domingo, 22 de março de 2020

Filosofar é aprender a morrer

(Excertos do ensaio de Montaigne, 1533 - 1592)

Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. É assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplação retiram nossa alma de nós e a ocupam separada do corpo, o que constitui certo aprendizado da morte e tem semelhança com ela.
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"Todos nós somos empurrados para um mesmo ponto, a urna de todos nós é agitada, cedo ou tarde dali sairá a sorte que nos fará subir na barca para nosso fim eterno" (citação de Horácio). E, por conseguinte, se ela nos amedronta, é um contínuo motivo de tormento que nada consegue aliviar.
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A morte é o fim de nossa caminhada, é o objeto necessário de nossa mira; se nos apavora, como é possível dar um passo à frente sem ser tomado pela ansiedade? O remédio do vulgo é não pensar nela. Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira tão grosseira?
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Amedrontamos nossa gente só em mencionar a morte, e a maioria se persigna [se benze], como diante do nome do diabo.
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"Jamais o homem se protege o suficiente, de hora em hora, do perigo a evitar" (citação de Horácio).
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Uns vão, outros vêm, trotam, dançam, e sobre a morte nenhuma palavra. Tudo isso é muito bonito, mas quando ela chega, para eles ou para suas mulheres e filhos e amigos, surpreendendo-os de improviso e sem defesa, que tormentos, que gritos, que fúria e que desespero os dominam?
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Se a morte fosse um inimigo que se pode evitar, eu aconselharia empregar as armas da covardia: mas já que não se pode, já que ela vos agarra, tanto ao fugitivo e ao poltrão [covarde, medroso] como ao homem de honra, "decerto, ela também persegue o fujão e não poupa os jarretes nem o dorso de uma juventude sem valentia" (citação de Horácio); e que nenhuma couraça de aço temperado vos cobre; "nada adianta e este proteger-se do ferro cobrindo-se de aço, pois a morte, porém, descobrirá sua cabeça com capacete" (idem).
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Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte: a todo instante a representemos em nossa imaginação e em todos os aspectos.
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Entre as festas e a alegria, tenhamos sempre esse refrão da lembrança de nossa condição, e não nos deixemos arrastar tão fortemente pelo prazer que por vezes não nos volte à memória de quantos modos essa nossa alegria está na mira da morte, e por quantos golpes ela nos ameaça. Assim como os egípcios, que no meio de seus festins e entre seus melhores banquetes mandavam vir a anatomia seca de um homem para servir de advertência aos convivas. "Considera como teu último dia aquele que brilha para ti; a hora que não esperas mais virá para ti como uma graça" (idem).
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Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Saber morrer liberta-nos de toda a sujeição e imposição.
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Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver.
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Ademais, já que estamos ameaçados por tantas maneiras de morte, não é melhor enfrentar uma do que temê-las todas? Que importa quando será, já que é inevitável? Aquele que dizia a Sócrates: "os trinta tiranos te condenaram à morte", ele respondeu: "e a natureza a eles".
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É a condição de vossa criação; a morte é uma parte de vós; fugis de vós mesmos(?). Tudo o que viveis estais roubando da vida: e às expensas dela. A contínua obra de vossa vida é construir a morte.
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Onde quer que vossa vida acabe, ela está toda aí. A utilidade do viver não está na duração: está no uso que dele fizemos. (...) Se não soubeste usá-la, se ela vos foi inútil, que vos importa tê-la perdido? Para que ainda a quereis?
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Para que recuais se não podeis retroceder? Vistes muitos que se deram bem em morrer, evitando com isso grandes infortúnios. Mas vistes alguém que tenha se dado mal?
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Na verdade, creio que são esses semblantes e as cerimônias assustadoras de que nos cercamos que nos amedrontam, mais que ela: uma forma totalmente nova de viver; os gritos das mães, das mulheres e das crianças, a visita de pessoas emocionalmente e transidas, a presença numerosa de criados pálidos e chorosos, um quarto sem luz, velas acesas, nossa cabeceira invadida por médicos e pregadores, em suma, todo o horror e o pavor em torno de nós. Eis-nos já sepultados e enterrados. As crianças têm medo até de seus amigos quando os veem mascarados; nós também. É preciso tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas. Quando for retirada, só encontraremos embaixo essa mesma morte pela qual um criado ou uma camareira passaram ultimamente sem medo. Feliz a morte que não deixa tempo para os aprestos [preparativos] de tal viagem.

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