, apesar de tudo, possuem determinadas responsabilidades. Enquanto
a esquerda for tolerante com a “falta de memória” seletiva do povo, a sua
exploração estará assegurada pela eternidade.
NOTAS
[iii]
DUNKER, Christian. Reinvenção da intimidade – políticas do sofrimento
cotidiano. Ubu editora, São Paulo, 2017 (página 294).
[iv]
Este tema foi desenvolvido no conto O
homem que esquecia, disponível em: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2017/06/o-homem-que-esquecia.html
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