quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O establishment sindical

O establishment é uma força cega que nos move sem percebermos

 

Há um termo inglês comum em política, muito utilizado pela grande imprensa e por outras áreas, que define a estrutura hierárquica de funcionamento da nossa sociedade: o establishment. Ele designa uma estrutura social, econômica e política que exerce forte controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando como base dos poderes estabelecidos. Não se restringe apenas à política e às instituições do Estado, mas ao pensamento corrente defendido pela grande mídia e pela “opinião pública” moldada por esta. Várias medidas políticas e sociais tomadas pelos governos, bem como a conduta individual em sociedade, estão moldadas tacitamente pelo establishment; que é uma espécie de ethos: um conjunto de costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (das instituições, dos afazeres das pessoas comuns, etc.) e da cultura em geral (valores, ideias, crenças), características de uma determinada coletividade, época ou região.

            Quem molda o establishment são, evidentemente, e em primeiro lugar, os interesses econômicos da classe dominante. Em segundo, os séculos de tradições e hábitos não questionados, que são utilizados direta ou indiretamente por ela. Assim, quem fica de fora deste campo não-declarado é excluído praticamente de tudo (os chamados outsiders), chegando a ser ridicularizados ou, em casos extremos, a sofrer repressões violentas. O establishment pode ser comparado ao termo cunhado por Gramsci como hegemonia. Isto é, a classe dominante se sustenta não apenas na repressão policial e estatal, mas no “consenso ideológico” criado e imposto pelas igrejas, universidades, grande mídia (dentre outros). A isto, precisamente, Gramsci chamou de hegemonia política.

            Tal establishment ou hegemonia existe na sociedade oficial, sobretudo naquilo que este blog chamou de hipocrisia institucional (ou seja, toda a hipocrisia que existe nos parlamentos burgueses, bem como no seu poder judiciário e executivo, que escondem atrás de protocolos, de “tradições”, de “procedimentos institucionais”, de “legislações”, discursos e práticas vazias que servem apenas para esfriar e fazer a massa aceitar a sua condição subalterna[i]); mas também está presente no movimento sindical. Como sabemos, os sindicatos atuais estão envolvidos em uma lógica institucional e por uma teia de legislações que os subordinam totalmente à legalidade institucional burguesa (isto é: ao Estado burguês).

            Assim sendo, criam o seu establishment próprio que impede que ocorra uma real organização de base e que a “vida viva” que existe nas profundezas de cada categoria possa se expressar. A culminância desse establishment sindical se dá na censura às minorias organizadas que atuam nestes sindicatos. Os protocolos legalistas do movimento sindical atual asfixiam e matam a democracia real que seria o combustível necessário para o surgimento de um sindicalismo de base e que, de fato, fosse transformador.

 

A “fé profissional” no establishment

            Muitas pessoas – inclusas centenas de organizações de “esquerda” – acreditam no establishment como uma força independente, tal como uma espécie de fé religiosa, seja consciente ou inconscientemente. Se subordinam a ele tal como uma fatalidade divina. Estas pessoas não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Elas valorizam esta fé implícita e disfarçam para si mesmas a sua real descrença quando xingam os políticos e a politicagem (e mesmo as direções sindicais pelegas), mas aceitam cordialmente as imposições que vem através do establishment, como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra. Isso se dá desta forma porque é mais fácil “organizar” e impor subordinação à rebanhos humanos através das “forças invisíveis” que operam na nossa sociedade, mesmo com um discurso de “esquerda”.

            Thomas Paine escreveu sobre a crença profissional que resulta em mentiras mentais, as quais lidamos todos os dias nas pequenas e grandes coisas. Ele escreveu: “a descrença não consiste em acreditar, nem em desacreditar; consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É impossível calcular o dano moral, se é que possível chama-lo assim, que a mentira mental tem causado na sociedade. Quando o ser humano corrompeu e prostituiu de tal modo a castidade de sua mente, a ponto de empenhar a sua crença profissional em coisas que não acredita, ele está preparado para cometer qualquer outro crime”[ii].

            O establishment – como “força social invisível” que impõe “consensos” –, se alimenta, sobretudo, desta crença profissional de coisas em que não acreditamos, mas fingimos acreditar. Inúmeros são os militantes e as organizações sindicais e de “esquerda” que tornam-se “crentes profissionais” de ideologias, discursos, protocolos e métodos “que não acreditam”. Se tudo isso ainda não está evidente, que se aguce mais a visão e os ouvidos para se tentar perceber.

 


O establishment sindical é uma micro reprodução do establishment parlamentar e político

            O que se passa nos sindicatos é uma micro reprodução do que se passa nos parlamentos e na política burguesa que ocorre a nível nacional e mundial. Já analisamos a hipocrisia institucional resultante da forma de funcionamento das instituições burguesas. A corrupção que corre livre, leve e solta nestas instituições é o reflexo inevitável dessa forma de funcionamento, onde o eleito está completamente livre do eleitor, devendo responder à institucionalidade, e não a quem o elegeu. O mecanismo está tão bem montado e blindado, que se torna praticamente impossível destituí-lo. A massa em geral não percebe tais limitações e vê problema apenas na “conduta ética” dos políticos, que “poderiam agir do modo correto” se assim o quisessem.

            É claro que esta visão foi plantada por décadas no inconsciente coletivo do povo pela grande mídia, mas para cada indivíduo aparece como se fossem seus próprios pensamentos. Está aí, por exemplo, uma das grandes prisões mentais que solidificam a estrutura social de exploração do nosso país (e de muitos outros no mundo). Na sociedade burguesa, a política é apenas para “profissionais” e nada, nem ninguém, pode lhes tirar o “direito” que é visto quase como um mandato divino. O establishment político está firmemente alicerçado na hipocrisia institucional atual (blindado, como foi dito, por uma hipocrisia intrínseca de protocolos, hábitos, legislações, etc.). Não ocorre à classe trabalhadora que é necessário demolir as instituições políticas atuais e modifica-las, dando poder de fato aos de baixo. Seria o único jeito de “controlar” quem está em cima.

            O mesmo se passa com o mundo sindical, embora tal establishment não esteja previsto em uma legislação formal, sendo mais tácito do que explícito e oficial. Nos sindicatos ocorre um acordo informal entre as correntes políticas e sindicais que os controlam, que excluem correntes minoritárias e ativistas independentes que são questionadores. Para isso, se escondem atrás da “legislação” burocrática – nesse caso, reproduzindo tal e qual o establishment político e parlamentar –, que degenera em uma série de censuras, controles de falas e asfixiamento de divergências.

            No CPERS, por exemplo, que é um dos maiores sindicatos da América Latina, impera um acordo informal, inexistente no seu estatuto, em que só tem direito a fala de avaliação de conjuntura nas assembleias gerais as correntes sindicais que foram eleitas ao Conselho Geral. Isto é uma invenção política para solidificar o establishment sindical, baseado nas mesmas forças políticas e sindicais de sempre. Cria-se um círculo vicioso, que reforça não apenas a estrutura vertical dos sindicatos, bem como reforça indiretamente a própria estrutura política da sociedade de classes.

            Uma boa contribuição para repensarmos esta prática advém do humanismo freiriano, que é uma necessidade para a nova prática sindical em que devemos apostar. Tal pedagogia apregoa que precisamos aprender a ouvir os outros para dar fim ao “fascismo sindical” – isto é, terminar com as práticas de abafamento burocrático ou aberto de minorias que tentam sinceramente propor e debater políticas sindicais e o fim do “grenalismo”, que não pode gerar outro sentimento que não o ódio entre nós. As pessoas devem estar acima do establishment; e não o establishment acima delas. Pode parecer uma conclusão simplória e óbvia, mas às vezes reforçar o simples e o óbvio é mais do que necessário.

            Algum representante das correntes sindicais majoritárias pode argumentar, num último lampejo de honestidade, que tais correntes minoritárias, geralmente de cunho sectário, iriam criar inúmeras dificuldades com políticas megalomaníacas, inclusive podendo levar ao fim do próprio sindicato. Tais acusações estão mais baseadas na “facilidade” que é ignorar as divergências abafando-a com a patrola das legislações e das “maiorias” do que em um esforço sincero e honesto de entender e ouvir o outro. Tais grupos sectários, com suas propostas mirabolantes, devem sempre ser chamados para a realidade. O debate deve ser feito e não jogado para debaixo do tapete com o tacão do establishment de direção política dos sindicatos. Vejam um pequeno exemplo: Lenin à frente do governo soviético lançou o livro “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (sempre muito citado pelo oportunismo brasileiro, mas pouco lido e compreendido). O debate com estas “minorias sectárias” foi esmiuçado e trazido à luz; e não simplesmente suprimido.

            Um sindicato não é e não pode ser propriedade privada de nenhuma corrente majoritária (esta tem sido, infelizmente, a regra). Todo trabalhador e toda trabalhadora (bem como seus respectivos agrupamentos) devem ser ouvidos e o debate deve ocorrer, por mais difícil e desgastante que isso seja. Acolher todas as demandas e bandeiras e propor o debate aberto sempre que possível e, inclusive, colocar os proponentes de projetos mirabolantes de frente para as próprias contradições de suas propostas é o método mais correto – isto é: dar-lhes uma parte do poder para que executem e vejam como se saem na prática (geralmente demonstrando a inconsistência de suas propostas). Assim se cria um caminho alternativo contra o encastelamento dos sindicatos em si mesmos.

            Os projetos oportunistas, que comprometem os sindicatos com agendas do establishment oficial dos governos burgueses, devem ser combatidos, sempre com argumentos, teses, discursos e, sobretudo, com coerência; jamais com o abafamento pelo peso do aparato. Esse ethos de submissão e rebanho; isto é: esta “força invisível” precisa ser desnudada e trazida à luz da consciência, pois ela decide políticas, posições de “maioria” e molda práticas, submissões não declaradas e, muitas vezes, sequer percebidas. Funciona quase como uma “religião organizada”. Quanto mais conscientes estivermos sobre o peso morto dos hábitos, da tradição, dos protocolos “vazios e chochos” do establishment político e sindical, que servem unicamente para apagar o incêndio da indignação e das iniciativas questionadoras, melhor poderemos desenvolver um sindicalismo organizado pela base, que seja a representação mais próxima do possível dos interesses sinceros e autênticos da classe trabalhadora (ainda que hoje, em sua maioria, estejam submersos no inconsciente coletivo).

 

 

REFERÊNCIAS


[ii] PAINE, Thomas. The age of reason In SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela no escuro. Companhia de Bolso, São Paulo, 2013 (página 238).

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