terça-feira, 11 de maio de 2021

A elite do atraso e o "povo-público"


A burguesia brasileira já foi muito bem classificada como "a elite do atraso". Isto significa dizer que a sua riqueza e prosperidade individuais estão assentadas no atraso econômico, político e social da esmagadora maioria da população do nosso país. Assim se deu em toda a história do Brasil 
 assim continua sendo nos dias de hoje. Muitos pensadores brasileiros já perceberam, corretamente, que qualquer "modernização" por aqui se deu através de vias conservadoras, ao que, deram o nome de "modernização conservadora", compactuada pelo alto, sem envolver ou consultar o povo.

Contudo, devemos ver o avesso da moeda com a mesma criticidade. A elite do atraso não paira no ar em nuvens brancas e confortáveis. Ela conta, em grande parte, com aquilo que Lima Barreto definiu como "povo-público". Segundo ele, o Brasil não teria povo, mas "público". Ou seja: a massa humana ficaria assistindo o desdobrar da política e da economia como o público de uma novela ou de um filme — ou em casos mais graves e hilários, como uma "torcida organizada", já que temos o título miserável de ser o "país do futebol".

Por um lado, uma elite do atraso precisa educar seu "povo" no sentido de ser apenas público — e se não conseguir pelas "vias boas" da "educação" e da grande mídia, vai recorrer às "más", com o cacetete policial em riste e as "intervenções militares" (não é uma casualidade que a elite do atraso idolatre a ditadura militar e idealize os coturnos e as fardas). Por outro lado, há no povo uma passividade muito grande, seja por medo ou por criação. Reconhecer isso não significa ignorar os inúmeros levantes populares que ocorreram ao longo da história do Brasil, com destaque especial para o Quilombo dos Palmares; mas tentar identificar quais raízes culturais, econômicas, sociais e psicológicas agem no sentido de apascentar a população como público.

Vozes saltarão, extremamente ofendidas, dizendo que se trata de violência de classe, da intimidação policial e militar, ao que não há nada a se objetar. De fato, isso é realmente um dos recursos prioritários da elite do atraso, seja a violência física ou a violência simbólica (dos discursos, valores, da meritocracia, da "justiça", da grande mídia, etc.). A revolta latente em outros povos — como o russo, o francês, o cubano ou mesmo o argentino e o uruguaio — encontra algum fio de continuidade ao longo da história, onde a população se alçava da condição de público para a de "povo", entendido sob os moldes estreitos da Revolução Francesa de 1789, 1830, 1848 e 1871.

Tivemos no Brasil um grande prejuízo a uma possível unificação da rebelião popular, dado a sua grandeza geográfica e disparidade regional. Tal problema parecia demonstrar que quando uma região despertava, a outra estava adormecida. Só no século XX e, sobretudo, a partir do século XXI, com as mobilizações de 2013, isso pareceu se modificar um pouco. Há, no entanto, uma certa busca inconsciente do povo mobilizado por se amoldar a discursos vazios e colocar-se na posição de subordinado, dependente; numa palavra: de "filhos" que seguem algum "pai".

Isto se explica, em parte, por séculos de doutrinação católica, que disseminou os valores da submissão e da espera passiva de um redentor (ou salvador da pátria, no linguajar mais recorrente). Esta concepção está disseminada de norte a sul do país e é parte fundamental da sua cultura, pesando na composição psicológica de "povo-público". Outra parcela de explicação podemos encontrar na doutrinação neoliberal e democrático-burguesa da grande mídia, que funciona 24h por dia, tentando colocar panos quentes e justificar as maiores barbaridades para acalmar o povo frente aos escândalos de rapinagem e os abusos mais escabrosos por parte do mercado e do setor privado. Se nada disso funcionar, ainda temos o exército de sádicos-perversos que clamam por intervenção militar e, portanto, se colocam de prontidão para apoiar golpes militares, a repressão das lutas sociais e o assassinato de pobres nas periferias.

Tudo isso pesa, sem sombra de dúvidas, para formar a mentalidade do nosso "povo-público", mas não explica todo o fenômeno; a não ser, é claro, que a gente idealize o povo e só lhe atribua "qualidades" e uma irremediável sina de ser enganado por "direções perversas". Há aqui uma inocência flagrante tanto no povo quanto na sua "vanguarda" (em especial naquela que se reivindica da "esquerda revolucionária"). Ou seja, haveria no povo uma inocência congênita, explorada cruelmente pelas direções oportunistas (e perversas), que só seria superada mais ou menos espontaneamente a partir de uma explosão popular em que ele passaria a procurar uma direção política honesta e livre dessas perversidades. Assim como, de fato, há muita ingenuidade no povo, há também uma série de outros problemas contraditórios, incluindo o desejo de permanecer na condição inocente de filho, uma vez que o processo de se despertar desta inocência é doloroso por nos fazer ver que nem tudo é seguro e belo no mundo. Além disso, exige postura e posicionamento político — e se posicionar, como sabemos, dá trabalho, dói e gera inimigos. 

Nenhum indivíduo tem a permissão de permanecer inocente pra sempre, embora muitas vezes busque inconscientemente essa condição. Assim como o povo trabalhador perde a paciência e se rebela, ele também demonstra fontes inesgotáveis de passividade, buscando direções que alimentem suas ilusões na "inocência" de uma saída fácil e negociada, onde não haja violência e conflito. Já as organizações da "esquerda revolucionária" julgam que se trata apenas de um "alinhamento de astros"; qual seja: o despertar da raiva popular com a sua política revolucionária "perfeita". Não percebe que a construção dessa política — para ser real — precisa se chocar cotidianamente com o atraso do "povo-público", não lhe perdoando os "escorregões inocentes" que expressam o seu desejo de ser eternamente uma criança e de fugir às suas responsabilidades sociais. Para que a esquerda revolucionária possa crescer precisa encarar o fato de que as coisas não são como parecem ser nos "manuais teóricos" (sobretudo para aqueles que leem teoria revolucionária como um dogma religioso) e nos nossos desejos pessoais, geralmente confundidos com a realidade.

Os tempos atuais colocam a possibilidade de novas formas de comunicação e busca de conhecimento, ainda que, obviamente, todas elas estejam condicionadas pela ditadura do grande capital. Aqui neste debate não se trata de comprar os mitos tolos da intelectualidade burguesa, como o malfadado "jeitinho brasileiro", que se caracterizaria por ser geneticamente "malandro". Nada disso! Trata-se de investigar aquele espírito conciliador e dependente, literalmente de "público", muito bem identificado por Lima Barreto na sua literatura. Ou aquela prática perniciosa de se entregar ao primeiro aventureiro burocrático e reformista que se apresenta nas lutas sociais e nos sindicatos. Não é a toa que Lula continua sendo a sua "grande esperança". Existiria protagonista melhor para esta novela que o "povo-público" pretende assistir da poltrona de casa? PT, PCdoB e Psol sabem explorar essa consciência eleitoral e passiva como ninguém (em parte, são uma espécie de subproduto dela).


Pode-se objetar de mil formas a dura afirmação de Lima, mas jamais condená-lo por estar afastado do povo. Nascido e criado no subúrbio carioca, conheceu de perto suas mazelas, seus sofrimentos, suas ilusões — sem falar nas que ele próprio sentiu na pele. Era conhecedor também das rebeliões populares do mundo e particularmente simpatizante da Revolução Russa de 1917. Talvez por isso Lima Barreto tenha percebido esse apascentamento da população brasileira em comparação com os demais povos, chegando a descrevê-lo em sua obra. A mentalidade submissa a tudo o que é estrangeiro e que fala inglês: isto é, o vergonhoso espírito vira-lata, cultivado cuidadosamente pela elite do atraso e pela sua grande mídia.

Não! Toda essa discussão não serve para justificar qualquer paralisia ou realidade social como imutável. Muito antes pelo contrário. Ela quer trazer um problema não examinado à luz da consciência para combatê-lo o mais efetivamente possível, sem idealizar a massa e sem esperar que, espontaneamente, ela mude sozinha apenas com o aparecimento milagroso de uma direção. Para que esta direção surja, é necessário estudar o problema e intervir sobre ele (não ignorá-lo). Diagnosticar um sintoma serve para poder propor um tratamento adequado — mesmo que ele ainda não exista —, não se concentrando no problema — ou se iludindo com ele — , mas tentando buscar uma solução. Não é preciso comentar os danos causados por quem finge que ele não existe ou pode ser desprezado.

A dialética da elite do atraso e do "povo-público" é uma triste realidade que precisa ser enfrentada com coragem. O povo não deve ser bajulado demagogicamente, nem tratado como "coitadinho", tal como faz a "esquerda" que vai do PT às organizações menores; mas conscientizado. Isso vai de encontro ao espírito de Marx, que afirmou a necessidade de ensinar ao povo horrorizar-se consigo mesmo, para insuflar-lhe coragem. Se trazer este debate à tona fere egos e suscetibilidades, nada se pode fazer, a não ser tentar compreendê-lo. Se alguém se nega a fazê-lo por medo de perder influência e voto (que nem existem, a bem da verdade) é um "criminoso político", um eleitoreiro; em suma: um oportunista! Se alguém se nega a este debate porque um suposto futuro vindouro irá fazer o povo levantar-se semi-espontaneamente e redimir-se de seus erros por que já traz dentro de si o "DNA revolucionário", bastando despertá-lo com um sopro divino da nossa política pré-pronta, é um sectário, um doutrinador, um religioso!

A realidade está aí para quem tiver olhos (e coragem!) pra ver. Há muito trabalho político e teórico pela frente e a necessidade do diagnóstico correto e da criatividade se fazem fundamentais. Repetir velhas fórmulas e ignorar o que está embaixo do nosso nariz serve muito mais para manter tudo como está, do que o debate que pretende investigar o que até agora não tem sido muito bem analisado — e muitas vezes sumariamente negado — por aqueles que pretendem revolucionar a sociedade brasileira: que forças fazem o Brasil ter um "povo-público" que sustenta uma elite do atraso?

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