O establishment é uma força cega que nos move sem percebermos |
Há um termo inglês comum em política,
muito utilizado pela grande imprensa e por outras áreas, que define a estrutura
hierárquica de funcionamento da nossa sociedade: o establishment. Ele designa uma estrutura social, econômica e
política que exerce forte controle sobre o conjunto da sociedade, funcionando
como base dos poderes estabelecidos. Não se restringe apenas à política e às
instituições do Estado, mas ao pensamento corrente defendido pela grande mídia
e pela “opinião pública” moldada por esta. Várias medidas políticas e sociais
tomadas pelos governos, bem como a conduta individual em sociedade, estão
moldadas tacitamente pelo establishment;
que é uma espécie de ethos: um
conjunto de costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento (das
instituições, dos afazeres das pessoas comuns, etc.) e da cultura em geral
(valores, ideias, crenças), características de uma determinada coletividade,
época ou região.
Quem
molda o establishment são,
evidentemente, e em primeiro lugar, os interesses econômicos da classe
dominante. Em segundo, os séculos de tradições e hábitos não questionados, que
são utilizados direta ou indiretamente por ela. Assim, quem fica de fora deste campo
não-declarado é excluído praticamente de tudo (os chamados outsiders), chegando a ser ridicularizados ou, em casos extremos, a
sofrer repressões violentas. O establishment
pode ser comparado ao termo cunhado por Gramsci como hegemonia. Isto é, a classe dominante se sustenta não apenas na
repressão policial e estatal, mas no “consenso ideológico” criado e imposto pelas
igrejas, universidades, grande mídia (dentre outros). A isto, precisamente,
Gramsci chamou de hegemonia política.
Tal
establishment ou hegemonia existe na sociedade oficial, sobretudo naquilo que este
blog chamou de hipocrisia institucional
(ou seja, toda a hipocrisia que existe nos parlamentos burgueses, bem como no
seu poder judiciário e executivo, que escondem atrás de protocolos, de
“tradições”, de “procedimentos institucionais”, de “legislações”, discursos e
práticas vazias que servem apenas para esfriar e fazer a massa aceitar a sua
condição subalterna[i]);
mas também está presente no movimento sindical. Como sabemos, os sindicatos
atuais estão envolvidos em uma lógica institucional e por uma teia de
legislações que os subordinam totalmente à legalidade institucional burguesa
(isto é: ao Estado burguês).
Assim
sendo, criam o seu establishment
próprio que impede que ocorra uma real organização de base e que a “vida viva”
que existe nas profundezas de cada categoria possa se expressar. A culminância
desse establishment sindical se dá na
censura às minorias organizadas que atuam nestes sindicatos. Os protocolos legalistas
do movimento sindical atual asfixiam e matam a democracia real que seria o
combustível necessário para o surgimento de um sindicalismo de base e que, de
fato, fosse transformador.
A
“fé profissional” no establishment
Muitas
pessoas – inclusas centenas de organizações de “esquerda” – acreditam no establishment como uma força
independente, tal como uma espécie de fé religiosa, seja consciente ou
inconscientemente. Se subordinam a ele tal como uma fatalidade divina. Estas
pessoas não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as dúvidas que têm a
respeito desses assuntos. Elas valorizam esta fé implícita e disfarçam para si
mesmas a sua real descrença quando xingam os políticos e a politicagem (e mesmo
as direções sindicais pelegas), mas aceitam cordialmente as imposições que vem
através do establishment, como se uma
coisa não tivesse nada a ver com a outra. Isso se dá desta forma porque é mais
fácil “organizar” e impor subordinação à rebanhos humanos através das “forças
invisíveis” que operam na nossa sociedade, mesmo com um discurso de “esquerda”.
Thomas
Paine escreveu sobre a crença profissional que resulta em mentiras mentais, as
quais lidamos todos os dias nas pequenas e grandes coisas. Ele escreveu: “a descrença não consiste em acreditar, nem
em desacreditar; consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É
impossível calcular o dano moral, se é que possível chama-lo assim, que a
mentira mental tem causado na sociedade. Quando o ser humano corrompeu e
prostituiu de tal modo a castidade de sua mente, a ponto de empenhar a sua
crença profissional em coisas que não acredita, ele está preparado para cometer
qualquer outro crime”[ii].
O
establishment – como “força social
invisível” que impõe “consensos” –, se alimenta, sobretudo, desta crença
profissional de coisas em que não acreditamos, mas fingimos acreditar. Inúmeros
são os militantes e as organizações sindicais e de “esquerda” que tornam-se “crentes
profissionais” de ideologias, discursos, protocolos e métodos “que não
acreditam”. Se tudo isso ainda não está evidente, que se aguce mais a visão e
os ouvidos para se tentar perceber.
O
establishment sindical é uma micro
reprodução do establishment
parlamentar e político
O
que se passa nos sindicatos é uma micro reprodução do que se passa nos
parlamentos e na política burguesa que ocorre a nível nacional e mundial. Já
analisamos a hipocrisia institucional resultante da forma de funcionamento das
instituições burguesas. A corrupção que corre livre, leve e solta nestas
instituições é o reflexo inevitável dessa forma de funcionamento, onde o eleito
está completamente livre do eleitor, devendo responder à institucionalidade, e
não a quem o elegeu. O mecanismo está tão bem montado e blindado, que se torna
praticamente impossível destituí-lo. A massa em geral não percebe tais
limitações e vê problema apenas na “conduta ética” dos políticos, que “poderiam
agir do modo correto” se assim o quisessem.
É
claro que esta visão foi plantada por décadas no inconsciente coletivo do povo
pela grande mídia, mas para cada indivíduo aparece como se fossem seus próprios
pensamentos. Está aí, por exemplo, uma das grandes prisões mentais que
solidificam a estrutura social de exploração do nosso país (e de muitos outros
no mundo). Na sociedade burguesa, a política é apenas para “profissionais” e
nada, nem ninguém, pode lhes tirar o “direito” que é visto quase como um
mandato divino. O establishment
político está firmemente alicerçado na hipocrisia institucional atual
(blindado, como foi dito, por uma hipocrisia intrínseca de protocolos, hábitos,
legislações, etc.). Não ocorre à classe trabalhadora que é necessário demolir
as instituições políticas atuais e modifica-las, dando poder de fato aos de baixo.
Seria o único jeito de “controlar” quem está em cima.
O
mesmo se passa com o mundo sindical, embora tal establishment não esteja previsto em uma legislação formal, sendo
mais tácito do que explícito e oficial. Nos sindicatos ocorre um acordo
informal entre as correntes políticas e sindicais que os controlam, que excluem
correntes minoritárias e ativistas independentes que são questionadores. Para
isso, se escondem atrás da “legislação” burocrática – nesse caso, reproduzindo
tal e qual o establishment político e
parlamentar –, que degenera em uma série de censuras, controles de falas e
asfixiamento de divergências.
No
CPERS, por exemplo, que é um dos maiores sindicatos da América Latina, impera
um acordo informal, inexistente no seu estatuto, em que só tem direito a fala
de avaliação de conjuntura nas assembleias gerais as correntes sindicais que
foram eleitas ao Conselho Geral. Isto é uma invenção política para solidificar
o establishment sindical, baseado nas
mesmas forças políticas e sindicais de sempre. Cria-se um círculo vicioso, que
reforça não apenas a estrutura vertical dos sindicatos, bem como reforça
indiretamente a própria estrutura política da sociedade de classes.
Uma
boa contribuição para repensarmos esta prática advém do humanismo freiriano, que é uma necessidade para a nova prática
sindical em que devemos apostar. Tal pedagogia apregoa que precisamos aprender
a ouvir os outros para dar fim ao “fascismo sindical” – isto é, terminar com as
práticas de abafamento burocrático ou aberto de minorias que tentam
sinceramente propor e debater políticas sindicais e o fim do “grenalismo”, que
não pode gerar outro sentimento que não o ódio entre nós. As pessoas devem
estar acima do establishment; e não o
establishment acima delas. Pode
parecer uma conclusão simplória e óbvia, mas às vezes reforçar o simples e o
óbvio é mais do que necessário.
Algum
representante das correntes sindicais majoritárias pode argumentar, num último
lampejo de honestidade, que tais correntes minoritárias, geralmente de cunho
sectário, iriam criar inúmeras dificuldades com políticas megalomaníacas,
inclusive podendo levar ao fim do próprio sindicato. Tais acusações estão mais
baseadas na “facilidade” que é ignorar as divergências abafando-a com a patrola
das legislações e das “maiorias” do que em um esforço sincero e honesto de
entender e ouvir o outro. Tais grupos sectários, com suas propostas
mirabolantes, devem sempre ser chamados para a realidade. O debate deve ser
feito e não jogado para debaixo do tapete com o tacão do establishment de direção política dos sindicatos. Vejam um pequeno
exemplo: Lenin à frente do governo soviético lançou o livro “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”
(sempre muito citado pelo oportunismo brasileiro, mas pouco lido e
compreendido). O debate com estas “minorias sectárias” foi esmiuçado e trazido
à luz; e não simplesmente suprimido.
Um
sindicato não é e não pode ser propriedade privada de nenhuma corrente
majoritária (esta tem sido, infelizmente, a regra). Todo trabalhador e toda
trabalhadora (bem como seus respectivos agrupamentos) devem ser ouvidos e o
debate deve ocorrer, por mais difícil e desgastante que isso seja. Acolher
todas as demandas e bandeiras e propor o debate aberto sempre que possível e, inclusive,
colocar os proponentes de projetos mirabolantes de frente para as próprias
contradições de suas propostas é o método mais correto – isto é: dar-lhes uma parte do poder para que executem e
vejam como se saem na prática (geralmente demonstrando a inconsistência de suas
propostas). Assim se cria um caminho alternativo contra o encastelamento dos
sindicatos em si mesmos.
Os
projetos oportunistas, que comprometem os sindicatos com agendas do establishment oficial dos governos
burgueses, devem ser combatidos, sempre com argumentos, teses, discursos e,
sobretudo, com coerência; jamais com o abafamento pelo peso do aparato. Esse ethos de submissão e rebanho; isto é:
esta “força invisível” precisa ser desnudada e trazida à luz da consciência,
pois ela decide políticas, posições de “maioria” e molda práticas, submissões
não declaradas e, muitas vezes, sequer percebidas. Funciona quase como uma
“religião organizada”. Quanto mais conscientes estivermos sobre o peso morto
dos hábitos, da tradição, dos protocolos “vazios e chochos” do establishment político e sindical, que
servem unicamente para apagar o incêndio da indignação e das iniciativas
questionadoras, melhor poderemos desenvolver um sindicalismo organizado pela
base, que seja a representação mais próxima do possível dos interesses sinceros
e autênticos da classe trabalhadora (ainda que hoje, em sua maioria, estejam
submersos no inconsciente coletivo).
REFERÊNCIAS
[i]
Ver neste blog: http://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/10/a-hipocrisia-institucional-e-o-petismo.html
[ii] PAINE, Thomas. The age of reason In SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios – a ciência vista como uma vela no
escuro. Companhia de Bolso, São Paulo, 2013 (página 238).
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